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V Reunião Equatorial de Antropologia e XIII Reunião de Antropólogos do Norte

e Nordeste.

De 04 a 07 de agosto de 2013, Fortaleza-CE.

Grupo de Trabalho: Antropologia do Cinema: entre narrativa, políticas e


poéticas.

Título do Trabalho : MEMÓRIA E NARRATIVA EM “ARAGUAIA CAMPO


SAGRADO”.

Autor: Fábio Tadeu de Melo Pessôa


fabiopessoa@hotmail.com

Universidade Federal do Pará – UFPA.


MEMÓRIA E NARRATIVA EM “ARAGUAIA CAMPO SAGRADO”1.

Fábio Tadeu de Melo Pessôa


Universidade Federal do Pará

O presente trabalho pretende abordar a memória dos camponeses sobre a


Guerrilha do Araguaia, episódio ocorrido na região conhecida como Bico do
Papagaio, que abarca a fronteira dos atuais estados do Tocantins, Maranhão e
Pará, a partir do documentário intitulado “Araguaia, Campo Sagrado”.
Trabalhando com as narrativas orais contidas no documentário, podemos
apreender um pouco das histórias de vida dos camponeses tendo como foco
as narrativas e representações construídas em relação à Guerrilha do
Araguaia, entre as clivagens construídas pelo PC do B, o “partido da guerrilha”,
e os militares, que supostamente combatiam as ações dos “subversivos na
floresta”. Portanto, trabalhamos com a noção de memória enquanto “campo de
disputa” (Pollack, 1989) e o documentário como “representação” de uma
determinada realidade, representação aqui entendida a partir da contribuição
de Roger Chartier (1991) que também considera as práticas ou atitudes dos
sujeitos sociais, os seus “modos de fazer”, e que geram os “modos de estar e
ver o mundo”, modos muitas vezes conflitantes com as práticas e
representações “oficiais”.

Palvras-chave: Cinema, Memória, Narrativas Orais, Campesinato.

Introdução: a memória como “campo de disputa”.

No dia 17 de novembro de 2011, foi lançado em Belém, na Jornada de


Extensão da UFPA, o filme-documentário “Araguaia, Campo Sagrado”2.
Dirigido pelo professor e documentarista Evandro Medeiros, o filme aborda as
diversas memórias construídas por camponeses, “ex-mateiros” e ex-guias do
Exército brasileiro acerca da Guerrilha do Araguaia, movimento armado
organizado por integrantes do Partido Comunista do Brasil (PCdoB), entre os
anos finais da década de 1960, quando os primeiros membros do PCdoB

1
Este artigo é parte integrante de minha Dissertação de Mestrado em fase de conclusão,
intitulada O pensamento radical no movimento camponês: história e memória da luta
camponesa em Conceição do Araguaia – Pará (1975-1985), no Programa de Pós-Graduação
em História Social da Amazônia – UFPA.
2
Araguaia Campo Sagrado. Direção Geral: Evandro Medeiros. Labour Filmes Produções. Ano
de Produção: 2010-2011.
chegaram à região Araguaia, e 1974, quando os últimos integrantes da
Guerrilha foram mortos pelo Exército na região chamada de Bico do Papagaio
e que compreende os atuais estados do Pará, Maranhão e Tocantins, como
mostra o mapa na figura 1.

Figura 1. Mapa da Região do “Bico do Papagaio” onde ocorreu a Guerrilha do


Araguaia, com a discriminação dos vários destacamentos criados pelo PCdoB.Fonte:
MORAIS, Taís; SILVA, Eumano.Operação Araguaia: os arquivos secretos da guerrilha.
2. ed. São Paulo: Geração Editorial, 2005, p. 18.

Segundo Evandro Medeiros, a ideia de produzir o documentário tem a


ver com a necessidade de esclarecer melhor um episódio ainda carente de
pesquisas e fontes, principalmente se termos como referência o silêncio
imposto aos moradores da região. O objetivo era o de narrar a história a partir
das memórias dos camponeses de modo a torná-los protagonistas de sua
própria história3.

O documentário e a narrativa nele contida veem ao encontro da história


com o que alguns chamam de “renascimento da narrativa”. Peter Burke fala da
superação por parte da historiografia do desprestígio do político, do
“acontecimento” e da narrativa. A historiografia produzida nos anos de 1950 e
1960, principalmente, assentada nas análises das estruturas de longa duração,
privilegiava análises das estruturas de produção, da quantificação dos dados,
da série de documentos, das análises demográficas. Citando o célebre livro de
Fernand Braudel, O Mediterrâneo, Burke afirma que os historiadores estruturais
“encaravam os acontecimentos como a superfície do oceano da história”
(BURKE: 1992, p. 328).
Para a historiadora Marieta de Moraes Ferreira, a fundação na França
da revista Annales, em 1929, e da École Pratique des Hautes Études, em 1948,
daria novas perspectivas a produção historiográfica, focando agora uma
“história total”. No lugar de uma história centrada nos “grandes personagens”, o
foco seria o estudo das “sociedades” em seus múltiplos aspectos. No entanto,
a questão da objetividade permanecia como preocupação fundamental e a
narrativa e estudos focados no tempo presente ficariam em segundo plano,
sem falar na predominância inquestionável das fontes escritas em detrimento
das fontes orais e das histórias de vida (FERREIRA: 2002, p.378).
A partir do final dos anos de 1970, com o desenvolvimento da História
Cultural, privilegiando análises qualitativas, relatos orais e desconstruindo
noções vinculadas a dicotomia entre o popular e o erudito, o debate em torno
da objetividade e da importância das narrativas, sejam elas literárias ou orais,
voltaria com grande força.
Para Georg Iggers, a publicação na revista Past and Present de um
ensaio de Lawrence Stone sobre o “retorno da narrativa” ou aquilo que ele
chama de “a nova velha história” irá retomar o debate sobre a importância da
narrativa para a história, não aquela factualista do historicismo clássico que
privilegiava os grandes personagens, mas fundamentalmente uma narrativa de
3
Entrevista com Evandro Medeiro no Programa “Diálogo Aberto” da TV Nazaré, Fundação
Nazaré de Comunicação, exibido em 28/11/2011. Disponível em:
<http://www.youtube.com/watch?v=Oh35wa3FE54>.html. Acesso em: 30 de jun. 2012.
experiências de vida, individuais ou coletivas, de sujeitos históricos anônimos
vinculados às classes subalternas, aos pobres e excluídos (IGGERS: 1994, p.
59-60).
O alargamento dos objetos de estudos e a retomada de aspectos por
certo tempo negligenciados ou esquecidos levou a possibilidades da ampliação
do universo de pesquisa e a inclusão de novas fontes e metodologias, como
aquelas vinculadas aos estudos das fontes orais como forma de estudar
sujeitos historicamente excluídos, como os operários, a exemplo da obra A voz
do passado, de Paul Thompson (1992).
Criticada por muitos como “coisa de jornalista”, a história do tempo
presente, por trabalhar com “testemunhos vivos”, tem desenvolvido
metodologias a partir de inúmeras pesquisas realizadas nos últimos anos. Para
a historiadora Marieta de Moraes Ferreira,
Ao esquadrinhar os usos políticos do passado recente ou ao
propor o estudo das visões de mundo de determinados
grupos sociais na construção de respostas para os seus
problemas, essas novas linhas de pesquisa também
possibilitam que as entrevistas orais sejam vistas como
memórias que espelham determinadas representações.
Assim, as possíveis distorções dos depoimentos e a falta de
veracidade a eles imputada podem ser encaradas de uma
nova maneira, não como uma desqualificação, mas como
uma fonte adicional para a pesquisa (FERREIRA: 2002,p.
324).

A memória compreendida como campo de disputa foi apresentada por


Pollak (1989) em um artigo de grande repercussão no Brasil. Para o autor,
existiriam diversas dimensões da memória, tanto no que se refere às memória
individuais, quanto aquelas partilhadas por grupos e instituições. Pare ele, “a
despeito da importância da doutrinação ideológica”, existiria uma “clivagem
entre memória oficial e dominante e memórias subterrâneas”. Estas últimas,
transmitem suas “lembranças dissidentes nas redes familiares e de amizades,
esperando a hora da verdade e da redistribuição das cartas políticas e
ideológicas”. (POLLAK: 1989, p.5)
Em trabalho recente sobre o que chama de “revisão do paradigma da
guerrilha”, Nascimento (2000) procura debater não apenas os paradigmas de
revolução presentes nos grupos de esquerda nos anos de 1960 e 1970, como
as dificuldades de se apreender as repercussões da Guerrilha entre a
população do Araguaia.
Esse debate sobre o silêncio, consciente ou não, em relação à Guerrilha,
tem a ver também com a construção da tese do “suicídio revolucionário” em
relação à estratégia de “guerra popular” posta em prática pelo PC do B no
Araguaia que, segundo Reis Filho (1985), não lograria êxito em função da
incompatibilidade entre as condições objetivas (local inadequado, falta de
equipamentos e de treinamento) e as subjetivas (distanciamento entre os
guerrilheiros e os “camponeses”) da Guerrilha.
Essa tese, confrontada por Nascimento (2004), levaria a uma revisão da
estratégia de poder por arte dos grupos de esquerda que se formariam nos
anos de 1980, seja no que se refere ao “novo sindicalismo” (CUT) e do
protagonismo político do Partido dos Trabalhadores que, a despeito da
diversidade de correntes de opinião existente em seu interior, tem na
denominada “via chilena para o socialismo”, ou seja, a “tomada” do poder
político a partir da conquista de uma maioria institucional, o seu paradigma
fundamental.
Vale ressaltar, no entanto, que diferente do que defende Nascimento
(2000, 2004), a revisão sobre o caráter da revolução brasileira não se deu
apenas pelos setores de “fora” do PC do B. Pesquisando sobre a linha política
adotada pelo partido desde a Guerrilha até a redemocratização em 1985, Sales
(2008) afirma que havia uma reorientação política dos comunistas. Utilizando
como fonte as páginas do jornal oficial do PC do B, A Classe Operária, o autor
apresenta as três bandeiras do partido, quais sejam, a defesa de uma
Assembléia constituinte livremente eleita, abolição de todos os atos e leis de
exceção e anistia geral.
Esse debate na esquerda, sobre o legado e a relevância da Guerrilha,
nos faz novamente pensar sobre uma questão levantada por Pollak (1989): a
do enquadramento da memória. Para o autor, a memória deve ser entendida
como uma “operação coletiva dos acontecimentos e das interpretações do
passado que se quer salvaguardar”. Tal enquadramento se dá de diversas
maneiras, mas dentro de dois elementos fundamentais. Em primeiro lugar, o
“enquadramento da memória se alimenta do material fornecido pela história”
num processo constante de disputa do passado, reinterpretando-o “em função
dos combates do presente e do futuro”. (POLLAK: 1989, p. 9-10).
Outro elemento do enquadramento da memória diz respeito à
necessidade da credibilidade daquilo que se pretende salvaguardar, de modo a
transformar essa memória “selecionada” em um instrumento de coesão e de
identidade do grupo, posto que toda organização política, por exemplo –
sindicato, partido político etc. –, veicula seu próprio passado e a imagem que
forjou para si”. Além disso, o trabalho de enquadramento da memória “tem
seus atores profissionais da história das diferentes organizações de que são
membros” (POLLAK: 1989, p.10).
Podemos encontrar também essa perspectiva em Le Goff (1994) quando
este faz a defesa de que a memória se serve da história, “salvando o passado
para servir ao presente e futuro”. E complementa, afirmando que os
historiadores devem “trabalhar de forma que a memória coletiva sirva para a
libertação e não para a servidão dos homens”. (LE GOFF: 1994, p. 477).
Nos combates e disputas em torno da memória, podemos perceber que,
apesar das disputas internas que levaram a cisões e expulsões do partido,
muito em função do “balanço crítico” em torno da avaliação da Guerrilha, como
nos indica Reis Filho (1985), para o PC do B a memória da Guerrilha e de seus
heróis deve ser vista, apesar da derrota militar, como uma vitória política, como
uma “glória, que caiu de arma na mão naquele campo de batalha da luta de
classes, no Araguaia – ponto alto de referência da luta revolucionária e
libertadora de nosso povo4. Nessa homenagem a Maurício Grabois, dirigente
do PCdoB morto pelas forças do Exército, está claro o sentido, por parte do
dirigente do partido, de mitificar a “morte do herói”, de construir, portanto, uma
história que legitimaria a opção pela Guerrilha. É uma imagem construída para
si.
A análise que fazemos dos discursos produzidos no documentário
“Araguaia Campo Sagrado” tem como perspectiva metodológica os dizeres de
Peter Burke, quando este afirma que
“as imagens não são nem um reflexo da realidade social nem
um sistema de signos sem relação com a realidade social, mas

4
Trecho de um artigo de Diógenes Arruda, dirigente do PC do B, publicado em A Classe
Operária, outubro de 1979, sobre Maurício Grabois, líder máximo da Guerrilha do Araguaia.
ocupam uma variedade de posições entre esses extremos.
Elas são testemunhos dos esteriótipos, mas também das
mudanças graduais , pelas quais indivíduos ou grupos vêm o
mundo social, incluindo o mundo da imaginação”. (BURKE:
2004, p.232) [grifos meus]

Alguns cuidados apresentados pelo autor nos serviram de alerta quando


da produção deste artigo. Primeiro, reconhecer que “as imagens dão acesso
não ao mundo social diretamente, mas sim a visões contemporâneas daquele
mundo”. Além disso, é preciso contextualizar o testemunho das imagens,
reconhecendo as influências culturais, políticas e econômicas na produção,
circulação e recepção das mesmas. Por fim, adverte, “uma série de imagens
oferece testemunho mais confiável do que imagens individuais” (BURKE: 2004,
p. 236-237).

Memórias e Narrativas sobre a Guerrilha do Araguaia

As resoluções contidas no documento Guerra Popular: Caminho da Luta


Aramada no Brasil, aprovado pelo Comitê Central do PCdoB em janeiro de
1969, definem alguns princípios que nos ajudam a entender a organização da
guerrilha. Seria uma luta armada “eminentemente popular” sendo “o interior o
campo propício à guerra popular” por representar “um grande potencial
revolucionário (...) capaz de fornecer a massa principal dos combatentes da
guerra popular”. Além disso, “A tarefa de derrotar inimigos tão poderosos
encerra enormes dificuldades e, por isso, demandará um período longo” 5.
Dessa forma, o interior, o envolvimento direto do povo e a paciência para a
preparação de uma guerra prolongada fazem do Araguaia um local apropriado
para a instalação de bases guerrilheiras. Além disso, na guerra popular
defendida pelo PCdoB um protagonista até então ausente das teorias
marxistas revolucionárias mais comumente defendidas por partidos e
organizações de esquerda entra em cena como sujeito revolucionário, tão bem
estudado por Eric Wolf: o camponês e suas revoluções no século 20 (Wolf,

5
Guerra Popular - Caminho da luta armada no Brasil (1969). Centro de Documentação e
Memória Fundação Maurício Grabois. Disponível em:
<http://grabois.org.br/portal/cdm/noticia.php?id_sessao=49&id_noticia=3844> Acesso em: 12
de jul. 2013.
1985), a exemplo da Chinesa, que seria a grande fonte de inspiração para o
PCdoB. Para Rodrigo Peixoto, que participou como representante do Museu
Paraense Emílio Goeldi do Grupo de Trabalho Tocantins (GTT) 6, a decisão do
governo Médici em utilizar “(...) de todos os meios para eliminar, sem deixar
vestígios, as guerrilhas rurais e urbanas, de qualquer jeito, a qualquer preço”
(Peixoto, 2011, p. 481), resultou não só na execução de muitos guerrilheiros,
como na prisão de camponeses considerados próximos aos combatentes do
PCdoB. Em um dos muitos relatos de sobreviventes podemos observar o
significado da repressão à guerrilha na visão dos camponeses do Araguaia:
Fiquei 23 dias preso, apanhando, bebendo água de sal, no
formigueiro, junto com o Beca, Zé Maria, Zé Novato,
Domiciano, Zé Graça e Raimundo Preto. Fui preso em casa, no
Centro Novo, região do Cajueiro, na região de São Geraldo.
Chegaram às 10 horas do dia e aí procuraram se o pessoal da
mata [guerrilheiros] tinha andado na minha casa. Eu disse: –
Andaram... (...) Aí eles falaram se eu podia dar uma palavra na
Base de Xambioá. Eram mais ou menos uns 15 soldados,
sargento, o doutor chefe, o doutor Jardim. Eu disse: – Posso
sim. Aí telefonaram para lá, para o helicóptero me buscar. (...)
Troquei a roupa, foi quando ligeiro o helicóptero veio chegando.
Embarquei no helicóptero. Quando chegou em Xambioá, com a
distância de uma braça do chão, me empurraram. Já caí nos
pés dos homens. Do Romeu, do Magno e do João. Esses eram
que ficavam na base só pra bater em gente. Daí pra cá eu não
falei mais nada. Era só na pancada e na pesada 7. [grifo meu]

O depoimento do camponês ‘Dotorzinho’ mostra a disposição do aparato


repressivo montado pela ditadura para aniquilar o movimento guerrilheiro
organizado pelo PCdoB na região Araguaia. Quando os primeiros guerrilheiros
chegaram à região, em 1966 8, o Exército já havia preparado uma espécie de

6
O GTT (Grupo de Trabalho Tocantins) funcionou até maio de 2009, quando foi reestruturado,
dando origem ao Grupo de Trabalho Araguaia (GTA). O objetivo do GTT era o de “localizar,
recolher e identificar os corpos de desaparecidos durante a Guerrilha do Araguaia”. Fonte: Blog
do Planalto, 5 de maio de 2011. Disponível em: <http://blog.planalto.gov.br/novo-grupo-de-
trabalho-vai-ampliar-busca-a-desaparecidos-no-araguaia.html> Acesso em 8 de jun. 2013.
7
Depoimento de “Dotorzinho”, camponês morador de São Domingos do Araguaia, concedido a
Rodrigo Peixoto em agosto de 2010. Citado em: PEIXOTO, Rodrigo. Memória Social da
Guerrilha do Araguaia e da guerra que veio depois. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi.
Ciências Humanas. Belém, vol. 6, n.3, set. – dez. de 2011, p. 495.
8
Ainda segundo Rodrigo Peixoto, citando os dados recentes publicados pela Secretaria
Nacional dos Direitos Humanos, “Osvaldo Orlando da Costa, o ‘Osvaldão’, foi o primeiro
integrante do PC do B a se instalar na região, em 1966. Em 1968, já se compunha um grupo de
15 militantes. No início de 1972, às vésperas da primeira expedição do Exército, eram quase
70. In: BRASIL. Secretaria Especial de Direitos Humanos da Presidência da República. Direito
à Memória e à Verdade. Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos. Brasília:
“dossiê” sobre o comunismo no Brasil. Denominado “Inquérito Policial Militar
(IPM) nº 709” 9, o “dossiê” resultou na publicação, em 1967, de quatro volumes
cujo objetivo era estudar as origens, o funcionamento, as diretrizes e as formas
de ação dos grupos comunistas em atuação no Brasil.
Numa dessas publicações, são analisadas uma série de resoluções de
partidos e organizações comunistas. Citando fragmentos da Resolução Política
do V Congresso do PCB, realizado no Rio de Janeiro, em 1960, o IPM nº 709
do Exército aponta duas posições políticas no interior do PCB que teriam
desdobramentos nos anos seguintes ao golpe civil-militar de 1964. Enquanto o
V Congresso afirma que “nas condições atuais do Brasil e do mundo, existe a
possibilidade real de que a revolução (...) atinja seus objetivos por um caminho
10
pacífico” , a linha adotada pelo Comitê Central do PCB logo após o golpe de
março de 1964 seria a de autocrítica em relação ao “pacifismo” predominante
na medida em o partido não havia se preparado “(...) para enfrentar o emprego
da luta armada pela reação” 11.
Analisando um outro documento, agora a resolução política do Comitê
Central do PCB no Rio Grande do Sul, os militares apontam para a perspectiva
que aos poucos, segundo a interpretação do IPM nº 709, seria a nova
tendência predominante no partido:

Os comunistas entendem que a luta armada revolucionária


deve estar vinculada a todas as formas de luta de massas (...).
Sem uma base de massas, organizada e combativa, o
movimento armado não terá condições para eclodir ou ficará
demasiado vulnerável diante do inimigo. (...) A autodefesa
armada constituiu uma das formas de preparação para a luta
armada, à qual precisamos dedicar a atenção que merece.
Especialmente nas zonas rurais, é indispensável proteger os
camponeses, na luta por suas reivindicações, contra a violência
dos latifundiários e de seus mercenários, uniformizados ou
não” 12.

Secretaria Especial de Direitos Humanos, 2007, p. 195. Citado por PEIXOTO: 2009, op. cit., p.
480.
9
Inquérito Policial Militar nº 709. O comunismo no Brasil: a ação violenta. 4º vol. Rio de
Janeiro: Biblioteca do Exército – Editora, 1967.
10
Idem, p. 372.
11
Idem, p. 373.
12
Idem, p. 374.
As citações acima, contidas no 4º volume do Inquérito Policial Militar de
nº 709 nos ajudam a compreender algumas atitudes de radicalidade tomadas
pelo aparato repressivo, radicalidade aqui entendida como sinônimo de
violência e intransigência do regime autoritário em relação aos seus opositores,
quaisquer que sejam suas origens ideológicas, já que quase todos eram
tratados como “inimigos da revolução” ou “agentes da subversão”, não
importando se eram estudantes, padres, freiras, agentes pastorais, operários
ou camponeses. Nos ajudam a entender também a disputa política no interior
do PCB entre os setores que permaneceriam optando pela “via pacífica” e
outros, como o PCdoB e a AP que na leitura dos militares “manifestavam-se
francamente por uma ação violenta para a rápida implantação do socialismo
brasileiro”13. Chama a atenção também a preocupação dos comunistas
gaúchos quanto a necessidade de organização de autodefesas armadas,
especialmente nas zonas rurais para proteger os camponeses, o que nos
remonta a um movimento social muito importante antes do golpe de 1964: as
Ligas Camponesas.

Surgidas na conjuntura dos anos de 195014, por “iniciativa dos próprios


camponeses do Engenho Galiléia” (Julião, 1962, p.24.), em Pernambuco, as
Ligas Camponesas protagonizaram, em vários estados brasileiros, diversos
movimentos de disputa pela terra. Segundo Martins (2011, p.108), as ligas
surgiram como um “movimento religioso e legalista”. No entanto, em vários
momentos, os movimentos camponeses assumiram um caráter de
resistência15, como no conflito de Trombas, ocorrido em meados dos anos de
1950, ao norte do atual estado de Goiás, num território de conflitos motivados
por grilagem e especulação imobiliária de terras devolutas. Os desdobramentos
dos conflitos deram origem a chamada “República Socialista de Trombas”,

13
Idem, p. 375.
14
Para Clodomir Santos de Moraes, em artigo publicado em 1969, as Ligas ressurgiram em
1955, pois já existiam em décadas anteriores, como “organizações-apêndices da estrutura
unitária e centralizada do Partido Comunista” (p. 23). Cita, por exemplo, a atuação do
pernambucano José dos Prazeres e sua experiência tanto no anarcossindicalismo dos anos de
1920 quanto no PCB, que abandonara em 1947 para atuar “na mobilização dos trabalhadores
rurais, através da Liga Camponesa de Iputinga”. Cf. MORAES, Clodomir Santos de. História
das Ligas Camponesas do Brasil. In: STEDILE, João Pedro (org.) História e Natureza das Ligas
Camponesas – 1954-1964. 2ª edição. São Paulo: Expresão Popular, 2012, p. 28.
15
ESTEVES, Carlos Leandro da Silva. Nas trincheiras: luta pela terra dos posseiros em
Formoso e Trombas (1948-1964). Uma resistência ampliada. Dissertação (Mestrado em
História Social), Niterói (RJ): Universidade Federal Fluminense, 2007.
território com um certo grau de autonomia, “no qual se podia entrar e do qual
não se podia sair sem salvo-conduto” (Martins, 2011, p. 110-111) e que só
seria ocupado militarmente em 1970, seis anos depois do golpe de 1964, em
que

Durante cerca de vinte anos os camponeses de Trombas


estiveram politicamente organizados em território próprio,
imune ao poder do Estado. Tratava-se da tática política usada
na Guerra da Coréia, da mesma época, que foi a de conquistar
e liberar territórios, ali instituindo a presença organizada de
camponeses armados” (MARTINS: 2011, p. 111).

Também na década de 1950, mais precisamente em 1957, um


movimento camponês eclodiu no estado do Paraná. Ali também se disputava
terras devolutas, num processo de falsificação de títulos de propriedade e
grilagem de terras. Embora a prática de grilagem no Paraná existisse desde o
século dezenove, tal prática restringia-se aos círculos dos próprios fazendeiros
que acabavam resolvendo as diferenças na justiça. Agora a disputa era entre
desiguais, fazendeiros e posseiros sendo que os últimos em condições
desiguais de acesso ao poder judiciário. A mesma propriedade era vendida
várias vezes, prática que fazia da terra um instrumento de poder político e
econômico. Inconformados com a possível perda de suas posses, os
camponeses iniciaram um movimento armado de grandes proporções. Nos
dizeres de José de Souza Martins:
Os camponeses do sudoeste do Paraná deram a sua revolta
um formato claramente antagônico em relação à ordem jurídica
e política (...). Ocuparam cidades, destruíram arquivos da
companhia de terras que os fraudara, tomaram uma estação de
rádio, prenderam e destituíram autoridades e constituíram
juntas governamentais e locais. E, por fim, retiveram o próprio
secretário de segurança pública do estado”. (MARTINS: 2011,
p. 112).

Para o Exército, que classifica esses movimentos camponeses, incluindo


aí as ações das Ligas Camponesas, como exemplos de guerrilhas rurais, cujas
ações teriam por objetivo a tomado de poder por meio insurrecional, o
problema da disputa de terras “resultante da valorização de determinadas
regiões do país, é perfeitamente compreensível e se coloca nos quadros dos
casos judiciais, com as influências políticas e econômicas que sempre
despertam”16. Em outras palavras, um correto ordenamento jurídico e
econômico e o devido controle político da “questão agrária”, a exemplo da
criação do Estatuto da Terra e do INCRA, resolveriam os conflitos no campo. O
problema, ainda segundo a visão do Exército, seria “a infiltração comunista e a
mobilização militar de elementos que se adestram na experiência da disputa
local para a futura formação de grupos guerrilheiros capacitados à luta
revolucionária”17.
No caso da Guerrilha do Araguaia, tal preocupação do Exército mostrou-
se totalmente descabida. Boa parte dos quase 70 guerrilheiros que estavam no
Araguaia quando da primeira investida do Exército contra a Guerrilha, no início
de 1972, era composta de jovens estudantes universitários, muitos dos quais
considerados “subversivos” em função da participação no 30º Congresso da
UNE, em Ibiúna18. Ainda que parte dos guerrilheiros tenha feito treinamento
militar na China19, a “infiltração comunista” temida pelo Exército não ocorreu,
embora a convivência dos militantes com os camponeses tenha gerado bons
relacionamentos, muito em função do tratamento dispensado aos camponeses
por parte dos comunistas, mas nada que configurasse uma cooptação de
camponeses à guerrilha ou de uma “lavagem cerebral” como gostavam de
acreditar os oficiais do Exército.
Essa boa relação estabelecida pelos comunistas com os moradores do
Araguaia pode ser compreendida a partir de diversos depoimentos, como o do
camponês João de Deus, falando de uma das principais estratégias de
aproximação da guerrilha com os habitantes do Araguaia:
Eles eram muito prestativos. Tinha uma mulher com
hemorragia, lá no Igarapé dos Perdidos. Aí foi lá o Juca, mais o
Paulo. Aí medicaram ela, só deram uma injeção e ela ficou
boa. Depois ela adoeceu de novo aí trouxeram ela pra sede
deles aqui na beira do Caiano (igarapé dos Caianos) e eles
trataram dela.20

16
Inquérito Policial Militar nº 709: 1967, op. cit., p. 392.
17
Idem, ibidem.
18
BRASIL: 2007, p. 195. Citado por PEIXOTO: 2009, op. cit., p. 480.
19
Segundo levantamento feito pelos jornalistas Eumano Silva e Taís Monteiro, do Estado de
São Paulo, 15 militantes do PCdoB teriam tido treinamento militar em Pequim. MORAIS, Taís;
SILVA, Eumano. Operação Araguaia: os arquivos secretos da guerrilha. 2. ed. São Paulo:
Geração Editorial, 2005, p.42.
20
Depoimento de João de Deus no documentário Araguaia: campo sagrado.
No depoimento de João de Deus é possível perceber a falta de
assistência básica de saúde aos moradores do Araguaia e que o socorro
médico prestado aos camponeses por parte dos guerrilheiros formava entre
eles um forte elo de ligação. Além disso, João de Deus era morador do antigo
povoado Caianos, fundado pelo guerrilheiro Paulo Mendes Rodrigues em finais
da década de 1960, transformado posteriormente em Boa Vista pelo Exército
(Figueira, 1986,p.28). Nessa área funcionou um dos três núcleos ou
destacamentos montados pelo PCdoB para a preparação da guerrilha, o
destacamento C, ou Caianos. Havia ainda o destacamento B também
denominado Gameleira, entre São Geraldo e São João, e o destacamento A ou
Apinajés, em São João do Araguaia.
O exército iniciou as operações militares em março de 1972 e contou
com a coordenação de um personagem que se tornaria símbolo da repressão à
Guerrilha, o então capitão do exército Sebastião Rodrigues de Moura, o
“Sebastião Curió”21. Usando o nome de doutor Luchini, Curió se passava por
engenheiro do INCRA para se aproximar dos camponeses e acessar as áreas
onde estariam os guerrilheiros. É ele quem assina o relatório final da Operação
Sucuri, em 24 de maio de 1974, que coordenara diretamente, e que resultou no
extermínio dos guerrilheiros que ainda estavam na mata e não conseguiram
fugir.
A caça aos comunistas foi feita com a mobilização de um grande
contingente de tropas numa região de difícil acesso. Há divergência quanto ao
número exato de soldados, variando de dez a vinte mil, o que mostra o temor
das forças de segurança em relação à Guerrilha. Para movimentar as tropas,
facilitar o cerco aos guerrilheiros e ocupar militarmente a região do bico do
papagaio, o Exército abre três estradas operacionais (OP 1, OP 2 e OP 3) em
que o INCRA atuava no sentido de elaborar projetos para atrair colonos para a
área. A OP 2, que liga Marabá a São Geraldo do Araguaia, é hoje uma rodovia
estadual, a PA 153.

21
“Depois da guerrilha, coordenou as ações de limpeza da área para apagar os sinais do
confronto. Adotou o apelido de Major Curió e, por meio da coação e pelos pistoleiros a seu
serviço, transformou-se no homem mais temido da região. Distribui lotes de terra par
colaboradores e recebeu o garimpo de Serra Pelada para administrar. Fundou a cidade de
Curionópolis e elegeu-se prefeito três vezes. Também foi eleito deputado federal por vários
mandatos, o último em 2004. In: MORAIS, Taís; SILVA, Eumano: 2005, op. cit., p. 594.
A proximidade com os guerrilheiros é narrada em diversos momentos.
Para Dona Marcolina, camponesa viúva cujo marido fora preso e torturado,
“esse povo que disseram que era da mata [guerrilheiros], ia muito lá em casa.
Dei muito de comer a eles. Eu só conhecia bem o Murilo que morava bem aí
assim, passou mais de ano, eu vi o Murilo, o Zequinha e o Flávio. Eles ficaram
muito tempo com a farmácia, trataram do meu irmão que estava com curuba”.
Nessa mesma linha, seu Beca, camponês, fala da assistência prestada pelos
guerrilheiros, principalmente pela Dina22 que, ao lado de “Osvaldão”, foi uma
das mais destacadas guerrilheiras entre os camponeses:
o povo chegava lá em casa, já levados pela Dina que a Dina
era conhecida em São Geraldo. A minha mulher tava com
dificuldade pra ganhar neném. O farmacêutico não deu mais
jeito. Aí falaram olha tem uma mulher assim, mas eu disse ela
não vem, vem sim que ela é muito caridosa. Aí fui atrás dela
que veio na mesma hora, mandou comprar a injeção, aplicou e
a mulher despachou23.

Os depoimentos dos moradores confirmam o pioneirismo de “Osvaldão”


na chegada à região. Segundo a camponesa Madalena “primeiramente chegou
o Osvaldão por aqui, ele conheceu meu pai ficou amigo do meu pai, morando
com meu pai, mas ninguém sabia quem ele era não”24. Para o barqueiro
Joaquim Borges Osvaldão era “um bom companheiro de viagem, embarcava
com a gente, fazia a comida no barco, era muito distinto com a gente”. Mais
adiante, afirma que “ele ficava um pouco aqui depois ia embora pra mata. Ele
dizia que mariscava gato [caçava onça], já que naquele tempo pele de gato
dava onça. Ele dizia que mariscava gato”25.
A repressão durante a “caça aos comunistas”, entre os anos de 1972 e
1974, e nos anos que se seguiram foi intensa. O “mateiro” Joaquim Borges
conta que “bateram e mataram muita gente porque acharam que eles davam

22
Dinalva Oliveira Teixeira, a Dina, embora formada em Geologia, ficou conhecida na região do
Araguaia como parteira, assistindo a várias mulheres. Os relatos sobre seu desaparecimento
são contraditórios. Acredita-se que tenha sido morta pelos militares num ataque ao
destacamento C, em dezembro de 1973. In: MORAIS e SILVA: 2005, op.cit., p. 568-569.
23
Depoimento de Seu Beca documentário Araguaia: campo sagrado.
24
Depoimento de Dona Madalena no documentário Araguaia: campo sagrado.
25
Depoimento de Joaquim Borges no documentário Araguaia: campo sagrado.
cobertura pro ‘povo da mata’” 26. Essa “muita gente” a que se refere o “mateiro”
Borges significa tanto o “povo da mata”, como eram conhecidos os
guerrilheiros, como os próprios camponeses. Na memória de muitos moradores
do Araguaia, principalmente das localidades próximas aos núcleos da guerrilha,
um gesto de “dar de comer” ao “povo da mata” era motivo suficiente para o
Exército “vim e pegar”27, isto é, prender o suspeito de ser um “colaborador da
Guerrilha”. Dona Dora, camponesa, esposa de ex-mateiro preso, conta que
“depois de seis anos o homem perdeu a mente. Até hoje está assim, não sai de
casa pra lugar nenhum, nem pra tirar o dinheirinho dele” 28. Para seu Joaquim,
camponês, “o sofrimento aqui foi triste, teve gente que ficou paralítico. O Zé
29
Novato foi preso aqui, apanhou tanto que ficou paralítico” .
Apesar da violência sofrida por muitos camponeses em razão da
repressão à guerrilha, grande parte dos depoimentos dos sobreviventes não os
vê como “culpados”. A acusação de terroristas feita pelos militares, não parece
convencer aos camponeses. Para seu Beca, camponês,
“Eles [guerrilheiros] não eram terroristas, eram gente muito
sofrida. Eles diziam pra mim que tava correndo atrás da
liberdade por que nós vivia num cativeiro, vivia num país cativo.
Nós vivia naquele regime militar, então um país que ninguém
podia conversar. Mas ninguém acreditava. Eles dizia que era
pra gente ir pro mato mas ninguém quis ir não” 30. [grifo meu]

O depoimento mostra, por um lado, a simpatia por quem “tava correndo


atrás da liberdade”. Mas mostra também a dificuldade dos militantes do PC do
B em tornar prática a teoria de “guerra popular”, já que ninguém quis “ir pra o
mato”, isto é, juntar-se ao “exército popular” almejado pelo PC do B.
Por outro lado, o exército não conseguia fazer-se compreender.
Utilizava a mesma prática de terror psicológico e de guerra de propaganda para
estigmatizar os adversários da ditadura como sendo “terroristas”. Segundo a
camponesa Dora, “o povo dizia que eles eram terroristas. E eu lá sabia o que
era terrorista? Pra mim eles eram gente boa demais. Quando adoecia tratavam

26
Depoimento de Joaquim Borges no documentário Araguaia: campo sagrado.
27
Depoimento de Dona Madalena, camponesa, filha de preso e torturado, no documentário
Araguaia: campo sagrado.
28
Depoimento de Dona Dora, no documentário Araguaia: campo sagrado.
29
Depoimento de seu Joaquim, no documentário Araguaia: campo sagrado.
30
Depoimento de seu Beca, no documentário Araguaia: campo sagrado.
31
de nós” . O depoimento do camponês Joaquim, vai na mesma direção: “uma
oisa que eu nem sei que diabo é terrorista. Eu pelo menos não sabia. Eu nunca
fui no estrangeiro”32.
Os camponeses, embora tivessem estabelecido boa relação com os
combatentes do PC do B, certamente não compreendiam as “questões de
fundo” que motivaram o deslocamento dos militantes de centros urbanos para a
região do bico do papagaio. O curto período de permanência na área e o
aparato repressivo montado pela ditadura dificultaram um maior envolvimento
dos camponeses com a estratégia da “guerra prolongada” do partido. Para o
camponês Messias, a época da guerrilha foi de “um sofrimento terrível. A gente
não podia abrir o bico e nada disso, Tinham uns puxa-saco por aí que
dedavam, que dizia que nós era terrorista, comunista, subversivo, satanás de
vida”.33
Os camponeses estavam fortemente marcados por uma cultura mística,
religiosa, enraizada num cristianismo de base popular34, como podemos ver na
fala do camponês Beca, ao referir-se a guerrilha como uma” guerra suja” na
qual passara “quarenta e cinco dias preso pegando peia, no almoço e janta. Fui
torturado, fui massacrado (...)”. Seu Beca acredita que conseguiu sobreviver
35
depois de orar a Deus e pedir “um voto para o Divino Espírito Santo” . Nesse
sentido, como bem analisou Carlos Rodrigues Brandão, as torturas sofridas e o
“milagre popular” da sobrevivência pode ser compreendido como a retomada
“da ordem natural das coisas da vida do fiel, da comunidade ou do mundo, por
algum tempo quebrada”. Dessa forma, seu Beca acredita ter vivido uma
“provação consentida por deuses e santos ao fiel devedor e justo”, o Divino
Espírito Santo, salvando-o do “efeito direto da invasão do Mal sobre a ordem
terrena” (BRANDÃO: 1986, p. 131).

31
Depoimento de dona Dora no documentário Araguaia: campo sagrado.
32
Depoimento de seu Joaquim no documentário Araguaia: campo sagrado.
33
Depoimento de Messias no documentário Araguaia: campo sagrado.
34
BRANDÃO, Carlos Rodrigues. Os deuses do povo: um estudo sobre a religião popular. São
Paulo; Brasiliense, 1986.
35
Depoimento de seu Beca
Considerações finais

Ainda existem algumas resistências entre os historiadores em relação ao


uso de fontes cinematográficas em suas pesquisas. Falando de várias
reviravoltas no uso dos filmes como evidência aos historiadores, dos anos de
1970 e 1980 quando há vários trabalhos na área, aos anos de 1990 quando há
muita desconfiança nessa perspectiva metodológica, para o historiador Marc
Ferro, autor de Cinema e História, há um fenômeno novo que é “a
instrumentalização do vídeo para finalidades de documentários, isto é, sua
utilização para escrever a História do nosso tempo, as enquetes fílmicas que
lançam mão da memória e do testemunho oral são numerosas” (FERRO: 2012,
p. 10).
O filme tanto pode “contar uma história” quanto criar um acontecimento.
Ao analisar o filme do diretor polonês Andrzej Wajda, Danton, Robert Darnton
(1990, p. 29-36) apresenta as diferentes interpretações e desdobramentos na
arena política francesa do final dos anos de 1980. Danton e Robespierre, suas
histórias e as memórias construídas sobre eles, à esquerda e à direita, entre
socialistas, comunistas e gaullistas, foram recriadas no filme, independente da
vontade do diretor. A associação de Danton, liderança importante da revolução
de 1789, com o líder do Solidariedade polonês, Lech Walesa, o entusiasmo da
direita francesa com a dessacralização de Robespiere, descrito como um
insensível tirano, para espanto da esquerda, são exemplos da estreita relação
entre a importância historiográfica do cinema, seu usos e, por vezes, seus
abusos. Nessa perspectiva, consideramos o cinema como produto da
sociedade que o produziu, como testemunho intencional, nada inocente,
servindo de referência importante para o historiador justamente por isso.
Assim, como podemos ver, o documentário analisado nos serve de fio
condutor para a narrativa sobre a Guerrilha do Araguaia, episódio tão
fortemente silenciado. É a materialização dos muitos combates e disputas da
memória ob o ponto de vista daqueles que sofreram ameaças, torturas e
perseguições. Os personagens falam de suas experiências, de seus mortos, de
seus sonhos, de seu passado e de suas esperanças, na luta permanente da
memória contra o esquecimento.
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