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ie A DIMENSAO COTIDIANA NA ASSISTENCIA A SAUDE* [The daily dimension in the health assistance] ‘Marta M, Coetho Damasceno** ‘Regina Licla Mendonga Lopes" his Ermia ce Ofivera Souza"** Mana Francitta Frota Loureiro RESUMO: Anélise fenomenclégica da situagao vivencial dramatizada no filme "Um Golpe do Destino". Para tanto, foi utiizado 0 pensamento filosGtico de Martin Heidegger, expresso em Ser @ tempo. A partir das concepedes deste pensador, foram tecidas consideragées sobre a pratica assistencial de enfermagem. PALAVRAS CHAVE: Filosofia om Enfermagem; Assisténcia Satide; Enfermagem. Introdugo ‘Segundo Field e Morse (1985), os pesquisadores em fenomenologia podem iniciar seus estudos com uma interrogacao que 0s inquieta, e, também, a partir do olhar atentivo langado sobre uma poesia ou um filme. Inspiradas neste pensamento, reunimos notas de aula da Prof* Dr? Teima Donzellit para a andlise do filme “Um Golpe do Destino”com base, sobretudo, no pensamento filoséfico de Martin Heidegger A pelicula, baseada no livro de autoria de E. Resenbraum intitulado "A Taste of My Own Meaicin dirigida por Randa Hines e produzida por Laura Ziskin. O roteiro de Roberto Caswell apresenta William Hurt, como autor principal, no papel do Dr. Jack Mackee. ‘Com duracao de uma hora e vinte e és minutos, 0 {ilme tem come tema central as reagdes de um competente @ famoso citurgiao, Dr. Jack Mackee, que vivencia a experiéncia de tornar-se cliente devido'a um cancer de laringe. Tal experiéncia, que o obriga a conviver com outros clientes oncolégicos, bem como a vivenciar 0 cotidiano assistencial nao somente como médico, transforma-se em uma ligdo de vida, Decorrem, assim, significativas mudancas nas suas relagdes com 0 munde circundante-o ambiente com 0 qual estava familiarizado; o mundo humano - a convivéncia com as outras pessoas; © 0 mundo préprio - as relacdes consigo mesmo, Apresentando o Referencial Filosdfico Para melhor situar leitor, cabe-nos antes apresentar alguns matizes do pensamento de Martin Heidegger, sobre a existéncia humana, desenvolvido em Sere tempo (1993), produgao que marcou a histétia da filosofia contemporanea por sua originalidade e profundidade reflexivas Fecundado na fenomenologia husseriiana, Ser e tempo apresenta o projeto heideggeriano constituide da existéncia temporal da presenga como base para a “Trabalho orientado pela Pra? DP Telma Apparecida DonzelliF CHIUERY. “Docente do Dept! de EnformagenVUFC - Doutora em Enfermagem. Docentes da Escola de Enlarmagam Anna Nery/UFRJ - Ooutoras fem Enfermagem. “"Docente do Dopt de Enformagern/UFC - Mestre em Enfermagem. ‘Auda ministrada na disciptina “Intodugao & Pesquisa Fenomenolégica” dos Programas de Pas-Graduagio em Enfermagem Psiquatrica (Mestrado) 2 ( Dovtorado)Intorunidades, na Escola de Enfermagem {de Ribeicdo Proto - USP em 01/12/95, construgdo da teoria geral do ser. A fenomenologia Fepresenta © caminho para o sentido do ser, objeto da investigacao ontolégica deste pensador. A temitica de interesse heideggeriano 6 0 sere, nessa ‘obra principal, 0 flésofo esté em busca do sentido do ser, tendo como preocupagéio 0 mostrar-se deste objeto de estudo em seu movimento de velamento e desvelamento. © marco fundamental de seu pensar é a tentativa de compreensao e de admiracao do sere, para tal, torna-se necessério analisar un ente privilegiado, Assim, Ser e tempo representa uma analitica existencial do ente que cada um de nés somos € que, entre outras possibilidades, possui em seu sera possibilidade de questionar. A esséncia deste enfe humano, designado pelo termo pre-senga, est em ter de ser, em sua existéncia, Existéncia é denominada por Dasein, termo alemao que é traduzido nessa obra pela expressao ser-ai No pensamento de Heidegger, existéncianao é usada na concepeao da ontologia tradicional que a considera como ser simplesmente dado, algo de real. Existéncia, termo de derivagao latina, é entendida por sua etimologia que aglutina ‘a preposigéo ek e 0 verbo sistere, significando estar fora de, numa postura externa a. Nesse entendimento, 0 termo concebido como estar fora da realidade e na direcao da possibilidade, so se aplica ‘ao homem, ente envolvente, dotado do serda pre-senca, cujo destino € existir junto @ entes simplesmente dados que, como presentes, apenas so. Dando sentido diferenciado a certos termos da filosofia classica, Heidegger reveste-os de um significado especial, valorizando, sobremaneira, as raizes das palavras gregas € ‘alemas. Chamando atengao para a nocd etimolégica, utiliza se da hillenaco, nao para efeito de ligagao entre elementos, de palavras compostas, mas como arificio ortogratico, através de cadeias de hifens que deciaram o retomno as rigens da linguagem. Ao hifenizer, ele chama a atengao para o sentido da palavra, possibilitando que se revele (Lopes, 1996). Na sua maneira de pensar Heidegger, reforca que existir 6 ser projeto, é ulirapassar as possibilidades, poder-ser, ¢ ser transcendente. O ser-ainao ¢ algo fechado de que ha que sair para encontrar 0 mundo; © homem é abertura e jé sempre e, constitutivamnente, relagdo com o mundo. Nesse mundo ele encontra as coisas € as outras pessoas e por isso, para Heidegger, 0 ser-no-mundo 6, necessariamente, um ser relacional, é ser-com. Mas 0 ser-aipode ser-com os entes simplesmente dados, as coisas, travando uma relagao de ecupagdo,e pode ser-com os entes humanos, estabelecendo uma relagdo de preocupacao ou de solicitude. Assim, sendo-no-mundo, a pre-senga sempre exis- fe enquanto sendo-com-os-outros. Portanto ser-no- mundoe ser-com sao modos de serpertencentes ao ser- ai, que se expressam pelo ocupar-se das coisas e pelo preocupar-se com 0s outros. No existir cotidiano, na relagao inauténtica, algumas vezes, a pre-senga preocupa- Se com as coisas e ocupa-se dos outros. No pensar heideggeriano, o existir cotidiano ¢ 0 ‘modo de ser inerente ao humano, que consiste em existir ligado ao espaco e tempo publicos, ou seja, ao mundo de todos, ao impessoal, Para esse filbsofo, a questao sobre o sentido do ser 86 se dard de modo suficiente, quando encontrar explicagao e esclarecimento acerca do modo especifico da ontologia tradicional ligada pelo passado, de seus encaminhamentos, de suas questées, de suas respostas e fracassos, como algo, Cogitare Enterm., Curitiba, v2, n. 1, p. 39-43 janvjun. 1997 necessariamente, ligado ao modo de ser da pre-senca. Por isso ele faz em Sere tempo uma destruigao da historia da ontologia, | Esse movimento nao possui 0 cardter negativo, de | negar ou de anular 0 saber factual da metafisica sobre o | ser. A destruigao é desmontar a facticidade, mostrar o que | obscurece 0 sentido do sere consttuir a instancia deste fenémeno. Outra dimensao analisada por Heidegger 6 a da morte. Na vivéncia da morte, o humano, como pre-senca, toma consciéncia de simesmo como um af, remetendo-se. assim, a0 seu sentido ongindrio de possibilidade pura. A pre-senga penetra no mais intimo de sua existencia compreende-se como um ser-para-a-morte. Segundo Heidegger, dentre as possibilidades, 2 morte é uma possibilidade privilegiada da pre-senea.E a possibilidade ontoligica mais propria, irremissivel e insuperdvel quea_pre- senga enquanto existente, tem que assumir, Metodologia Utiizando como recurso 0 video para assistirmos varias vezes ao filme, extraimos cenas que foram analisadas, sobretudo, tendo como suporte 0 pensamento filoséfico de Heidegger expresso em sua mais célebre obra. Nessa, s40 desenvolvidos os modos de serdo ser-a/e desveladas as dimensdes existenciais constitutivas do serda pre-senga Entre estas esta a dimensao da cotidianidade, dimensao m que o filme em debate se desenrola. Assim, analisando ‘Um Golpe do Destino’ a \uz deste pensador, sao destacadas cenas que representam a destruipdo da tradicdo hospital. Vale ressaltar que, em alguns momentos, recorremos ao pensar de Levinas (1991), para abordar 0 fenémeno do softimento, e ao de Sartre (1999), para analisara teoriadas | emogées. As doze cenas extraidas para a andlise feno- ‘menoldgica apresentam-se aqui como momentos trazidos emtipo grafico caixa alta, Destacam-se, em italico, os nomes das personagens e suas falas; em tipo grético comum entre parénteses, a percepcao de seus sentimentos pela | expresso facial, pelo tom da voz, pelo siléncio e pelos gestos. Logo abaixo tem-se, em negrito, a andlise fenomenolégica correpondente cada cena. Nesta etapa 08 conceitos heideggerianos estao grifados em itdlico. Anal e Fenomenolégica ‘APRIMEIRA CONSULTA COM A DR* LESLIE ABBOT Diante da sintomatologia que vinha apresentando, procurou esta especialista, Estendendo a mao apresenta- se Dr. Mackee: - Jack Mackee. Ds? Leste: - Eu sei. (com ar de indiferenga, mostrando- se ligeiramente surpresa com a importancia que ele da a sua apresentagao, 0 que nada significa para ela ) Sente-se, Andlise: Antes da doenga, Dr. Mackee existia na cotidianidade. © seu espaco e 0 seu tempo eram centralizados nas entidades. Ele era uma entidade que se relacionava com outras entidades. Os clientes, os ‘companheiros de profissao e a familia eram uma coisa fechada. Ele nao percebia o remetimento constante possibilidade pura que é 0 Dasein. Nesse primeiro contato, ele ja comeca a sair do cotidiano, Choca-se com a atitude da médica que, na verdade, é idéntica a sua, ou seja, no nivel das entidades. Dr® Lestie (apés um minuncioso exame): - 0 doutor tem um tumor. Dr, Mackee (facies demonstrando sentir-se chocado com a forma pela qual foi informado do diagnéstico) Andilise: Choca-se com esta atitude que 0 nivela a uma coisa, a um objeto. O que Ihe chama a atencdo nao é 0 que ela disse, mas a forma como disse. A cena mostra que a Dr? Leslie nao se incomoda com o contexto; pelo contrario, no seu cotidiano vive presa ao texto. Nesse momento, inicia-se para o Dr. Mackee uma vivencia da morte. Ele comeca a se afastar do ai, temetendo-se ao seu em si mesmo, a singularidade pura. © DIALOGO COM A ESPOSA Apés a descoberta do diagnéstico, sua esposa pergunta: ‘Anne: -Que descobriram? Descobriram algo? Dr. Mackee: (com um gesto afirma que sim) Anne: - Vamos superac! Dr. Mackee: - Nos ? Nés ndo temos nada, Nao é um jogo de equipe Anélise: A singularidade pura, cujo remetimento ja se inici na cena anterior, é também mostrada nessa conversa com a esposa. Essas palavras traduzem a consciéncia da | singularidade. 0 Dr. Mackee comeca a estar s6 com ele | mesmo, quer dizer, com a sua realidade de Dasein, capaz de compreender-se, sendo a/, nao se fechando em nenhum ai. BIOPSIA DO TUMOR, Deparando-se com a nova realidade, o Dr. Mackee vai ao hospital para fazer a bidpsia, Nessa ocasiao, comeca a estranhar tudo. Nao reconhece, no atendimento, aquele hospital como sendo o mesmo onde exerce sua profissao. Impacienta-se com a longa espera e diz para a esposa que co acompanha’ Dr. Mackee: - Por que estou aqui como um cara qualquer? (levanta-se irritado e dirige-se ao balcdo de informagdes onde tem um didlogo com a atendente) Atendente: - Nore? Dr, Mackee: - Dr. Mackee. Atendente: - Primeiro nome? Dr. Mackee: - Pertengo ao corpo cinirgico deste hospital ha 11 anos! Atendente: - Entéo sabe sobre o preenchimento das fichas! Analise: Inicia-se, entao, 0 processo de destruicao da tradicao hospitalar, ou seja, de todo aquele processo cotidiano tradicional. Ao mesmo tempo ele comeca a afastar-se do cotidiano, que é a instancia da inautenticidade hospitalar ligada e fundada na tradi¢ao. Ento, comeca a perceber o descompromisso da rotina do hospital com 0 seu ser mais proprio como: ter de 2,81, p. 39-43 jan un. 1997 preencher fichas, sentar-se em cadeira de rodas, di © quarto com outro paciente e ser invadido em sua Privacidade. Percebe que a sua vivéncia e a sua fama, como profissional daquela instituicao nao sao consideradas. AGUARDANDO 0 ENCAMINHAMENTO PARA A BIOPSIA Um colega de profissao vai visité-lo e admira-se por nao encontré-lo num quarto particular. Tentando ser solidario ¢ referindo-se ao exame, pergunta: Dr. Murry Caplan: - Quer que eu va com voc8? Dr. Mackee: - Quero que va em meu lugar. Analise Tal afirmativa expressa a busca de conciliar 0 cotidiano coma singularidade do seu ser mais prdprio. Significa dizer: “Para estar comigo, ¢ preciso irno meu lugar. Nao ha outra maneira. Em Heidegger, o a/é um estar-com. Mas, quando ‘ser humano se encontra no processo de saida do ai, neste contexto a interrogagdo “Quer que eu va com vocé?” representa ser-junto-a e nao ser-com, 0 que denota uma solicitude inauténtica. ‘Ao ser carregado na maca pelos corredores do hospital usando um avental transparent, sentiu-se invadido mais uma vez em sua privacidade. Tenta conversar com 0 maqueiro: Dr, Mackee: - Tem um avental mais fino? Nao sei se todos conseguem ver através deste aqui. Maquieiro: (silencio como resposta) Intromete-se na conversa de dois médicos que vo passando @, diante da admiragao destes, diz: Dr. Mackee: - Sim, eu falo. Eincrivel! Analise: Este grito significa a sua reagao por perceber-se “coisificado”.O homem, diz Heidegger, nao é uma coisa, uma substancia, um objeto; lembrando que Huser! exigia para o homem uma constituicdo diferente das coisas da natureza. relacionamento conjugal do Dr. Mackee tornou-se cotialano. Mas a esposa, diante do prognéstico, comenta: Anne: - Eu no suportaria sem vocé. Andlise: Desde 0 inicio, 0 filme mostra que eles se rela- ionam 0 tempo todo como entidades. Com esse comentario feito por Anne, ela expressa que pensa no acabamento dele e, assim, ndo consegue relacionar-se de forma a remeter-se ao que esta sendo por ele vivenciado. Enquanto o Dr. Mackee estd se remetendo a possibilidade pura, nao se fechando em nada, aesposa esté fechada. No pensar heideggeriano, ela esta tendo, na experiéncia da morte do outro a experiéneia do acabamento. A COMUNICAGAO DO RESULTADO DA BIOPSIA Percebendo que a Dré Leslie ia comunicar-lhe 0 resultado da bidpsia, ele pergunta: Dr. Mackee: -A patologia jogou 0 | Ching? Anélise: © Ching € 0 livro das mutagées utilizado pelos chineses. Fazendo uma analogia com o pensamento heideggeriano, oI Ching é a sabedoria da possibilidade pura. Em Heidegger, a pergunta do Dr. Mackee significa: “A patologia jogou a possibilidade pura, as possibilidades que eu sou?” Nesse momento, a Dr* Leslie comunica-Ihe a malignidade do tumor e diz da necessidade de encaminhar- the para um radioterapeuta, O ENCONTRO COM O RADIOTERAPEUTA Dr. Charles Reed: -... O tratamento comega amanhd, 86 08 ganglios nao forem afetados. ‘Dr. Mackee: - E se forem afetados? Dr. Charles Reed: - Discutiremos outro tratamento com a Dr! Abbot. Dr.Mackee: - E comigo também, Or. Charles Reed (admirado): - E claro! Analise: Esta cena mostra que sempre ha referéncia ao ser- com inauténtico. Ao encerrar o didlogo dessa maneira, Dr. Mackee esta considerando tudo como um jogo de dados, um langamento que corresponde, realmente, a vivencia do estar langado a. E a situacao de entrega a este ai, ao qual ele é chamado, cada vez mais, a assumir. ‘Ao mesmo tempo, Dr. Mackee esta sempre se remetendo @ possibilidade purae tomando consciéncia do lancado al, quer dizer, do jogo de possibilidades que ele é. © PRIMEIRO ENCONTRO COM JUNE NO SERVICO DE RADIOTERAPIA June: -...Tenho tumor no eérebro. Levaram trés meses para descobri-io. Dr. Mackee: - Meu pai teve um paciente com um tumor igual ao seu. Ele agora tem netos. June: = Fala sério? Dr. Mackee: - Claro! Anélise Nesta cena, além do Dr. Mackee, outras perso- nagens vao comecar a ser, como diz Heidegger, ‘chamadasa ser. E 0 caso de June. Na conversa entre os dois ainda fica um resquicio de inautenticidade. Ele nao resiste a relacionar-se com June como se ela fosse uma entidade. Mente, no atentando para 0 outro no seu em ‘si mesmo. E como se dissesse: “Vocé é mais um caso e, assim, poderd curar-se. DANGAS NO CENTRO CIRURGICO No filme as emogées sao tratadas pela danca, a solugao magica. Danga-se no inicio das cirurgias, bem como ao termino daquelas que tiveram éxito. Cada vez que ha uma emogao forte, ha uma danga. Analise: Na visio fenomenolégica, a danca é aqui analisada ‘como uma maneira magica de se relacionar, de existire, assim, é significativa, ‘A danca esta, também, em concordancia com a teoria das emocdes de Sartre que mostra a alegria, a ai Cogitare Enter 493 «jan tristeza, todo sentimento, enfim. © TERCEIRO ENCONTRO COM JUNE, June: - Eu nunea estive em Londres, ou na tla. ‘Nao tive um filho, Nao sei comer com pauzinhos. E tinha ingresso... para ver 0 Balé Indigena Americano quando estiveram aqui. Sempre quis vé-los. Tem roupas incriveis. Mais uma coisa para colocar na minha lista, Dr. Mackee: - Eles voltarao, June: - Em seis meses. Analise: Neste didlogo, tem-se o sofrimento. Emmanuel Levinas 6 0 fildsofo que, inspirado no pensamento de Heidegger, se ocupou do fenémeno do sofrimento. O sofrimento, diz Levinas, é aquela situacao existencial ha qual estamos presos a um a/que nao podemos mais ser. Quando o sofrimento ¢ fisico, envolve o corpo. Nao se pode sair do corpo. Mas, ha o sofrimento moral no qual ndo podemos sair do existir. Somos chamados a estar af, ¢ ja nao temos mais condigées de ser-ai. Por isso June sofre, Ela comeca a remeter-se a si mesma como outras possibilidades, em seu sentido origindrio, enquanto possibilidade pura. NOVO ENCONTRO COM JUNE O drama existencial vivido por June ¢ Dr. Mackee os une, Isso faz com que ele a convide para assistir a0 Bale Indigena que se apresenia em outro Estado. No camino, June pede-lhe que pare o carro e ele preocupa-se em perder o concerto. Ela diz: June: ~ Nao 6 0 concerto. E 0 tempo. Esta passando correndo por mim. Nao quero que isto (referindo-se a bela paisagem) passe por mim. Nao quero mais nada pasando por mim, Nao agdento mais. Anélise: Eo tempo prdprio, singular, sobrepondo-se a0 tempo puiblico. Segundo o pensar de Heidegger, é a autenticidade. Dr. Mackee para 0 carro, ambos descem e June diz: June: - Sabe o que é especial para mim? De verdade? Isto. (nese momento, retira o lengo e revela a alopécia) Anilise: Este é 0 desvelamento final, momento espe para ela. E o mesmo que dizer: “E agora que eu vou me desvelar totalmente.” A retirada do len¢o simboliza 0 desvelamento. Entao, eles dangam. A danca 6 a ‘comemoragao da /iberdade, da vivencia miitua dos seus em si mesmos, de si mesmos como liberdade. A liberdade para Heidegger é nos desvelarmos a nos mesmos como finitude. A CIRURGIA DO DR. MACKEE O tratamento radioterépico nao surtivefeitoe ele teve do submeter-se a laringectomia parcial. Diante das atitudes desumanas da Dr Leslie ele procura 0 Dr. Bloomfield, a quem sempre tratara com grosseria e discrminagao. Pede- the que o opere e obtém o aceite do colega. A cirurgia aconiece @ 0 sucesso é comemorado com danga, ‘Ap6s 0 seu restabelecimento, volta a clinicar mudando completamente sua relacao com os colegas, pacientes, alunos e familiares. Andlise: Tem-se a pre-compreensao na destrui¢éo da tradi¢ao hospitalar vivida pelo Dr. Mackee. Pre- compreensao esta que funda a sua compreensao, isto 6,0 seu espaco e tempo desvelados na sua vivencia da morte, o remetimento ao seu sentido originario de possibilidade pura o leva a uma nova compreensao. Essa compreensao se reflete em seu comportamento profissional, posterior a vivéncia da doenca, como o observado durante a distribuigao de aventais utilizados pelos Glientes aos residentes sob sua responsabilidade. Firme fem sua concepeao, Dr. Mackee assim se dirige 20 grupo: Dr. Mackee: - Agora vocés vao ter a experiéncia de ser pacientes! Anélise: Em Heidegger isto quer dizer: “Vamos experimentar esse ail Nao ha um Unico aimas muitos ais. Ns somos possibilidades de ais. Um dia eu sou médico, no outro sou cliente.” Algumas Consideragdes para a Enfermagem Esta andlise, além de identificar 0 cotidiano assistencial, nos conduz & reflexdo da importéncia de compreender 0 outro, o cliente que se coloca diante de nos na pratica da enfermagem. O significado de um determinado comportamento esta fundado no sentido que cada um de nos é, enquanto existente, Questoes significativas a existéncia, como a anguistia, 0 temore a liberdade dao-se no homem, nao se esgotando o humano na entidade encarnada em que ele se dé; questoes dessa natureza nao podem ser explicadas, mas, sim, compreendidas. O mundo onde cada um de nés existe como espaco e tempo préprios, & objeto de compreensao e nao de conhecimento. (© homem é o existente que compreende o sere, que tem a compreensao como algo inerente e nao conquistada. Assim, sendo a compreensao um modo de ser, 0 210 de compreender 6, pois, entrar no movimento do ‘outro; entrar em sintonia; ¢ co-exist. Para a fenomenologia, abordagem compreensiva que visa ao estudo do ser humano em sua totalidade existencial, ‘© homem é fendmeno; € 0 que se mostra em si mesmo e, ‘como tal, nao pode ser tratado como algo techado, definido, acabado, pronto, causado. Nesse entendimento, todo 0 humano se caracterizando por nao ser isto ou aquilo, por nao se fechar no ente, estd-afde certa maneira, tendo sua existéncia jundada no seu modo de ser, nas suas possibilidades. Portanto, na aproximagao do outro em busca de sua diregao, de seu sentido, de seu modo de ser, devernos acoihé-lo sem julgamentos em suas percepgoes. | sentimentos e atitudes, como ser aberto, tinico, singular, inamico. A relacao de preocupagao com 0 outro, conduz- nos a compreensao de seu movimento proprio como acontecer. Estar vivenciando uma situago de doenga, como 0 {filme retrata, envolve uma dimensao biol6gica, psicolégica, social mas, sobretudo, uma dimensao existencial. Assim, a doenca nao pode ser tratada como coisa pois tem raizes ‘em uma existéncia; é modo de existire meio do organism dizer seu estado. O tumor em exame nao pode ser isolado, pois nao é uma coisa, mas um estado de desequilibrio e, portanto, questao estrutural ‘Cogitare Enferm., Curitiba, v2, n. 1, p. 38-43 - jandjun. 1987

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