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Cartas do Baú ; 01

Os momentos que mais receio são estes.


Sou pequeno. Mas a vontade é enorme.

O momento que mais anseio chegou. É um incómodo que se anuncia com uma
hora de antecedência. É uma hora nocturna, sempre uma hora nocturna.
Quando estou sozinho, quando estou deitado, quando estou vidrado em frente
à televisão.

O momento que anseio é o que mais receio.

Não é meu, o momento. Por mais derrotado que esteja, por mais doente que
fique, sei que tenho de me levantar, seja a que hora for. Sei que tenho de me
sentar em frente ao computador, e escrever.

Não sei o quê. Nunca sei o que escrever, e só o saberei depois de estar escrito e
relido.

Faço-o na maior velocidade possível. Sou apenas o escriturário da voz interior


que debita palavras sem parar. Tenho de me apressar, tenho de me apressar
para não ficar para trás; porque ele não pára. Levanta o nariz empinado para
tecto, volta-se de costas para mim e fica a ditar no vazio, letras agarradas a
palavras, agarradas a frases, agarradas a ideias. Nunca lhe vi a cara.

***

Ele pára por um momento, talvez para pensar. Acautelo-me. Fico à escuta, à
espera que ele recomece para poder matraquear as teclas sem parar. Nunca
penso.

Sou um simples escriturário que trabalha à noite com uma luz de vela
tremeluzente, e que tenta não se perder no corre-corre do emprego que não
pediu. Sei que nada me vale neste momento ansiado que receio. Só quando
essa sombra se afasta dentro mim é que posso ter descanso.

Não valho nada, mas a vontade é enorme. A vontade é maior do que eu e eu


não valho nada; nunca lhe faço frente neste momento ansiado que receio.

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