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Organizacao de: Mariza de Carvalho Soares e Jorge Ferreira A: Historia vai ao ac. Cinema comentados.por historiadores s s Eg . : K PS Sen es, Minha geragao é “cinemeira’, como dizia minha avd; como Lenin, acho que o cinema foi a arte do século XX, e os filmes agora nao sao mais vistos somente no delicioso escurinho do cinema mas também na_televisdo ou video. Os intelectuais, mesmo aqueles mais isolados em sua torre de marfim, apreciam cinema. "Papos-cabeca", tentando entender e/ou mudar o mundo ou o pais (ou mesmo a nds mesmos, 0 Gue é tao dificil Quanto o resto), se deram muitas vezes a partir de discussdes sobre filmes que nos toca(va)m mais profunda- mente. E ver o filme como recurso didético vem do velho Jénatas ‘Serrano no comego do século. Assim, esta coletdnea tem papel importante e Util, e sur- preende-me Que esta idéia — com filmes nacionais com sucesso de plblico-e critica — nao tenha surgido antes. A selegao dos filmes e comentadores (especialistas nos temas e objetos) é feliz por cobrir temidticas fundamentais. Nas andlises dos “filmes de autor", de- ‘fsrugades Sobre 0 povo e histéria do Brasil, em diversos tempos e espagos, surgem nossas grandes Questdes: a questao democratica e a nacional, a desigualdade social, nossa identidade cultural, as cha- madas "minorias" (mulheres, negtos, trabalhadores...), como se pen- sar 0 individuo na historia ete. Cinema, literatura, histdria tratam de estdrias e historias de formas cada vez mais préximas. Numa diversidade do caleidoscopio, a historia — cada vez menos uma régua de medit, com seu relato li- near.— me parece progressivamente mais fascinante: néo é um pas ‘sado nico, morto, mas diferentes representagdes Que, através de documentos do passado, so passiveis de construgao. ‘0 tempo é intrinseco ao homem, em toda sua concretude, € se efetiva nas andlises num feixe de temporalidades em cruzamento: 0 tempo do objeto do filme, o do momento em que o cineasta fez 0 cap-trbi. Catalogagio-na-fonte | Sindcato Nacional dos Eaitores de Livros, 30 decors se Kae ey 2 Soares, Mariza de Carvalho: sessh A Wistria vai ao cineha / Mariza de Carvalho Soares, Jorge 3H ed Foe, He - Re de Jani: Ree, 208 1. Cinetia'@Fistria. 2. Filmes histricos - Brasil. 3. Cinema - Brasil - Historia. T Femeira, Jorge. 1. Titulo, 00 - 791.430981 00.0751 cu - 791.43(81) Copyright © 2001 by Mariza de Carvalho Soares e Jorge Ferreira Design: Tita Nigri Editoragio: Cristiano Terto Fotos dos artigos: “Dona Flor e seus dois maridos", “Memérias do cércere” e “De razées e sentimentas”, de producées Cinematograficas L. C. Barreto LTDA; “Aleluia Gretchen”, de Sérgio Sade, do acervo CEDOC/FUNARTE; “Carlota: caricatura da Histéria’, de Elimar Producoes Avtisticas: “Imagens de Canudos”, de Morena Filmes LTDA “As ts faces de Kica”, de Rio vermetho Filmes; “Central do Brasil’, de Video Filmes. ‘As imagens dos demais artigos pertencem ao acervo CEDOC/FUNARTE. Diretos exclusives desta edicdo reservados pela: EDITORA RECORD LDA, Rua Argentina, 171 - Rio de Janeiro, R) ~ 20921-380 - Tel 2585-2000 Impress no Brasit 1S8N 978-85-01-05872-0 PEDIDOS PELO REEMBOLSO POSTAL Casa Postal 23.052 Rio de Janeiro, Rd - 2092-970 2 DOACGAO VENDA > \ PROIBIDA a o Prefécio Silvio Tendler Introducso Marisa ce Carvalho Soates e Jorge Ferreira Dona Flor e seus dois maridos: viagem a um mundo que muda Joa José Reis Aleluia, Gretchen: um hotel para 0 Reich Marion Brepohl de Magathaes Emecio e razio numa ligdo de amor Manica Pimanta Veloso As ts faces de Xica aviea de Carvalho Soares Lice Flavio, passageiro da Histiria Marcos Luiz Bretas Bye bye Brasil e as fronteiras do nacional-popular Ana Maria Mauad Armadilhas nordestinas © homem que virou suco Frederico de Castro Neves Gaifin. 0s caminhos da tiberdade: tempo e Historia Maria Ligia Coelho Prace Pixote: a infancia brutalizada André Luie Vieira de Campos Eles no usam black-tie: virias histérias, muitos protagonistas (alos Fico Pra frente Brasil: @ retorno do cinema potitico Claudio H. M. Batatha 2 ‘Sumatrio} Memérias do carcere: do livro a0 filme, do filme & Historia Eliane de Freitas Dutra Como as sociedades esquecem: Jango Jorge Fernira Cabra marcado para morrer entre a memoria ¢ 2 Histéria Antan‘o Torres Mantenegio Marvada carne: uma comédia caipira épica Jayme de Almeida Eternamente Pagu: impressoes de uma historiadora Rachel Soihet De razées e sentimentos: 0 quatritho na tela Sandre Jatahy Pesavento Carlota: caricatura da Hist Ronaldo Veinfas Imagens de Canudos Jacqueline Hemann Histéria e mobilidade em Central do Brasil Bias Thowé Saliba Ficha técnica dos filmes 0s autores CARLOTA JOAQUINA PRINCEZA DO BRAZ ORDEM DO DIA Teese ‘el, 268 3588 - S37 0330 Jia a6 Producdo DATA * < INT #X< a 22501 DIA —-NOITE * acacko SRA AR. DA FHOERATRE® : SEQ giuseto de 54 Be F1& ones ba EQUIBE seenpeeteensh - | LENCO oe Seq ‘Personagem | Ator (Fig Maq | Se roranos Hesin Catete Mevctn NEB AS Produtora Few | Kea 401 Modis tokS tS Set {4 0t FA earn, MA Giga 1590 | 46 Filmande fy 40 “pA | Fedentn ne] Romen Praudy 45: BO | tS re : 5 a a Amey ok v4 | end fiteg 4 Braun Fr i 46 6 | OBS | CONTRA-REGRA ~ FIGURAGAO on. esc Nos idos dos anos 60, estudante que se prezasse e quisesse jogar pedras na ditadura deveria buscar fundamentos te6ricos em Historia do riqueza do homem, de Leo Huberman. Logo nz aberture, o autor, para falar de dinheiro, usa uma cena de cinema como exemplo; Georges Duby, um dos mais importantes medievalistas franceses, abre um de seus ensaios sobre a Idade Média escrevendo: "Imaginemos." Desde sempre, imagem e imaginacao fazem parte do conhecimento da historia. Quando em 1974 Jacques Le Goff e Pierre Nora coordenaram a publicacao de Faire de (Histoire, estavam evidenciando novos horizontes para 2 historia, que saia entao da dicotomia factual versus interpretativa para buscar novas relagdes com seu objeto de estucdo. Nos rescaldos pos-maio de 1968, uma série de historiadores franceses discutiam novos problemas, novas abordagens, novos métodos. Marc Ferro participa desta coletnea com seu artigo ‘0 filme: ume contra-andlise da sociedade?”, no qual aborda a questo do cinema como fonte da histéria. Mais do que introduzir, esse artigo servira para legi- timar uma relago que ja vinha se desenvolvendo havia muitos anos e que Ferro trans- forma em seminério, com o nome de Cinema e Historia. Por outro lado, desde o nascimento do cinema, a historia é sua fonte. 0 nasci- mento de uma no¢do, de David Griffith, nos Estados Unidos, e 0 encouracado Potemkim, de Sergei Eisenstein, na Uniao Soviétice, so alguns dos muitos filmes em que, através de cowboys, carruagens, reis e rainhas, a historia esta presente. MR 2a ‘Gacques Le Gofi e Pierre Now. Histéia: novos objetos. Kio de Janeiro. Livrara Francisco Alves Editcra, 1976. Em 1937, 0 documentarista holandés Joris Ivens, ao filmar a Guerra Civil Espanhola em parceria com Ernest Hemingway, registra nos créditos do filme Terra espanhola a pro- dugdo da Contemporary Historians Inc. Neste caso o cineasta define-se como historiador e, mais do que um documentério de dentincia da ascensdo do fascismo ao poder na Europa, sente-se fazendo historia. A coletdnea de artigos que compée este tivro segue na trilha original apontada por Marc Ferto: o estudo de filmes como fonte de conhecimento e 0 que Ferro chama de contra- analise da sociedade. Em seu artigo, considera que o estudo da imagem pode fornecer ele- mentos de andlise que ultrapassem 0s limites das intencies do autor ou de quem as captou. A "leitura” dos filmes nao se restringe a uma interpretaco "colada" na obra. No caso deste livro, os autores fizeram uma releitura da obra cinematogrifica, relacionando com uma abordagem histérica, confrontando filme e histéria. Esta coletanea de ensaios chega em boa hora. A hist6ria do século XX sera con- tada com recursos audiovisuais e a partir da producao audiovisual do século XX. 0 con- junto de artigos € de alto nivel, merecedor de leitura, exercendo importante funcao didatica que aponta mais um territério a ser explorado pelo historiador. Alguns limites foram estabelecidos no critério de selecao dos filmes: apenas filmes nacionais, e 0 corte temporal foi determinado pelo periodo de producio dos filmes, que foi de meados dos anos 70 ao final dos anos 90. Os temas sao 0s mais diversos, nem sempre trabalhando a historia de forma direta, mas refletindo a formacio brasileira a0 longo dos séculos. Diversos historiadores dividiram entre si a missdo de esmiugar @ pro- ducao cinematografica, 0 que transforma este livro num raro painel que retrata a plurali- dade e a diversidade de nossa producao. Por nao ser obra de um autor mas uma coletanea de textos com enfoques diferen- ciados, torna-se mais rico ainda devido variedade de olhares que se projetam sobre a diversidade das obras. Tem, além disso, o mérito de registrar a fecundidade do cinema brasileiro nesses anos 70/80/90 e sobretudo sua importancia cultural, tornando-se o melhor amrazoado em defesa do cinema brasileiro, de sua pluralidade, diversidade e criatividade. Em sua maioria, os estudos aqui desenvolvidos servem também como uma aula de historia, uma vez que sio acompanhados de citacdes que transcendem a obra abor- dada para situd-las em seu tempo, cescrevendo suas fontes, influéncias ou precedéncias. Esse universo que circunscreve a obra faz com que este livro se torne objeto de consul- ta essencial para quem estuda ou quer conhecer mais profundamente as obras e o tempo abordados dentro do trinémio cineme/Brasil/historia. Aqui esto sendo analisados fimes que retratam migrantes e imigrantes, a mulher, (0 negro, as circunstancias histéricas, 0s acontecimentos e as personalidades. Filmes de ‘Jodo Batista de Andrade (0 homen que virou suco, 0 migrante massacrado), Tizuca Yamasaki (Gaijin, a imigracao japonesa), Eduardo Coutinho (Cabra marcado para morrer), ‘0 meu (Jango, reconstrucao da histéria), Norma Bengell (Pagu, a mulher libertaria que foi contra a corrente de seu tempo mas a favor da historia). 0 Brasil dissecado pela lite- ratura e o incrivel desafio de transformar letras em imagens: Mario de Andrade, Jorge ‘Amado, Graciliano Ramos imaginades pel cinema; livros que se tornam filmes pelos othos de Nelson Pereira dos Santos, Joaquim Pedro, Eduardo Escorel, Bruno Barreto. A pluralidade registrada pelos filmes e os estudos correspondentes aos anos de chumbo observadas nao apenas pelo viés da politica mas com ampla visdo da época do "seja marginal, seja herdi", grito ce rebeldia do artista plastico Hélio Oiticica sobre a imagem do bandido Cara de Cavalo, marca dos anos 70: 0 cinema mostra, com Licio Flavio, o passageiro da agonia, o marginalnecessario para apontar as mazelas da policia ("Policia é policia, bandido é bandids"), tanspassado das reportagens literarias de José Louzeiro para as imagens de Hector 8abenco; 0 mito registrado em Xica da Silva ou o pats trocando de pele em Bye bye Brasil, Fimados por Carlos Diegues. Em Eles néo usam black-tie, de Leon Hirszmann, a classe operdria vai ao cinema, e o Brasil caipira em A marvada carne, de André Klotzel. Este livio também supre uma lacuna: como a critica cinematografica pratica- mente desapareceu, e a cada dia tomam-se mais raras as publicacdes especializadas, e por conseguinte a analise e o debate em torno da produco cinematografica, transferiu- se pata o historiador a tarefa da critica, 0 que valoriza ainda mais o presente livro. A abordagem diferenciada do historiador — profunda e analitica — foge da superficiali- dade da informagao jomalistica, necessaria para divulgar a existéncia da obra mas insu- ficiente para informa-lo sobre a obra. Mesmo quando a andlise é desfavoravel ao filme, ainda assim & melhor a publi- cacao, que abre caminho para ¢ discussao e a polémice, do que condené-lo ao siléncio e a0 esquecimento. Nos anos 50, época de nacionalismo na politica ("0 petréleo & nosso") e das "chanchadas" no cinema, em sua defesa foi cunhada a frase: "Falem mal, mas falem do cinema nacional", logo sintetizada no bordao '0 abacaxi é nosso’. "Avacalhar” (expresso propria da época) era a forma de proteger e divulgar. Logo, este livro ajuda a resgatar nossos filmes, rompendo o cerco do sil€ncio e do esquecimento. 0 filme torna-se matéria de sala de aula, servinéo como objeto de estudo e conhe- Cimento. Em hipétese alguma o filme substitui o professor. Sua "leitura” correta esta condicionada a um corhecimento prévio, sujeita a orientacdo do professor. Confrontar veracidade com verossimilhan;a — real versus aparéncia do real — € uma das responsa- bilidades do professor que evitaré a trilha de um caminho equivocado e cuja auséncia oder induzir a erros de abordagem diante do fascinio e da facilidade da histéria recria- da em imagens. Quanto a psssado versus presente, é bom dizer que o filme de tema histérico geralmente tem maisa ver com a época em que é produzido do que com a época abordada. Assim, por exemplo, uma abordagem do passado muitas vezes ¢ mais rica quando analisada sob 2 luz do conhecimento e das angistias do tempo presente. Um grito de alerta: querem apagar a historia. Jovens de 20 anos ndo sabem o que foi a Guerra do Vietnd, como foi a descolonizacao da Africa, as lutas populares por liberdade, contra a ditadura, a tortura. E 0 mais grave: livros, filmes, pecas de teatro, pen- samentos e personalidades que escreveram um projeto de Brasil so apagados da histéria. Em tempos que privileciam o efémero, 0 volatile o descartavel, este livro é pega essen- cial na "guerra santa" que travamos contra a amnésia historica que querem nos impor. Silvio Tendler Introdu As vésperas do século XXI, constituimos sociedades dotadas nao apenas de tex- tos escritos e falados, mas de um vasto conjunto de imagens. Um filme nao é um Livro. No entanto, estatica ou em movimerto, uma inagem pode ser "lida" de naneira similar a um texto escrito, Quando um filme é apresentado ao piiblico, ele surge como o resultado de uma intertextualidade que combina diferentes linguagens: textos orais — a palavra fala- da ou cantada —, escritos — letreins e legendas — e visuais — a propria imagem pro- jetada, os cartazes publicitarios, a propaganda dos jornais, entre outros. Na intersecao entre elas, surgem nos filmes personagens que muitas vezes podem ser ficticios, mas onde as cenas vividas sao "reais", pois as elacdes sociais e o mundo representado na tela foram retirados da propria sociedade. £ justamente essa riqueza e multiplicidade de linguagens que vem despertando a atencao dos historiadores. Na conversa entre Cinema ¢ Historia, para usar a expressdo cunhada por Marc Ferro, um longo caminho tem sido percorrido e as possibilidades vao desde o uso didati- co até biografias e andlises sobre aindistria cultural. Uma das alternativas, talvez das mais instigantes, ¢ a que explora a relagao entre memoria e historia, Parte representati- va da filmografia brasileira, por exenplo, trarsita justamente neste campo, no qual lem- brancas pessoais, memérias de grupos e mesmo pesquisas historiogiaficas mais sis- tematicas tem levado a elaboracio ¢e filmes que constituem, hoje, quase um género nar- rativo, com caracteristicas proprias. Assim, desde os primérdios da producdo cinematografica no Brasil, surge uma vertente que privilegia o que se poteria designar como um cinema hist6rico-social. Um dos ramos mais ricos € 0 que exploa, sob varios pontos de vista, temas “cléssicos" da s 3 2 : : Hist6ria do nosso pais: 0 descobrimento do Brasil (1937), de Humberto Mauro, Sinhd Moca (1953), de Tom Payne, Paixdo de gauicho (1958), de Walter G. Durst, Deus e o Diabo na terra do sol (1964), de Glauber Rocha, Como era gostoso o meu francés (1971), de Nelson Pereira dos Santos, Os inconfidentes (1972), de Joaquim Pedro de Andrade, Os libertérios (1976), de Lauro Escorel, 0 pais dos tenentes (1978), de Joao Batista de Andrade, Coronel Delmiro Gouveia (1978), de Geraldo Sarno, séo alguns exemplos. Nesse sentido, a repre- sentacdo da Historia na obra de um grupo significativo de cineastas nos permite con- siderar que este segmento do cinema brasileiro se instituiu, no dizer de outro historiador, Pierre Nora, como “lugar de meméria" onde diretores, roteiristas, atores e produtores, bem como o proprio publico que prestigiou os filmes, se esforcaram em retomar e monu- mentalizar certos acontecimentos ou problematicas da Histéria do Brasil. Mas 0 trabalho do historiador vai muito além do esforco de preservacao de uma memoria da produgao cinematografica. A questo de como filmes e videos poderiam se constituir como mais um suporte possivel para a divulgacao da narrativa historica € importante porque permite, entre outras razées, alertar para o lugar do trabalho do his- toriador em uma obra memorialistica coletiva. Foi com olhos de historiador que con- cebemos esta coletanea e, enquanto tal, estamos tomando 0 cinema como um importante veiculo para a construgao da meméria de determinados grupos da sociedade brasileira contemporanea. Voltamos, novamente, aos "lugares" de que fala Pierre Nora, para indicar como a meméria nacional, antes expressa em prosa, verso e bronze, comeca a se expres- sar em filmes e, mais recentemente, numa quase infinita producao de pequenos videos, mais ou menos bem acabados, que circulam tanto no ambiente das elites quanto nos movimentos sociais. 0 historiador tem hoje uma consideravel intimidade com fontes nao escritas, mas que sio, de alguma forma, controladas por processos cognitivos semelhantes ao da andlise desta documentagao. Por exemplo, os depoimentos orais sao transcritos e, na ver- dade, mais lidos do que ouvidos. A fotografia e outras imagens fixas, como gravuras e cartuns, so consultadas nos arquivos, muitas vezes em livros ou Albuns, e 0 contato do historiador com elas nao deixa de ser uma forma especial de leitura. Diferente dessas aa experiéncias, em que o historiador nao se afasta do documento escrito, o filme projeta~ do a distancia, numa tela de cinema ou TV, resulta de uma combinagao de técnicas e suportes que ainda the so pouco familiares. Por outro lado, acostumado & solidao de suas pesquisas, lie é também muitas vezes estranka a experiéncia do trabalho em equipe. A autoria de um filme ¢ muito mais explicitamente compartilhada por um conjunto de profissionais envolvidos do que no caso da autoria de um livro. E verdade que o histo- riador nao produz sua obra individualmente: diversas contribuicdes, académicas ou nao, influenciaram nas suas reflexdes. No entanto, se observarmos a ficha técnica de um filme, a autoria (mais estritamente entendida como direcao) € compartilhada pela producao, argumento, reteio, fotografia, misica, montagem, figurinos, enfim, participagées indis- pensdveis e insubstituiveis. Neste caso, o resgate do passado e 0 dominio do diretor sobre seu tratamento séo apenas alguns dos comporentes ¢a obra. Portanto, nosso objetivo, com a coletanea, nao é oferecer uma receita de como 0 historiador pode fazer historia através do cinema, mas sim contribuir, de maneira bastante diversificada, para a discussdo das relagies entre Historia e Cinema, Embora muitos cen- tros de ensino e pesquisa venham produzindo reflexdes nesse sentido, s80 escassas as pu- blicagées que alcngam um pablico mais amplo. Preocupados com a lacuna, selecionamos vinte filmes que, por razes diversas, convenceram milhares de pessoas a irem ao cinema assisti-los. € verdade que, pera um critico de arte, mais preocupado com aspectos inter- nos a obra, 0 critério que alude ao sucesso de piblico e de critica nao € 0 mais impor- tante. No entanto, para o historiador trata-se de um critério que néo pode ser despreza- do, pois a sua preccupacdo nao € apenas com o filme, mas com a sociedade que 0 pro- duziu e se utlizeu dele para discutir determinados temas que the interessam. Assim, de Dona Flor e seus dois maridos (1976) a Central do Brasil (1998), percorremos vinte anos do cinema brasieiro, abarcando um period importante na producéo cinematografica nacional. Conbirando algumas preocupacdes do Cinema Novo com um maior espirito empresarial, alén do trabalho de divulgagao junto a um pdblico mais amplo e diversifi- cado, nos anos 70, 0 cinema nacional, mais uma vez, "renasceu'. Um exemplo dessa receptividade é 0 filme Dona Fior e seus dois maridos, cujo pablico atingiu 10.735.000 espectadores, uma bilheteria comparavel a de Tubardo que, na mesma época, levou 13.035.000 pessoas ao cinema em todo o Brasil.* Como em qualque: escolha, o critério adotado pode ser questionado. 0 leitor, cer- tamente, se ressentira da falta de um ou outro filme. No entanto, toda selecdo é, tam- bém, um ato de excluir. Os cortes, assim, sao diversos. Alguns filmes foram inspirados na literatura, revelando situagdes da vida cotidiana e da familia, a exemplo de Marvada carne, Li¢do de amor e 0 quatritho; das mulheres em Dona Flor e seus dois maridos; e de temas da histéria politica contemporanea, como em Memérias do cdicere, Eles no usam black-tie e Pra frente Brasil. Os temas politicos se repetem também nos documentarios Jango @ Cabra marcado para morrer. 0 esforco de reconstrugio do pasado historico brasileiro esta presente com Canudos e, enfatizando novamente o papel das mulheres na sociedade, em Xica da Silva, Carlota Joaquina e Etemamente Pagu. Aqueles voltados para temas da sociedade brasileira contemporanea surgem em Licio Flavio, 0 passageiro da agonia, 0 homem que vircu suco e Pixote — a lei do mais fraco, todos focalizando a vio- lencia urbana; Aleluia Gretchen, Gaijin — os caminhos da liberdade, Bye Bye Brasil Central do Brosil, por sua vez, apontam para a diversidade da sociedace brasileira. ‘Além da selec dos filmes, nosso outro desafio foi o de convidar historiacores, reconhecidos pela sua producdo académica, originérios de universidades de varios esta- dos brasileiros, para refletirem a partir de um suporte que thes é, por tradigdo de oficio, como dissemos, pouco faniliar. A escolha dos autores procurou levar em conta as temati- cas estudadas. Mas insistimos com eles que as andlises abrangessem, tal como os filmes, um pablico mais amplo: aquele que gosta de cinema. Nossa intencao foi que cada um — a partir de sua trajetéria intelectual, suas leituras e suas reflexdes sobre metodologia, arte, literatura etc. — eleborasse, com liberdade de interpretacdo e escrita, uma andlise uO 27.3 ‘Embora faja a propos desse live ¢ importante lembar que entre 1977 2 1982 a Embraflme langou quatio filmes dos Trapalhbes que, somades, ultrapassaam 20 ruilhées de espectaores, transfornando-se er. clasics da fimografia infantil brasilexa, Sobre os aimeros aqui ctados ver Faulo Sérgo Almeida. “Por dentro do mevcae". oiler. x13, juno, ano 2, 00. p. 28 sobre o filme indicado. Trata-se de uma oportunidade em que o historiador, sem abrir mao de seu rigor profissional, faca suas idéizs chegarem ao publico nao especializado. E como se ele comentasse 0 filme com um amigo, an6s sairem do cinema. Este, portanto, foi o desafio do Livro: convidar um grupo de historiadores, reconhecidos por seu trabalho académico, a escrever para pessoas que gostam de cinema — 0 que nao é pouco —, em- bora nem sempre leiam livros de Histora, Trata-se, igualmente, de uma rara oportunidade de conhecermos uma outra face de nossos colegas, mais a vontade para escrever e menos cerceados pelas regras de nosso propio oficio. Portanto, o livro apresenta os varios olhares que historiadores brasileiros ocdem lancar sobre a filmografia brasileira nos Ulti- mos vinte anos. Convicamos, entao, o leitor air ao cinema conosco. Ao final da fita, iremos comentar 0 que vimos. Muitos concorcardo com nossas idéias; outros irdo aceitar parte do que dissemos, acrescentando obse-vacdes sob critérios diferentes; outros, por sua vez, categéricos, irdo discordar. Mas nao pederia ser de outro modo. Afinal, nao é assim que fazemos quando saimos do cinema? A coletanea 6 0 resultado co pojeto Historia em Video desenvolvido no Setor de Tconografia do Laboratério de Histéria Oral e Iconografia, vinculado ao Departamento de Histéria da Universidade Federal Fluminense, Agradecemos a Angela de Castro Gomes pelo apoio constante, aos bolsistas CNPq/UFF Francisco C. Marques e Samuel D. Tavares, aos fun- cionarios do Centro de Pesquisa e Documentagio do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro e do Centro de Documentagao da Funarte. Por fim, agradecemos a todos os profissionais de cinema e aos colegas historiadores que colaboraram nas varias etapas de elaborac3o desse livro, que resultou, antes de tudo, da confianga no sucesso do trabalho coletivo. Mariza de Carvalho Soares e Jorge Ferreira ® mundo que muda I aie Bitte cache Joao José Reis Dona Flore sus dis mardos:viagem aur mundo que mide Nao se trata de fazer aqui critica de cinema, mas quero comecar dizendo que acho o filme Dona Flor e seus dois marides (1976), de Bruno Barreto, uma boa adaptacao da obra de Jorge Amado. Assim, tal como 0 comance, o filme pode ser visto como uma janela através da qual se descortinam diversos temas do imaginario, dos valores e do comportamento brasileiros num passato relativamente recente.* Ambientado numa Salvador provinciana da década ce 40, 0 filme é a historia de uma bela muther, da classe média baixa, esposa fiel, integra, trabalhadora, professora de culinaria, cujo marido € vadic, mutherengo, jogador inveterado, desonesto e arrogarte, bom de cama, malandio tipico, antipatizado por alguns, amado por muitos, inclusive pela esposa. 0 mari- do, Vadinho (José Wilker), morre, caracteristicamente, em plena folia de um domingo de car- naval, dos maus-tratos a que submetera seu corpo durante longos anos de farras cotidianas. Sua viva, Dona Flor (Sénia Braga), sofre profundamente a perda, enluta, mas termina por casar-se de novo com Teodoro Madureira (Mauro Mendonca), um farmacéutico metédico, tra- balhador, apreciador e praticante da misica erudita, esposo decicado e respeitoso, mas um incompetente na cama. O inverso do primeiro marido. Um ano apés 0 casamento, bate em Flor uma saudade profunda do defunto, que assim invocado se materializa nu para a ex-mu- ther, e s6 para ela, que, honesta, inicialmente resiste a seu assédio mas termina cedendo aos proprios desejos. Passa entao a viver com os dois maridos, tendo do vivo a seguranca de uma vida provida e regular, e do morto (sempre nu) uma relacao amcrosa intensa e picante, Sexo, morte, festa e comida sio elementos que estruturam a narrativa e a concepcao da trama, evocados como valores fundamentais e culturalmente entrelacados no imaginério Ts A Wissre val ae cinema brasileiro, particularmente 0 baiano. 0 filme comeca num dia de carnaval. com Vadinho fan- tasiado de mulher — inverso carnavalesca que acentua o carter transgressor do personagem —, bebendo e cantando numa mesa de bar com amigos, um dos quais alerta para a aproxi- macio de uma "gostosa mulata” que sobe a rua a frente de um bloco camavalesco. 0s ami- gos vao ao encontro do grupo e Vadinho danca lascivamente em torno da mulata, balancan- do um pénis postico de pano instalado sob a saia que veste, 0 que radicaliza a dubiedade da fantasia de inversdo sexual. Acometido de mal sibito, neste exato momento tomba morto. Morte dangando e imitando 0 ato sexual, na rua, quase defronte a sua casa, de onde sai Flor desesperade ao saber 0 que acontecera. Nesta cena se realiza imageticamente a dialética entre casa e rua sugerida por DaMatta — a rua como lugar do homem, da liberdade car- navalesca e da aventura, mas também do perigo; a casa, 0 espaco da mulher, da contencio doméstica e também da seguranca fisica e moral. No entanto, a proximidade entre casa e rua 6 tamanha que sugere mais contiglidade do que oposico, como ainda acontecia numa Bahia tradicional, conhecida por seu longo século XIX, que se estenderia até a década de 50 do século XX, quando a instalacgo da Petrobrés "modemizou" o lugar. A mencionada contigiii- dade se confirma nas cenas seguintes. Sao cenas do vel6rio de Vadinho, velério feito em casa, como era o mado antigo de morrer, tempos da morte assistids, domesticada, quando ainda predominava, mesmo no mundo urbano dos anos 40, a contigiidade entre vida e morte que corria paralela aquela entre casa e rua. 0 defunto é velado noite adentio na indiscriminada companhia de adultos e crian- 25, homens e mulheres, parentes, amigos, vizinhos.* No caso desta morte, ha uma dot maior Por ter sido inesperada e prematura, acontecida aos 31 anos de Vadinho. Mas a morte no Perde seu aspecto celebrativo; pelo contrario, intensifica-o com o objetivo de melhor satis- fazer 0 morto, em consonincia com sua trajetéria terrena e em beneficio de sua gléria extraterrena. No filme, 0 camaval progride na rua em frente a casa do boémio, ndo como uma antitese da morte, mas como vida que celebra a morte, uma festa que celebra o morto. A mera por um instante divide a imagem da tela entre o afoxé na rua e — penetrando através da janela da casa de Flor — 0 velério que se realiza na sala de visitas, 0 morto instalado em seu caixdo preferido, doado por um agente funerario que era seu companheiro de jogo. Eis que escrevi um livro sobre antigos ritos fnebres na Bahia, ndo pude deixar de apreciar a cena com particular interesse.’ E a tomada se prolonga, como antigamente se esticava noite aden- ana Flore seus dois marios: viagem a um mundo que rude tro esse ritual de separacao entre mortos e vivos, uma verdadeira manifestacao social. Ao ato nao faltam bebidas espirituosas e comida, nao faltam as conversas que celebram e as que detratam © morto em vida. Um amigo de Vadinho se aproxima da vidva e garante: "Era um batathador!" Ja a sogra, confirmando a mé reputagio que tém as sogras em nossa cultura, celebra a morte mas nao 0 morto, que segundo ela seria "um sujeito vagabundo, cachaceiro, gigol6... picareta, sem-vintém e jocador". Durante o velério a vidva descobre, nos olhos umedecidos de uma aluna de culinéria, que nao apenas a ela faltaria, doravante, o prazer da vadiacao com 0 defunto. Do ponto de vista etnografico a cena é um ponto alto do filme. 0 filme é, em grande medida, sobre a morte e sobretudo o morto, em torno de quem giram personagens e emocdes.* Assim se desenrola a viuvez ortodoxa de Dona flor, sempre cercada de amigas e comadres que lhe aconselham a deixar 0 luto fechado e providenciar novo casamento. Mas 0 luto serve precisamente para piolongat, como meméria, a presenca do morto. Uma presenca que, no caso de Vadinho, tera funcao estruturante nesta histéria. Num dia de luto, a caminho do cemitério, uma negra informa a Flor que seu defunto é filho de Exu, orixa dono da encruzilhada, mensageiro também fortemente associado a sexualidade e personagem matreiro, enganador, um trickster que no entanto funciona como elo de ligacao entre devotos e divindades, entre este e 0 outro mundo. A negra comunica @ vidva que o espirito de Vadinho esta desassossegado. Ela insinua que ele ainda daria trabalho a Flor, que continuaria rondando e brincando com os vivos, conforme se comportam entre nés as almas penadas. E realmente, bastou que ela pensasse mais ardentemente no morto para que ele retornasse a ela, exatamente quando se cumpria um ano de seu novo casamento. Neste ponto dos orixés & novamente trazida para o centro da trama porque Flor, nao desejando trair 0 segundo marido, busca no candomblé meios de se livrar do espirito do primeiro, de fazé-lo integrar-se definitivamente ac mundo dos mortos. Mas ao mesmo tempo deseja com tanta forca o amor vadio de Vadinho que prejudica o ritual que o afastaria de vez de sua vida. Seu desejo demonstra mais eficdcia do que o ritual dos mortos. 0 amor derruba a barreira da morte, ou Eros vence Tanatos, como gostavamos de dizer na época da contracultura. Morto Vadinho, Flor pensa nele ao cozinhar uma deliciosa moqueca de siri-mole, prato predileto do defunto, cuja receita é ditada e ilustrada na tela, a camera passeando gos- tosamente entre a comida e as coxas da professora de culinaria, que cozinha de camisola preta, pois o bom luto também se expressa nas pegas intimas do guarda-roupa feminino. Ela a aa Eee lembra dos labios e da lingua compe- tentes do marido, molhados de azeite- de-dendé: "seus dentes mordiam siri mole... nunca mais seus labios, sua Uingua". Siri que é na Bahia um dos muitos vocétulos para designar 0 sexo da mulher. Um mergulho da camera no prato de moqueca nos leva ao passado, a vide que Flor © tit (PUTED yacinho tiveram juntos, a cena seguinte, de sexo na noite de ndpcias. E uma refe- PT i Fencia didatica, Gbvia até demais, 2 comida como metafora do ato sexual. A meméria de Flor nos revela nao apenas o lado bom de sua relacio com Vadinho. Na mesma noite nupcial, depois de “vadiar’ com a esposa, ele troca a cama conjugal pelo Cassino eo castelo. Até os companheiros de farra estranham vé-lo ali, chamam-no de malu Co, mas ele era sim um boémio radical. E seguem-se muitas noites nas quais Flor é por ele abandonada. Ela n3o se conforma com o estilo de vida ¢o marido, pois “queria ser um casal igual aos outros’, queria filnos etc. Vadinho ironiza, e quanto a filhos diz que haveria tempo para pensar nisso. Suas diferen¢as provocam violéncia numa cena fundamental do filme. Sem dinheiro para jogar, ele toma o dela debaixo de pancadas. Depois volta, arrependido e roman- tico, dedicando-the serenata sob a janela e presenteando-a com um colar trocado por uma ficha de jogo com uma dama da noite. Flor perdoa a surra que levara. A posicéo subalterna das morenas e mulatas amadianas — anteriores a Tieta e Teresa —, boas de cama e azeite- de-dendé, que aceitam maus-tratos de seus homens, reforca estereotipos consagrados em nossa historia cultural e jé foi assunto de uma critica, azeitada a diesel, de Walnice Nogueira Galvéo.’ 0 filme, como boa parte da obre do escritor baiano, retrata mulheres que parecem adaptar-se ao absolutismo patriarcal. Num momento (1976) em que o feminismo ainda era incipiente no pats, a pelicula aparentemente reforcava o papel subalterno das mulheres em nossa sociedade Mas conforme Roberto DaMatta, a critica social esta presente no romance, nao na luta de classes que marcara uma fase anterior da obra de Amado, mas no cardter hedonista, tora Flor e seus dois mardos: viagem a1um mirdo cue muda carnavalesco de Vadinho, que supostamente subverte os velores burgueses do trabalho e a moral sexual pequeno-burguesa do casamento convencional. Sexo e trabalho, alias, sao ter- mos antagénicos na narrativa, dai o termo vadiagem como sindnimo do ato sexual. Dai Vadinho. Sua preguiga e sensvalidade se erguem como elementos subversivos do mundo da ordem, do trabalho e da temperanca representado pelo segundo marido de Flor. Teodoro da a ela conforto, reqularidade, segurenca, e também busca envolvé-la em sua vida social: leva-a para sonolentos concertos de mésica enudita ou para palestras incompreensiveis sobre far- macologia. Ela, em seu reduzido alcance intelectual, encara a cultura livresca de Teodoro com grande admiracao: ele "sabe de tudo". Aceita inclusive que ele mude as regras do Gnico espaco reservado ao peder feminino, o ambiente doméstico. Em casa, 0 fermacéutico impoe seu lema: um lugar para cada coisa e cada coisa em seu lugar. Acometido de uma mania clas- sificatéria, 0 marido chega a etiquetar 0 lugar dos objetos nos cémodos e comodas da casa, etiqueta inclusive o lado que cada cOnjuge devia ocupar na cama. Regulamenta com precisao © espaco, e também o tempo. Sexo sé em dias marcados, uma cépula burocratica sob os lencéis, estilo papai-mamae, temperado a ejaculagao precoce. Eis a vidinha ordinéria de Flor que o marido morto ven subverter, mas atendendo a uma convocacao dela. Flor no desgosta de tudo nos modos do segundo marido, ordinario mas, como acabei de dizer, respeitador, provedor, presente. Entretanto, dengosa amadiana que é, quer também a excitagéo amorosa, a desordem moral promovica pelo primeiro marido. E quando este retor- na, depois de alguma hesitacao, ela o aceita e sua vida fica dtima. Ao decidir manter os dois maridos, Flor conquista o melhor dos dois mundos, como fica registrado na Gltima e otima cena do filme. ‘A obra de Jorge Amado — e 0 filme lhe é fiel — propde uma saida negociada para a mulher, Apesar de Flor manter-se perfeitamente dentro dos padres de comportamento vigentes, sem abalar estruturas patriarcais na sociedade dos vivos, ela consegue o que afinal deseja através de uma digamia clandestina, invisivel e silenciosa, envolvendo um membro da sociedade dos mortos. Ela explora a terceira via, a via do meio, aquela que segundo DaMatta melhor expressa a dinamica da cultura brasileira. Nao se rebela contra sua condicdo, mas nao desiste de ser feliz, sobretudo de assumir sua sexualidade explosiva. A historiografia republi- cana recente revela que Flor nao estaria sozinha nessas demandas, embore a maioria dos estu- dos se refira a mulheres das camadas populares, o que nao era exatamente o caso dela.’ 0 fato A iscia vai 20 crema 6 que a personagem nao se acomoda a sua condi¢do. Essa é uma leitura do filme que tem um Pé também na teoria da resisténcia social molecular, que privilegia os pequenos gestos indi- viduais de ruptura no cotidiano opressor, em lugar da ruptura coletiva com as estruturas que condicionam este cotidiano. Nesta perspectiva, escravos, operarios, mulheres e outros gru- Pos sem poder estrutural garantiriam alguns ganhos através de artimanhas pessoais e da manipulagéo dos que detém tal poder. Com isso, sem se transformarem em herdis, seriam liberados daquela posicao de eternas vitimas a que os empurram as teorias convencionais de dominacao social.” Esta é uma leitura possivel da posicao da personagem central. Mas ha um herdi nessa historia, embora daqueles quase sem carater, um vencedor chamado Vadinho. Se a historia é de Flor, Vadinho também conquista o melhor dos dois mundos. Malandro fino, na vida e na morte ele parece existir para ser servido. Na morte, alids, ganha condicdes de melhor ser servi- do, mas também de servir, como € 0 destino dos herdis. Reconquista o amor de Flor, agora em Perfeita harmonia, e adquire sucesso permanente na roleta, cujo resultado antecipa através de seus poderes de entidade do além. 0 jogo e Flor, esses os dois amores definitivamente ganhos Por Vadinho. £ realmente um porreta, como afirma 0 amigo preto no seu entero Esse negro é interpretado pelo ator baiano Mario Gusmao, que trabalhou fazendo Pontas com Glauber e outros diretores do Cinema Novo.* Gusmao, que morreu na miséria em 1996, € um bom guia para um outro aspecto do filme que quero comentar. 0 negro diz que Vadinho um porreta — e o que ele (0 negro) &? Em primeiro lugar, parece uma sombra que vaga silenciosa na tela entre os amigos do morto e cuja Gnica fungio 6 precisamente dizer, em duas cenas, no cassino e no cemitério, que o branco louro Vadinho & um porreta. Ah, ele também acende, solicito, 0 cigarro de Vadinho numa das cenas. Os personagens negros sao raros neste filme ambientado numa Bahia tao cultural e demograficamente negra, e, em geral, se encaixam nos papéis tradicionalmente reservados a eles na sociedade baiana: prostituta, praticante de candomblé, folio de afoxé, mtisico, malandro (embora o rei dos malandros aqui seja 0 branco Vadinho, a0 que voltarei adiante). Esto todos ali principalmente para servir e homenagear os protagonistas centrais, que séo brancos ou mesticos claros. Inclusive Flor/Sénia Braga, que aparece como branca baiana na Gnica fala em que o discurso racial emerge explicitamente. E quando a prostituta negra Dionisia, inquirida sobre 0 assunto por Flor, lhe responde que o pai do filho dela, também apelidado Vadinho, nao é 0 Vadinho de Cena For e seus dois mares: viagem a um mundo que muda ee 67.) homem de Dionisia € negro e nao gosta de branca. Este ¢ 0 Gnico toque de tensao racial no filme, e vem da boca de uma negra. E de se refletir por que, entre os varios contrastes que separam os dois maridos de Flor, nao se inclui o contraste da cor, no filme ou no romance. Vadinho nao podia ser um negro? Fiel ao romance, no filme ele também é branco e louro, se " fixando nos limites da civisdo de classe e cultura, 1 a Re, Mew. AD certamente mais palataveis pare a indUstria cultural da 6poca. Pois como seria empregar, ha trinta anos — e talvez ainda hoje, ano 2000 —, um ator negro nas cenas ardentes que José Wilker divide com Sonia Braga? Teria a censura mili- tar, que inicialmente proibiu tais cenas, liberado tudo como mais tarde o fez, embora ja pas- sados quatro anos do langamento do filme?’ E teria o filme resultado ne sucesso de piblico que teve? Para além da ditadura militar, é importante considerar o Brasil que entao tinha- mos, onde, tal como no caso do feminismo em relacao a mulher, os movimentos negros eram embrionarios e ainda nao haviam levado o pais a pensar suas mazelas raciais. Na época teria sido realmente iconoclasta um negro no papel de Vadinho, porque, apesar da nossa mestigagem cantada em prosa ¢ verso, estariam sendo levadas para a tela, para o plano da arte visual de massa, relacdes que na verdade pertenciam aos bastidores e as margens da nossa sociedade.” A mesticagem & um dos mitos de origem do pais, e em Jorge Amado repre- senta quase uma ideologia politica. Mas na pratica ela em geral ocorre fore da familia legiti- mamente constituida. Casamentos inter-raciais na altura do lancamento do filme Dona Fior, apesar de mais fregiientes aqui do que nos Estados Unidos, por exemplo, continuavam minoritarios no nosso mestico pais. Segundo 0 censo de 1980, apenas cerca de 20% dos casa~ mentos no Brasil eram inter-raciais, a maioria acontecendo nas fronteiras do gradiente de cor de pele, ou seja, entre pardos e pretos ou entre pardos e brancos. Em Salvador, a proporcao dobrava para 40,5%, mas a de brancos casados com pretos representava apenas 3,2%, peque- nna mas mesmo assim a segunda maior proporcdo num centro urbano (a primeira seria Sao Luts, com 3,3%)." Seria politica e comercialmente temerério fazer um filme sobre casamento que, no caso do pblico baiano, refletisse a realidade de apenas 3,2% da populacao casada, pro- a A Historia a 2 cinema orgao perto de zero no caso da maior parte do Brasil urbano. Para serem amados pelo pabli- Co pagante brasileiro, majoritariamente branco, Vadinho precisava ser branco, e Flor também. Como sao varios os angulos de uma historia, € possivel também argumentar que a presenca de um malandro branco, além de ser fiel a0 texto amadiano, tinha seu charme de subversao, sobretudo sob um regime militar, enquanto a de um malancto negro apenas con- firmaria esteredtipos racistas consagrados no Brasil. Com o capital simbolico que representa- va a cor de sua pele, Vadinho poderia ascender socialmente, mas preferiu a vida de boémio Pobre. Era um branco porreta, afinal de contas. 0 problema é que neste filme todos parecem sé-l0 quando a questio é racial. Acompanhando o diagnéstico — alias predominante na lite- Tatura académica dos anos 40 e 50 — de que existia na Bahia preconceito de classe e nao de raca, o filme silencia sobre 0 assunto. Um siléncio revelador. No filme, a aparente demo- cracia racial, com seu equivalente sincretismo cultural, suporta a presenca de apenas um negro no circulo de amigos de Vadinho — um verdadeiro token black —, uma negra entre as amigas de Flor, mesmo assim nao do seu circulo mais intimo de amizades. Ambos repre- sentam negros que ganham espaco social através da associago com brancos, e nao de acaes solidarias dentro do proprio grupo (a0 contrario, por exemplo, do personagem Pedro Arcanjo de Tenda dos milagres, romance e filme). Ele & 0 Gnico negro entre os freclentadores do cassi- no, ela, uma prostituta ligada ao candomblé, que se torna comadre de Flor — esta lhe bati- za 0 filho —, sendo o compadrio uma forma consagrada de aproximacao entre desiguais no Brasil, e 20 mesmo tempo um rito que consagra a desiqualdade. Assim, embora com algum esforco, € possivel perceber uma Bahia mais real, com componentes de segregagao racial, mas onde brancos da classe média beixa provinciana, ou melhor, da pequena burguesia baiana — aqui representada por Dona Flore seu primeiro mari- do — circulam por ambientes e praticas culturais que seriam predominantemente negros. Tanto Flor como Vadinho tém contatos com o candomblé, ela & mestra da culinéria negrobaiana, ele gosta de samba etc. etc. Havia e hé gente assim na Bahia e pelo Basil afora. Resultou @ @ desses comportamentos ndo convencionais de brancos remediados que muitas manifestacoes da cultura deixassem de ser consideradas "coisa de preto” para se legitimarem como parte da “identidade nacional’. Mais do que Flor, é Vadinho, no entanto, quem desempenha um papel mais ativo de medizdor cultural, porque circula também nas esferas afluentes da sociedade, sobretudo entre os elegantes que freqiientam 0 cassino, dos quais, quando vivo, arrancava Dora Flere seus co's mars: visgem a um mundo que muda favores, Ainda como mediador, circula também entre 0 mundo dos vivos e 0 dos mortos.* Neste sentido contrasta mais uma vez com o segundo marido de Flor, um personagem social e culturalmente fixo, freqiientador apenas da "boa sociedade’, dos circulos académicos, dos concertos de musica erudita e da Igreja Catélica carola. 0 catolicismo é um outro espaco fisico e mental de circulac3o constante dos per- sonagens, Lé esta Dom Venancio, um padre disposto a emprestar a Vadinho dinheiro da paréquia a fundo perdido, ou que ouve paciente as confidéncias de Dona Flor a respeito de uma espécie de mal-estar existencial causado pela falta de emogdo em sua vida afetiva com o farmacéutico. 0 padre é um sujeito compreensivo, personagem apropriado para uma religiao representads como tolerante diante dos desvios de seus adestos, nao a igreja inquisitorial de 0 pagador de promessas, de Dias Gomes. 0 malandro Vadinho sente-se em casa nessa igreja. Na visita em que arranca um empréstimo 2 Dom Venancio, ele comenta com este sobre a cara descarada da imagem de um anjo no altar de Nossa Senhora, "cara manjada de gigol6", de "anjo fretando a santa*. Para Vadinho sexo & coisa sagrada, "vadiagem & coisa de Deus", pois Ele teria dito: "Vo por ai, meus filhos, fazer neném." E a religido sensualista de Gilberto Freyre a Jorge Amado, um catolicismo cujos devotos desde os tempos coloniais brincam de sexo pra valet, € das mais diversas e criativas formas, como revelam os estudos recentes baseados nos documentos do tribunal da Inquisicao portuguesa.” Entre os pecadores incluam- se 0s padres, como atesta aquele olhar interesseiro que Dom Venancio dirige 4 magnifica bunda de Flor. Mas hé também a Igreja hipécrita, aquela das amigas beatas de Flor, a quem \Vadinho ofende e espanta mostrando-thes seu traseiro branco na entrada da missa. Essas mes- mas mulheres conversam sacanagem entre si, em geral tematizando o luto excessivo de Flor. Quando esta queixa-se de uma dor de cabeca, Dinord (Nilda Spencer) comenta: "Enxaqueca de vitiva é falta de homem." 0 filme trabalha bem 2 idéia, antropologicamente correta, de que afinal de contas quem faz a religiao sio os devotos e nao os tedlogos. Ou melhor, estes fazem 2 religiao, aque- les a religiosidade. 0 proprio retorno de Vadinho do mundo dos mortos nao esta previsto na doutrina, sempre desconfiada de que tal fendmeno — espécie de atavismo pagao relaciona- do com 0 culto dos antepassados — desviasse o fiel da devogao devida exclusivamente aos santos e 3 Divindade. A relacdo com os mortos é um aspecto da religiao vivida, e realmente assunto mais bem tratado fora da Igreja, através do espiritismo ou do candomble, no qual a7 Astra val ao cinema, alias a catélica Flor vai buscar remédio. Remédio para tratar de morte mas também de vida, pois é lé que ela procura meios para engravidar, ‘Apesar de inevitavelmente caricatural em muitos aspectos, Dona Flor e seus dois Imaridos é prato cheio para se pensar historia e cultura brasileias, sob diversos dngulos. Mas 0 Brasil urbano de Fir e Vadinho é um mundo que, para melhor ou pior, estamos rapidamente deixando para tras, diante da emergéncia de outros valores e comportamentos, manifestos por @eemplo na expansio de novas formas, ideologicamente mais militantes, de religiosidade; no avanco de formas mais competitivas e individualistas de trabalho e lazer, de viver e de mor- ‘er; na formagao de identidades coletivas que celebram e defendem a alteridade e nao a mis- tura social, racial e sexual. Mudancas sobretudo no que diz respeito ao papel da mulher na Sociedade brasileira. Embora os Vadinhos continuem a brotar, mesmo se de roupa nova, quase nao existem mais Flores como antigamente. deco os comentarios fetos fer Mariza de Carvalho Somes a este text Roberto DaMatta escreveu un ensio impersivel sobre o scmance de Jonge Amato on objetivos semelhantes, o qui estarei sempre retorrando neste texto. Micha discussdo do filme converge om a tos aspectos, mas também tems nos- sas Giferencas. Ver Roberto DaMaca, A case & a rua: especo, cidadenia, mulher € norte no Bras, ¢*ed., Rio de Jara bara Kogan S.A., 1961, pp. 103-161 séptica, solitaria e hospitalar de or ons dit Seal. 197 nice Nogueira Galva, "énadk creas (Sa0 Paul, D por exemgplo alberta ke 0, "Salvador das mulheres: condiso feminina e cot ita, Dissertacéo de Mestrado. UFBa Faz e Terra, 1989. Ver a este respets a excelete atordagem de personagens machatlianos por Sidney 0s politico: em Machado d: Assis’, in Sidney Chalnoub e Leonardo (orgs.).A hist cavitulos de histéria socal da iterate Janeiro: ova Fntera, 198, cp. 4 ver Jeferson Bacel, "Matic 1920-1996): 0 Sante Guerreiro Dragio ds Maldade’, frodsia, n° 19/20 (1997), pp. 257-27 1976, apenas er fe se: exibido por inteiro. eracio pelo Conselho Saperia mente noticiaia. Ver po Sto imprecisos os dados «bre na Bahia de Dona Flor. Em meados da léada de 30, Pietson acho: que» mntos inter-racais andavam. na casa dos 3% de uma amostra de 1.219 ti jesconfiava ser esta uma prozoryéo astante subestimada; ja Tales ene, que aquela. prozor Ps, MS, as Pa A Pa a il atingir 20 por cent cose pret Nacional, 19 Ver Eiza Bercué, “Como se cazam negras € no Brasil” in Peggy Lave (0 30 Bras pordneo, Belo Horizonte: UFMG/Cedoplay, 1 Racial Distance and Region in Brazil: Interma Research Review, p assurto, Nelson do Valle 5 Hasenbalg, Relap de Janeiro: Ric Fundo Etitora, 1992, caps. 2,32 4; eF 4ecismo cordial, Seo Paulo: Atica, 1995. yp. 181-191, em que, a partr de uma ampl: Pesquisa (5.081 entrevistados) feita em 1995, cencluise que a esmagedora maior dos brasilaincs ce todas as cones se declara sem preconceito quanto 20 casanent por exempl ahia, oviginalmente publiceéo em 42; € Azevedo, At elite Ver Peter Fry, Fora inglés ver: identidace e politica na cultwa brasie Janeiro: Zahar, 1882, cap. 1 # Hermano Vianaa, 0 mistério do samba. Jorge Zaha: /EDUFRJ, 1995. DaMatta, op. cit, p. 168, prefer acer‘uar 0 papel de Fl ¢ da magicamente ertze dois mundes, ser relaconal sor excelénc, por exemplo Ronaldo Vans, Tépices d Rio de Jareir: Canpus, 18 a7 AE TP Pk MF PP Mg MP al Pa ill PY MW in ct situaitn Thabe Marion Brepohl de Magalhaes Alluia, Gretchen: un hotel para © Reich a A imaginagao é a memoria que enlouqueceu. Mario Quintana A semeltanga do historiador, o diretor de cinema faz uma montagem do passado, real ou imaginado, ¢ 0 revela, a partir do filtro de sua camere, ao espectador. Ali, cada imagem- movimento — angulagao, enquadramento e composicae, iluminagao, edigao de som, e ainda © ritmo (mais apressado, sugerinco acao, mais lento, sugerindo reflexio) — sera integrada as demais, cuidadosamente produzidas e ordenadas en seqiiéncias, cujo produto final é o filme: uma visdo de mundo, um fragmento do acontecico, que se expressa ao oltar do espec- tador, desocuttando' detalhes que escapam a fugacidade do olhar natural. Como no oficio do historiador, 0 que é elidido da "montagem" nem sempre & mostrado ao piblico; o que ele recebe é uma filtragem mediatizada pela experiéncia de outrem. Mas, diferentemente do historiador, que busca atingir a consciéncia do leitor, o filme penetra nas fantasias e nos sonhos do espectador, dialogando todo 0 tempo com o seu in- consciente visual. € a partir dessa interacao — o olhar do que produz o documento a ser revelado de acordo com uma determirada lente, e 0 do espectador — que me proponho a comentar Aleluia, Gretchen. Eu, espectadora privilegiada, uma vez que, como Sylvio Back, também reali- zei um percurso pela documentacao que trata da imigrecéo alema e do comprometimento de muitos membros desse segmento social com o nazismo.” Aleluia, Gretchen na obra de Sylvio Back Um dos grandes méritos de Aleluia, Gretchen é que ele representa a primeira elabo- taco a tematizar o fendmeno nazista no sul do Brasil. A istéia vai ao cinema Antes deste filme, a influéncia nazista entre os imigrantes de origem germanica so fora tratada na literatura, por Erico Verissimo (1935) e Vianna Moog (1940), ou em livros n3o- académicos, de autoria de jornalistas ou delegados de policia, em tom panfletario e conspi- fat6rio, caracteristico do nacionalismo xenofobico dos anos 30. Da parte dos historiadores brasileitos, a imigragao germanica fora até entdo celebrada como uma contribuicgo de ines- timavel valor para 0 progresso da racdo brasileira: afinal, aqueles homens eram brancos, Morigerados e laboriosos, 0 que cooperaria para o desenvolvimento econdmico do pais e para © branqueamento da raca.* E neste contexto que o filme de Back, produzido em 1976, intervém como uma con- tra-historia, 0 que ros remete ao contexto cultural da cinematografia brasileira daquele perio- Go; da mesma forma como 0 Cinema Novo elegeu a "realidade nordestina" como parabola Politica do Brasil moderno, com uma estética desagregadora e agressiva, Sylvio Back “deso- culta" @ regiao Sul freqiientemente enaltecida pela historiografia como sinénimo de pro- gresso € convivéncia harmoniosa entre racas e classes sociais. Por esta razdo, creio ser inte- ressante resgatar dois outros longas-netragens de Back: Lance maior (1968) e A querra dos pPelados (1971) que com Aleluia, Gretchen compdem uma trilogia considerada por alguns criti- Cos como “a fase regionalista" do cineasta, posicdo da qual nao compartilho inteiramente. Lance maior € um filme que trata, nas esteiras da nouvelle vague, muito mais do moralismo classista e da sedugao da sociedade de consumo do que de uma tematica especificamente regional. 0 filme narra as angdstias cotidianas de trés personagens que compéem 0 tridngulo amoroso do enredo: a burguesinha alienada Cristina (Regina Duarte), 0 estu- dante universitario e bancario Mario (Reginaldo Faria) e a balconista de subirbio Neusa (Irene Stefania) Nesse filme, segundo o proprio autor, elu, Gretchen: um het para o Reich ‘A cidade de Curitiba e o Parané sulino e litordneo assumiam uma visibilidade fiecional imagética e verbalizada a partir de um projeto autéctone. A alma do roteiro e o olho no visor tinham cordées umbilicais atados a realidade paranaense [...] no entanto, 0 filme guardava indisfargavel parentesco com ‘0 cinema renovador dos anos 60, como Sao Paulo $/A, de Luiz Sérgio Person, e Barravento, de Glauber Rocha.’ Em A guerra dos peiados, Back representa o conflito do Contestado, ocorride na divisa do Parana e Santa Catarina ne primeira década do século XX, em que os "pelados' (posseiros da regio) sao massacrados pelos "peludos" (os latifundiarios, as empresas estrangeiras de colonizacdo e 0 exército). Apesar de ser um dos capftulos mais contundentes da historia suli- na, 0 filme parece dialogar, enquanto universo ficcional, com Os sertdes, de Euctides da Cunha, ou com Deus e o Diabo na terra do sol, de Glauber Rocha. Finalmente, em Aleluia, Gretchen a regio Sul € novamente 0 cenério em que se desen- volve o enredo, mas as seqiiéncias, a sonoplastia, as imagens-movimento evocam temas uni- versais, como 0 racismo, as relacoes familiares, a ditadura (hitlersta, getulista e peronista). Imigrantes e nacional-socialismo: fragmentos de um diario 0 filme narra a saga da imigracdo de uma familia alema para 0 Sul do Brasi, @ familia Kranz, um microcosmo por onde circulam, ao longo de 40 anos, varias conviccies e senti- mentos que convergem a experiéncia social do nazi-fascismo. Na primeira parte (1937), a chegada desses imigrantes e seu estranhamento 2 comu- nidade local. Na segunda parte, as vésperas e durante a Segunda Guerra, a familia, que se soli- darizou ao nazismo e ao integralismo, softe violentas represétias por parte dos “naciorais", 0 que nao a faz abdicar de suas idéias, Na terceira parte, anos 50, ex-oficiais das SS, em trinsito para a Argentina, hospedam-se no hotel dos Kranz, fazendo-os reviver sonhos e frustragies da ‘Alemanha nazificada. Finalmente, nos anos 70, a familia se reine em tipico piquenique alemao para homenagear sua matriarca, momento em que, 20 som da “Cavalgada das Valirias”, em ritmo de rock," e de uma batucada tipicamente carioca, inicia-se uma danca que encera o filme. Para intercalar as seqiiéncias do filme, interpdem-se fotomontagens que mesclam imagens da Juventude Hitiersta, desfile marcial, marchas e outras, as quais deven dotar de

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