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Doutrina O ORDENAMENTO COMUNITARIO EO DIREITO INTERNO PORTUGUES (*) Pelo Prof. Doutor Paulo de Pitta e Cunha e Dr. Nuno Ruiz 1. Como tem sido salientado pela doutrina, a eficdcia do direito comunitario encontra-se associada a duas das suas caracte- risticas — a primazia e 0 efeito directo — que embora distintas, so complementares, e sem as quais estariam comprometidos os objectivos do Tratado ('). O Tratado CE nao enuncia por forma directa 0 princfpio do primado do direito comunitério, mas tem-se feito assentar tal princfpio nao s6 na «natureza intrinseca» do orde- namento criado no 4mbito de uma Comunidade para a qual os Estados se determinaram a transferir certas atribuicdes que restrin- gem os seus direitos soberanos, como no imperativo essencial da uniformidade de aplicacio do direito comunitdrio, vendo-se nele, (*) Texto que serviu de base a uma comunicagéo apresentada no Seminério de Estudos sobre Direito Comunitério, realizado na Universita degli Studi di Camerino (Itélia), em Setembro de 1995. () Ede notar a fntima relagdo que existe entre o efeito directo e o primado. E certo que 0 primado é uma caracteristica geral do direito comunitério, incluindo das normas que nao t8m efeito directo. Contudo, na Optica dos interessados na aplicagdo do direito comu- nitério, 86 € possivel dar um contedido uitil & primazia invocando-o junto das jurisdigdes nacionais, 0 que significa que em termos de condic&o jurfdica do particular a norma é iné- til, ndo obstante o primado, se no produzir efeito directo, isto é, se os tribunais nfo a puderem aplicar (cf. A.G. Toth, «The Oxford Encyclopaedia of European Community Law», Vol. I, Oxford, 1990, p. 501 es.) 342 PAULO DE PITTA E CUNHA ¢ NUNO RUIZ em certa medida, uma légica consequéncia da aplicabilidade directa reconhecida a normas comunitérias. A afirmagao da superioridade do direito comunitério sobre a legislagao nacional, mesmo posterior, encontra apoio na constante jurisprudéncia desenvolvida pelo Tribunal de Justiga das Comuni- dades a partir do acérdao proferido no caso Costa/ENEL (1964), em que se declarava que «ao direito nascido do Tratado, emanado de uma fonte auténoma, nao pode, por virtude da sua natureza especffica original, opor-se judiciariamente um texto interno, qual- quer que este seja». Em decisées ulteriores, o mesmo Tribunal veio precisar a sua concep¢ao do principio da primazia do direito comu- nitério, em termos de sustentar tal primazia sobre as proprias cons- tituigdes nacionais (entre outros, no acérdao Internationale Han- delsgesellschaft, de 1970) (*). 2. Na visao do primado como exigéncia existencial da ordem juridica da Comunidade, é dispensdvel que as Constituicdes dos Estados-membros consagrem a superioridade do ordenamento da Comunidade para que este se imponha em face do direito nacional. Contudo, numa outra Optica, tem-se procurado encontrar, nas Constituigdes, o reconhecimento, expresso ou implfcito, da prima- zia do ordenamento comunitério. E nessa linha que se depara, na lei fundamental de certos paises da Unido Europeia, com a consa- gracdo de uma cldusula geral de transferéncia de poderes sobera- nos ou de autorizagao para delegagao de tais poderes em organiza- g6es supranacionais. Contrariamente ao que se passou em Franga (3), ou na Irlanda (‘), a reviséo operada em Portugal em ligago com o Tra- ©) Cf. acérdios do TICE de 15-7-1964, no processo n.° 6/64, «Costa v. Enel», ECR 1964, p. 592, no processo n.° 11/70 «internationale Handelsgesellschaft», ECR, 1970, p. 1125. () A revisdo constitucional operada em atencdo a celebrago do Tratado de Maas- ticht levou a que, em 1992, tivesse sido acrescentado & Constituicdo francesa o titulo epi- grafado «Das Comunidades ¢ da Unido Europeia», no qual se declara que a Franca con- sente «nas transferéncias de competéncias necessérias ao estabelecimento da unio econémica € monetéria europeia». (No seguimento do referendo de 18-6-1992 foi inserido na lei fundamental um preceito em que explicitamente se reconhece que nenhuma disposigao da Constituigo O ORDENAMENTO COMUNITARIO E 0 DIREITO INTERNO PORTUGUES 343 tado da Unido limitou-se a consagrar modifigagdes pontuais, em matérias sem duvida de grande importancia, como as relativas a missao do Banco Central ou as condigées de elegibilidade para os 6rgaos do poder local e para o Parlamento Europeu, sem ter inclui- do referéncias de cardcter geral a transferéncias de competéncias ou delegagao de poderes soberanos. Ao artigo 7.° da Constituigao Portuguesa foi, € certo, acres- centado um niimero (n.° 6) dispondo que «Portugal pode, em con- digdes de reciprocidade, com respeito pelo principio da subsidia- riedade ¢ tendo em vista a realizacdo da coes30 econémica e social, convencionar 0 exercicio em comum dos poderes necessérios a construgao da uniao europeia»; mas, nesta formulagdo eufemistica, ficou-se muito aquém da perspectiva da transferéncia de poderes, © a verdade € que, no artigo 3.°, permaneceu inalterada a qualifi- cagao da soberania, a ser exercida nos termos da Constitui¢ao, como «una e indivisfvel». A primazia do direito comunitério sobre o direito constitucio- nal continua assim a merecer fundadas reticéncias por parte da doutrina portuguesa, e mesmo aqueles que se inclinam a reco- nhecé-la, colocando-se numa perspectiva «comunitarista» — aque encara esse principio como uma «exigéncia existencial» do orde- namento comunitério — nao deixam de considerar aconselhdvel que o sentido absoluto do primado deva merecer acolhimento constitucional numa formulagao que ressalve o respeito pelos direitos fundamentais e pelas bases do regime democratico (5). No que respeita a primazia do direito internacional em geral,e a «inconstitucionalidade indirecta» das normas de direito interno contrarias ao direito internacional e ao direito comunitdrio, discute-se se, e em que medida, a Constituigao da Republica tera anula leis adoptadas em virtude de compromissos assumidos no seio da Unido ou da Comunidade, ou impede a aplicagao de actos € medidas adoptadas pela Unio ou pela Comunidade. Cf. a este propésito «Les Constitutions de l'Europe des Douze. Textes ras semblés et présentés par Henri Oberdorff», Paris, 1992, pp. 139-140. © CE. por todos André Gongalves Pereira e Fausto de Quadros, «Manual de Direito Internacional Piblico», Coimbra, 1993, pp. 124 e s. 344 PAULO DE PITTA E CUNHA e NUNO RUIZ consagrado 0 primado do direito internacional e do direito comu- nit4rio sobre o direito infra-constitucional (°). 3. O artigo 8.° da Constitui¢do, epigrafado «Direito Interna- cional», nao fornece uma resposta clara para o problema. Com efeito, limita-se a precisar que as normas e principios de direito internacional geral ou comum fazem parte integrante do direito portugués (n.° 1), que as normas das convengdes internacionais vigoram na ordem juridica interna enquanto vincularem interna- cionalmente o Estado Portugués (n.° 2), e que as normas dos 6rgdos competentes das organizagées internacionais de que Portu- gal seja parte vigoram na ordem juridica interna, desde que tal se encontre estabelecido nos respectivos tratados institutivos (n.° 3), sem que nele se contenha referéncia expressa 4 primazia do direito internacional ou do direito comunitario. Partindo de consideragdes de ordem geral e sistematica relati- vas a fiscalizag&o da constitucionalidade e aos principios de vin- culagdo internacional do Estado Portugués, chegam certos autores A conclusdo de que as normas das convengGes internacionais e as emanadas pelas organizagGes internacionais tém forga juridica infra-constitucional, mas supra-legal (’). O préprio artigo 8.° da Constituigéo forneceria argumentos relevantes em favor desta tese, na medida em que pode ser interpretado como reconhecendo a especificidade da Iégica da vinculagao internacional do Estado, ao aceitar a vigéncia das convengées internacionais enquanto essa vinculagao se mantiver (*). O Estado nao poderia, pois, adoptar (°) Cf. Jorge Miranda, «Direito Internacional Publico», Lisboa, 1991, p. 257; Aze- vedo Soares, «Ligdes de Direito Intemacional Publico», Coimbra, 1988, p. 100; André Gongalves Pereira e Fausto de Quadros, ob. cit., pp. 124 € s.; Gomes Canotilho e Vital Moreira, «Constituigto da Republica Portuguesa Anotada», Coimbra, 1993, pp. 82 € s.; Gomes Canotilho, «Direito Constitucional». Coimbra, 1992, pp. 911 € s. ©) Cf. Jorge Miranda, ob. cit., pp. 235 ¢ s. e, com reservas, Gomes Canotilho € Vital Moreira, ob. cit., pp. 86 ¢ 87. O proprio artigo &.° da Constituigdo forneceria argu- mentos relevantes em favor desta tese, na medida em que pode ser interpretado como reco- mhecendo a especificidade da I6gica da vinculagio internacional do Estado, ao aceitar a vigéncia das convengdes internacionais enquanto essa vinculacao se mantiver. () Nesse sentido se pronuncia claramente Jorge Miranda, ob. cit., p. 244. ‘A Gomes Canotilho ¢ Vital Moreira, no obstante certas reservas, no repugna também esta construcSo (cf. ob. cit., pp. 86 € 97). O ORDENAMENTO COMUNITARIO EO. DIREITO INTERNO PORTUGUES 345, validamente direito interno contrério ao decorrente das convencdes internacionais, sem primeiro se ter formalmente desvinculado das mesmas (°). 4. Por outro lado, embora o Preceito do n.° 3 do artigo 8.° da Constituigéo parega apenas ter dado expresso a aplicabilidade directa dos regulamentos comunitérios (na medida em que nele se determina a vigéncia directa na ordem interna das normas emana- das dos drgios competentes das organizagdes internacionais «desde que tal se encontre estabelecido nos Tespectivos tratados institutivos»), tem sido possivel formular o entendimento de que o Ambito da clausula de recepgaio automatica contida no referido pre- Ceito se alarga a outros tipos de actos comunitérios ('°), que o Tri- bunal de Justiga das Comunidades considerou susceptiveis de pro- duzir efeito directo. Alguns tém procurado levar a interpretago do n.° 3 do artigo 8.° até ao ponto de nele ver a consagra¢do do reconheci- mento da superioridade do ordenamento comunitério, globalmente considerado, sobre o direito interno — jogando aqui com o entro- samento do primado com a aplicabilidade directa (j4 de si alargada, através de um esforco interpretativo, a fontes comunitérias distin- tas dos regulamentos, e reconhecida, com base num argumento «a fortiori», a normas de direito europeu origindrio). Haveria, assim, uma articulago légica entre o primado e a aplicabilidade directa ("), admitida no n.° 3 do artigo 8.° — pre- ceito a que, como vimos, se tem Procurado conferir um sentido mais amplo do que o decorrente da sua expresso literal, por forma a tendencialmente abranger o ordenamento comunitério no seu todo —, levando a aceitar que a primazia do direito comunitario (No acérdao n.° 223/89, o Tribunal Constitucional reconheceu que a primazia do direito internacional sobre o direito interno decorria do artigo 8.°,n.° 2 da Conctituigio « do Principio «pacta sunt servanda> (cf. Paula Escarameia, «Colectinea de Jurispruden. cia de Direito Internacional», Coimbra, 1992, p. 73). (°) Este alargamento tem sido também justificado com base em que, na reviso Constitucional de 1989, o advérbio (0 texto primitivo referia: «... desde que tal se encontre expressamente estabelecido nos respectivos tratados institutivos») foi retirado. ©) Cf. nota 1. 346 PAULO DE PITTA E CUNHA e NUNO RUIZ sobre © direito infra-constitucional nao deixa de encontrar certo acolhimento na nossa Lei fundamental. 5. Coloca-se, porém, o problema de saber se 0 conflito entre 0 direito interno e o direito comunitdrio se reconduz a um pro- blema de inconstitucionalidade, passivel da correspondente fiscali- za¢o, ou se, pelo contrério, deve ser caracterizado de outro modo. Estando em causa uma questdo de contradigao entre duas normas nao constitucionais, nao se nos afigura que tal quest4o possa ser equacionada em termos de inconstitucionalidade, nado devendo como tal ser qualificada a denominada «inconstitucionalidade indi- recta»; a consequéncia da desconformidade sera, nao a inconstitu- cionalidade ou invalidade, mas sim a ineficacia da disposigao de direito interno ('?). Este entendimento estd, alids, em consonancia com a juris- prudéncia do Tribunal de Justiga das Comunidades Europeias, que retira do primado a consequéncia da inaplicabilidade, e nao da invalidade, do direito nacional contrario ('3). O Tribunal de Justiga das Comunidades Europeias nao aprecia a invalidade, ilegalidade ou inconstitucionalidade das normas de direito interno. Considera € que o direito interno nao pode ser aplicado de cada vez que a con- creta situagdo juridica se subsume numa previsdo e estatui¢ao nor- ") Cf. Jorge Miranda, ob. cit., p. 257; André Gongalves Pereira e Fausto de Qua- dros, ob. cit., p. 123. Gomes Canotilho e Vital Moreira (ob. cit., pp. 87 e 88) ndo perfilham a solugio da ineficdcia, mas sim a da ilegalidade. Afirmam, no entanto, que a nogao de

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