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Capitulo 4 O senso comum como um sistema cultural I Logo no inicio daquela colecio de jogos conceptuais ¢ metiforas inesperadas a que deu o nome de Investigagses Filosdficas, Wittgenstein compara a linguagem a uma cidade: Nao se preocupem com o fato de que umas linguagens reduzidas que ele tinha acabado de inventar com propésitos didéticos consistem s6 em imperativos. Se, por esta r2z80, quiserem dizer que esto incompletas, perguntem-se se por caso nossa lingua € completa - se estava completa antes que o simbolismo da quimica ¢ a notagdo do cilculo infinitesimal fossem a ela anexados; pois estes sio, por assim dizer, os subtirbios de nossa lingua. (E quantas casas ou ruas sio necessarias para que uma cidade comece a ser uma cidade?) Nossa lingua pode ser vista como uma cidade antiga: um labirinto de pequenas ruas e pragas, de casas velhas € novas, e de casas com extenséics construidas em virios periodos; € tudo isso circundado por uma profusio de areas modernas, ‘com ruas regulares ¢ retas e casas uniformes.” Se expandirmos esta imagem para que abranja a cultura, poderiamos dizer que, tradicionalmente, antropélogos sem- pre consideraram a cidade como seu territério, e que pas- searam por seus becos casualmente construides, tentando elaborar algum tipo de mapa aproximado da realidade; ¢ que 1. L Witigenstein, Philosophical Investigations, trad. de GEM. Anscombe, Novt Torque, 1953, p. alter! ligeiramente a traducio Ge Anscombe. Unvestigagoes filosificas. Pewdipais, ores, 199%. un 86 recentemente comegaram a se indagar como foram cons- truidos esses subtirbios que parecem estar se an cada vez mais perto, qual seu relacionamento com a cidade velha (Sera que cresccram a partir dela? Sua criagéo a modi- ficou? Sera que, no final, vio absorvé-la totalmente?) € como serd a vida em lugares assim tio simétricos. A diferenca entre 05 tipos de sociedades que normalmente constituem 0 ob- jeto de estudo da antropologia, ou seja, as sociedades tradi- cionais, ¢ aquelas onde os antropélogos vivem, isto é, as sociedades modernas, sempre foi considerada uma questio de maior ou menor primitivismo, No entanto, essa diferenga poderia ser expressa em termos do grau de desenvolvimento los sistemas esquematizados ¢ organizados de pensamento € aco ~ fisica, contraponto, existencialismo, cristianismo, engenharia, jurisprudéncia, marxismo ~ um elemento to proeminente em nossa propria paisagem que no podemos sequer imaginar um mundo onde eles, ou algo parecido com eles, nao exista — sistemas esses que surgiram e se expandi ram ao redor do emaranhado de priticas herdadas, crengas aceitas, juizos habituais, e emog6es inatas, existentes ante- riormente. pntoando Sabemos, € claro, que em Tikopia ou Timbuctu ha pouca quimica ¢ menos célculo matemitico; e que o bolchevismo, a perspectiva do ponto de fuga, as doutrinas da unio hipostitica, ou dissertagdes sobre a problematica mente-cor- PO no 40 exatamente fendmenos universais. Apesar disso, relutamos ~ ¢ antropélogos sao particularmente relutantes — em extrair destes fatos a conclusdo de que a ciéncia, a ideologia, a arte, a religido, ou a filosofia, ou pelo menos os impulsos a que elas servem, nao sao propriedade comum de toda a humanidade. Desta relutancia surgiu toda uma tradicao de argumen. tos cujo objetivo € provar que os povos “mais simples” realmente tém um sentido do divino, um interesse imparcial no conhecimento, uma nogio da forma legal, ou uma apre- ciagdo da beleza por si mesma, ainda que essas qualidades 112 no estejam engavetadas nos compartimentos culturais or- ganizados e estanques que conhecemos tao bem. Assim, Durkheim descobriu formas elementares de vida religiosa entre os aborigencs australianos; Boas, um talento espontineo para o desenho na costa do noroeste; Lé Strauss, uma ciéncia “concreta” no Amazonas; Griaule, uma ontologia simbélica em uma tribo da Africa Ocidental; € Gluckman, um jus commune implicito em outra tibo da Africa Oriental. Nio havia nada nos subtirbios que nio existisse antes na cidade ar No entanto, embora todas estas descobertas tenham tido um certo sucesso, pois, hoje em dia, ninguém acha que primitivos” - se & que existe alguém que ainda use este termo~ sao pragmatistas simplérios que andam tateando em busca de conforto em meio a uma névoa de supersticées, elas ndo conseguiram fazer calar a pergunta essencial: onde exatamente esta a diferenga — porque mesmo os defensores mais acirrados da proposi¢io que qualquer povo tem seu proprio tipo de profundidade (¢ cu sou um desses) admitem que existe uma diferenca ~ entre as forinas ja trabalhadas da cultura académica, ¢ aquelas ainda toscas, da cultura colo- quial? Parte de meu argumento neste ensaio & que toda essa discussio foi mal estruturada, pois a questio nao € se existe uma forma elementar de ciéncia a ser descoberta nas Tro- biand ou uma forma elementar de direito entre os deotses, ‘ou se 0 fotemismo é “mesmo” uma religiio, ou se 0 culto de cargos € “mesmo” uma ideologia (todas essas perguntas, a ‘meu ver, tornaram-se tio dependentes de definigdes, que se transformaram em assuntos de politica intelectual ou de gosto ret6rico). Trata-sc, sim, de saber até que ponto, nesses varios lugares, os aspectos da cultura foram sistematizados, ou seja, até que ponto eles tém subtirbios. E, para investir contra este problema, em uma tentativa mais promissora do que aquela que busca definigées essencialistas para arte, ciéncia, religiao, ou direito e depois tenta descobrir se existe 113, entre os bosquimanos alguma dessas coisas, quero voltar-me para uma dimensio da cultura que nao é normalmente considerada um de seus compartimentos organizados, como acontece com estes setores mais conhecidos da alma. Refi- ro-me ao “senso comum”. Hé um niimero de raz6es pelas quais tratar 0 senso comum como um corpo organizado de pensamento delibe- rado, em vez de considerélo como aquilo que qualquer pessoa que usa roupas ¢ nao esté louco sabe, pode levar a algumas conclus6es bastante titeis; entre cssas, talver. a mais importante seja que uma das caracteristicas inerentes 20 pensamento que resulta do senso comum € justamente a de negar 0 que foi dito acima, afirmando que suas opinibes foram resgatadas diretamente da experiéncia ¢ ndo um resultado de reflexdes deliberadas sobre esta, O saber que a chuvamolhae que, portanto, devemos nos proteger delaem algum lugar coberto, ou que o fogo queima, € que, portanto, nao devemos brincar com fogo (mantendo-nos, por enquan- to, em nossa propria cultura) sio expandidos até abranger um territério gigantesco de coisas que sao consideradas como certas ¢ inegiveis, um catélogo de realidades bisicas da naturcza e tio perempt6rias que, sem dtivida, penetrarao ‘em qualquer mente desanuviada o bastante para absorvé-las, No entanto, € dbvio que isso nao é verdade. Ninguém, ou pelo menos ninguém cujo cérebro funcione bem, duvida que a chuva molhe; mas podem existir pessoas que questio- nem a proposicao de que obrigatoriamente devemos abri- garnos dela, e que achem que enfrentar os clementos é uma forma de fortalecer nosso carter —algo assim como se andar na chuva sem chapéu fosse sinnimo de santidade. E, muitas vezes, a atragio que o brincar com o fogo exerce sobre certas pessoas € mais forte do que a certeza da dor que vird. A religido baseia seus argumentos na revelagio, a ciéncia na metodologia, a ideologia na paixao moral; os argumentos do senso comum, porém, nao se baseiam em coisa alguma, a iio ser na vida como um todo. O mundo é sua autoridade. 14 A andlise do senso comum, € nao necessariamente seu exercicio, deve, portanto, iniciar-se por um processo em que se reformule csta distingio esquecida, entre uma mera apreensio da realidade feita casualmente - ou seja lao que for que meramente ¢ casualmente apreendemos - ¢ uma sabedoria coloquial, com pés no chao, que julga ou avalia esta realidade. Quando dizemos que alguém demonstrou ter bom senso, queremos expressar algo mais que o simples fato de que essa pessoa tem olhos € ouvidos; 0 que estamos afirmando é que ela manteve seus olhos € onvidos bem abertos e utilizou ambos — ou pelo menos tentou utilizi-los —com critério, inteligéncia, discernimento e rellexio prévia, © que esse alguém é capaz de lidar com os problemas cotidianos, de uma forma cotidiana, e com alguma eficicia. Quando, por outro lado, dizemos que a alguém the falta bom senso, nao queremos dizer que este alguém € retardado, ou que nio consegue entender que a chuva molha ou que 0 fogo queima, mas sim que € 0 tipo de pessoa que consegue complicar ainda mais os problemas cotidianos que a vida coloca a sua frente: sai de casa sem guarda-chuva em um dia nublado; na vida, sofreu uma série de queimaduras que deveria ter sido sdbio o bastante para evitar ¢ nao ter, ele proprio, atigado as chamas que as causaram. O anténimo de uma pessoa que € capaz de captar as realidades bisicas através da experiéncia €, como sugeri, um deficiente. O anténimo de uma pessoa que € capaz de chegar a conclus6x sensatas a partir dessas mesmas realidades é um tolo. E esta Altima palavra tem menos relacio com o intelecto- em uma definicao limitada de intelecto - do que normalmente ima- ginamos. Como observou Saul Bellow, referindo-se a certas espécies de assessores governamentais ¢ de escritores radi- ais: “O mundo esté cheio de idiotas com Qls altissimos”. A dissolucao analitica da premissa ticita que di ao bom senso sua autoridade ~ ou seja, aquela para a qual o bom senso representa nada mais que a pura realidade — nao tem como objetivo solapar esta autoridade, ¢ sim, transfericla. Se obom senso é uma interpretagio da realidade imediata, uma 1s espécie de polimento desta realidade, como o mito, a pintu- Fa, a epistemologia, ou outras coisas semelhantes, entio, como essas outras freas, seré também construido historica- mente, ¢, portani s de juizo historicamente definidos. Pode ser questionado, discutido, afirmado, desén- volvido, formalizado, observado, até ensinado, € pode tam- bém variar dramaticamente de uma pessoa para outra, Em suma, é um sistema cultural, embora nem sempre muito integrado, que se baseia nos mesmos argumentos em que se haseiam outros sistemas culturais semelhantes: aqueles que 0s possuem tém total conviccéo de seu valor ¢ de sua validade, Neste caso, como em tantos outros, as coisas tém © significado 'que Ihes queremos dar. Aimportincia de tudo isso paraa filosofia é, obviamente, que o bom senso, ou outro conceito similar, rornow-se uma das catcgorias-chave, talvez até a categoria-chave, em um amplo ntimero de sistemas filoséficos modernos. Aliés, po- demos até afirmar que, desde a época de Platio ¢ Sécrates, obom senso ja (onde sua fungio era demonstrar sua propria inade- quabilidade). Tanto a tradigéo cartesiana como a de Locke dependiam, de formas diferentes - de formas culturalmente diferentes ~ de doutrinas sobre 0 que era ou nao auto-evi- dente, se nao para mentes verndculas, pelo menos para mentes livres, Neste século, porém, o conceito de bom senso “que nao foi ensinado” (como ¢ as vezes denominado) ~ isto € aquilo que © homem comum pensa quando livre das sofisticagdes vaidosas dos estudiosos ~ quase tornou-se 0 sujeito tematico da filosofia, ja que tantos outros conceitos filoséficos esto sendo absorvidos pela ciéncia ¢ pela pocsia. A énfase que Wittgenstein, Austin € Ryle dao 4 linguagem comum; o desenvolvimento da chamada fenomenologia do cotidiano por Husserl, Schutz, Merleau-Ponty; a glorific das decisdes pessoais, tomadas no cotidiano (“no meio da vida") do existencialismo enropeu; a uti de problemas através de comparagdes com a variedade de coisas que acontecem em um jardim como paradigma da a uma categoria importante nesses sistemas 116 razdo no pragmatismo americano — tudo isto reflete esta tendéncia a buscar as respostas para os mistérios mais pro- funds da existéncia na estrutura do pensamento corriquei- fo, pé-na-terra, trivial. A imagem de G.E. Moore, quando tentou demonstrat a realidade do mundo externo levantan- douma das mios e dizendo “isto é um objeto fisico” ¢ depois levantando a outra ¢ dizendo “isto € outro objeto fisico", nao deixa de ser, sem considerar detalhes doutrinarios, aquela que melhor resume grande parte da filosofia ocidental re- Apesar de ter se tomado foco de tanta € to intensa atengao, 9 senso comum continua a ser, no entanto, um fendmeno que € presumido, € nao analisado. Husserl, ¢ depois Schutz, trabalharam com as bases conccituais da experiéncia cotidiana, com a forma como construimos 0 mundo que habitamos biograficamente, mas sem admitir a distingio entre esta ¢ © que dr. Johnson fez quando chutou uma pedra para refutar Berkeley, ou o que fazia Sherlock Holmes quando ponderou sobre um cachorro silencioso na noite. Ryle, pelo menos, observou en passant que nio “exibimos bom senso ou falta de bom senso quando usamos uma faca ¢ um garfo; (0 fazemos) quando conseguimos lidar com um falso mendigo ou com um problema mecanico, sem ter as ferramentas adequadas.” Mas, 0 conceito de bom senso normalmente aceito é aquele que 0 vé como 0 “tipo de coisa que qualquer pessoa com bom senso sabe". U definigéo que, segundo suas. préprias_premissas, estaria coberta de bom senso. A antropologia nos pode ser ttil aqui da mesma forma que € Gtil em outras situagdes: ao fornecer exemplos extra- ordindrios, ajuda a situar exemplos mais préximos cm um contexto diferente. Se observarmos a opiniao de pessoas que chegam a conclusées diferentes das nossas devido a vivencia especifica que tiveram, ou porque aprenderam ligées dife- rentes com as surras que levaram na escola da vida, logo nos daremos conta de que 0 senso comum € algo muito mais BIBLIOTECA CENTRAL 117 PUCRS ( problematico € profundo do que parece quando 0 ponto de “observacao é um café parisiense ou uma sala de professores em Oxford. Como um dos subtirbios mais antigos da cultura humana —nao muito regular, nao muito uniforme, mas ainda assim ultrapassando o labirinto de ruelas € pequenas pragas ‘em busea de uma forma menos casual de habitar ~ 9 senso comum mostra muito claramente o impulso que serve de base para a constragao dos suburbios: um desejo de tornar © mundo diferente. 1 Com esta perspectiva © ndo com a que é normalmente usada (a natureza e a funcao da magia), consideremos aqui © conhecido trabalho de Evans-Pritchard sobre feitigaria entre os azandes. Segundo o que o proprio Pritchard afir- mou cxplicitamente, embora tudo indique que ninguém Ihe deu muita atencio, a parte que realmente lhe interessa do senso comum € scu papel como pano de fundo para o desenvolvimento da feiticaria. Uma deturpacao dos concei- tos azandianos de causalidade natural, ou seja, o que leva a qué, segundo a mera experiéncia de vida, sugere a existéncia dle um outro tipo de causalidade - a que Pritchard chama de mistica - que resume 0 conceito azandiano de feiticaria. Uma feitigaria que é, alias, bastante materialista, envolvendo, por exemplo, uma substincia acinzentada que estaria localizada no ventre das pessoas. ‘Tomemos como exemplo um menino azandiano, que, segundo ele préprio, dicu “uma topada num toco de érvore € ficou com o dedo do pé infeccionado”. O menino diz que foi feiticaria. “Bobagem”, diz Evans-Pritchard, utilizando © senso comum de sua prdpria tradigio, “vocé nao teve foi cuidado, tinha que olhar com mais atengio aonde pisa.” “Mas eu olh estivesse enfeiticado, teria visto o toco. Além do mais, cortes nunca ficarh abertos tanto tempo, pelo contrario, fecham aonde isava”, diz 0 garoto, “e se eu ndo 18 logo, pois os cortes séo assim por natureza. Mas este infee- cionou, entéo tem que ser feiticaria.” Ou um oleiro de azande, com grande habilidade e expe- rigncia, que, volta € meia, quando um dos potes que estava fazendo caia © quebrava, exclamava: “foi feitigo!” “Boba- gem’, diz Evans-Pritchard, que, como todo bom etnégrafo, parece que nunca aprende: “é claro que potes as vezes qucbram quando estio sendo feitos; assim é a vida." “Mas” diz o oleiro, “eu escolhi o barro bem escolhido, me esforc para retirar todas as pedrinhas e a sujeira, trabalhei devagar € com cuidado, € me abstive de ter relagées sexuais na noite ida assim 0 pote quebrou. Que mais poderia ser, senao feiticaria?” Ou, uma outra ocasiéo, quando o proprio Evans-Pritchard estava doente - ou, em suas pré- prias palavras, “sentia-se pouco saudavel” — ¢ se indagou em vozalta, na presenca de alguns azandianos, se a causa de seu malestar nio teria sido as muitas bananas que comera. E eles: “bobagem, banana nio faz mal, deve ter sido feitic anterior. E Assim, se 0 contetido das crencas azandianas sobre feiti- saria € ou nio mistico (¢ jd sugeri_que essas_crengas me ‘Parecem misticas unicamente porque nao creio nelas), elas sao utilizadas pelos azandianos de uma forma nada mistica ~€ sim como uma elaboragao € uma defesa das afirmacdes reais da razdo coloquial, Atras de todas essas reflexes sobre dedos do pé infeccionados, potes que sairam errado, acidez estomacal, se estende a teia de conceitos do senso ‘comum que 0s azandianos aparentemente consideram real- mente verdadeiros: que cortes pequenos normalmente cu- ram-se com rapidez; que pedras fazem com que 0 barro cozido quebre com facilidade; que a abstencio sexual é um pré-requisito para que o trabalho do oleiro seja bem sucedi- do; que andando por azande nao é aconselhavel sonhar acordado, porque o lugar esti repleto de tocos de drvores Fé como parte desta teia de premissas do hom senso, ¢.nf0 gracas a alguma forma de metafisica primitiva, que o.concei- to de feitigaria ganha sentido e adquire sua forca. Apesar de 119 toda esta conversa de véos noturnes como vaga-lumes, a feiticaria nao celebra uma ordem invisivel, ¢ sim confirma uma outra ordem, esta, extremamente visivel. A voz da feiticaria se eleva quando as expectativas co- muns falham, quando o homem comum de azande se con- fronta com anomalias ou contradigdes. Pelo menos neste sentido, ela é uma espécie de varidvel testa-de-ferro no sistema de pensamento do senso comum, Sem tanscender tema, ele o reforca, adicionando-the uma idéia que serve para qualquer ocasido, ¢ que atua para reassegurar 203 este azandianos que a sua reserva de lugares comuns € confiavel e adequada, mesmo quando as aparéncias momentanea- mente demonstrem o contririo. Assim, se alguém contrai lepra, a causa é feitica familia, pois “todo o mundo sabe” que 0 incesto causa lepra Oadultério, também, traz infelicidade. Um homem pode ser morto na guerra ou na caga, como resultado das infidelida- des de sua esposa, Antes de partir para a guerra ou para uma cacada, um homem, se for sensato, pede a sua esposa que confesse o nome de seus amantes. Sc cla diz, honestamente, a nao ser que haja incesto na que nio tem nenhum amante e, mesmo assim, ele morre, a causa de sua morte foi, entdo, algum feitico - a nao ser, € claro, que ele tenha feito alguma outra coisa obviamente errada, Da mesma forma, ignorancia, estupidez ou incom. peténcia, definidos culturalmente, sio causas suficientes para o fracasso aos olhos dos azandianos. Se, a0 examinar 0 pote quebrado, o oleiro encontra mesmo uma pedra no barro, parade resmungar sobre feitigaria ¢ comeca a resmun- gar sobre sua propria negligéncia - em vez de culpar a feiticaria pelo fato de que a pedra estava no barro, E quando um oleiro sem experiéncia quebra um pote, a culpa sera da falta de experiencia do oleiro, o que parece bastante raz0d- vel, ¢ nao de alguma perversio ontolégica da realidade. Neste contexto pelo menos, o grito de “feitigo!” funciona para 0s azande como 0 grity de Insha Allah fanciona para alguns mugulmanos, ou o sinal da cruz para alguns cristdos: 120 menos como uma forma de questionar_as_crencas mais importantes ~ religiosas, filosdficas, cientific: a respeito de como o mundo € construido ou sobre o que éa vida, ¢ mais como uma forma de fechar os olhos ¢ ignorar vi ¢ estas.crengas; lacrar a visio de > que resulta do bom senso “tudo € 0 que é¢ nada mais", gomo disse Joseph Butler ~ para protegé-la das dividas que sio estimuladas pelas insuficiéncias dbvias desta visio. © morais fans-Pritchard, “administram suas atividades econdmicas segundo um conjunto de conhe- cimentos, transmitidos de geracio em geragio, que abran- gem tanto a construcao ¢ o artesanato, como a agricultura € a caga. Possuem, portanto, um profundo conhecimento pritico dos aspectos da natureza que se relacionam com seu bem-estar. f bem verdade que este saber é emy incompleto, € que nao transmitido através de qualquer ensino sistematico ¢ sim passado de uma geragio a outra, de uma forma lenta ¢ casual, durante a infancia ¢ nos primeiros anos da maturidade. Mesmo assim, este conheci- mento é suficiente para a execucao de tarefas didrias € empreendimentos sazonais.” Ja que ¢ esta conviccao que 0 homem comum tem, de que tem o controle de tudo, nao s6 de assuntos econdmicos, que Ihe da qualquer possibilidade de agir, ela deve ser protegida a qualquer custo: no caso dos azande, a feitigaria € invocada para esconder fracassos; no nosso caso, buscamos respaldo em uma longa tradigao de filosofia de botequim para comemorar sucessos. Ja fai dito em varias ocasies que em qualquer sociedade a manuten- cio da fé religi de lado as teorias sobre a suposta espontancidade dos instintos religiosos dos “primitivos”, creio que esta afirma- cio é verdadeira. & igualmente verdadeiro, no entanto, © muito mcnos comentado, o fato de que a manutencao da fe na confiabilidade dos axiomas e argumentos do bom senso nio & menos problem: €umatarefa problematica; ¢, se deixarmos aA artimanha usada pelo dr. Johnson para silenciar as dividas sobre 0 bom senso ~ “e nao se fala mais do assunto!” ~ é, se pensarmos bem, quase 121 tao desesperada como a que Tertuliano usava para frear suas dtividas religiosas: “credo quia impossible’. € pior que nenhuma das outras duas. Os homens tampam 08 orificios nas barragens de suas crengas mais necessérias com o primeiro tipo de barro que encontrem. “Feiticaria!” no ‘Tudo isso se apresenta de uma forma mais dramstica se, em vez de limitarmo-nos a observar uma tinica cultura em sua totalidade, observarmos varias culturas simultaneamen- te, concentrando-nos em um tinico problema. Um exemplo excelente deste tipo de abordagem encontra-se em um artigo de Robert Edgerton, publicado em um mimero antigo do American Anthropologist, sobre aquilo que hoje € cha- mado de intersexualidade, mas que é mais conhecido sob 0 nome de hermafraditisme— consideram ser_parte da |mancira como.o.mundo esti organizado € 0 fato de que as | seres humanas estio divididos em doi sexos biolé. E claro que também se admite que algumas pessoas | em qualquer lugar do mundo ~ homossexuais, travestis, etc —niio se comportam de acordo com as expectativas do papel | que thes fot atribuido segundo seu sexo biol6gico e, de uns | Lemos paFT CH, varias pessoas em nossa sociedade ja chega- | cam até a sugerir que papéis que se diferenciam tanto nao ! deveriam nem mesmo ser atribuidos a quem quer que seja. | Mas mesmo que uns prefiram gritar “vive la différence!” € | outros “A bas la différence!”, no existe muita diivida quanto \_aexisténcia de uma diferenga. "A visio danuels menintah da est6ria — que as pessoas nascem de dois tipos, sem enfeites ‘ou com enfeites — pode tcr sido uma visio lamentavelmente -liberada; mas parece bastante Sbvio que sua observacao foi anatomicamente correta. Na verdade, porém, € possivel que a menina da est6ria\ ‘nao tenha inspecionado uma amostra significativa. O géne- ro, nos seres humanos, nao é simplesmente uma Variavel dicotémica, Nem sequer é uma varidvel continua, pois, se fosse, nossa vida amorosa seria ainda mais complicada do | 122 / jd €. Um ntimero bastante extenso de seres humanos sao claramente intersexuais, € em alguns a intersexualidade cchega a tal ponto que-cles-apcesentam os dois tipos de ,/ genitilia externa, ou o crescimento de seios ocorre em um { individuo com genitalia masculina, ou outras ocorréncias \ semethantes. [sso cria certos problemas para a biologia, | probleiiias SOBre os quais vem-se obtendo algum progresso | no momento. Cria também alguns problemas para o bom | senso, para a rede dé concepgoes praticas ¢ morais que foi tecida ao redor de uma das mais enraizadas das verdades aparentes: masculinidade e feminilidade. Portanto, a inter- sexualidade é mais que uma surpresa empirica; ela € um ‘Um desafio que € enfrentado de varias maneiras’ Os romanos, relata Edgerton, consideravam os infantes interse- xuais como seres amaldigoados pelos poderes supernatu- rais, € 05 eliminavam. Os gregos, como era seu costume, tinham uma visio mais aberta e, embora considerassem este tipo de pessoa peculiar, atribufam sua existéncia a mais uma dessas coisas estranhas que acontecem ¢ os deixava viver suas vidas sem estigmas exagerados ~ afinal de contas, Her- matrodito, o filho de Hermes e Afrodite, que se uniy em um 56 corpo com uma ninfa, tinha estabelecido um precedente bastante importante. O artigo de Edgerton, na verdade, gira em torno de um contraste fascinante entre trés respostas bastante variadas ao fendmeno da interscxualidade — a nor te-americana, a dos navajo € a dos pokot (esta ultima, uma. tribo do Quénia) - que sao examinadas em termos das concepgdes que © bom senso desses povos contém, com respeito ao género dos seres humanos e seu lugar mais geral na natureza. Como cle sugere, pessoas diferentes reagem de entes a0 se confrontarem com individuos cujos corpos so sexualmente anémalos, mas nenhuma delas pode simplesmente ignorar a anomalia. Se 0 objetivo é sobre “o que € normale natural”, algo deve ser dito Sobre a8 eriormes divergencias 123 [Racoreca CENTRAL que existem entre as trés formas de lidar com a intersexua- lidade. (Os norte-americanos véem a intersexualidade com um /sentimento que sé pode ser classificado como horror. Como | diz. Edgerton, as pessoas chegam a sentir nausea com amera visio da genitalia de um intersexual ou até a0 ouvir falar sobre intersexualidade. "Como um enigma moral ¢ legal’, Edgerton continua, “existem poucos iguais”. Um intersexual pode casar? © servigo militar é relevante? Que sexo seré registrado na certidéo de nascimento? £ possivel mudar 0 sexo desta pessoa de uma forma adequada? £ psicolo- gicamente aconselhivel, ou mesmo vidvel, que uma pessoa que foi criada como uma menina, de repente se torne um menino? Como € que um intersexual pode se comportar nos chuveiros da escola, ou em banhos ptiblicos, ou no namoro? Obviamente, o senso comum.chegou a0 limite de suas forgss = ~Acreagio encorajar.o intersexual, normalmente com grande veeméricia cas vezes com algo mais que isso, aadotar um _dos dois papéis,omasculing ou_o Teminino, POF isso muitos intersexuais “passam por normais” a vida inteira, um comportamento que exige um sem ntimero de estratagemas cuidadosamente preparados. Outros buscam por si mesmos ou sao forcados a se submeterem a operagées que “corri-_ gem" sua condigio, pelo menos cosmeticamente, c se wans- Tormiam em homens ou mulheres “legitimos”. Fora de espeticulos circenses, s6 permitimos uma solucéo para o dilema da intersexualidade, uma solugio que o intersexual € forcado a adotar para acalmar a-sensibitidade dos demais. “Todas as pessoas envolvidas”, escreve Fdgerton, “de pais a! ‘médicos, sao induzidas a descobrir em qual dos dois sexos naturais 0 intersexual se encaixa de forma mais adequada, ¢ aajudar ao ambiguo, inc6ngruoe enervante it a teansformar- se em um ele ou em uma ela, que seja pelo menos parcial- vel. Em suma, se os fatos nao estio & altura de suas expectativas, mude os fatos, ou, se isto nao é possivel, pelo menos disfarce-os.” 124 Até aqui 0 que fazem os selvagens. Voltando-nos para os navajo, entre os quais WW Hill fez um estudo sistemtico do hermafroditismo, jé em 1935, vemos que o quadro é bastan- te diferente. Para cles também, a intersexualidade é anormal, _invés de, provocar horror ¢ nojo, evoca iragao € respeity, O intersexual € visto como alguém que ‘Trecebeu uma béncao divina ¢ que passa esta béncio para outras pessoas. Néo 86 sio respeitados, sio praticamente adorados. “Eles sabem tudo”, diz um dos informantes de Hill, “podem fazer tanto o trabalho de um homem como o de uma mulher. Acho que quando eles (os intersexais) desaparecerem, seré o fim dos navajo.” Outro informante declara: “Se nio existissem intersexuais, a agio mudaria Eles sao responsaveis por toda a riqueza da nagio. Se no houvesse mais nenhum deles, os cavalos, os carneiros e os navajo também desapareceriam. Fles so lideres, assim ‘como o presidente Roosevelt”. Diz, um terceiro informante: “Um (intersexual) na cabana navaja traz boa sorte e riquezas. £ muito importante para a nacdo ter um (intersexual) por perto.” E assim por diante. © bom senso dos navajo, portanto, vé a anomalia da intersexualidade ~ pois, como disse anteriormente, a0s 0- Ihos dos navajo o intersexual nao parece menos anémalo que aos nossos othos, pois 9 interscxualidade nao é uma anomalia menor entre eles} sob uma luz bastante diferente ib a qual nés a vemos. A interpretacao da interse- ‘como um horror mas sim como uma béngio, sha série de conceitos que, pata nds, sic to nhos como o dizer que 0 adultério, se Para os navajo, no entanto, estes conceitos so 0 tipo de coisa que qualquer pessoa com “a cabeca no lugar” tem, obrigatoriamente, que acha eto. Acreditam, por exemplo, que se os genitals de um animal intersexual (que também sdo muito sio esfrcgados na. See tiavedis ciboe canon nas narinas dos carneiros ¢ dos bodes, o rebanho cresce ¢ produz. mais leite. Ou que pessoas intersexuais devem ser 125 chefes de familia.c ter controle total sobre as propriedades Tamiliares, pois assim essas propriedades também aumenta- rio, Muda'se umas poucas interpretacées sobre uns poucos Tats Curtosds, © muda-se, pelo menos neste caso, toda uma forma de pensar. Na -resolva, mas sim ad- Finalmente, a tribo do Leste Africano, os pokot, tem ainda ‘uma terceira visao da intersexualidade. Como os norteameri- ccanos, nfo valorizam os intersexuais; mas, como 0s navajo, nao se ofendem ou ficam horrorizados com sua existéncia. Consi- deram-os, de uma forma bastante casual, como nena EFF So como um pote quebrado, imagem aparentemente muito popular na Africa, “Deus errou”, diz que “os deuses nos propiciaram um presente maravilhoso” ou que “estamos diante de um monstro inclassificével”. sm cles, em vez de afirmar Os pokot acham que 0 € inttil - nao pode reproduzir ¢ assim aumentar a patrilinearidade como um homem normal, nem pode ter um dote_como qualquer mulher normal. Nem sequer pode se entregar Aquilo que os pokot consideram “a coisa que d4 maior prazer”, 0 Sexo. Muitas vezes.criangas intersemuais s40 mortas, com a mesma despreocupacao comaqual se jogaria fora um pote malfcito (microcefilicos, infantes sem membros, ou animais que nascam com deformagées profundas também sio assassina- dos); outras vezes, com uma atitude igualmente despreocu- pada, Ihes permitem viver. As vidas que levam sao bastante desgracadas, mas nio sio pirias — simplesmente sao ignora- dos ou solitarios, ¢ tratados com a indiferenca com que se tratam objetos, principalmente objetos malfeitos. Economi- ie falando, sua situacdo é melhor que a de um pokot normal, pois nao sofrem as demandas financeiras do paren- tesco que drenam as riquezas, nem tém as distragGes da vida familiar que prejudicam o actimulo destas. Nessa linhagem segmentar aparentemente tipica, e em um sistema onde conta a riqueza da noiva, os intersexuais nao tém um lugar especifico. Quem precisa deles? ——- 126 Um dos casos considerados por Edgerton confessa ser profundamente infeliz. “Eu s6 durmo, como ¢ trabalho. Que mais posso fazer? Deus errou,” Eum outro diz: “Deus me fez assim. Nao ha nada que eu possa fazer. Todos os outros podem viver como um pokot. Eu no sou um verdadeiro pokot.” Em uma sociedade onde o bom senso estigmatiza, considerando até um homem que tenha érgios normais mas no tenha filhos como uma figura lastimavel, e onde uma mulher estéril nao chega a ser cansiderada uma pessoa, a vida de um intersexual é a propria imagem da futilidade. Ele €“indtil” em uma sociedade que, considerando ttil qualquer coisa que se relacione com gado, esposas ¢ filhos, valoriza a “utilidade” ao extremo. Em suma, a provisio de cestos-dados.ndo significa que todo 9 demais--mera-conseqincia. O bom senso.nio & aquilo que uma mente livre de artificialismo apreende ¢s- ontaneamente; € aquilo que uma mente repleta de pressu- osigdes ~ 0 sexo € uma forca que desorganiza, ou um dom que regenera, ou um prazer pritico ~ conclui. Deus pode ter feito os intersexuais, mas o homem fez 0 resto. / mW Isso nao é tudo, porém. O que o homem fez foi uma est6ria autoritiria. Como 0 Rei Lear, ou 0 Novo Testamento, ‘ou mecanica quantum, o bom senso é uma forma de explicar (98 fatos da vida que afirma ter 0 poder de chegar ao amago ‘desses fatos. Na verdade, é algo assim como um adversario natural das est6rias mais sofisticadas, quando essas existem, ¢, quando nao existem, das narrativas fantasmagéricas de sonhos € mitos. Como uma estrutura para o pensamento, ou uma espécie de pensamento, 0 bom senso é tao autori- tério quanto qualquer outro: nenhuma religito é mais dog- matica, nenhuma ciéncia mais ambiciosa, nenhima flosofia mais abrangente. Os tons que apresentam sao diferentes, € também sio distintos os argumentos com os quais s¢ justi cam, mas, como essas outras areas — ou como a arte € a 127 idcologia — 0 bom senso tem a pretensio de ir além da ilusio para chegar 4 yerdade, ou, como costumanios dizer, chegar ais coisas como clas realmente sao. "Sempre que um fil6sofo diz. que alguma coisa é ‘realmente real”, para citar uma vez mais aquele maderno € famoso defensor do bom senso, G.E. Moore, “vocé pode estar realmente certo de que o que ele disse ser ‘realmente real’ nao € real, realmente.” Quando um Moore, um dr. Johnson, um oleiro azandiano, ou um herma- frodita pokot dizem que alguma coisa é real, fique certo de que eles estio falando sério. Eo pior é que sabemos muito bem disso. f precisamente no tipo de som que suas observagdes expres- sam, na visio do mundo que suas conclus6es refletem— que as difecencas do bom senso devem ser procuradas. O con- ceito propriamente dito, como uma categoria fixa ¢ etique- tada, um dominio semintico fechado, nao é, obviamente, universal; no entanto, assim como a religiio, a arte, € as demais disciplinas, é mais ou menos parte desta nossa forma cotidiana de distinguir 05 géneros da expresso cultural. E, como vimos, seu contetido real, assim como o contetido da religido, da arte ¢ das demais areas, varia tao radicalmente dle um lugar ou perfodo para outros lugares ou periodos, que nao nos deixa muita esperanca de descobrir uma uni formidade em sua definigio e contetido, uma estéria original que seja sempre repetida, S6 € possivel caracterizar transcul- turalmente 0 bom senso (ou qualquer um dos outros géne- ros semelhantes) isolando 0 que poderia ser chamado de seus elementos estilisticos, as marcas da atitude que Ihe dé seu cunho especifico. Como a voz da devocio, a voz da sanidade soa de forma muito semelhante, sejao que for que diga; a coisa que o saber cotidiano tem em comum, onde quer que se manifeste, € o jeito irritante de saber cotidiano com que € dito. Como exatamente formular a especificidade destes ele- mentos estilisticos, dessas marcas da atitude, dessas variagées de tonalidade — ou qualquer outro nome que Ihes queiramos 128 dar ~ € um tanto ou quanto problemitico, pois nao existe um vocabutirio j4 elaborado com 0 qual expressilo, Neste caso, seria um mau comego simplesmente inventar termos novos, pois o que desejamos € caracterizar o que é familiar € nao descrever o desconhecido. A tnica solucao, portanto, é expandiro significado de termos conhecidos como faz um matemitico quando diz que uma evidéncia € profunda, ou um critico quando afirma que uma pintura é casta, ou um conhecedor de vinhos quando se refere a um Bordeaux como agressivo. As palavras que eu pessoalmente gostaria de usar desta mesma forma, referindo-me ao bom senso, ¢ adicionando um sufixo que transforme cada uma delas em um substantivo, sao: natural, pritico, leve, nio-metédico, acessivel. ‘Teriamos, assim, algo como “naturalidade”, “prati- cabilidade”, “leveza”, “nao-metodicidade” ¢ “acessibilidade’. Essas seriam, ento, as propriedades ~ um tanto ou quanto incomuns - que cu atribuiria a bom senso em geral, em seu sentido de forma cultural presente em qualquer sociedade. A primeira destas quase-qualidades - naturalidade - talvez a mais essencial. Q bom senso apresenta temas ~ isto €, alguns temas, ¢ ndo outros como sendoo que sio porque esta é a ni das coisas. D4 a todos os temas que seleciona e sublinha um ar de “isto ¢ dbvio" umiicitode “isto faz sentido”. Sao retratados como inerentes aquela situacao, como aspectos intrinsecos & realidade, como “é assim que as coisas funcionam”, Isto acontece mesmo em sc tratando de uma anomalia como a intersexualidade. O que diferencia a atitude dos norte-americanos sobre intersexualidade das outras duas atitudes examinadas nao € 0 fato de que, para cles, pessoas com Srgaos bissexuais parecam tao mais pecu- liares ¢ sim, que sua peculiaridade thes parece antinatural, uma contradigio nos termos estabelecidos pela existéncia, Os navajo ¢ os pokot, mesmo que de formas diferentes, véem © intersexual como um produto, ainda que pouco comum, do curso normal das coisas - prodigios doados pelos deuses ou potes quebrados - enquanto que os norte-americanos, que seu ponto de vista esta sendo retratado de forma 129 adequada, aparentemente créem que a feminilidade © a masculinidade esgotam as categorias naturais que podem, ser atribuidas aos seres humanos: qualquer coisa entre um, ¢ outro é a escuridio, é uma ofensa a razio. No entanto, a naturalidade como uma das caracteristicas do tipo de estérias sobre a realidade a que damos o nome de bom senso, pode ser melhor apreciada em exemplos menos extraordindrios. Entre os aborigines australianos, para escolher aleatoriamente um exemplo entre muitos, todo um conjunto de elementos da paisagem fisica ~ princi- palmente cangurus, casuares, larvas de mariposa, € outras coisas semelhantes ~ sio considerados produtos das ativida- des de antepassados totémicos durante aquele tempo-fora- do-tempo que, em inglés, chama-se “the dreaming [0 sonhar]”, Como obseryou Nancy Munn, na visio dos abori- gines, esta transformagio de antepassados humanos em elementos da natureza ocorre pelo menos de trés maneiras: através da metamorfose propriamente dita, quando 0 corpo de um antepassado se transforma em um objeto material; por impressao, ou seja, quando o antepassado deixa amarca de seu corpo ou de algum outro instrumento que usa; € por meio daquilo que ela chama de externalizagio, quando 0 antepassado retira algum objeto de seu proprio corpo e se desfaz dele. Assim, uma colina rochosa ou até mesmo uma pedra podem ser considerados um antepassado cristalizado (ele nao morreu", dizem os informantes, “apenas parou de se movimentar € ‘tornou-se a nacio”); um pogo natural, ou até um campo inteiro, podem ser a marca deixada pelas nadegas de um ancestral que, passeando por ali, sentou-se para descansar exatamente naquele lugar; ¢ varios outros tipos de objetos materiais - cruzes de barbante ou pedacos de madeira de forma oval - foram desenhados por algum canguru ou cobra primitivos com seus ventres respectivos ¢ “deixados para trés” quando esses continuaram seu cami nho. Sem aprofundar-nos nos detalhes de todas estas cren- as (que so profundamente complexas), o mundo externo com que os aborigines se confrontam nao é nem uma 130 realidade em branco, nem alguma espécie complexa de objeto metafisico, mas sim 0 produto natural de eventos transnaturais. O que demonstra este exemplo especifico, aqui descrito tio elipticamente, é que a naturalidade que, como uma propricdade modal, caracteriza o bom senso, nao depende, ou pelo menos nao depende necessariamente, daquilo que chamariamos de naturalismo filoséfico - ou seja, a visio segundo a qual nao existe nada no céu ou na terra que no possa scr imaginado pela mente temporal. Na verdade, para 08 aborigines, bem assim como para os navajo, a naturalida- de do mundo cotidiano é uma expressao direta, uma resul- tante de uma parte do ser a qual se atribui um conjunto bastante diferente de quase-qualidades “grandiosidade” “seriedade”, “mistério”, “diversidade”. Aos olhos aborigines, © fato de que os fendmenos naturais de seu mundo fisico sio 0 que restou das agdes de cangurus invioliveis ¢ cobras taumatiirgicas nao torna esses fendmenos menos naturais. Assim, sc um cérrego qualquer surgiut porque Possum, por acaso, deslizou sua cauda exatamente naquele pedaco de chao, esse cérrego nao se torna diferente dos outros tantos cérregos. Pode ser, talvez, mais importante do que c6rregos vyistos com nossos olhos, ou pelo menos diferente deles; mas de qualquer maneira, nos dois casos, a 4gua sempre corre colina abaixo, Um argumento bastante abrangente, alids. Q progresso da ciéncia moderna afetou seriamente.~ embora talvez tio seriamente quanto as vezes imaginamos — 0s conceitos do bom senso ocidental. Se é ou ndo verdade que o homem comum se transformou em um auténtico Copérnico (e de minha parte, duvide muito, pois para mim o sol ainda se levanta e brilha sobre a terra), pelo menos foi induzido, ¢ ha muito pouco tempo, a acreditar na versio de queas doengas sio causadas por germes. Até um simples programa de isdio demonstra esta verdade. No entanto, como tam tele bém fica claro em um simples programa de tclevisio, 0 31 homem comum nio vé essa afirmagio como parte de uma tcoria cientifica articulada, e sim como um pouco de bom senso. Ele pode ter ultrapassado 0 estigio de “alimente o resfriado para matar a febre de fome” mas s6 chegou até “escove os dentes duas vezes ao dia ¢ visite o dentista duas vvezes por ano”. Podemos argumentar que 0 mesmo sucede coma arte ~ nao havia nevoeiro em Londres até que Whistler opintou, eassim por diante. A naturalidade que os conceitos «lo bom senso dao.a seja ld ao que for que cles dao natura. idade — beber 4gua em cérregos rapidos é melhor que beber gua em cérregos lentos, ou nio ficar no meio de multiddes quando existe uma epidemia de gripe - pode depender de outros tipos bem diferentes de versées estranhas sobre © fancionamento das coisas (também, é claro, pode nio ser bem assim: a afirmagao de que “o homem tera problemas quando as andorinhas levantam v6o" ser4 tanto mais persua- siva quanto maior for nossa experiéncia de vida, ¢ 0 tempo que tivermos para descobrir como ela é terrivelmente verda- deira). Asegunda caracteristica, “praticabilidade”, pode ser mais facilmente observivel a olho nu que as outrasem minha lista, porque, normalmente, quando dizemos que um individuo, uma ago, ou um projeto demonstram falta de bom senso, © que queremos realmente dizer € que nao sio praticos. O individuo, mais cedo ou mais tarde, vai ter que despertar para a realidade, a acio est4 caminhando rapidamente para © fracasso © 0 projeto nao vai funcionar. Mas, justamente porque parece tio mais Sbvia, essa quase-qualidade € mais suscetivel de ser interpretada erroneamente. Pois no se trata aqui de “praticabilidade” no sentido estritamente prag- mitico de “utilidade”, mas sim, em um sentido mais amplo, aquilo que, na filosofia popular, seria chamado de sagacida- de. Quando aconselhamos alguém a “ser sensato”, nossa intencao nao € tanto dizer que cle deve se tornar um utilitério, mas sim que ele deve ser mais “vivo”: mais pruden- te, mais equilibrado, nao perder a bola de vista, nao comprar gato por lebre, ndo chegar muito perto de cavalos lentos ou 132 de mulheres rapidas, enfim, deixar que 0s mortos enterrem (0s mortos. Como parte da discussio mais ampla que mencionei anteriormente, sobre os inventarios culturais de povos “mais simples”, existiu uma espécie de debate sobre se “primitivos” tém qualquer interesse em assuntos empiricos que nio se relacionem, ¢ nao se relacionem de forma bastante direta, com seus objetivos materiais imediatos. Esta é a visio ~ isto €, que eles nao tém interesse ~ bastante aceita por Malinows- ki, © que Evans-Psitehard utiliza, em uma passagem que deliberadamente omiti quando o citei acima, referindo-se aos azande. “Eles tém um profundo conhecimente pritico da parte da natureza que se relaciona com seu bemccstar. Quanto ao restante, nao tem para cles nenhum.intecesse Gientifico ou apelo sentimental.” Discordando desta afirma- Gio, outros antropélogos, dos quais Lévi-Strauss €, se nao 0 primeiro, pelo menos o mais enfitico, argumentaram que “primitivos”, “selvagens”, ou seja li qual for o nome que Ihes déem, elaboram e até sistematizam conjuntos de conheci- mentos empiricos que nao parecem ter qualquer utilidade pritica para eles. Algumas tribos das Filipinas conseguem distinguir mais de seiscentos tipos de plantas, a que atribui ram nomes, a maioria las quais ndo sio nem utilizadas, nem utilizaveis, ¢ algumas delas s6 sto encontradas raramente Os indios americanos do nordeste dos Estados Unidos ¢ do Canada possuem uma taxonomia elaborada de espécies de répteis que eles nao comem nem vendem. Alguns indios do sudeste ~ os pueblanos ~ deram nomes a todas as espécies de arvores coniferas da regio, sendo que a maior parte delas sio tio semelhantes que mal se distinguem uma das outras, ¢ nenhuma oferece qualquer lucro material aos indios. Os pigmeus do Sudeste Asidtico sio capazes de distinguir os tipos de folba das quais se nutrem mais de quinze espécies de morcegos diferentes. Em oposigio a0 utilitarianismo primitivo da vis4o de Evans-Pritchard ~ aprenda tudo aquilo cujo conhecimento Ihe traz algum lucro € deixe o restante para a feiticaria — temos a visio intelectual primitiva de 133 Lévi-Steaus a aprender e classifique este conhecimento em categorias, “E possivel que repliquem”, escreveu Lévi-Strauss, “que uma ciéncia deste tipo (isto é classificagao botinica, observagbes herpetolégicas, etc.) pode nao ter um resultado muito pré- tico. A resposta para isso € que seu objetivo principal no é pritico. Ela atende as demandas do intelecto mais que, ou em vez de, & satisfacio de necessidades {materiais] aprenda tudo que sua mente o indu; E quase certo que hoje existe um consenso em torno do argumento desenvolvido por Lévi-Strauss que discorda da visio de Evans-Pritchard — 0s “primitivos” tém interesse em varias coisas que nao sao titeis nem para seus planos de vida, nem para seus estémagos. Porém, isto nao é tudo o que se tema dizer sobre 0 assunto. Pois esses povos nao classificam aquelas plantas todas, nem distinguem tantas espécies de cobras ou categorizam um ntimero enorme de tipos de morcegos, simplesmente porque sentem alguma paixao cog- nitiva avassaladora que emana das estruturas inatas localiza: das no fundo de sua mente, Em um meio ambiente poyoado de drvores coniferas, cobras Ou morcegos que comem folhas, € pratico saber tudo que se pode saber sobre arvores coni- feras, cobras ou morcegos que comem folhas, seja este conhecimento materialmente titi no sentido exato da pala- ‘ra ou nao, pois a "praticabilidade” de que falamos consiste ‘amente neste tipo de conhecimento. A “praticabilida- de” do senso comum, € também sua “naturalidade” io qualidades que o proprio bom senso outorga aos objetos € nao que os objetos outorgam ao bom senso. Se, para nés, examinar um programa de corrida de cavalos pode parecer uma atividade pratica e cagar borboletas nao, nao é porque © primeiro € titil ¢ o segundo nao o €; a razio € que © primeiro é visto como resultado de um esforgo, ainda que minimo, que deverd ser feito para que possamos saber exatamente 0 que € qué; a segunda atividade, emtretanto, por mais encantadora que seja, nao exige maior esforgo. 134 Aterceira das quase-qualidades que 0 bom senso atribui a realidade, “leveza", €, como modéstia em um queijo, bastante dificil de formular em termos mais explicitos. “Sim- plicidude", ou mesmo “literalidade” podem servir tao bem quanto “leveza", ou até expressar melhor a idéia, pois trata se aqui daquela vocacao que 0 bom senso tem para ver € apresentar este ou aquele assunto como se fossem exata- mente 0 que parecem ser, nem mais nem menos. A frase de Butler que citei acima ~ “tudo € aquilo que é, ¢ nenhuma outra coisa” — expressa essa qualidade perfeitamente. 0 mundo € aquilo que uma, ssoa bem desperta ¢ sem muitas obriedade, ¢ nao sutileza, realis- mo, e nao imaginagio, sio as chaves para a sabedoria; os fatos que realmente importam na vida estao espalhados pela superficie, ¢ nao escondidos dissimuladamente em suas profundezas. Nao é preciso, € mais, é um erro fatal, negara obviedade do ébvio, como fazem com tanta freqiiéncia os poetas, intelectuais, padres ¢ outros complicadores do mun- do por profissio. Como diz um provérbio holandés, a ver- dade € tio simples como a agua clara. Além disso, como os fil6sofos exageradamente sutis de Moore que tinham discusses profundas sobre a realidade, ‘0s antropélogos freqiientemente constroem complexidades conceituais que cles mesmos passam adiante como se fos- sem fatos culturais, pela simples razao de que nao entende- ram que muito do que thes tinha sido dito por seus informantes, ainda que soasse estranho a seus ouvidos edu- cados, era literal. Alguns dos bens mais importantes no mundo nao estio escondidos sob uma mascara de aparéncia enganosa, nem sao coisas que deduzimos gracas a sugestoes discretas ou deciframos por meio de sinais equivocos. Acre- dita-se que eles estejam bem ali, onde pedras, mios, cana- Ihas © tridngulos eréticos estéo, invisiveis apenas para aqueles que sio inteligentes. Leva-s¢ algum tempo (ou pelo menos en levei algum tempo) para entender que, quando todos os membros da familia de um menino javanés me diziam que ele tinha caido de uma Arvore € quebrado a 135 Perna, porque seu av, j falecido, o tinha puxado, jé que a familia tinha esquecido de cumprir uma obrigacao ritual que era devida a este avd, para eles, aquilo era o comeco, o meio © 0 fim do assunto; era exatamente que eles achavam que tinha acontecido, era tudo que eles achavam que tinha acontecido, ¢ ficaram perplexos com o fato de eu estar perplexo por cles nao demonstrarem a menor perplexidade. E quando, em Java, depois de escutar uma estéria longa € complicada contada por uma camponesa velha e analfabeta um tipo clissico se € que existem tipos classicos - sobre 0 papel que a “cobra do dia” desempenha quando 0s javaneses querem saber se € ou nao aconselhvel viajar, dar uma festa, ou contrair matriménio (a est6ria era, na verdade, uma série de relatos deliciosos sobre as tragédias que haviam ocorrido ~ carruagens que viraram, tumores que apareceram, fortu- nas que se dissolveram — quando tinham ignorado a cobra) perguntei como era essa cobra do dia, € 0 que ouvi foi: “Nao seja bobo! a gente nao pode ver a terga-feira, pode?”, come- cei a perceber que até as coisas que sdo cvidentes $6,540 evidentes aos olhos dos que as. ¢stdo_vendo. A frase “O mundo se divide em fatos” pode ter ld seus defeitos como um slogan filos6fico ou um credo cientifico; mas € grafica- mente exato, como um epitome da “leveza" ~“simplicidade”, “literalidade” - que o bom senso imprime a experiéncia. "za Quanto a “nio-metodicidade”, a outea qualidade a qual também nao demos um nome 14 muito adequado que os conceitos resultantes do bom senso atribuem ao mundo, esta serve simultaneamente aos prazeres da inconsisténcia~ tao reais para todos os seres humanos que nao sejam exage: radamente académicos (como disse Emerson: “uma consis- téncia descabida & 0 deménio das mentes pequenas”; ou, nas palavras de Whitman: “Eu me contradigo, portanto, cu ‘me contradigo. Contenho as multidées") ~ aqueles outros prazeres semelhantes, também sentidos por todos os ho- mens a nao ser 0s exageradamente obsessivos, que tém ‘origem na diversidade insubmissa da vida (“o mundo esta repleto de um ntimero de coisas”; “A vida é um raio de coisas 136 uma atrés das outras”; “Se vocé acha que entendeu a situa ho, iss0 86 prova que voce esté mal informado"). O saber do bom senso é, descarada ¢ ostensivamente, ad boc. Vem na forma de epigcamas, provérbios, obiter dicta, piadas, relatos, contes morals ~ uma mistura de ditos gnémicos ~ nao em doutrinas formais, teorias axiomaticas, ou dogmas arquiteténicos. Silone disse em algum lugar que os campo- neses do sul da Itilia passam a vida intercambiando provér- bios como se estes fossem presentes valiosos. As formas em que o bom senso se apresenta, em outras partes do mundo, varia: ditos espirituosos mais trabalhados, como 3 la Wilde, versos didaticos a la Pope, ou fabulas com animais A La Fontaine; ¢ entre os classicos chineses, talvez fossem citagbes embalsamadas, Scja lé qual for a forma em que se apresen- tem, ndo € sua consisténcia interna que os torna recomen- daveis, mas precisamente o extremo oposto: “Antes que cases, vé 0 que fazes” mas “Deus ajuda a quem cedo madru- ga”; “Remenda o pano, e dura um ano, remenda outra vez e dura um més” mas “O que se leva dessa vida é 0 que se come eo que se bebe” ¢ assim por diante. Aliés, € nesta maneira sentenciosa de falar ~ que, em certo sentido, € a forma paradigmatica da sabedoria popular ~ que a “nao-me- todicidade” do bom senso se destaca mais vividamente, Como exemplo, considere o seguinte feixe de provérbios Balla que extrai de Paul Radin (que, por sua vez, os extrait de Smith and Dale) Cresga ¢ entdo conhcceris as coisas do mundo. Inrte seus médicos e as doencas sairio rindo, [Avaca prédiga jogou fora seu proprio rabo. # a hiena pradente que vive mais tempo. O deus que fala ganba a carne. Voce pode se lavar, mas isso nao quer dizer que voce vai deixar de ser escravo, Quando a mulher de um chefe rouba, ela culpa os escravos. £ mais fail construir com uma bruxa do que com uma pessoa de lingua falsa, pois este destr6i a comunidade. E melhor ajudar um homem que esti lutando do que um hhomem faminto, pois este nao tem neahuma gratidio. pe ILIOTECA CENTRAL PUCRS Eassim por diante. E um tipo de pot-pourri de conceitos discrepantes ~ que, como os anteriores, no sio necessa- rlamente, nem mesmo normalmente, expressos como pro- vérbios ~ que, em geral, ndo s6 caracterizam os sistemas do bom senso como também, € principalmente, os tornam capazes cle captar a enorme variedade dos tipos de vida que existem no mundo, Aliés, os proprios Ba-lla tm um provér- bio que expressa justamente isso: ‘A sabedoria sai de um morro de formig: Aldltima quase-qualidade ~ dltima aqui, mas certamente nao na vida real ~ a “acessibilidade” surge como uma conse- aiiéncia légica das outras na medida em que estas sio reconhecidas. Acessibilidade ¢ simplesmente a presuncio, na verdade a insisténcia, de que qualquer pessoa, com suas faculdades razoavelmente intactas, pode captar as conclusdes do bom senso, e, se estas forem apresentadas de uma mancira suficientemente verossimel, até mesmo adoté-las, E claro que ha uma tendéncia a que se considere algumas essoas ~ geralmente os mais velhos, algumas vezes os sofredores, ocasionalmente aqueles que sio simplesmente grandiloqiientes — mais sibias que outras, naquele tipo de sabedoria do “ja passei por tudo isso”. Por outro lado, diz-se das criancas, e, com bastante freqiiéncia, das mulheres, € ainda, dependendo do tipo de sociedade, das varias espécies de menos privilegiados, que sio menos sabias que as outras Pessoas. A isso acrescenta-se a explicagio de que “sio cria- turas emocionais”. Apesar dessas atribuicdes, no se pode dizer que existam especialistas em bom senso reconhecidos como tal. Todos acham que so peritos no assunto. Sendo comum, 0 bom senso esta aberto para todos; é propriedade Beral de, pelo menos ~ como diriamos ~ todos os cidadios estaveis ‘a verdade, seu tom € até antiespecialista, se no for antiintelectual; rejeitamos, e pelo que tenho observado, outras pessoas também rejeitam, qualquer reivindicagio explicita de poderes especiais nesta area, Para este saber ndo 138 existe qualquer conhecimento esotérico, nem técnicas espe- eralentos especificos, ¢ pouco ou nenhum treinamento especializado, a nio ser aquilo que, de forma mais ou menos redundante, chamamos de experiéncia, e, de forma mais ou menos misteriosa, de maturidade. Para expressiclo de outra maneira, o bom senso representa o mundo como um mundo familiar, que todos podem e devem reconhecer; ¢ onde todos sio, ou deveriam ser, independentes, Para viver na- queles subtirbios que chamamos de fisica, ou islamismo, ou direito, ou mtisica, ou socialism, é preciso satisfazer algu ‘mas exigéncias, ¢ nem todas as casas estabelecem o mesmo tipo de imposicio. Para viver nesse semi-subtirbio que se chama bom senso, onde todas as casas sio sans facon, Precisamos unicamente ~ como se dizia em outras épocas ~ estar em juizo perfeito € ter uma consciéneia pritica, de acordo com a definigao que as cidades de pensamento ¢ linguagem especificos, de onde somos cidadios, décm a essas virtudes tio laudaveis Iv Como comegamos este capitulo com uma pictografia de ruas sem saida © avenidas, extraida de Wittgenstein, sera bastante apropriado terminar com uma outea, que € ainda ‘mais resumida: “Vemos uma estrada reta a nossa frente, mas € claro que nao podemos utilizéa pois esti permanente- mente fechada’, Se quisermos demonstrar, ou mesmo sugerir (que € tudo ‘© que me foi possivel fazer) que o bom senso é um sistema cultural, ¢ que ele possui uma ordem tinica, passivel de ser descoberta empiricamente ¢ formulada conceptualmente, no o faremos através de uma sistematizacio de seu contet- do, pois este € profundamente heterogénco, nao s6 nas varias sociedades, como em uma mesma sociedade - a sabedoria de um morro de formigas. Também nao sera vidvel 2. Wleyenstein, Philosophical Investigations. p. 127. esbocar algum tipo de estrutura légica que seria adotada pelo senso comum onde quer que este se apresente, pois essa nfo existe. Nem sequer poderemos elaborar um sumd- rio de conclusdes substantivas a que o senso comum sempre nos faz chegar, pois neste caso tampouco existe um padrao. O tinico procedimento que nos resta, portanto, € 0 de tomarmos o desvio especifico de evocar 0 som ¢ 0s varios tons que sio geralmente reconhecidos como pertencentes ao senso comum, aquela ruazinha paralela que nos leva a construir predicados metaféricos — nogées aproximadas, como a de “leveza" — para podermos lembrar as pessoas aquilo que ja sabem. Mudando a imagem, 0 senso comum tem algo assim como a'sindrome dos objetos invisiveis: esta0 {Go obviamente diante dos nossos olhos, que é impossivel ‘encontri-los. Parands, aciéncia, aarte, aideologia, o dircito, arcligiio, a tecnologia, a matemitica, e, hoje em dia, até a é epistemologia si ros da expressi tica € a tao freqtientemente considerados génc- sso cultural, que isso nos leva a indagar (ea indagar, ¢ a indagar) até que ponto os povos as possuem ¢, seas possuem, qual éa forma que tomam, e, dada esta forma, como podem iluminar a versio que temos desses géncros © mesmo niio acontece com o senso comum. Este nos parece ser aquilo que resta quando todos 08 tipos mai articulados de sistemas simbélicos esgotaram suas tarefas, ‘ou aquilo que sobra da razio quando suas facanhas mais sofisticadas sio postas de lado. Mas se isto nao é verdade, ¢ ser capaz de disti le queijo, ou uma tomada elétrica de um focinho suino, ou seu préprio anus de seu cotovelo (@ capacidadle de ser “pé-na-terra” poderia ser outra quase- qualidade atribuida ao senso comum) também forem consi- derados talentos téo positivos, ainda que nav tao grandiosos como o ser capaz de apreciar motetes, acompanhar um argumento Idgico, manter um contrato formal, ou demolit © capitalism ~ todos estes dependentes de tradicées de pensamento € sensibilidade claboradas - entao a investi- gacio comparativa da “habilidade natural de evitarmos as 140 imposigies de contradigdes grosseiras, inconsisténcias pal- piveis, e Sbvias falsificacdes” (segundo a definicao de senso comum da “Historia Secreta da Universidade de Oxford”, publicada cm 1726) deveria ser cultivada de uma forma mais Para a antropologia, tal iniciativa podera significar novas formas de cxaminar problemas antigos, principalmente os que se relacionam com a maneiracomoa cultura é articulada ¢ fundida, ¢ uma mudanga (que alias teve inicio hd bastante tempo) que a distancie de explicagdes funcionalistas sobre 0s mecanismos dos quais dependem as sociedades, ¢ a aproxime de métodos que a auxiliem a interpretar as formas de vida existentes nos virios tipos de sociedade. Para a filosofia, no entanto, os efeitos podem ser mais sérios, pois possivelmente afetardo um conceito semi-examinado que Ihe € muito caro. Aquilo que, para a antropologia, a mais ‘matreira das disciplinas, seria apenas a mais recente em uma longa série de mudangas de enfoque, para a filosofia, a disciplina que mais se assemelha a um porco-espinho, po- der significar um abalo total. 141 Capitulo 7 Como pensamos hoje: a caminho de uma Etnografia do Pensamento Moderno I “Pensamento”, diz meu diciondrio (que, dada a ocasiio,* €, bastanté apropriadamente, 0 American Heritage), tem dois significados principais: (1) “9 ato ou processo de pen- sar; cogitagio”, ¢ (2) “o produto do pensar; idéia; nogao.” Para esclarecer o primciro, amplia-s€ 6 conceito de “proc so” listando uma série de, como diriamos, fendmenos psico- logicos internos: “atengdo”, “expectativa”, “intengao” e até mesmo “esperanca”, dando a entender que a lista poderia incluir desde a meméria € o sonho, até a imaginacio ¢ 0 cAleulo, ou seja, tudo aquilo que, de alguma forma, possa ser definido como um “ato mental.” Para esclarecer o segun- do, di-se 0 significado de “produto”; nesse caso, temos, pomposa ¢ indiscriminadamente, quase tudo aquilo que chamariamos de cultura: “a atividade ou produgio intelec- tual de uma época ou grupo social especifico.” Pensamento € 0 que acontece dentro de nossas cabecas. E pensamento, \cipalmente quando varios deles sio agrupados, € tam- bém o que sai de nossas cabegas. Pelo menos na linguagem comum, nao causa nenhuma surpresa que uma mesma palavra tenha significados discre- antes; a polissemia, termo usado pelos lingitistas para essa ocorréncia, € a condicio natural das palavras. Cito esse exemplo neste momento, € nao mais tarde, porque ele nos 7 ste capitulo for apresentado pela primeira vez como uma ds palestras em um ‘venta em comemoragio ao biceatendsio da Academia Americans de Artes © Glencis 220 leva diretamente ao amago do problemade ‘unidade ¢ diyer-_ idacle que surgi nas ciéncias S0ciais a partir dos anos 20 ‘ou 30. Nessa época, a evolucao dessas ciéncias deu higar a0 desenvolvimento simultinco da visio radicalmente parcial) que considerava o_pensamento humano em seu sentido }, “psicol6gico”, de acontecimento interno ~ o primeiro signi- /ficado do dicionitio ~ e de umalviséo O pluralista,que 0 ), considerava em seu sentido “ “cultural”, de fato social - 0 segundo significado do dicionario. A convivencia dessas duas perspectivas discrepantes criou problemas, que, com ‘© tempo, foram se tornando cada vez mais sérios, € que hoje chegam mesmo a ameacar a coeréncia dessas ciéncias. Com isso, seja qual for nosso local de trabalho ~ laboratorios, clinicas, favelas, centros de informatica ou aldeias africanas = nés, cientistas sociais, vemo-nos finalmente obrigados a examinar 0 que é precisamente que pensamos sobre 0 pensamento. Em meu ramo particular das ciéncias sociais, a antropo- Jogia, essa questao esta presente ha muito tempo e de uma forma especialmente enervante. Malinowski, Boas ¢ Lev Bruhl, nas fases formativas da disciplina; Whorf, Mauss Evans-Pritchard um pouco mais tarde; ¢ Horton, Douglas ¢ Lévi-Strauss no momento atual, nenhum deles conseguiu ignorar a questdo. Inicialmente formulada como ‘g proble- \ente_primitiva’} mais tarde como © problema do mo cognitivo”, € mais recentemente como “o pro- blema da incomensurabilidade conceitual” ~ como sempre nesses assuntos, 0 que mais progride é a grandiosidade do jargio ~ a discordancia entre uma visio minimo-denomi- nador-comum da mente humana (“até os papuas tiram a média, diferenciam objetos, ¢ atribuem efeitos a causas") € outra que prega que “outros animais, outros conceitos” (“os amazonenses acham que sao periquitos, misturam o cosmos com a estrutura da aldeia e acreditam que a gravides faz os homens ficarem invalidos”) nao pode mais ser ignorada, A formulagio original do problema, a que chamaremos de“pensamento primitivo"— ou seja, enquantoinds, 0s povos 221

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