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JOAN W. SCOTT é) uma estratégia tao bem sucedida quanto a is histérias do feminis- outra.? francés incluem Essa verso, herdada do século XIX, nos ns anMocn apes de analisar, e mesmo de ver, 0 reverso THE, 1977; BIDELMAN, “@ experiéncia feminista, ou seja, as contradi- 1982; GRINBERG, 1926; ¢6es nao resolvidas, as repeticdes obsessivas que HAUSE & KENNEY, parecem condenar uma gerag&o a reviver o di- 1984; KLEJMAN & RO- ema da precedente, e a incapacidade de asse- LEAN bn CEM gurar o direito de igualdade de representacéo 1984; SOWERWINE, Politica, mesmo depois de o voto da mulher — 1982; SULLEROT, 1966; uma reivindicagéo tantas vezes repetida — ser THIBERT, 1926; L- uma pratica irrevogavel. Uma historia feminis- ae LS, 1982, ta que admite sem discutir a inevitabilidade do Pprogresso, a autonomia de agentes individuais e a necessidade de escolha entre igualdade e diferenca reproduz sem qualquer questionamen- to os termos do discurso ideolégico sob cujos efeitos o feminismo tem operado. Na verdade, o que lhe tem faltado é 0 devido distanciamento analitico. Meu senso da necessidade de um enfoque diferente para a histéria do feminismo foi des- pertado por uma reportagem do New York Ti- 2 New York Times, 31 dez. mes sobre a Franca.” Insatisfeito com o diminu- 1993. (GASPARD et alii, to ntimero de mulheres que exercia mandatos 1992). na Assembléia Nacional (a proporcéo é menor que em qualquer outra democracia da Europa ocidental, de trés a seis por cento, desde 1944, quando se reconheceu o voto feminino), um gru- Po, na maioria mulheres, comecou a insistir que houvesse paridade de géneros na Assembléia. Em reivindicagées que o préprio grupo reconhe- ceu como “um tanto utépicas”, tentaram apro- var uma lei que deveria garantir para as mulhe- res a metade das cadeiras do parlamento fran- cés. “A exclusdo das mulheres tem feito parte da filosofia politica da Franga desde a Revolu- ao”, disse Claude Servan-Schreiber, cujo livro, Au Pouvoir citoyennes!,é uma espécie de mani- festo do grupo. “As mulheres da minha geracgao — tenho cingiienta e cinco anos — nao tive- 24 Historia do Feminismo conseguem reler ler a mesma histéria em toda parte, (Roland Barthes) 23 ste livro é uma tentativa de repensar a histéria do feminismo, tomando como Ponto de partida o exame de certas cam- panhas pelos direitos politicos da mulher na Franca de 1789 a 1944. Pela andlise dos escri- tos e das agées de militantes politicas feminis- tas em diferentes momentos histéricos, procu- tei apresentar uma alternativa ao enfoque con- sensual da historia do feminismo, herdada das feministas do século XIX. Elas construiram uma histéria que nao poderia ter se afastado das gran- des metas de evolugao do seu tempo; uma his- toria teleolégica, que progride cumulativamen- te em diregao a um objetivo ainda nao atingi- do; uma historia na qual as mulheres, inevita- velmente, encontraram dentro de si Préprias os meios para lutar contra sua exclusdo das politi- cas democraticas; uma histéria na qual as fe- ministas transformaram, por forga de sua ima- ginagao, as acdes caédticas e disparatadas das mulheres do passado em uma tradigéo organi- zada e continua. Geracées diversas tiraram dessa histéria outras ligdes morais, relaciona- das com seus proprios debates teéricos, A ver- a0 que temos no final do século XX 6 que in- variavelmente as feministas do passado exigi- am com insisténcia ou igualdade ou diferenca, que qualquer desses enfoques seria (e ainda RELENDO A HISTORIA DO FEMINISMO ram que lutar para ter direito ao voto”, acres- centa ela, “mas nada aconteceu aqui desde a €poca em que o sufragio universal” foi aprova- do ha mais ou menos cinquénta anos. Eu acres- centaria que o atual movimento a favor da pa- ridade é uma tentativa, em roupagem nova, de enfrentar um problema anterior ao sufragio, que Servan-Schreiber, com muita precisdo, faz re- montar a grande revolugdo democratica de 1789. O problema é descobrir como as feminis- tas poderiam dar & mulher o status de indivi- duo auténomo, auto-representdvel e com ple- nos direitos politicos numa repiblica democré- tica.S O problema poderia também ser visto da seguinte forma: por que tem sido tao dificil, por tanto tempo, estender as mulheres o que pro- meteram a Revolugao e qualquer uma das re- ptiblicas, depois, proclamadas, isto é, liberda- de, igualdade universal e direitos politicos para todos? A resposta exige algo mais do que uma crénica da luta herdica das feministas, das trai- Ges imerecidas e dos erros estratégicos (em- bora nem mesmo o presente relato esteja livre de conflitos e traicdes). Exige algo mais que uma historia intema do movimento feminista trata- da como secundaria no cenario politico “maior”, mas também algo mais do que uma explicagéo que dependa de fatores — quer so- ciais, quer econdmicos — precedenies e exter- Nos a politica, ou entéo de raz6es com as quais 0s préprios politicos justificam suas agoes. A Tesposta, na verdade, exige que os conflitos re- correntes do feminismo sejam lidos como sin- tomas das contradigdes nos discursos politicos que produziram 0 feminismo, contradicées para as quais 0 feminismo apelava, ao mesmo tem- po em que as desafiava. Tratava-se de discur- sos sobre individualismo, sobre direitos e obri- gag6es sociais do individuo, que republicanos (e alguns socialistas) lucubravam para organi- 25 *Citado em SOWERWINE & MAIGNIN, 1992, p. 102. JOAN W. SCOTT Zar a instituigao da cidadania democratica da Franca. Mesmo enquanto escreviam suas proprias histérias de Progresso, as feministas tinham consciéncia do cardter repetitivo de suas. agées. Em 1913, a psiquiatra e militante socialista Madeleine Pelletier associava em seus escritos Os movimentos feministas aos turbulentos mo- vimentos revolucionarios do século XIX, Porém, como Claude Servan-Schreiber, em 1993, Madeleine Pelletier ja situava sua origem no trau- ma da primeira Revolucao. Foi entao, dizia ela, que o feminismo “aprendeu como enunciar to- das as reivindicagées por seus direitos” 4 A le- gitimidade dessas reivindicacées e sua satisfa- a0 dependiam do reconhecimento de que a proclamacao de direitos da Revolugao nao se coadunava com a recusa dos direitos de cida- dania que a prépria Proclamagao impunha a mulher. Aquilo, porém, que era uma evidente contradigao para as feministas, nao era tao Obvio para os legisladores, que reiteradamente Ihes negavam o direito de voto com base em diferengas biolégicas, E é assim que 0 tema da repeticao na his- téria feminista est4 ligado sistematicamente a idéias de incoeréncia e incongruéncia, e a dis- cusses em torno do que era ou nao contradité- tio. Esse problema, Pporém, ultrapassava o con- flito entre princfpios universais e praticas de exclusao (algo presumivelmente reconcilidvel), atingindo outro problema bem mais dificil de tratar, o da “diferenca sexual”. Quando se legi- timava a exclusdo com base na diferenca biol6- gica entre o homem e a mulher, estabelecia-se que a “diferenca sexual” nao apenas era um fato natural, mas também uma justificativa ontolégica para um tratamento diferenciado no campo politico e social. Na era das revolugdes democraticas, “mulheres” tornavam-se excluf- das politicas por artes de um discurso baseado 26 RELENDO A HISTORIA DO FEMINISMO em diferenca sexual. O feminismo era um pro- testo contra a exclusao politica da mulher: seu objetivo era eliminar as “diferencas sexuais” na politica, mas a reivindicacao tinha de ser feita em nome das “mulheres”(um produto do pré- prio discurso da “diferenca sexual”). Na medi- daem que o feminismo defendia as “mulheres”, acabava por alimentar a “diferenca sexual” que procurava eliminar. Esse paradoxo — a neces- sidade de, a um s6 tempo, aceitar e recusar a “diferenga sexual” — permeou o feminismo como movimento politico por toda a sua longa histéria. A dificuldade no trato com a idéia de pa- radoxo foi descrita em 1788 por Olympe de Gouges (que mais tarde garantiria seu lugar na histéria do feminismo como autora da Declara- ¢Go dos direitos da mulher e da cidada, 1791). Num longo tratado intencionalmente inspirado no de Jean-Jaques Rousseau, ela estabeleceu sua propria versao do contrato social, acrescen- tando um conjunto de observagées sobre filo- sofia, ciéncia, progresso, uma lista de propos- tas de reforma politica, além de comentarios sobre a situagdo do teatro na época . A certa altura de sua obra, num comentario paralelo sobre os maus efeitos que recaem sobre a soci- edade, quando artesdos e comerciantes (cuja ambig&o os leva — com perigo para a ordem social — a desviar de seu lugar costumeiro, ou que lhe é préprio por vocagao) se imiscuem nas coisas pertinentes a ciéncia e a erudicao, a au- tora faz uma pausa em sua diatribe com a se- guinte observagao: “Se eu prosseguir com esse assunto, irei longe demais e atrairei a inimizade dos novos ricos que, sem refletir sobre minhas boas idéias ou apreciar minhas boas intengdes, vao me condenar sem piedade por ser eu uma mulher que sé oferece paradoxos, e nao proble- mas faceis de resolver’. ® Para mim, “uma mu- Iher que sé oferece paradoxos, e nao proble- 27

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