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O que fazem Os poetas com as palavras por Roman Jakobson maior, jo inclusivamente 0 ‘com que reviu @ tradugdo portuguesa desma conferéacia © o ter nos autorizado © sua publicagio. A poesia é um facto inelutvel. Dizem os antropélogos que nfo hé um 36 grupo étnico desprovido de poesia, mesmo nas sociedades denominadas «primitivasy. Trata-se, pois, dum fenémeno universal, exactamente como 1 linguagem. Em certos grupos étnicos apenas existe, a par da linguagem quotidiana, 2 linguagem poética; desconhecem-se, porém, sociedades em que, além da linguagem corrente, se cultive exclusivamente a prosa artis- tica. Esta é uma superestrutura, algo jé de mais complicado, a meio-caminho entre a poesia, que é um dos pélos, ¢ a linguagem de todos os dias, que é © outro. Note-se, por outro lado, que em certas sociedades 56 existe poesia sob a forma de poesia cantada: é o sincretismo primitivo da palavra poética ¢ da misica, Mais: em certas tribos que no possuem miisica instrumental opSem-se 0 conjunto poesia-musica dum lado e a linguagem corrente do outro. Nas tribos que possuem miisica vocal ¢ miisica instrumental obser- va-se, por via de regra, uma estreita ligacdo entre a misica instrumental ¢ ‘a danga, Logo, dois sincretismos: misica instrumental-danca e mmisica vocal-poesia. Se considerarmos os movimentos do corpo, o fendmeno ganha maior complexidade: as fung6es semidticas desses movimentos sio duplas: signos da danga que acompanham a miisica ou por ela sio acom- panhados —e mimica, gestos que acompanham ou substituem a linguagem. E interessante registar que, em principio (pomos. de remissa no poucos factos intermédios), sio os movimentos da parte inferior do corpo que amais sc ligam & miisica, ¢ os da cabega ¢ dos bragos que se associam & linguagem. Scja-me permitido passar agora ao problema essencial da poesia. ‘Como se sabe, a palavra poesia, que é de origem grega, prende-se a um verbo que significa «criar», e, na verdade, a poesia, nao sendo o tinico aspecto criador, 6 0 dominio mais criador da linguagem. Quanto palavra verso, tem a mesma raiz que prosa, visto que prosa deriva de provorsa, proversa; oratio proversa € aquela que caminha resolutamente em frente,.com uma direccio estrita. Além disso, versus quer dizer «retorno», um discurso que comporta regressos —¢ penso ser este um fenémeno fundamental, de que podemos tirar grande mimero de ilagSes, Aqui, ao falar de poesia, refiro-me A poesia em verso,:ndo me ocupo de formas transitivas, & sempre preferivel comecar pelos-pélos. Ora. bem: que h4 no verso que nio.se observe na linguagem quotidiana?:No: verso temos unidades linguisticas de toda a espécie, mas, enquanto nia lingiagen corrente 0 seu regresso nao-conta, abstraimos da repetipaio dessas_unidades, no verso a repeticfo desempenha um papel de que. estamos conscientes. Projecta-se na linguagem pottica o principio da equivaléncia na sequéncia; as silabas, os acentos tornam-se unidades equivalentes. ‘No: verso-livre nio sio os acentos, no so as silabas, mas é a entoacio da:frase que se repete, formando por essa reiteragdo regular a propria base :do-verso: Donde vem a importancia da repetic#o? Cumpre niio esquecer qué as frases sio-feitas de palavras e grupos de palavras, e se, por assim dizer, «vivemos>:a repe- tigdo das silabas, dos acentos, das entoagSes, as palavras que'se corres- pondem pela sua posigao avaliamo-las subconscientemente do ponto de vista da sua equivaléncia. Vejamos que se passa com a rima: o que importa niio é s6 a repeticio dum grupo de fonemas, em finais de:verso, importam, sim, as palavras a que ésses fonemas pertencem. As palavras que rimam podem ser substantivos com o mesmo sufixo (revolusdo, renovagio, etc.), mas podem ser.termos de, categoria gramatical diferente que nada tenham que ver uns com os outros. HA poetas, escolas que se orientam para as rimas gramaticais, ¢ poctas, escolas que visam antes as rimas agramaticais, ou, mais exactamente, antigramaticais. A questdo fundamental reside, em. poesia, nas relagbes enire som ¢ sentido. Age a cada momento, estabele- cendo entre as palavras novos nexos, metaféricos ou metonimicos. Se aten- tarmos, por exemplo, em Fernando Pessoa, veremos que a rima ¢ uma das coisas fundamentais na sua poesia, uma das razdes da sua grandeza, pelo poder de suscitar inesperadas aliangas de termos, de sentidos, que aceitamos como novos valores. Fala-se de estruturas ritmicas, fala-se de aliteragio ou de rima: so, sem divida, realidades, mas nfo se trata sé de miisica, esth sempre em jogo a relagdo entre som e sentido: tudo na linguagem é, nos seus diversos niveis, significante. ‘Um problema que me impressionou ¢ o papel da gramatica na poesia, Quando estudante, li nos manuais que existem poemas (de Puskine, por exemplo) sem imagens, sem tropos, cuja fora tnica reside na, fora da ideia ¢ do sentimento. Na altura acreditei, depois tornei-me céptico. Mas acreditei,"devo dizer, com certa surpresa. A profundidade das ideias! Mas nao so textos magnificos, cheios de ideias profundas, a Declaragdo dos Direitos do Homem-ou a Teoria da Relatividade de Einstein? E alguém os classificaré de textos poéticos? Logo, para haver poesia parece. necessrio algo mais. Li, por outro lado, comoventes cartas de amor.ou lancinantes cartas de despedida de pessoas que iam matar-se. Pois bem: eram textos repassados de sentimento, nfo eram‘poemas! E nio-se trata apenas da organizaio ritmica: toda a organizacdo interna: estf..em: causa, Voltei a pensar no assunto quando tive de organizar alguns volumes de traduges de Puskine em checo. Os melhores poetas checos puseram mos & obra. Conquanto entre as linguas russa e checa existam grandes semelhangas, comecei a observar certas faltas de correspondéncia. Alguns poemas foram traduzidos com perfeita exactidao no concemente a estrutura dos versos, a estrutura das rimas, a escolha das imagens, etc. E, de repente, percebi que a tradusao no estava bem: manquejava aqui ou ali. A razio estava nas diferencas de estrutura gramatical entre as linguas eslavas. Em certos casos, impde-se uma grande atendo ao papel das categorias gramaticais. Cito um exemplo, entre tantos que poderia aduzir. Uma tradu- 40 do russo, ndo jé em checo, mas noutra lingua eslava, o polaco: a traduco dum poema de Puskine feita por um grande poeta polaco, J. Tuwim, excelente conhecedor do russo ¢ dotado de singular sensibilidade linguistica. © poema, «Amein, é daqueles que se costuma considerar desprovidos de tropos e figuras. Pois bem: a versio em polaco falhou completamente. Porqué? Por nao se prestar a necessdria atencao a uma diferenca que existe entre o russo ¢ o polaco: em russo os pronomes pessoais acompanham normalmente, como sucede em francés, as formas verbais; a omissio dos Pronomes pode ocorrer, mas tem uma funcdo enfitioa,-deauncia uma-farte_ emogio; em polaco dé-co-justatfieate o contrério: normalmente ndo se ‘empregam os pronomes, as desinéncias bastam para indicar as pessoas, © usar os pronomes provoca uma impressio afectiva, envolve um tom retérico. Dostoievski comps uma breve narrativa onde diz, trogando dum publicista russo: «Fizera-se tio vaidoso que omitia sempre o pronome da primeira pessoa.» Ora no poema de Puskine, onde dialogam um herdi ¢ uma heroina, hé um jogo fundamental entre os pronomes eu © vs; con- servando, na traducio, o pronome da 1.* pessoa, dé-se ao texto um cardcter 7 excessivamente retérico. Se surgem complicades com a 1." pessoa, o mesmo sucede com a 2.*, porquanto em russo, como em francés, hi duas possibilidades: tu ¢ vds. Tu, no poema de Puskine, seria, em polaco, demasiado {ntimo; quanto a vés, no existe em polaco: ou se emprega tu ou entiio 2 3." pessoa. Assim, Tuwim encontrou-se perante um dilema: ou usar um modo de tratamento {ntimo de mais, que 0 poema nfo permite, ou a 3.* pessoa, tratamento tio cerimonioso, tio «oficial», que destruiria o texto. Aqui esté, bem evidente, a importancia das categorias gramaticais em poesia. ‘Dediquei-me ao estudo dos problemas de paralelismo, jé detidamente dnalisados na China do séc. IX com a penetrag&o que se diria dum linguista do nosso tempo. Gerard Manley Hopkins, grande poeta inglés do séc. XIX, incompreendido em. vida mas considerado hoje um clissico, ¢ também excelente tedrico da poesia, fez, ainda estudante, observacdes muito agudas sobre © paralelismo, indicando a repetic¢Zo de sons, a repeticiio de cate- gorias gramaticais, a repeticfio de construgtes frisicas, fenémenos que é facil descobrir na Biblia mas que — acentuava Hopkins — se multiplicam também na poesia contemporfnea, apenas a um nivel de maior complexi- dade. E é exactamente assim. Nos manuais (nunca se deve acreditar nos manuais{) lé-se que o paralclismo canénico é monétono, outras vezes que, bruscamente, ¢ desrespeitado. Mas nfo se vé que, por exemplo, no fragmento mais antigo do Cdntico dos Cénticos, nos versos «Vem do Libano, minha noiva,/Vem do Libano, vem», o paralelismo nao foi quebrado, j& que o imperativo (vem) ¢ 0 vocativo (minha noiva) se corres- pondem na fungSo conativa; a poesia do Céntico dos Cénticos é mais subtil que os manuais... Observamos aqui formas diferentes com idéntico valor, a combinagdo da identidade com a diferenca que,.como jé notava Edgar Allan Poé, gera a poesia. Encaremos o problema dos géneros gramaticais, Aparentemente niio tem qualquer importfincia, mai a verdade é que nés repartimos todas as coisas, no s6 os seres animados como os inanimados, pelas categorias do masculino e do feminino, dividimos o mundo segundo esta perspectiva. Quando, na infancia, li os contos de Grimm, onde a Morte assume a figura dum velho, protestei junto de minha mie: «Mas a Morte é uma mulher!» Si depois apsendi.que«palayra Morte (der Tod) & masculina em alemio. Mais tarde, deparou-se-me 0 caso dum triduy%o-dos poemas de Pasternak em checo. O livro, em russo, intitule-se Sestra moja zhizi («Minha Irmi, a Vida»), Mas em checo o vocébulo que significa «vida» é masculino; ¢ era impossivel traduzir Minha Irma, mas igualmente impensivel Meu Inmio, a Vida. O tradutor, Josef Hora, poeta de elevada craveira, ia dando em doido... Um iltimo exemplo: o poema de Heine (Ein Fichtenbaum steht einsam |...] Er tréumt von einer Palme...) em que duas drvores isoladas —um pinheiro, no Norte, rodeado de neve, e uma palmeira, no Sul, envol- vida no calor meridional — sonham uma com a outra, exprimem um amor que a distincia nfo permite saciar. Pois bem: traduzido em russo o poema fica adocicado de mais, um pouco perverso até, porque as palavras que, em russo, designam as duas 4rvores so ambas femininas; na versio francesa © efeito no é menos estranho, visto que as duas drvores (un pin solitaire; un beau paimier) tém nomes masculinos; sempre que li esta verso francesa sem explicagdo prévia, os ouvintes acharam-na grotesca... As consideragSes que estou a fazer levantam o problema das relagdes entre Linguistica ¢ Poética. Dizia Santo Agostinho que um homem que niio tem em conta a poesia ¢ no compreende a poesia niio pode arrogar-se a qualidade de gramftico. Estou intciramente de acordo com esta grande autoridade. Para ser gramético —hoje dizemos linguista— preciso conhecer a iingua em todas as suas fungies, e a funcio poética é universal, coexiste sempre. Comparece na poesia, onde organiza todas as restantes fungSes (no as elimina: organiza-as), ¢ na prosa, na linguagem corrente, onde se torna subalterns. Em Santo Agostinho nfo estd expressa mas parece implicita uma verdade complementar: nfo nos podemos ocupar de poesia sem ter em conta a cigocia da linguagem. Decerto, b& linguistas que, escravos da matéria verbal, niio se mostram sensiveis ao valor estético. Esses, porém, silo os maus linguistas. Adoptando uma atitude mecanicista, escapa-lhes a extraordinéria ductilidade da linguagem, a grande variedade das fungSes que esta desempenha. Claro, é necessério ter o sentido da poesia, saber distinguir na descrigZo linguistica do texto o que é pertinente ¢ o que niio é pertinente do ponto de vista poético. Por outro lado, h& criticos ou historiadores da literatura que, indife- rentes & arte verbal, apenas se interessam peli mensagem em si prépria, pelo que as palavras-significam.-Mas esses sio.criticos defcituosos. Como no século XVI ponderava Sir Philip Sidney, um poeta nfo pode mentir; com efeito, 56 mente quem faz assergScs, ¢ um poeta nilo faz asseroes: © que dé valor a um poema, convém insistir, é a relaco entre sons € sentidos, é a estrutura dos significados — problema semintico, problema linguistico no sentido mais amplo do termo. Coléquio / Letras, n. 12, Lisboa, margo de 1973.

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