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TICIANO, OVIDIO ” E OS CODIGOS DA FIGURACAO EROTICA NO SECULO XVI 1, Disfargado de eunuco, um dos personagens do Eunuco de ‘Teréncio, 0 jovem Quérea, insinua-se na casa onde mora sua ama- da. (A rena jd se tealizan atrés das hastidores: € 0 proprio Qué- rea que a narra ao irmio.) A moga se prepara para o banho. Os olhos de ambos caem num quadro pendurado na parede, que re- presenta 0 encontro de Jipiter ¢ Danae (“tabulam quandam pictam: ibi inerat pictura haec, Jovem/ Quo pacto Danaae misisse fiunt quondam in gremium imbrem aureum” [uma tébua pinta- da; ali se figurava Jipiter, que dizem ter enviado uma chuva de ‘ouro sobre 0 regago de Danae]). O jovem exulta consigo mesmo 4o pensar que em breve imitaré mais alto dos deuses, aquele “qui templa caeli summa suo natu quatit” [que abala os templos mais elevados dos céus com um mero aceno de sua fronte], sedu- zindo a moga: “ego homuncio hoc non facerem? facerem ego illud vero itidem ac lubens” [eu, um honmineulo, nfo faria isso? eu faria do mesmo modo ¢ com prazer] Essa passagem foi citada vilrias vezes por santo Agostino para mostrar os efeitos nefastos das pinturas licenciosas. Através de santo Agostinko, ela entrou na discusséo sobre as imagens que eclodin na Tgreja catélica durante o século xvi, O teélogo Johan- nes Molanus lembrou 9s versos de Teréncio, ¢ o indignado comen- titio de Agostinho, num capitulo do seu tratado De picturis et imaginibus secris (1570) intitulado “In picturis cavendum esse quidquid libidinem provocat”. Quase trinta anos antes, 0 pole- 119 mista dominicano Ambrogio Catarino Politi, no seu De cultw i sginum (1542), havia feito © mesmo, mas com um objetivo di rente: o de demonstra: por via analégica, através da reagio jovem Quérea a representagio dos amores de Jupiter e Danae, eficdcia das imagens sactas? 2. A passagem do Eunuco eo seu destino no século xv pi poem de mancira implicita ¢ sintética uma série de problemas treitamente ligados enire si, em parte conhecidos, em parte nfo. ‘Tentemos enumeré-los. 4) Comecemos pelo mais geral: como atua uma imagem tica? A resposta (foi dito) varia conforme 0 ato sexual seja nao representado diretamente. No primeiro caso, 0 espectador fruidor identificase com as figuras que realizam o ato. (E de s€ notar que o piblico a0 qual se ditigem os imagens erdticas & excl: sivamente masculino, por Sbvias razGes histéricas; 0 que se suge: re, portanto, é a identificagio com o protagonista masculino.} No segundo, o cspectador-fruidor identifica nas figuras representadas (mulheres nuas, geralmente, pelo motivo jd mencionado) os par ceitos de uma imaginéria relagio sexual. Em ambos 0s 2303, 0 papel do espectador-fruidor é substancialmente © de voyeur.” Mas também podem ocorrer variantes intermedidrias. Nas representa: ‘ges dos amores entre Jipiter ¢ Danae, o ato sexual é representa: do, porém de maneira simbélica (fipiter aparece sob a forma de chuva de ouro); isso permite a0 jovem Quérea substituir mental: mente Jipiter no leito de Danae ¢, simultaneamente, identifica se com 0 proprio Jipiter. O voyeurismo do espectador-fruidor adguire uma carga narcisista: através do coito, Quérea — um hhomem qualquer, um homem de nada, um “homuncio” (homiin= culo) — tora-se semelhante ao altfssimo Jipiter, que com o trovao faz tremer os céus. 5) © processo psicolégico que descrevemos assume formas diversas conforme a relagio que se estabelece entre a realidade da qual participa o espectadorfruidor ¢ a realidade representada na imagem erética, Essa relagio & condicionada pelos oédigos — ccaltural e estilistieo — em que a imagem é formulada, As duas realidades podem ser homogéneas ou heterogéneas; neste iltimo 120 too, pode haver uma guinada para baixo (o cémico ou o vulgar) (0u para o alto (0 trégico ou o sublime) Do quadro mencionado por Teréncio conhecemos 0 cddiga cultural, nao 0 cédigo estilisti- 4 (mesmo podendo presumiclo com uma certa aproximagio)§ De qualquer mancita, 0 efeito era uma guinada para o alto: através ile um eddigo elevado como o mitolégico, Quérea podia chegar a \entificar-se com o altissimo Jupiter. ©) A questiio do nivel (alto, médio, baix) dos cédigos em- jptogados nas figuragdes exéticas desloca a discussfo do espectador- fyuidor para a obra. O que € uma imagem erdtica? Em sentido irito, € uma imagem que se propde de modo deliberado (mesmo que nfo exclusive) excitar sexualmente 0 espectador-fruidor* Tal er provavelmente © quadro visto por Quérea (a cena ocorte na casa da cortesi Taide). Mas a intencionalidade que est4 por tris da imagem € muitas vezes dificil de decifrar. Uma definigao mais impla deveria, pois, incluir também as imagens que, para além das intenedes dos seus autores, acabam por assumir, talvez a uma certa distincia de tempo, uma carga erética aos olhos do piiblico (ou de wma parte dele). d} Durante o século xv a questo das imagens eréticas, in- tencionais e supra-intencionais, tornou-se objeto de uma atengio cada vez mais preocupada por parte da hierarquia catélica, como mostram também os textos jé lembrados de Politi ¢ Molanus. Nessa atengo confluem dois fenémenos diferentes, mas estreita: mente ligados entre si (num certo sentido, 0 primeiro nfo era eno um aspecto do segundo). Por um Tado, a tentativa de con trolar a vida sexual de modo extenso € minacioso. Por outro, o pro- posito de servir-se das imagens para restabelecer uma relacio, fre quentemente afrouxeda ou rompida, com as massas dos figis (mas em alguns casos tratava-se até de estabelecer totalmente uma rela- iio inexistente), Esse propésito era apenas em parte fruto de uma reacio a polémica protestante contra es imagens sacras. Acima de wudo havia a consciéneia, cada vez mais nitida, da fungio decisi- va das imagens, “idiotarum libri” {livros dos ignorantes), numa propaganda voltada a massas compostas predominantemente de ilettados. A invocagio recotrente das formulagées de Gregério 121 ‘Magno eta significativa.’” Mesmo que essa propaganda tivesse tetidos muito diferentes em relagio ao passado, e se desenvolv num ambiente onde a difusio da imprensa modificara muito relagio com a palavra escrita e as imagens, podiam-se colocat ani logias nao totalmente arbitrésias com a evangelizacio dos barb realizada na Alta Idade Média, ‘Aos olhos de um tedlogo sem preconceitos como Politi, denominador comum entre imagens erdticas ¢ imagens sacras eff 1 eficécia, Umas estimulavam 0 apetite sexual, outtas 4 pied religiosa. Elas, porém, dirigiam-se a destinatérios pelo menos pat cialmente diferentes. Poderiamos distinguir esquematicamente fi Talia do século xvt dois cizcuitos iednicos (chamemo-los assim): © piblico, amplo ¢ socialmente indifetenciado, e o privado, cit cunscrito e socialmente elevado. O primeiro, constitufdo por esti tugs, afrescus, iche © quadros de grandes dimencdes — objetos expostos em igrejas e paldcios publicos, acessiveis a todos. Ose sgundo, além de estétuas ¢ afrescos, constituido por telas e quadros também de pequenas dimensGes, jéias, medalhées, conservados nas residéncias de uma elite de senhores, prelados, nobres c, em alguns ‘casos, mercadores. Certamente tzata-se de uma distingio esquema: ‘ica, eivada pela crescente difusio da imprensa — basta pensar na ostensiva difusio de imagens sactas em ambientes nada eleva: dos.* Todavia, @ separagzo entre os dois circuitos icénicos, o pa: blico © 0 privado, mostra-se étil, pelo menos numa primeira apro: ximagio, para a questo que nos interessa: a das imagens erdticas, De fato, as tinicas imagens intencionalmente eréticas admiti- das no cireuito piblico eram as “imagens desonestas” representa: das, como escrevia Gillio,’ “nas salas de banho e nas hospedarias”” Em quais iconografias se inspiravain, em qual registro estilistico se inscreviam, infelizmente nao sabemos. Mais noticias temos, to davia, sobre as imagens créticas supra-intencionais, principalmen- te de carter sacro: um caso como o referido por Vasari, o das pias mulheres perturbadas por um sfo Sebastiao do frade Barto Jomeo,* talvez. nfo fosse absolutamente infreqiientc. A polémica contra-teformista contra o nu visava exatamente a subtrair aos olhos do piblico mais vasto a visio de imagens que tivessem 122 mesmo que um minimo de potencialidade erdtica — dat a deci tle desencorajar temas biblicos como a embriaguez. de Noé, Davi ¢ Hetsabé, Susana e os anciées."" ‘As imagens intencionalmente créticas, inacessiveis 4s massas, fom a excecio jd citada, eram, pelo contrdrio, muito representa- das no circuite icénico privado, reservado 4 elite. Na sua grande tmaioria, vinkam formuladas num eédigo cultoral e estilisticamen- te clevado, o mitol6gico — quer se trate de imagens antigas, quer fw trate pelo contrério de imagens expressamente pintadas oa esculpidas por artistas contemporineos. A fantasia erética do sé- culo xvi encontrava na mitologia clissica um repertério jé pronto dle temas ¢ formas, imediatamente decifraveis por uma clientela internacional como a constituida pelos comitentes das “‘poesias”” de Ticiano. Até um filfo mais ligado a pintura de género, como © veneziano de retratos de cortesis, freqtientemente escondia-se sob um ténue véu mitolégico.”* ‘Também nas comparagdes desse tipo de figuragdes a polémi- 1 eclesidstiea tornou-se, durante 0 século xvt, eada vex mais éspe- 1a, Na sua Disputatio. .. de cultu et adoratione imaginum (1552), Politi acusou os prelados que colecionavam imagens mitolégicas, antigas € modemnas, até mesmo de idolatria. As desculpes alegadas por aqueles homens corruptos — segundo os quais essas imagens cram colecionadas e conservadas “‘non venerationis aut adorationis ‘causa, sed spectaculi et memoriae antiquoram gratia, et ostentandi artificum peritia” [nao por veneraco ou adoragio, mas para a contemplagdo ¢ meméria des antigos, ¢ para mostrar a pericia dos artifices] — deixavam-no indiferente. Melhor teriam feito, aque- les prelados, se destinassem aos pobres o dinheiro empregado na compra de obras do género. De modo bem diferente agica Gregé- rio Magno, quendo mandou destruir os idolos do paganismo; ¢ pensar que Platina tentara justificé-lo, negando 0 fato! Mas certa- mente um homem embebido de culcura pagi, como Platina, néo podia deixar de valorizar coisas (observa Politi) que o olho espi- ritual ndo aprecia absolutamente. As imagens dos falsos deuses, de fato, induzem no 96 4 idolatria mas & sensualidade, os olbos de quem vé “nuda Veneris aut Dianae membea... et Satyrorum 123 salaces gestus, ct Bacchi ct Baccantium turpes ct vinosos fi res...” [os membros nus de Vénus ¢ Diana... ¢ os gestos vos dos Sétiros, © os furores torpes e ébrios de Baco © das cantes}.” Por mais vaga e indeterminada, a polémica de Politi nao deixar de evocar quadros de teor mitolégico, como os pint por Ticiano. Entre eles, além de bacanais, Vénus ¢ Dianas, en ‘ramos a “Danae” pintada em Roma, ¢ em seguida varias reproduzida,* evidentemente para atender a demandas especi da alta clientela do pintor. Como vimos, os amores entre Jipi Danae, gragas 4 condenacio de santo Agostinho, podiam se considerados no século xv1 0 perfeito protétipo da imagem pints da para excitar sexualmente o espectador. 3. Mas € licito definit como “‘intencionalmente eréticos esses quadros mitoldgicos de Ticiano? Nas dltimas décadas, varios estudiosos, inspirando-se na orientagio iconolégica de Panofsky, responderam negativamente, encontrando neles uma quantidade de simbolos ¢ conotagées ocultas de cardter filoséfico. O livro péstue mo de Panofsky sobre Ticiano'S deu a esse corrente de estudos © aval mais respeitivel. As péginas que se seguem pretendem reco: locar em discussao algumas conclusdes alcangadas por esses estur diosos e, sobretudo, alguns postulados implicitos nos estudos sobre Ticiano. ‘Antes de mais nada, no se pode deixar de notar que os con temporéneos reagiam as “'poesias” mitolégicas de Ticiano como a ‘quadros explicitamente erdticos. Em primeico lugar, 0 proprio Ticiano:; citou-se muitas vezes a carta a Filipe 1 na qual, depois de ter lembrado “Danae [que] viase toda de frente”, ele prome: tia enviar uma outea “poesia”, isto é, “Venus ¢ Adé6nis”, na qual se veria, para “‘variar”, “o lado oposto”.!" Mas veja-se também o ‘que cscrevia, exatamente a propésito desse tiltimo quadro, Ludo: vico Dolce, amigo e grande admirador de Ticiano, a Alessandro Contarini: “A Vénus estd virada de costas, néo por falta de arte, . mas para demonstrar dupla arte. Porque ao vitar 0 rosto para Adénis, esforcando'se por reté-lo, e semi-sentada sobre um tecide 124 ‘nacio ¢ violiceo, mostra em tudo alguns sentimentos doces vivos, € tais, que s6 se véem nela; onde é ainda admirével 2 atengao desse espirito divino [T.], que nas dltimas partes se reconheca 0 pressionamento da carne causado pelo sentar-se. Mas como? Pode tin com verdade dizer que cada pincelada é daquelas que soi fazer com sua mao a Natureza .... Juro-vos, senhor meu, que nao se ‘encontra um homem de vista € juizo tdo agudo que ao véla no a creia viva; alguém assim to esfriado pelos anos, ou téo duro de compleigao, que no se sinta aquecer, entetnecer ¢ agitar-se nas vias todo © sangue. Nem & maravilha; pois se uma estétua de ndrmore pade de tal modo com os estimulos da sua beleza pene- trar na medula de um jovem, que ele the deixou sua marca, ora, ‘0 que fara essa, que € de carne, que € a propria beleza, que parece respirar?”, Como se vé, a avaliacio estética em termos de veros similhanca transparece insensivelmente na aprecigcZo muito explt- cita das virtudes de estimulagdo erética da pintura — o que expli- a, talvex, a pequena tessonancia na ctitica ticianesca dessa carta, que um famoso estudioso julgou ter de citar sob forma censurada.” Poder-se-ia objetar, porém, que testemunhos como os aqui lembrados nfo excluem a possibilidade de um segundo nivel da imagem, no qual se encontrariam os simbolos ¢ as alusdes erudi- las caras aos icondlogos. Mas é possivel demonstrar a existéncia ddesse segundo nivel? No caso das “poesias” mitoldgicas pintadas por Ticiano na sua maturidade avangada, dit-se-ia que nfo. As in- ‘erpretagSes divergentes recentemente propostas para o Rapto de Ewropa sfo insteutivas. Um estudioso, M. L. Shapiro, julgou poder individuar a “fonte” textual dessa pintura nao mais em Ovidio (como sempre se pensou) mas numa ode de Horécio (Carmina 11, xxvm). Dai a tentativa de ler no quadro uma complicada rede de simbolos ligados ao estoicismo. A imagem, em aparéncia clamoro- samente erética, de Europa arrastada pelo touro esconderia na tea lidade uma mensagem mais complexa: a representacio, condenada pelos estéicos, do ceder as paixdes. O peixe © 0 golfinho que nadam ao lado de Europa, os cupidos que a acompanham personi ficam, de fato, as paixdes da alma: medo, alegtia, desejo, dor. O peixe de aparéncia monstruosa € 0 simbolo do medo; o golfinho 125 00 simbolo da alegria, em primeiro lugar porque Mosco no poema Exropa fala dos “alegres” saltos do golfinho, em segut lugar porque o golfinho pintado por iciano é prateado e Hor numa outra ode, diz “ridet argento domus” [brilha a casa co rata]; um dos cupidos voadores simboliza 0 descjo, ¢ © oul nio pode deixar de simbolizar a dot, como mostra ‘bastante a priadamente” a sua expresso perturbada, e também “the ra angular outline of his form that should be compared with the sol roundness of both Joy and Desire” [o contorno antes anguloso sua forma que deve set comparado @ suave redondeza tanto di Alegria como do Desejo].* uma sorte que argumentagces desse nfvel tenham sido rapidamence refutadas, Um outro estudioso, Dy Stone Jr, demonstzou sem margem de diividas que a “fonte” do Rapto de Europa nao é Ovidio nem Horicio, mas um romance: alexandtino que Ticiano pode ler na vulgatizagao de F. A. Coccio. Da imaginétia pintura minuciosamente descrita por Achille Tazio, Ticiano deduziu em particular @ posigio de Europa sobre 0 t0ur0, euja singularidade iconogréfica nfo escapara a Panofsky: “sobre suas espaldas sentava a jovem, nio como o homem monta a cava: Jo, mas de lado, tendo a direita acomodados os dois pés, com a ao esquerda segutando o chifre. ..”. Por trés do quadro, portan: to, é possivel detectar um texto, em sua maior parte seguido eseru: pulosamente; mas trata-se de um texto puramente descritivo, sem implicagées simbélicas, estdicas ou neoplaténicas. A pergunta, tipi: camente iconclégica, posta por Shapiro, “is the Stoic program there to veil the pagan nudity?” [esté ali o programa est6ico para velar a nudez pagi?],” pode-se pois responder negativamente, porque @ existéncia de um “programa” ligado ao estoicismo € to: talmente indemonstrivel. Permanece a nudez de Europa velada, ov melhor, exalcada pela “branguissima camise’” de que ja falava a vulgatizagio de Achille Tazio, ¢ que Ticiano nao deixou de re: presentar em sua pintura. Até que ponto é licito estender ama tal conclustio, que no caso do Rapto de Europa parece corzeta? 4. Nao Ovidio, mas a vulgarizagio de um romance alexan- dtino, Porém sabemos que Ticiano extraiu de Ovidio a inspiragio 126 urn a maioria de suas “poesias”” mitolégicas: isto é, para aqueles yndros que aos olhos de seus contemporineos, como vimos, lipham um cardter essencialmente exético. Panofsky falou de uma {elagio excepcionalmente profunda de Ticiano com Ovidio — um Ovidio lido, escrutado té quase nas dobras intimas do texto. Do esto — ou da vulgarizacéo do romance de Achille Tazio? Segundo Panofsky, Ticiano “felt free to use all kinds of visual inodels, ancient or modern, while yet, on the whole, remaining Independent of the specific tradition which flourished all around him in countless illustrated editions, translations and paraphrases of the Metamorphoses” [sentia-se livee para empregar todos os {ipos de modelos visuais, antigos ou modernos, embora ainda wssim, no geral, mantendo-se independente da tradigiio espectfica que florescia A sua volta em incontdveis edigGes ilustradas, tradu- ges © parkfeases das Metanorfoces] Fm vétios easos, de fato, le nfo teria hesitado em se afastar dessa tradicdo, para se reme- ter diretamente ao texto original de Ovidio. Mas essa tese inter- pretativa, amplamente ilustrada por Panofsky, na realidade ¢ in- pustentével. Pode-se demonstrar, pelo contrério: 1) que Ticiano fio sabia Iatim; 2) que ele leu as Metamorfoses exclusivamente fas vulgatizagées; 3) que suas inovagdes em relagio A tradigao jconogréfica se remetem As vulgarizagdes € nijo ao texto ovidiano, e tudo isso for verdade, néo nos cncontramos diante de um pintor humanista, como ele foi freqiientemente descrito, mas sim diante de um pintor estreitamente ligado 4 cultura contemporiinea em lingua vulgar: a dos poligrafos” primeira ponto & naturalmente decisivo, Costumam-se co- \cjar as pinturas de Ticiano, sobretudo as mitolégicas, com os textos de autores cléssicos — latinos ou até gregos — dos quais clas derivariam, Para volter ao caso ja lembtado, néo s6 Ovidio ou Horacio, mas Mosco. Isso implica duas possibilidades: ou Ti- ciano eta capaz de ler esses textos diretamente, ou liaos através da leitura ¢ interpretagio de algum humanista. A existéncia de um “programa” elaborado por um humanista da corte de Ferrara estd demonsttada, como se sabe, por um grupo de quadros pintados hos anos de 1520 para Alfonso d’Este” Para os quadsos mitolégi 127 cos da maturidade avancada, optou-se trangiiilamente pela pr ra hipétese. Mas h4 um testemunbo, sempre de Ludovico que mostra claramente que Ticiano nao sabia ler o latim (4) mais o grego). Tratase da dedicatéria “a M, Ticiano pintor e eiro”, datada de Pédua, 10 de outubro de 1538, no inicio de coletinea de textos que inclufa duas vulgarizagdes de Dolce, pectivamente da sexta sétira de Juvenal e do epitalamio de Cat para as nipcias de Peleu e Tétis, e mais um texto original proprio Dolce (Diélogo em que se fala de que qualidade de se deve encontrar, e do modo que se deve manter)* §. tia se concentrava no tema tradicional da comparagio entre artes, nesse caso a litcratura ¢ a pintura: “Juvenal, excelente Ticiano, Juvenal agudissimo motejador ¢ ccnsurador da mal dos seus tempos, entre as suas outras belas sétiras uma escrita na qual, exarranda tim amigo seu a fugir da ligacio co ‘mulher, formou sobre as luxtirias e vicios das mulheres um ret tao nobre e de tal perfeigio que ele sem diivida alguma vencer 0s milagrcs do vosso engenho divino. Portanto, se os tratos, os quais saem da perfeigéo da arte, 0 que é somente prio de vs, aproximamse tanto do verdadeiro que, acrescent eles o espirito, a natureza af poderia ser va: mas falta-lhe a vi Mas, no retrato que digo, vé-se nio somente a semelhanga aquele verdadeiro © aquele vivo, mas esse verdadeiro ¢ esse vi mesmo. Disso tendo eu recolhido ¢ elaborado um exemplo ‘como soube c pude, agora envio-o a vés para que, nao podendo er tender 0 proprio, vejas no meu se os bons esctitores sabem tik bem assim retratar com a pena os segredos da alma, como os bons pintores com 0 pincel aquilo que se mostra aos olhos; ou, pelo contritio, se estes junto a vés, que sois o mais digno, mantém-se ultrapassados de longa distancia” Para compteender plenamente 0 sabor desse amigivel desafio langado por Dolce, é necessérin uum esclarecimento, Ao traduzir epitalimio de Catulo, ele se afastou um tanto do texto latino € forneceu uma vivida descrigio (a primeira de que dispomos) do Baco e Ariadne que Ticiano pintara quinze anos antes, inspirando- se, entre outras coisas, naquele texto de Catulo (cf. Apéndice, p. 128 140). Dessa forma, Dolce tentava reforgat a superioridade da pena jobre © pincel. Mas isso nfo nos interessa aqui. Importa, pelo contritio, a clara afirmagiio sobre a impossibilidade, por parte de Ticiano, de entender textos de um autor latino sem recorret & vul jurizacio. 5. Bf inétil insistir na importancia desse ponto. Em primeiro gar, porque as vulgerizagSes do séeulo xv1, como se sabe, eram judo menos tradusées fidis. FreqUentemente tratava-se de reelabo: tagdes, mais ou menos abreviadas ou prolixas. Apresentemos um exemplo, recorrenda novamente a Danae. Jé Panofsky notara® que ao destino figucativo desse mito (que certamente no comega com Ticiano, ainda que com Ticiano tenha tido um poderoso impulso) cotresponde na Antiguidade clissica uma tradugio textual dispersa e fragmentéria. Mesmo as slusées do mitégrafo por exceléncia, Ovidio, so breves e inciden- ais. Em que teré se inspirado Ticiano para as suas pinturas: nas invocagées, igualmente répidas, de Hordcio? Ou nas glosas aos Argonautica de Apolénio de Rodes? Ou entéo em Fulgéncio “me- taforalis” [metafdrico] ¢ na ttadigio mitogréfica medieval? E tfpico que essas perguntas no tenham sido colocadas expli- citamente — a tal ponto a resposta a elas parecia (¢ nio era) Gbvia, Na realidade, Ticiano dispunha de um texto que no cta fragmentério nem distante: as Metamorjoses, isto é, transmuta- (oes diligentemente traduzidas do latin em verso vulgar... por Nicold di Agustini, varias vezes reeditadas (por exemplo, em 1522, 1533, 1537, 1538, ..). A “diligéneia” louvada no titulo nio im: pedira que o vulgarizador, em certos casos, fizesse verdadeiras in- sergies. Cinco versos, sinteticamente alusivos, de Ovidio (Me tamorphoses 1v 607-10: “Solus Abantiades, ab origine cretus cadem,/ Actisius superest, qui moenibus arceat urbis/ Argolicae; contraque Deum ferat arma; gennsqne/ non putet esse Tovis: necque enim Tovis esse putabat/ Persea, quem pluvio Dansé con- ceperat auro” [Resta somente 0 filho de Abas, nascido da mesma origem, Acrisio, para repelir o Deus dos muros da cidade de Argos © pegar em armas contra ele; e nao o considerar descendente de 129 Jépitet; pois tampouco considerava Perseu filho de Jépiter, ‘quem Danae concebera de uma chuva de ouro] dilataramse até se converter em trés oitava ‘A tario por que Acrisio desprezava Buco foi porque jd the tinha dito ‘que 0 audaz Perseu que tanto amava rio eta filho de Jipiter, o deus perfeito, como era verdade, € pot isso odiava-o, A qual geracio foi com efeito {que esse rei Acrisio teve uma filha dita Danae, maravilhosamente bela © pai, que so graciosa = via, temendo pela sua vitgindade, ‘numa torre fechada a mantinha, com grande vigildncia e muita dignidade; ‘onde jipiter que disso sabia tum dia deixou 2 sua divindade e sobre a torre dela desceu para cumptit do amor as usuais tarefas Depois por uma fenda que no teto viu, presto transformouse em chuva de ouro por ela sobre 0 seu lito desceu tio silencioso que ninguém disso se apercebeu. Depois, para chegar a0 timo deleite, subiuthe a0 regaco, ¢ ali se revelou como Jipiter, € deitouse a0 fim com ela ede Perseu a engravidou.* Que Ticiano se servisse dessa cmoda vulgarizagio em ver de, com 2 ajuda de algum humanista, examinar uma série de tex tos cléssicos ¢ medievais, € uma hipétese muito plausivel, ainda que nao demonstrada. Mas a hipétese toma-se certeza quando descobre-se que nas vulgarizagBes (¢ entre outtas a de Nicold degli Agostini) encontram-se no s6 aqueles desvios da tradigéo icono~ ardfice corrente, que Panofsky remontara a leitura exata do texto de Ovidio, mas inclusive as deixas para algumas inovagdes em re- lagio a este, até entao atribuidas a liberdade inventiva de Ticiano. 130 6. Comecemos por csse tiltimo caso, que num certo sentido 40 que mais comprova a nossa tese. Ao analisar uma das “poe- sins” pintadas por Ticiano para Filipe 11, Diana surpreendida por Acteon durante o banbo, Panofsky destacou que, do ponto de Vista compositivo, © quadro “is not significantly indebted 10 any previous illustration of Actcon myth” [nfo deve significativamen- {e nada a qualquer ilustragao anterior do mito de Acteon]; trata. fe de uma iconografia criada “almost ex nibilo”.” O mais novo elemento — sem levar em consideracdo pormenores como o teci- do vermelho e a presenga de uma negra entre as ninfas do séquito dle Diana — € “the unexpected presence of an architectural set- {ing: a curious combination of a rusticated pier with a dilapidated Gothic vault, the only Gothic vault in Titian’s oeuvre” [a presen- ‘ inesperada de um cenério arquitetdnico: uma curiosa combina da de um pilar rusticado com uma abébada gética lapidada, a Ainica abdbada gética na obra de Ticiano]® Teria sido — supde Panofsky — o texto ovidiano a sugerir a um leitor do século xvi como Ticiano, através da alusio A natureza que immita a arte, essa singular moldura arquiteténica: Vallis erat piceis et acuta densa cupressu, Nomine Gargaphie, succinctae sacta Dianae, Guius in extremo est antrum nemorale recessu, Arte laboratum nulla: simulaverat artem Ingeaio natura suo; nam pumice vivo Et levibus tofis nativum duxerat arcu. ons sonat a dextra, tenui petlucidus undu, Margine gramineo patulos suceinctus hiatus. [Era um yale coberto de pinheiros © ciprestes agudos, pamado Gargafia, consagtado a Diana cingida, cujo recesso mais longinquo existe uma gruta silvestre Nio é lavourada por nenhuma arte: a natureza com seu proprio engentho Simulara a arte: pois como @ pedra-pomes viva 0 ufo leve formara um arco nativo A direita soa uma fonte, de dgoas ligeiras © transpatentes, Largo bogueirdo cetcado nas matgens pela telva.) (Metamorphoses 131 155-63) 131 Mas vejase como esté mais préxima & solucio figurat cogitada por Ticino a vulgariza¢io, mais uma vez devida ilatada em relagio ao original, de Giovanni Andrea dell” Anguil ra, publicada em Veneza em 1555, quase quatro anos antes conclusio do Aefeon: A dita Gargafia é aquela nobre regiio da gual cuidava a deusa silvestre: do € @ gruta fabricada pela arte, mes sim & arte imitou a natureza. Um arco native aquele antro divide, ‘que esté colocado em meio aos mutos nativoss toda de um frégil tufo é e caverna, a frente © os lados, ¢ ainds a abébada interna Pinga em torno de toda x gruta, ema clara fonte forma a0 lado dive onde mais abaixo com forma de bacia a natureza aquele tufo cavara. Uma gota da outra cai interrompica, nem © porejamento é continuado, ‘mas por muitas gotas exparsas um riacho ctesce, ‘que enche aquele vaso, ¢ depois transborda e dele sa Do antro 0 céu, que @ natureza compés, dé as gotus € do gel dividido e rompido hi mil formas vatias & eaprichoses, que mostram ser de um artifice bemdotado. Troncos, dvalos ¢ pirimides esponjosas dali pendem, que 20 gorejar formam um aqueduto; possui tal compartimento que cinzel no o poderia fazer mais gracioso, nem mais belo? A insisténcia do vulgarizador na extraordingria arquitetura natural da gruta no podia deixar de impressionar Ticiano. Dos versos de Anguillara ele extraiu ndo s6 a idéia da “bacia” natural cheia de 4gua mas também, sem diivida, a sugestio de caracteri- zar aquela arquitetura como gética. “Mil formas vérias e capti- chosas”, “troncos, évalos e pirdmides esponjosas”: o autor anéni- mo (pensou-se em Rafael) da descrigio sobre @ arquitetura roma- nna enviada a Ledo x em 1515 nfo havin talvez afirmado que os 132 arcos agudos do gético nasceram “das drvores ainda nio cortadas 4s quais foram “arqueados os ramos, © amarrados juntos”? E por ventura Vasari ndo definira a arquitetura gética como “uma mald gio de tabernaculozinhos uns sobre os outros, com tantas pitimi- tes e pontas ¢ folhas que parece impossivel nio que elas possam ficar firmes, mas que consigam sc sustentar”? * Mas a vulgatizagao de Anguillara revelase decisiva para a enese do Acteon em negativo, além de positive: pelos elementos suprimidos, além dos acrescentados ao texto latino, Jé Cavaleaselle havia notado com preciséo que a cena de Diana ¢ Acteon se de- senrola, de fato, num bosque, “mes nio de ciprestes ¢ pinkeiros”, como escreveu Ovidio." Ora, ¢ exatamente a alusdo a ciprestes & pinheiros que falta na vulgerizacio 7. Deixamos por tiltimo © caso de Persew e Andrémeda, ew relagio a0 qual a demonstrasdo de Panofsky sobre a dependéncia ddo texto latino aparece com maior veeméncia, Trés elementos do quadro nao tém precedentes nas representagies Figurativas do mito de Andrémeda: 1) os ramos de coral na margem, mencionados por Ovidio no final do episédio; 2) 0 gesto de Perseu que desee do céu de cabeca para baixo (pracceps, diz 0 texto); 3) a espada de Perseu, curva em vez de reta, aqui também em exata conformida- de com as palavras de Ovidio ("‘teloque accingitur unco” [cinge- se de sua espada recurva], “ferrum curvo tenus abdibit hamo” [esconde 0 ferro curvo até 0 guarda-mio], “falcato verberat ense” (vibra sua espada recurva como uma foice], Metamorphoses 1v, 666, 720, 727). Mas veja-se a jé lembrada vulgarizaciio de Nicold degli Agostini. Nela, a passagem sobre a origem do coral € no 86 ttaduzida mas colocada em evidéncia por um subtitulo delibe- rado (De corallis), O termo “‘praeceps” & verrido exatamente: “e dela partiu com a cabeca baixa’”. Quanto a arma curva brandida por Perseu, @ vulgarizacdo cita-a bem umas seis vezes. ¢ até aumen- tando em relacio ao original: “retomou a sua foice”, “‘empunhou a sua foice”, “e com a sua foice muitas vezes a feria”, “até com a foice um golpe the percutiu”, “depois com a foice a fera se di iv". E nio s6. Pelo menos nesse caso Ticiano se inspirou, além 233 9, Ticiano, Persen e Andromeda, Londtes, Wallace Collection. 134 do texto da vulgarizagio, nas ilustragées que o acompanhavam (mesmo que nelas faltasse o detalhe da adage recurva). Basta com- parat a pintura da Wallace Collection com a representagéo de Persen e Andromeda na gravura veneziana de 1538 (cf. fig. 9 ¢ 10). A consttugao da composicao é idéntica (pode-se notar que na primeira gravura da vulgarizasio de Agostini, também publicada em Veneza em 1522, Perseu desce do céu a direita de Andréme- dda, © nfo a esquerda). Desde 0 inicio, porém, como fica evidente com as fotes por raios x publicadas por Gould," Ticiano tentou alterar a posico de Andrémeda, pintando-a com os bracos ergui- dos atrés da cabega, © niio umarrados atrés das costas. A solugao definitiva — um brago erguido ¢ 0 outro abaixado — veio so- mente num segundo momento. 8. Também no caso de Perse e Andrémeda, portanto, @ re Jagio entre Ticiano e Ovidio passa por uma vulgatizagao. Mas de que tipo de vulgatizagéo se trata? A versio das Metamorfoses em oitavas de Agostini pode ser considerada uma espécie de atticulagio entze as vulgarizagies me- dievais e as genuinamente quinhentistas de Dolce ou de Anguilla- ra. Para demonsiré-lo, basta uma répida viagem de volta no tempo. ‘A versio em oitavas de Agostini, intercalada de slegorias em prosa, foi impressa pela primeira vez em 1522. No mesmo ano en- cetta-se 0 destino editorial de uma vulgarizacio anterior, vérias vezes publicada a partir de 1497. Uma comparagio entre as duas vulgarizagSes mostra que: 4) ambas contém uma série de alegorias em prosa, totalmente idénticas; 4) as ilustrages que acompanham as duas so substancialmente idénticas, ainda que as da vulgariza- ‘gio anterior sejam de feitio muito menos grosseizo; ¢) 0 texto da versio mais antiga, em prosa, esté na base da versio em oitavas de Agostini. Mas quem cra o autor da versio cm prosa? O pre- ficio, datado de 20 de marco de 1370, declara que a obra fora “composta, vulgarizada e slegorizada” por Giovanni Bonsignori di Citta di Castelo. Ora, tanto as alegorias como a vulgarizagio de Bonsignori eram largamente copiadas das alegorias pardfcases das 135 10, Perseu ¢ Andrémeda, em Ovidio, Le Metamorphosi... tradoite... ‘por Nicold di Agortini, Venoaa, 1538, £430 11, Persen e Andrimeda, em Ovidio, Metemorphoseos vulgare, Venez, 1501, f. xxx, 136 Metamorfoses de Giovanni del Virgilio, © mestre bolonhés con- temporéneo de Dante.” Um pormenor infimo, introduzido por Giovanni del Virgilio na sua paréfrase ovidiana, permite-nos reca- pitular rapidamente a transmissio textual que acabamos de esbo- ur. Afastando-se da tradiglo precedente, Giovanni del Virgilio precise que Japiter “cum videret unum forancen ib iconvertit se in aurum liquefactum et pluit in gremium Danaes” [vendo af uma ubertura convertese em outo liquide ¢ chove sobre 0 regago de Danae]. “Por uma abertura convertendo-se em ouro distende-se ¢ chove sobre o leita de Danae”, traduz Bonsignori. “Depois por uma fenda que no teto/ viu, pesto transformou-se em chava de ouro/ © por ela sobre seu leito desceu...”, versifica Agostini* Isso significa que a vulgatizagio das Metamorfoses lida por Tt ciano passara através de uma dupla, talvez tripla, mediacio (Gio- vanni del Virgilio — Giovanni Bonsignori — Nicold degli Agosti- ni2). Analogamente, o germe da composigao de Perseu e Andréme: da remontava as ilustragBes que acompanhavam a vulgarizacio de Agostini (cf. fig. 10) ou a de Bonsignori (cf. fig. 11). (Notar-se- que no primeiro caso um pano cinge pudicamente as ilhargas de Andrémeda; a arma de Perseu é uma espécie de cimitarra; a posi- gio dos dois personagens, porém, esté invertida em comparagio com a pintura.) 9. A posicio despreconceituosa de Ticiano no uso de mate riais figurativos os mais dispares & bem-conbecida, Pintores con- temporineos, estdtuas antigas até, como nesse caso, as ilustra ccs mais ou menos rudimentates das vulgarizagées ovidianas aca- bavam por ser reorganizados ¢ fundidos na linguagem que era so- mente sua. Igualmente conhecido ¢ 0 fato de que os estimulos a essa extraordindria inventividade podiam ser tanto figurativos quanto verbais. A demonstragio precedente sobre a relagao exclu siva de Ticiano com textos vulgarizados dé.nos porém uma ima- gem da sua cultura muito diferente da geralmente aceita, Mas 0 que tem tudo isso a ver, objetar-se-f, com a questiio de onde partimos — isto é, a das figuragdes eréticas no século xvi? Para responder, sera necessétio voltar & distinglo-contrapo- BI sigio ja mencionada entre os dois circuitos icdnicos, o piblico ¢ @ ptivado: amplo ¢ socialmente indiferenciado o primeiro, citcuns: tito ¢ socialmente elevado o segundo. Como haviamos observado, tratase de uma contraposi¢go suméria: a subvertéla, adviera @ difusio da imprenss. Gragas a ela, um pablico de contornos pata nds ainda indefinidos, mas de qualquer maneira compreendendo classes sociais subalternas (artesaos ¢ até camponeses), entrou ef contato nao s6 com a pdgina impressa mas também com as ima: gens que muitas vezes a acompanhavam. A existéncia de livros a prego relativamente baixo, normalmente ilustrados, aumentou ime: diatamente, em sentido tanto quantitativo como qualitative, © pax triménio de palavras c imagens dessas classes sociais, As reper cusses, provavelmente enormes, desse fendmeno comecam a set investigadas somente agora.” Pelo que se refete a0 nosso proble- ima, podemos apenas supor o enriquecimento da imaginacao erdti- ca provocado por imagens como a Andrémeda nua que ilustrava as vulgarizagées das Metamorfoses, A afirmagio soard talver pax radoxal, tratando-se de imagens freqiientemente rudimentares canhestras, Mas so imagens que souberam fecundar a fantasia de um Ticiano. A carga erdtica dessas figuragées freqiientemente tra-

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