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A ética protestante ¢ 0 “espirito” do capitulismo & para a sociologia 0 que A origem das espécies, de Darwin, € pata a biologia, ou A interpretaco dos sonhos, de Freud, para a psicandlise: um livro inaugural, um See ete an ons ee ee Re ary eee pliado pouco antes da morte do autor, em 1920, este ensaio instaurou uma nova maneim de com> Pet tea eet ten Num texto breve ede escrita limpida, Max Weber identificou a génese da cultura capitalista moderna ‘os fundamentos da moral puritana,© método exem- Poon Eee suet eee Meee cms ee eer ty Pee e ea set ee cnn ine Esta edicio, traduzida do alemio por José Mar OR et eee eee Pay Cee res ecm etn Peer esteem eet eee tee altura deste grande clissico das ciéncias humanas. Nea PROTESTANTE Fe aes ‘ESPIRITO’ DO CAPITALISMO BDIGAO DE ANTONIO FLAVIO PIERUCCI Esce livro faz parte da rara cae- goria das obras fundadoras do pen- samento cientifico moderno. Lang2 do em 1904-5 e ampliado em 1920, A ética protestante¢ 0 “espirito” do ca- pitalismo procura compreender um fendmeno observado na passagem do século XIX para 0 XX: 0 maior de- senvolvimento capitalista dos paises de confissdo protestante €a maior pro- porcao de protestantes entre os pro- prietérios do capital, empresitios e in- tegrantes das camadas superiores de mio-de-obra qualificada. Max Weber procurou responder essa questio articulando conceitos da ento nascente sociologia alema comavelha teologia protestante, pa- ra que o capitalismo fosse compreen- dido nao em termos estritamente econémicos ¢ materiais, como um modo de produgio, mas como um “espitito”, isto é uma cultura, uma conduta de vida cujos fundamentos morais ¢ simbélicos esto enraiza- dos na tradigio religiosa dos povos de tradicao protestante puritana, A ousadia de Weber ressoou so- noramente nas ciéncias humanas do século XX e chegou aos cem anos em pleno vigor nas universidades de to- do o mundo. © leitor brasileiro, no entanto, até agora no teve a oportu- nidade de ler uma tradugio como esta, feita a partir de um cotejo do texto de 1904-5 com 0 de 1920. E A ETICA PROTESTANTE FE 0 “ESP{RITO” DO CAPITALISMO MAX WEBER A 6ética protestante €0 “espirito” do capitalismo José Marcos Mariani de Macedo Anténio Flivio Pierueci eorenipresso ome ho ‘Copyright est de vets dn ap2nciees © Anni live Pieucst “Tanda vigil Die plotstantische Edu und de-"Geit” des Kaptlisious Cape obo Baptist aCoste Aguiar ‘Trad dos techs olan lon, gre rms Antena Faria Perace Tindogae dos esos emingés serge Fara ostechosen hols ArthonissTahabusictrsen eviste OgaCataecio Renato Potenza Rodcigues Indie emis eecugao} Maria lida Cavalbo Mattos dota Cee a abe ecpreranese ois ocpims che tie etre snr eto wo ke ree. tae, gormctrpnirninmaie ie rn Am Toate aeg Thera Red a ie eptines Inder cigoanentcs boss “Tdososdiritos dest edigh reseeodos us Bandeira Palit 7005.2. sir002—Sio Paulos? “Before (37073500 Fax) 907 3500 woecompanbledasceras com br Sumario Apresentagiio, Antonio Flavio Pierucci.. ? ‘Tabua de correspondéncia vorabutar 7 A FTICA PROTESLANTE EO “ESPIRITO” DO CAPITALISMO vu 25 Paget © PROBLEMA 1. Confissao religiosa e estratificacao social 2, 0“espirito” do capitalisme 3.O-conceito de vocagdo em Lutero, Odbjeto da pesquisa. a PARTE: A IDEIA DE PROFISSA0 DO PROTESTANTISMO ASCETICO. % 1.0s fandamnentos rligiosos da ascese intramundana. wens 87 2.Asceseecapitalismo.. cmemeninienene YL Notas do autor... Glossario. sens 277 Cromologia nunnnemnnnrnnnsin 293 Indice remissivo.... - 297 Apresenta¢io Quando, ha cem anos, apareceu pela primeira vez nas pagi- nas da revista Archiv fiir Soziabwissenschaft (1904) o germinal ensaio de Max Weber sobre a ética ascética do protestantismo puritano como bergodacultura ocidental moderna, seu titulo tra- zie entre aspas— aspas de cautelaeao mesmo tempo de énfase— palavra “espirito”. Exatamente como na atual edigao. Com essa ‘marcagao diacritica o autor salientava de imediato aos olhos do leitoro queé quecle,afinal de contas, pretendia identificar,aolado {da ética religiosa ali no titulo, como seu “novo” objeto de andlise na busca sociolégica de uma relacio causal histérica. F esse novo objeto nao era o capitalismo como sistema econdmica ou modo de produgao. Era, sim, 0 capitalismo enquanto “espirito’ isto & cultura —acultura capitalista moderna, come tantas vezes ele iri dizer —, 0 capitalismo vivenciado pelas pessoas na conducio metédica da vida de todo dia. Noutras palaveas, o “espirita” do capitalismo como condutade vida: Lebensfahrung. Para comego de conversa: o minim que esperamasdestanova edigio em portugues ¢ deixar assentado de uma vez por todas que ? ‘Weberneslegou naosomente duas edigaesd'A ética protestante, mas assunto mais decisivo da vida nos tempos da Reforma — a bem- aventuranga eterna — 0 ser humano se via relegado a tragar so nhosua estrada ao encontro de destino fixado desde toda aeterni- dade. Ninguém padiaajuda-lo, Nenhum pregador: pois somente ocleito é capaz de compreender spiritualiter [em espirito} a pala~ ra de Deus| Nenhum sacramentg: pois os sacramento ¢ teza ordenados por Deus parao aumento desya gl6riaesendo por conseguinte invioléyeis, néo sto contudo um meio de obter a ‘facade Deus, limitando-se apenas aser, subjetivamente, externa _subsidia (aurilios externos} da fé, Nenhuma Igreja: pois embora a sentenga extra ecclesiam mula salus implique como sentido que ‘quem seafasta da verdadeira lgreja nunca mais pode pertencer aos eleitos de Deus," resta 0 fato de que também osiféprobéy fazem_ parte da Igreja (externa), mais que isso, devem fazer parte dela e sujeitar-se a sua disciplina, nao para através disso chegar & bem- aventuranga eterna — isso é impossivel —, mas porque, para a gloria de Deus, eles devem ser além do insis obrigados pela forga a ‘observar os mandamentos. F, por fim, nenhum Deus: poismesmo, Gristo 56 morreu pelos eleitos,” 20s quais Deus havia decidido desde a eternidade dedicar sua morte sacrificial. Isto: a supress4o, absoluta da salvacdo eclesiastico sacramental (que no hateranis- ‘mo de modo algum havia se consumada em todas as suas conse 95 qiléncies) era 0 abselutamente decisivo em face do catolicismo, Aquele grande processo histérico-religiso do desencaniamento domundo* que tereincio comasprofeciasdo judaismosntigoe, em Conjunto com opensaments cientifico helénico, repudiava como superstig&o ¢ sicrilégio todos os meios muigicos de busca da salya¢do. encontrou aqui sua conclusio. © puritano genuino ia a0 ponto de condenaraié mesmo todo vestigio deceriménias religio- sas fincbrese enteriava as seus sem canto nem musica, 86 para nao dar trelazo aparecimento da superstition, isto é, da confianga em efeitos salvificos 4 manciza magico-secramental.2! Nao havia neahum meio magico, melhor dizendo, meio nenhum que pro- porcionssse 1 graga divina a quem Deus houvesse decidide negi- 1a.] Em conjanto com a peremptoria doutrina da incondicional distancia de Deus eda falta de valor de tudo quanto néo passa de criatura,esse solamento intimo do ser humano explica a posigao absolutamente negativa do puritanismo perante todosos elemen- tos de ordem sensorial e sentimental na cultura e na teligiosidade subjetiva— pelo fato de serem iniiteisa salvagto efomentarem as ilusGes do sentimento ea supetstigao divinizadora da criatura— com isso fica explicada a recusa em principio de toda cultura dos sentidos em geral.” Isso por tim lado, Por outro lado, ele constitui ‘uma das rafzes daquele individualis ilud pessimista** como oque ainda hoje percute no “cardter nacional” enas instituig6es dos poves com passado puritano—em flagran- te contraste com as lentes to outras pelas quais mais tarde a “Tlustrasao” veria os seres humanos."* No periodo histérico do qual nos ecupamos, vestigios desse influxoda doutrinadapredes- idez em manifestages elementares tanto da conduta de vida quanto da concepeao de vida, ainda ‘quando sua vigéncia como dogma jaestivesse em declinio:sim, ela indo era sendoa forma mais extrema da exclusividade da confianga em Deus, cuja andlise interessa aquifisso se vé, por exemplo, na admoestagéo tantas vezes repisada na literatura puritana inglesa tinagae se mostram com 96 contra toda confianga na ajuda ena amizade dos homens: Pro- fanda desconfianga dos amigos, inclusive do amigo mais proxi- mo, 0 que aconselha até mesmo o bondoso Baxter, ¢ Bailey reco- ‘menda abertamente no confiar em ninguém ¢ nao confidenciar aninguém nada de comprometedor: “homem de confianga’s so Deus mesmo} Em nitido contraste com o luteranismo [e em. conexao com esse estado de espirito),a confissa0 auriculag.contra a qual o proprio Calvino s6 tinha ld suas reservas porque havia o tisco de ser [mal] interpretada como se fora um sacramento, nas zonas de maior penetracao do calvinismo desapareceu sem fazer barulho: [mas foi um acontecimento do maior alcance. Primeiro, [como sintoma do tipo de eficacia dessa religiosidade. E, depois, como fator psicolégico dedesenvolvimento desuaatitude ética.O ‘meio usado para a“ab-reagdo” periédica da consciéncia de culpa afetivamente carregada” estava removido, Voltaremosa falarmais tarde dasconseqiténcias {de umacontecimento desses} paraa pra- xis moral cotidiana. Palpaveis, entretanto, io as resultados disso para a situacao religiosa do conjunto das pessoas.] Se bem que a pertenca a verdadeira Igreja fosse uma condicao necessaria.ine~ vente’ salvacio:# a relagio do calvinista com seu Deus se davaem, profundo isolamente inieriar- Quem quiser sentir os efeitos espe- cificos dessa atmosfera peculiar confira, neste que de longe é 0 livro mais ldo de toda a literatura puritana, Pilgrin’s Progress. de ‘Bunyaig* a descricao do comportamento do protagonista Chris- tian apés tomar consciéncia de que se encontra na “cidade da per- diggo" e ser entao surpreendido por um chamamento que o-con- lama a sair sem demora em peregrinasao & cidade celestial. A muther eos filhosagarram-se acle— mas le, tapando os ouvidos com os dedos, vai em frente gritando "Vida, vida eterna!” [“Life, eternal life!”] Nao hé refinamento litersrio capaz de reproduzir melhor que a sensibilidade ingénua dese latoeiro — que se mete a escrever em versos na prisio ¢ colhe 0 aplauso de um mundo inteiro {de crentes] —o estado de espirito do crente puritano que ” no fundorss se ocups consigo mesmo e #6 pensa na propria salva- gio, conforme se vé pelos didlogos edificantes queno caminho ele trava com outros peregrinos moridos pela mesma ambicao e que lembram [mais ou menos] os Gerechter Kammacher de Gortftied Keller. s6.quando ji esté salvo que lhe ocorre aidéia de que seria bom tera funilia junto de si.O medo da morte edo além-timulo que oatormentaéo mesmo que se pode sentir, to penetrante,em Afonso de LigSrio nadescrigao de Dallinger—a léguas dedistin- cia do espfrito de orgulhosa intramundanidade a que Maquiavel da vor. quando faz 0 elogio caqueles cidadaos florentinos — em luta contze 0 papa eo intetdito {episcopal} — para os quais“o amor por sua cidade natal estavaacima do medo pela salvaciio de suas almas” [e, claro,ainda mais distante de sentimentos como os ‘que Richard Wegner poe nos lébios de Siegmund antesdocomba- te mortal: “Salve Wotan, salve Valhala... Das asperas delicias do Valhala, nao me falesnada, deveras” $6 que precisamente os efei= tosdesse medo em Bunyan ¢ Afonso de Ligério sio catacteristica- mente bem diversos: 0 mesmo medo que instiga este iltimo a humithagao de si nos limites do concebivel incita o primeiro a uma luta sem descanso ¢ sistemnética coma vida. De onde ver essa diferenca?) ‘Como associar essa tendéncia do individuo a se soltar inte- riormente dos lagos mais estreitos com que o mundo o abraga a incontestavel superiotidade do calvinismo na organizacao so- cial, a primeira vista parece um enigma. E que, por estranho que possa parecer de infcio, tal superioridade é simplesmente resulta- do daquela conotasio especifica que “amor ao préximo” cristo deve ter assumido sob a pressao do isolamento interior do indivi- duo exercida pela fécalvinista. [A principio ela éde fundo dogma- ico] O mundo esté destinado a isto [e apenas a isto}: a servir a autoplorificacio de Deus; cristao.[eleitol existe para isto [e ape-_ nas para isto}: para fazer crescer no mundos glériade Deus, cum=_. 98 prindo, de sua parte, os mandamentas Dele| Mas Deus quer do cristo uma obra social porque quer que a conformagao social da vvida se faga conforme seus mandamentos e seja endireitada de forma a corresponder a esse fim. trabalho social do calvinista no mundo ¢ exclusivamente trabatho in majorem Dei gloriam {para aumentar a gliria de Deus). Dai por que o trabalho riema profissao que esta a servigo da vida intramundana da coletividade também apresenta esse carater. Nés vimos jé em Lutero a deriva- {gto da divisao do trabalho em profissdes a partir do "amor ao pro- ‘ximo”. Mas aquilo que nele nao passou do estigio de um ensaio ainda incerto, [de pura construcao ideal], nos calVinistas tornou- se parte caracteristica de seu sistema ético. O “amor ao proxi- mo"-—jAque 6 lhe € permitido servir a gloriade Deus*enzoa da eriatura® — expressa-se em primeiro lugar no cumprimento da missio vocacional-profissionalimposta pela lex naturae,enisso ele assume um caréter peculiarmente objetivo-itmpessoal:trata-se de ‘um servign prestado conformagio racional do cosmossocial que nos circunda? Pois conformar ¢ endireitar em relacdo a fins esse cosmos, que segundo a revelagao da Biblia e também segundo @ razao naturalestimanifestamente talhadoaservira*utilidade" do género humano, permitem reconhecer como trabalho a servigo dessa utilidade social fimpessoal] promovea gléria de Deus e,por- tanto, por Deusé querido, [A eliminacao tota do problema dateo- dicéia e de todas as indagagdes sobre o “sentido” do mundo e da vida, ern fungao das quais outros se dilaceravam, era para o puri- tano algo tao evidente por si s6 quanto 0 eta — por razbes bem diversas —parao judeu. E-alids,também paras religiosidade eris- td nao mistica, em certo sentido. No calvinismo, ainda um outro trago atuando na mesma direcéo contribuiu para essa economia de forgas. A cisio ” ¢ a ética” (no sentide de Soren Kierkegaard) nao se punha pata o calvinismo, embora em matéria de religido cle deixasse o individuo entreguea si mesmo.) 9 (Nao € este o lugar deanalisar asrazbes para isso, como também] no cabe analisaraqui a significagie desses pontos de vista para.o tacionalismo politi ¢ econdmicn do calvinismo. Ai reside a fonte do cariter utiitério da ética calvinista, e dai igualmente advieram importantes peculiatidades da concepgao calvinista de vocagao profissional®®* — Mas antes voltemos, mais uma ve2, consideragao.em especial da doutrina da predestinacdo. ‘Ota, 6 problema para nds decisivo & antes de tudo: como foi suportada essa doutrina™ numa¢poca emqueo Outro Mundvera do s6 mais importante, mas em muitos aspectos também mais, seguro do que os interesses da vida neste mundo."* Uma questao impunha-se de imediato a cada fiel individualmente e relegava -todas.os outros interesses a segundo plano; Serei eu um dos elei- tos? Ecomo ext vou poder ter certeza dessa eleigao?® Para Calving. pessoalmente,issonaoera problema. Elese sentiauma“ferramen- ta" de Deus e tinha certeza do seu estado de gracy/ Assim sendo, para a pergunta de como o individuo poderia certficar-se de sua propria eeicdo, no fundo ele tinha uma resposta s0: que devemos ‘no contentar em tomar conhecimento do decreto de Deus per severar na confianga em Cristo operada pela verdadeira fé. Fle rejeita por principio que nos outros se possa reconhecer, pelo comportamento, se io eleitos out condenados, presuncosa tenta- tiva de penetrar nos mistérios de Deus. Nesta vida, os eleitos em ada difecem externamente dos condenados."* e mesmo todas as, experiéncias subjetivas dos leitos também sdo possiveis nos con- denados — como ludibria spiritus sancti {ardilezas do Espirito Santo] —.a unice excecio éa firme confianca de quem erée per- severa finaliter [até o fim}. Os eleitos sdo e permanecem, portan- toa Igreja invisivel de Deus, Outra, naturalmente,éa posigae dos epigonos— ja desde Teodoro de Beza—e mais ainda a da ampla camada do comum dos mortais. Para eles a certitudo salutis, no sentido da distinguibitidadedo estado de graca, haveria de dssumir 200 ‘uma significagao absolutamente prioritéria, e bem assim, onde quer que a doutrina da predestinagdo vigorasse, nao faltouaques- t8o de saber se existiam marcas certeiras com base nas quais se pudesse reconhecer quem pertencia aos “elect, Essa questdo teve durante muito tempo uma significacio em certo sentido central no desenvolvimento do pietismo, movimento que brotou origi- znalmente no chao da Igreja reformadae, em dados momentos, foi ‘ume seus tragos constitutivos, mas nao s6 isso: seconsiderarmos a enorme significacdo politica ¢ social da doutrina da ceia do Senhore de sua praxis na Igreja reformada, no poderemos deixar de falar do papel que durante todo o século xvtt, mesmo fora do pietismo,a distinguibilidade do estado de gracado individuo teve Para a questao, digamos, de ser admitido a santa ceia, ou seja, 20 ato de culto estratégico de punto de vista da estima [ou: posigio] social dos participantes, ‘Uma ver posta a questo do estado de graca pessoal, conten- tar-se com o critérioa que Calvino remetia e que, em principio 20 ‘menos, nunca foi abandonado formalmente pela doutrina orto- doxa," a saber, o testemunho pessoal da fé perseverante que a graca opera no individuo," era no minimo impossivel, Em parti- cular na prética da cura de almas, que vira € mexe se viu as voltas com os tormentas provocados pela doutrina. Ese arranjou como pade com essas dificuldades, de diversas manciras."# Com efeito, ‘na medida em que a doutrina da predestinagao nao se altera, nem se atenua e nem é fundamentalmente abandonada,*' surgem na cura de almas dois tipos basicos de aconselhamento, muito carac~ teristicos e mutuamente relacionados. Deum lado, torna-se pura ¢ simplesmente um dever considerar-se eleito e repudiar toda e qualquer divida como tentacao do diabo," poisa falta de convie- (20, afinal, resultaria de uma f insuficiente e, portanto, de uma atuagao insuficiente da graga. A exortacao do apdstolo a“se segu- rar” no chamedo recebido ¢ interpretada aqui, portanto, como dever deconquistar naluta do dia-a-diaa certeza subjetiva da pro- wo pria cleicae e justificagao. Em lugar dos pecadores humildes a quem Lutero promete a graga quando em fé penitente recorrem a. Deus, disciplinam-se dessa forma aqueles “santos” autnconfian- tes? com os quais toparemasoutravezna figura doscomerciantes puritanos da época herdica do capitalismo, y ago, e em alguns exemplares isolados do presente. E, de outro lado, distin- gue-se o trabalho profissional sem descanso como 0 meio m: saliente para se conseguir essa antoconfiansa."* Ele, esomente ele, dissiparia a ddvida religiosa e daria acerteza do estado de graca, Ora, que o trabalho profissional mundano fosse tide como. capazde um feito como esse[—que ele pudesse por assim dizer ser tratado como 0 meio apropriado de uma ab-reasto dos afetos de angtistia religiosa —} encontra sua explicagao nas profundas peculiaridades da sensibilidadereligiosa cultivada na Igreja refor- ‘mada {calvinista], cuja expressdo mais nitida,em franca oposi¢a0 a0 luteranismo, esté na doutrina da justificagao pela f&. No belo ciclo de palestras de Schneckenburger"* essas diferencas sto anali- sadas objetivamente, com tamanha sutileza ¢tamanha isengio de ‘qualquer jutzo de valor, que as breves observacoes que vm a seguir vo simplesmente retomar sua exposigio. A suprema experiencia religiosa a que aspira a piedade hute- rana, tal como se desenvolveu notadamente no curso do séeuto Xvi, unio mystica com a divindade.® Como ja sugerea propria expresso, que nesses precisos termos ¢ desconhecida da doutrina reformada, trata-se de um sentimento substancial de Deus: a sen- saga de uma real penetragao do divino na alma crente, qualitati- vamente igual aosefeitosda contemplacaoa maneirados misticos alemaese caracterizada por um cunho de passividade orientada a preencher asaucade do repousoem Deus por um estado interior de pura disponibilidade. [Ora, em si mesma, uma religiosidade risticamente orientada— conforme ensinaa historia da filosofia — nao sé ¢ perfeitamente compativel com um senso de realidade 102 marcadamente realista no plano do dado empfrico, mas também Imuitas veres, em consequéncta de sua refeigao das doutcinas dia- leticas, chega a ser para este um suporte direto. E indiretamentea mistica também pode, por assim dizer, trazet beneficios & condu- tade vida racional. £ claro, porém, quea esse seu modo de relagdo com o mundo falta a valoragio positiva da atividade externa.) ‘Além do mais, no luteranismo a unio mystica se combinava com aquele sentimento profundo de indignidade decorrente do peca- do original, que devia manter o crente luterano na poenitentia quotidiana destinada ¢ curti-lo na humildade e simplicidade indispensiveis ao perdao dos pecados. Jéa religiosidade especifi- ca da Igreja teformada, em compensacao, de saida se colocow [contra a fuga quietista do mundo defendida pot Pascal bem como] contra essa forma luterana de piedade sentimental volteda puramente para dentro. A penetragao real do divine na alma humana estava excluida pela absoluta transcendéncia de Deus em relagio atudo oqueé criatura: inittm non estcapax infiniti fo que é inito nao € capaz de infinito}. A comunhao entre Deus e seus escolhidos ¢ a tomada de consciéncia dessa comunhao s6 podem se dar pelo fato de Deusneles agir(operarur) eeles tomarem cons- éncia disso — pelo fato, portanto, de a agdonascer da fé operada pela graca de Deus ¢ essa fe, por sua ver, ser legitimada pela quali- dade dessa acio. [Profundas diferengas quanto as condigbes deci- sivas para salvacao,* vélidasem geral para a classificaga de toda religiosidade prética, encontram expresso aqui: 0 virtuose reli- gioso pode certificar-se do seu estado de graga quer se sentindo como receptaculo, quer como ferramenta da potencia divina, No primeiro caso, sua vida religiosa tende para a cultura mistica do seatimento; no segundo para a aco ascétic, Do primelro tipo estava mais perto Lutero; o calvinisme pertencia ao segundo. _reformade (0 calvinista} também queria salvar-se sola fide. En- _tretanto, dado que jéina visdo de Calvino os simpleysentimentos.e 103 estades de espirito, por mais sublimes que possam parecer, s30 enganosos,”’a {é precisa se comprovar por seus efeitos objetivas a fim de poderservir de base segura para a certitude salutis, precisa seruma fidesefficax* |e o chamade a salvacso, um effectual calling (termo da Savoy Dedaration)}. Ora, se perguntarmoes: emquais. frutoso refoimado {ecalvinistaj€capar dereconhecer sem som- bra de duvida a justa fé, a resposta sera: numa condugio.da vida pelo cristao que sirvapara aumento da glériade Deus.Eo que leva a isso é dedurido de sua divina vontade diretamente revelada na Biblia ou indiretamente manifestada nas ordens do mundo cria- das segundo fins (Jex naturae).°* £ possivel controlar seu estado de grace comperando em especial seu préprio estado de alma com aquele que segundo a Biblia era proprio doseleitos, dos patriarcas por exemplo.* $6 quem é eleito possuia verdadeira fides efficars"* 86 ele é capaz, por conta do seu renascimento {regeneratio) e da santificagao (sanctificatio) da sua vida inteira, de aumentar a glo- ria de Deus por meio de obrasboas realmente, nio apenas aparen- temente boas. E estando consciente de que sua conduta — a0 menos no tocante ao seu cardter fundamental ¢ ao seu propésito constante {propositum obvediewtiae) —-se assenta numa forga que nele habita” para a maior gloria de Deus, ¢ portanto [nao é ape- nas] desejada por Deus, {mas sobretudo] operada por Deus,* alcanga ele aquele bem supremo a queaspirava essa religiosidade: acertezada graca.” Que ela possa ser alcangada écorroborade por 2Cor 13,5." E, portanto, por absolutamente incapares que sejam as boas obras de servir como meio de obter a bem-aventuranga eterna — ji que o proprioeleito permanece criatura,¢ uudo oque cle faz permanece infinitamente aquém das exigéncias divinas—, nao deixam de ser imprescindiveis como sittais da eleicao."' [Elas ‘sa0.0 meio técnico, nao de comprar a bem-aventuranga mas si de perder o medo de nio té-la.] Nesse sentido, de vezem quando alas sao designadas diretamente como “indispensaveis & salva- voy ‘s40%"? ow a possessio salutisé vinculada a elas.® Ora, em termos praticos isso significa que, no fim das contas, Deus ajuda a quem 32 ajuda," por conseguinte o calvinista, como de vez em quando tambem se diz,"“cria” ele mesmnd! sua bem-aventaranga eterna — ‘em rigor 0 correto seria dizer: a certeza dela—, mas esse criar m0 pode consistir, como no catolicisme, num acumular progressive de obras meritérias isoladas, mas sim numa auto-inspeydo siste- ‘mética que a cada instante enfrenta aalternativa:cleito ou conde- nado? Com isso atingimos um ponto muito importante das nos- sasconsideragies. E sabido que do lado dos luteranos sempre foi feita a acusa- ‘gio de“santificacio pelas obras™a essa linha de pensamento que ‘com crescente nitide2 se foi elaborando nas igrejas e seitas refor- madas.* E.com carradas de razio — por justificado que Fosse © protesto dos acusados contrao fato de sua posicao dogmdrica estar sendo assimilada 4 doutrina catélica — quando se pensa nas con- seqiténcias praticas dessa concep¢ao para o cotidiano do cristio médio da Igreja reformada.* Pois talvez jamais haja existido forma niais intensa de valorizagio religiosa da agde moral do que aquela produzida pelo calvinismo em seus adeptos. Para atinar com a significagio pratica dessa forma de “santificacdo pelas obras’, decisivo em primeira hugar é saber reconhecer as quatida- des que caracterizam essa conduta de vida para diferencié-la da vida cotidiana de um cristto médio da Idade Média. Tah ‘possa tentar formuli-la assim: o catélico [leigo normal} da Idade Média® vivia, do ponto de vista ético, por assim dizer “von der ‘Hand in der Mund” (“da mao para a boca"), Antes de mais nada, cumpria conscienciosamente os deveres tradicionais. As “boas obras” que por acréscimo ele viesse a fazer permaneciam como agoes isoladas [que nao necessariamente formavam um conjunto coerente tampouco eram racionalizadas na formade um sistersa de vida}, agbes essas que [dependendo da ocasido] ele executava, “ose wos por exemple para compensar pecados concretos ots, sob influen- cia dos padres on entao perto do fim da vida, como se fosse um prémio de seguro. (Claro que a étics catélica era ética de “convie- a0" S6 queera a intentio concreta da acéo isolada que decidia sobre seu valor. Ea 2eio isolada—boaou md—era langadacomo. crédito em fivor do seu autor, influinda no seu destino eterno & também no temporal. Bastante reaista,a Igreja featdlica} aposta- va que 0 ser humano nao era umtodo unitario enao podia ser jul gado de forma absolutamente inequivoca, ¢ sabia que sua vida ‘moral era (nocmalmente) um comportamento o mais das vezes muito contradit6rio, infiuenciado por motivosconflitantes.Claro que ela tambem exigia dele, como ideal, a mudanga de vida em nivel de principios. Mas mesmo essa exigéncia vinha mitigada (para a média dos fi¢is) por um de seus instrumentos mais emi- nentes de poder ¢ educagdo: o sacramento da confissio, cuja fen do estava profundamenteligadaa mais intima das, ‘peculiaridades da religiosidade cat6lica, Odesencantamento do mundo: eliminagioda magiacomo meio de salvardo,” nao foi realizado na piedade catolica com as mesmas conseqiiéncias que na religiosidade puritana (e, antes dela, somente na judaica).O catélico” tinha & sua disposicao a vaca sacramental de sua Igreja como meio de compensat a pré- pria insuficiéncias 0 padre era um mage que operava o milagre da transubstanciagdo e em cujas maos estava depositado 0 poder das chaves, Podia-se recorrer a ele em arrependimento e peniténcia, que cle ministrava expiacao,esperangada praca,certezadoperdio e dessa forma ensejava a descarga daquela tensio enorme,na qual «era destino inescapével e implacavel do calvinista viver. Para este nao havia consolacdes amigaveis e humanas, nem Ihe era dado esperar reparar momentos de fraquezs eleviandade com redobra- da boa vontade em outras horas, como o catélicoe também olute- rano.] Dews do calvinismo exigia dos seus,nto"boas obras” iso- 106 ladas, mas uma santificagéo pelas obras erigida em sistema.” [Nem pensar no vaivém catélicoe avtenticamente humano entre _pecado, arrependimento, peniténcia, alivio e,de novo, pecado, ‘nem pensar naquela espécie de salda da vida inteita a ser quitado seja por penas temporais seja por intermédio da graga eclesial.| A praxis ética do comum dos mortais foi assim despida de sua falta de plano de conjunto e sistematicidade e convertida num miétedo cocrente de conducao da vida como um todo. Nao foi por acaso que o sotulo “metodistas” colou nagueles que foram os portado- re do ultimo grande redespertar de idéias puritanas do século xvin, da mesma forma que aos seus antepassados espirituais do século xvi fora aplicada, com plena equivaléncia de sentido, a designacao de “precisistas”” Pois s6 com uma transformacso radical do sentido de toda vida,acadahora ea cadaagiio,*o efei- to dagraca podia se comprovar como umarranque do status natu- raerumo ao status gratiae. A vida do“santo” estava exclusivamen- te voltada para um fim transcendente, a bem-aventuranca, mas justamente por isso la era racionalizada [de pontaa ponta] em seu percurso iatramundano edominada por um ponto de vistaexcli- sivo: aumentar a gléria de Deus na terra — jamais se levou tao a sério a sentenca omnia in majorem Dei gloria.” E s6 uma vida regida pela reflexdo-constante podia ser considerada superayaodo status naturalis foi com essa reinterpretagao ética que os purita- nos contemporaneos de[Descartes adotaram 0 cogito ergo sum.” Essa racionalizagao conferiu 2 piedade reformada seu traco espe- cificamente ascético ¢ consolidou tanto seu parentesco {ntimo” quanto seu antagonismo espectfico com o catolicismmo. [Clara que coisas do género ni eram estranbas a0 catolicismo.] ‘A ascese crista [sem diivida abrigou em si, tanto na manifes- tacao exterior quanto no sentido, elementos extremamente varie- gados, Mas na Ocidente ela} carregou, sim, em suas formas mai avangadas através da Idade Média [e em vériosexemplosjaina An- 107 tigiiidade) urncarater racional Nissorepouse a significacaohisto- rico-universil da conduta de rida monistica ocidental em seu contraste como monasticismo oriental [— nao em seu conjunto, mas em seu tipo geral]. Em principio, jé na regra le sio Bento, ¢ ‘mais ainda entre os monges cluriacenses e [mais ainda entre] 08

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