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PARTE II A COMUNIDADE EUROPEIA 56. Preliminares Como se viu atrés, a Uniaio Europeia e as Comunidades Euro- peias nao se confundem. Por isso, estudada a Unido Europeia em geral, terfamos agora que nos debrugar sobre as Comunidades Europeias. As Comunidades hoje existentes sio duas, como atras expli- cdmos: a CE e a CEEA. Todavia, nds s6 estudaremos a CE, e pelas seguintes razdes: porque é a mais importante das duas, ainda mais apés 0 TUE; porque os Tratados CE e CEEA sao muito semelhantes no modo de organizacfio e de funcionamento de cada uma das duas Comuni- dades; e porque a ordem natural das coisas levard proximamente a absorgaio da CEEA pela CE, enquanto, também naturalmente, esta nao se venha a dissolver na UE. Isso nao significa que, excepcionalmente, e quando isso se jus- tificar, nto venhamos a fazer referéncia 4 CEEA e, concretamente, nao nos refiramos 4s Comunidades no plural, para abranger também esta. 181 CAPITULO I CARACTERIZACAO GERAL DA COMUNIDADE EUROPEIA Bibliografia especial: os capitulos sobre a matéria constantes de qualquer obra geral sobre as Comunidades Europeias, ¢ L.-J, CONSTAN- TINESCO, La nature juridique des Communautés européennes, Litge, 1980; H. J. Kusters, Fondements de la CEE, Paris, 1990; J. L. QUER- MONNE, Le systéme politique européen. Des Communautés européennes &1'Union européenne, Paris, 4.° ed., 2001. 57. A nocao de “Comunidade” Nao foi por acaso que nos anos 50 se escolheu a designagao de Comunidade para qualificar as trés Comunidades que vieram a ser criadas, mais as duas Comunidades que nao chegaram a ver a luz do dia. Por tras dessa designagao havia toda uma carga filoséfico- -juridica que € indispensdvel ter em conta para se compreender o processo da integragao europeia. Explicdamos tudo isso no nosso Manual de Direito Internacional Ptiblico em co-autoria com ANDRE GONGALVES PEREIRA, para onde remetemos 0 leitor*6, e j4 tivemos que aflorar esta matéria neste livro. De qualquer modo, sintetizare- mos aqui 0 essencial do que nos interessa. O conceito de Comunidade, valorizando a ideia de solidarie- dade e de coesio entre os seus membros, como espelho da preva- léncia dos interesses que sao comuns a eles sobre os interesses que 0s separam, impde um poder integrado, que seja, simultaneamente, a expressao das referidas ideias de solidariedade e de coesaio e 0 256 Pgs, 32 e segs. 183 A Comunidade Europeia modo de afirmagao destas, ¢ que se traduza em relagdes de subordi- nagao entre a Comunidade e os seus membros, melhor, subordinagao dos Estados membros da Comunidade em relagéo 4 Comunidade. A nogao de Comunidade rompe, portanto, com a nogao de Sociedade Internacional (mal designada vulgarmente por Comu- nidade Internacional), que, na formulagao classica que Ihe deu o Direito Internacional, assentava em interesses predominantemente conflituantes entre os Estados, como fruto do individualismo inter- nacional destes, expresso nas respectivas soberanias absolutas, ou ilimitadas, ou indivisiveis. Ao Direito Internacional assim concebido, portanto, como uma Ordem Juridica de mera coordenagdo horizon- tal de soberanias estaduais, opds 0 Direito das Comunidades Euro- peias, logo quando da criag&o destas, uma Ordem Juridica essen- cialmente de subordinagdo dos Estados membros 4 Comunidade (de “soberanias normativamente subordinadas”, como mostramos na Introdugao e na Parte I), sem prejuizo de nao ignorar areas e instru- mentos de mera cooperagao entre aqueles, entre si, e entre aqueles e a Comunidade. E nesta coexisténcia, na Ordem Juridica Comunité- ria, de subordinag&o e cooperagdo, que se funda aquilo que atras descrevemos como sendo o motor da integragao: ou seja, a tensao dialéctica, o dualismo, a bivaléncia, entre integracao e interestadua- lidade, que, como explicamos, tem raiz federal. 58. A criag&éo das Comunidades pelo método da integragao fun- cional Como jd ficou demonstrado na Introdugao deste livro, inclu- sive com apoio num estudo desenvolvido que ha anos levamos a cabo acerca dessa matéria*5’, por duas vezes se tentou no século XX alcangar a integragao europeia segundo o modelo americano, isto é, o modelo federal, que se traduziria na criagao de “Estados Unidos da Europa”. 257 V_a nossa dis’ ‘agdo de doutoramento, pgs. 115 € segs 184 Caracterizagao geral da Comunidade Europeia A primeira tentativa nesse sentido foi realizada com 0 Memo- rando Briand, do qual ja atrés falamos. Como entdo dissemos, ele nao foi por diante especialmente porque surgiu no inicio da grande depressao de 1929-32. A segunda tentativa traduziu-se na “Mensagem aos Europeus”, aprovada pelos representantes dos movimentos federalistas dos dezanove Estados que participaram no Congresso de Haia, de 8 a 10 de Maio de 1948. Esta tentativa fracassou porque 0 Reino Unido, exactamente para travar a concretizagdo das ideias aprovadas na- quele Congresso, promoveu a criagéo, em 1949, do Conselho da Europa, numa base de simples cooperagio intergovernamental. O método da integragéo global, pensado no Congresso de Haia, teve, pois, de ceder o lugar ao método da integragao funcional. Ou seja, abandonou-se o projecto de uma imediata integragao poli- tica, que assentaria numa integragao do conjunto global da Econo- mia, para se caminhar para uma integragao sectorial, ou seja, por sectores, e moldada por um figurino juridico de tipo supranacional. Era uma solugao pragmiatica: a divisao havida apés 0 Congresso de Haia mostrava que a Europa nao estava ainda preparada para se abalangar directamente a uma integragio global e politica. Foi nesse quadro que o Plano Schuman optou pelo método funcional, ao propor uma Comunidade s6 para 0 Carvao e 0 Ago. E, fracassada a tentativa de retomar 0 método global, quando do insu- cesso do projecto de criagéo da CDE e da ComPE, consolidou-se 0 método funcional através da criagao, em 1957, de mais duas Comu- nidades sectoriais, a CEE e a CEEA. Como ja se explicou atras, a criagéo da Unido Europeia pelo TUE, em 1992, veio trazer alteragdes ao método funcional na inte- gracdo europeia, ao criar a Uniao com um sentido ampio, que incluia nela as Comunidades Europeias. Dispunha, de facto, 0 artigo A (hoje, artigo 1.°), par. 3, do TUE, na sua versao inicial, que “A Uniaio funda-se nas Comunidades Europeias, completadas pelas politicas e formas de cooperagio instituidas pelo presente Tratado”. Desta forma, ficavam definidos os trés pilares da Unido. Todavia, nao é correcto afirmar-se que 0 método funcional tenha sido entao, e até hoje, definitivamente abandonado. De facto, e como ja estudamos, 185 A Comunidade Europeia as Comunidades continuam a ter autonomia e individualidade no seio da Uniao, formando um seu pilar préprio, o pilar comunitdrio, Como se mostrou, nem o Projecto de Constituigao Europeia, apro- vado pela Convengio sobre o Futuro da Europa, vem acabar totalmente com as Comunidades, embora as dilua muito na Unido. 59. A personalidade juridica da Comunidade Se, como se viu, a personalidade juridica da Unido suscita dtividas para alguns, mas nao para nds, o mesmo nao se passa com a Comunidade Europeia. De facto, o Tratado CE contém um preceito que reconhece, de forma expressa, personalidade juridica & Comunidade Europeia: é 0 artigo 281.° (ex-artigo 210.°). Sendo assim, a Comunidade tem de ser tratada pelo Direito como uma pessoa juridica, de natureza colectiva. 60. A capacidade juridica da Comunidade Mas qual é a capacidade juridica, de gozo e de exercicio, da Comunidade Europeia? Essa capacidade encontra-se condicionada por trés factores. Em primeiro lugar, como acontece com todas as pessoas colec- tivas, salvo com o Estado enquanto pessoa de Direito Constitucio- nal, que tem uma capacidade geral, a capacidade juridica da Comu- nidade Europeia est limitada pelo principio da especialidade. E 0 que dispde o artigo 5.°, par. 1, CE. Veremos isto melhor quando estudarmos, daqui a pouco, as atribuigdes da Comunidade. E claro que, dada a vastidao dos objectivos que o Tratado CE impée 4 Comunidade, sobretudo apés esta ter deixado de prosseguir apenas fins econémicos, nao é facil aplicar, na pratica, 4 Comuni- dade o principio da especialidade. Mas, a partida, este principio rege a capacidade juridica da Comunidade. O que significa que serdo invalidos os actos praticados pela Comunidade, melhor, pelos seus 186 io geral da Comunidade Europeia 6rgdos, fora das suas atribuigdes e para prosseguir objectivos que nio Ihe estdo confiados (ou que ainda nio Ihe estao confiados) pelo Tratado. Em segundo lugar, a capacidade da Comunidade esta condi- cionada pelo principio da competéncia de atribuigdo dos seus brgdos. Eo que estipula o artigo 7.° (ex-artigo 4.°), n.° 1, par. 2, cujo teor & o seguinte: “Cada Instituig&do actua nos limites das atribuigdes e competéncias que lhe sao conferidas pelo presente Tratado” (itélicos. nossos). Isto quer dizer que, para além de as Comunidades se encon- trarem limitadas pelo princfpio da especialidade das suas atribuigdes, os seus 6rgdos tém de se conter dentro dos limites da competéncia que os Tratados Ihes conferem. Mas se, pelas duas vias acabadas de referir, a Comunidade vé a sua capacidade demarcada e limitada, 0 Tratado admite a possi- bilidade de se fazer expandir a competéncia dos seus 6rgdos (nao as atribuigdes da Comunidade), para se adaptd-la As necessidades, em cada momento, da integragao. Ha dois meios pelos quais se conse- gue atingir esse resultado. Primeiro, o artigo 308.° CE, que contém uma cldusula que nao consta dos tratados institutivos das Organiza- ges Internacionais classicas, e pela qual 0 Conselho pode criar novos. poderes para os 6rgdos da Comunidade. Depois, a teoria dos poderes implicitos, tal como a conhecemos de outros ramos do Direito, inclusive do Direito Internacional. Adiante estudaremos esses dois meios. 61. Os objectivos prosseguidos pela Comunidade Até ao Tratado da Unido Europeia, a Comunidade Europeia prosseguiu apenas fins econdmicos. A prossecucao desses fins foi sendo alcangada 4 medida que se iam vencendo as sucessivas fases da integragao econémica: a zona de comércio livre, a unido adua- neira e 0 mercado comum. Sem irmos discutir se o mercado comum foi plenamente alcan- ¢ado — € questdo de que se ocupard 0 Direito Econémico da Uniao —, 187 A Comunidade Europeia o Tratado da Unido Europeia, em 1992, marcou, simultaneamente, a consumagao, em | de Janeiro de 1993, do “mercado interno” (con- ceito novo no Direito Econdmico da Integragao Europeia, e que fora criado pelo Acto Unico Europeu, de 1986) e a extensao dos objec- tivos da ex-CEE nao s6 a novos fins de indole econémica como também a fins de Ambito social, cultural e politico. Daf a alteragao da sua designagao para Comunidade Europeia (CE). Jé estudémos isso na devida altura. Por tudo isso, € muito amplo o leque de objectivos prosse- guidos hoje pela Comunidade Europeia. Se nao, vejamos 0 que dispée o artigo 2.° do respectivo Tratado: Artigo 2° A Comunidade tem como missao, através da criagio de um mer- cado comum e de uma unio econémica e monetiria ¢ da aplicagao das politicas ou acgdes comuns a que se referem os artigos 3.° e 4.°, promo- ver, em toda a Comunidade, 0 desenvolvimento harmonioso, equili- brado e sustentavel das actividades econdmicas, um elevado nivel de emprego e de protecedo social, a igualdade entre homens e mulheres, um crescimento sustentdvel ¢ nao inflacionista, um alto grau de compe- titividade e de convergéncia dos comportamentos das economias, um. elevado nivel de proteccao e de melhoria da qualidade do ambiente, 0 aumento do nivel e da qualidade de vida, a coesao econémica e social & a solidariedade entre os Estados-Membros (itdlicos nossos). Para o Tratado, os objectivos, ou fins, a prosseguir nao se con- fundem com os meios de os alcangar. De qualquer forma, desde 0 seu inicio o Tratado CE faz alguma confusao entre os fins e os meios, incluindo entre estes alguns dos que, manifestamente, so verdadei- ros objectivos da Comunidade. Vejamos 0 que disp6e 0 artigo 3.° do Tratado: Artigo 32 1. Para alcangar os fins enunciados no artigo 2.2, a acco da Comunidade implica, nos termos do disposto e segundo o calendario previsto no presente Tratado: a) A proibigao entre os Estados-Membros, dos direitos aduaneiros 188 Caracterizagao geral da Comunidade Europeia ¢ das restrig6es quantitativas A entrada e saida de mercadorias, bem como de quaisquer outras medidas de efeito equivalente; b) Uma politica comercial comum; c) Um mercado interno caracterizado pela aboligdo, entre os Estados-Membros, dos obstaculos a livre circulagdo de merca- dorias, de pessoas, de servigos e de capitais; d) Medidas relativas a entrada e circulagao de pessoas, de acordo com 0 disposto no Titulo IV; e) Uma politica comum no dominio da agricultura e das pescas; f) Uma politica comum no dominio dos transportes; g) Um regime que garanta que a concorréncia nao seja falseada no mercado intern h) A aproximagao das legislagdes dos Estados-Membros na me- dida do necessario para o funcionamento do mercado comum; i) A promogio de uma coordenagao entre as politicas de emprego dos Estados-Membros, com 0 objectivo de reforgar a sua efi- cécia, mediante a elaboragao de uma estratégia coordenada em matéria de emprego; j) Uma politica social que inclui um Fundo Social Europeu; 1) O reforgo da coesdo econdmica e social; 1D) Uma politica no dominio do ambiente; m) O reforgo da capacidade concorrencial da indtistria da Comu- nidade; n) A promogio da investigacdo e do desenvolvimento tecnolé- gico; 0) O incentivo a criagio e ao desenvolvimento de redes transeu- ropeias; p) Uma contribuigao para a realizagio de um elevado nivel de proteccio da satide; @ Uma contribuigao para um ensino e uma formacdo de quali- dade, bem como para o desenvolvimento das culturas dos Estados-Membros; r) Uma politica no dominio da cooperagao para o desenvolvi mento; 5) A associagao dos paises e territérios ultramarinos tendo por objectivo incrementar as trocas comerciais e prosseguir em comum 0 esforgo de desenvolvimento econémico e social; 1) Uma contribuigao para o reforgo da defesa dos consumidores; u) Medidas nos dominios da energia, da protecedo civil e do tu- rismo. 189 A Comunidade Europeia 2. Na realizago de todas as acg6es previstas no presente artigo, a Comunidade terd por objectivo eliminar as desigualdades e promover a igualdade entre homens e mulheres (itélicos nossos), Como se vé, aos objectivos de indole econémica, constantes das versdes iniciais do Tratado, 0 TUE acrescentou importantes objectivos de indole social, cultural e politica, que vao indicados por nds em itdlico258, 62. A natureza juridica da Comunidade: remissao Uma questéo que caberia esclarecer, chegados a este ponto, era o da natureza juridica da Comunidade Europeia. Todavia, tal como temos vindo desde sempre a fazer ao longo do nosso ensino, é mais adequado colocar-se essa interrogag’io a propésito do conjunto do sistema juridico da Comunidade Europeia. Por isso, a natureza juridica da Comunidade Europeia inferir-se-4 da natureza juridica do Direito Comunitario, sobre a qual nos debru- caremos adiante. 258 Assim, e de forma mais desenvolvida, os Comentérios CONSTANTINESCO CE © GRaBITZ/HILF aos preceitos em causa, com indicagiio de mais blbiografia selec- cionada, 190

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