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A Literatura e o Fim do Real *

Fernando Fábio Fiorese Furtado

Abstract

Literature in cyberspace. The new technologies as vectors of reproduction and production of


real. The literary work as a serial product. Relations between representation crisis of narrative, dimensions
and references. The advent of contemporary “atopia” through industrial production of velocity. The
perspectives of literature in the context of total visibility and absolute transparency.

Hoje nos defrontamos com uma topografia


da experiência na qual a palavra ocupa um
precário reino central; de cada lado, estão
as províncias do número.
**
George Steiner

Introdução

Pensar a literatura sob a égide da condição pós-moderna pressupõe


a resistência à sedução fria do virtual para enfrentar os abalos a que se
submete a representação no espaço cibernético. Na cena do pensamento
finissecular, as novas tecnologias ocupam o proscênio. Seja para condenar
o uso predatório da imagerie desenfreada ou para realizar o trabalho de
luto das formas teóricas e críticas que propugnam pela oposição homem-
máquina, seja para desvelar as possibilidades das poéticas tecnológicas ou
para questionar o narcotráfico das utopias que o virtual enseja, empenham-
se os pensadores da Baixa Modernidade na inelutável tarefa de enfrentar o

* Poeta, professor e pesquisador do Departamento de Comunicação e Artes da Faculdade de Comunicação


da Universidade Federal de Juiz de Fora e doutorando em Ciência da Literatura da Faculdade de
Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
** Steiner, 1988 : 262.
Fernando Fábio Fiorese Furtado

enigma da tecnologia. Na medida em que veiculam percepções, produzem


subjetividades e anunciam os paradigmas de novas formas de pensar, sentir
e estar no mundo, as tecnologias se tornaram um vocativo para o pensamento.
A Revolução Industrial criou um ambiente de contínuo devir,
transformou as atividades perceptivas e cognitivas e colocou ao nosso dispor
tanto técnicas de reprodução dos aspectos dinâmicos da vida moderna quanto
de produção de um novo real. A adaptação do homem à instabilidade
cronotopológica instaurada pelo progresso dromológico encontrou nos
veículos de transporte e de comunicação o treinamento perceptivo adeqüado.
Com as próteses de deslocamento e de visão, aprendemos as lições do tempo
tecnológico e do espaço aleatório, da transferência maquínica de nossos
sentidos e da consangüinidade entre homem e instrumento.
Na medida em que adentramos o ciberespaço, a desrealização das
formas de representação, o excesso de visibilidade e de transparência, a
inelutável conversão da imaginação em imagens, a crise das dimensões e
das referências constituem uma constelação de fenômenos histórico-
ontológicos que questionam e destinam a literatura no inferno das imagens
numéricas. Uma vez mais o número assombra a palavra com as perspectivas
de um efeito de real que suplanta a realidade, da mesma forma que privilegia
a informação mediatizada em detrimento da informação dos sentidos. Por
que a literatura onde a velocidade ilumina até mesmo o não-visto do
universo? Onde a literatura quando o fenômeno de aceleração abole nosso
conhecimento das distâncias e das referências? Quando a literatura na
imediatez do tempo real das transmissões diretas à distância?

1. Crime Parfait: O Assassino do Real

Virtualidade, clonagem, simulação: repetição sem diferença, eterno


retorno do mesmo, exacerbação do processo de dessignificação, instaurado
pelos simulacros naturalistas e produtivistas (V. BAUDRILLARD, 1981b).
A partir do código, considerado como sistema de signos absoluto e ge-
neralizado, a simulação opera a inversão das relações entre o real e sua
representação, estabelecendo simples oposições binárias que permitem a
objetivação do discurso e o controle dos objetos. Em relação ao discurso,
pode-se afirmar que a simulação, reduzindo o signo ao puro jogo dos
significantes, anula a relação entre significante e significado necessária ao
processo de significação. Assim, diferentemente da ordem da produção, o
controle das relações do homem com as coisas não mais advém do agir
racional-com-respeito-a-fins, pois a hegemonia do código inaugura o
monopólio da palavra como característica básica da dominação contem-
porânea. Da mesma forma, enquanto técnica de controle do objeto, o

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processo de simulação opera uma completa inversão, de forma que o real


se torne efeito ou reflexo de modelos gerativos.
Em ambos os casos, temos a dissolução da diferença entre o conceito
e o real, o signo e a coisa, de forma a anular a distinção entre a operação do
modelo e a operação do real, o que subentende o fim da especularidade da
representação a partir de operações de decomposição e fragmentação da
realidade. Do modo de produção ao modo de reprodução, o real adentra a era
de suas técnicas de reprodução e instaura-se o fluxo ilimitado de signos. Assim,
segundo Umberto Eco em Viagem na irrealidade cotidiana, “a irrealidade
absoluta se oferece como presença real”, pois “a ambição é fornecer um ‘signo’
que se faça esquecer enquanto tal: o signo aspira a ser a coisa, e a abolir a
diferença do remeter, a mecânica da substituição” (ECO, 1984 : 13).
Como sistema de produção obsessiva do real, a simulação contem-
porânea estabelece a precessão dos simulacros, emancipando o signo
de uma lógica equivalente de significados ainda capaz de enredar dois
sujeitos num ciclo de reciprocidades. Desta forma, reduzido a signi-
ficante, o signo reenvia “a um universo desencantado do significado,
denominador comum do mundo real, com relação ao qual ninguém mais
tem compromisso” (BAUDRILLARD, 1976 : 78). Operando a fusão entre
real e imaginário, o simulacro absorve e substitui o primeiro, de forma
a fazer coincidir em si mesmo o real e sua representação. “A irrealidade
não é mais a do sonho ou da fantasia, de um além ou de um aquém, é a
de uma alucinante semelhança do real consigo mesmo” (BAUDRI-
LLARD, 1976 : 112). A trajetória convulsa da representação encontra o
abismo: eliminando-se qualquer referente, a duplicação do original
corresponde à sua morte.
Sistema de produção obsessiva do real, a simulação encontra nas
tecnologias de informação o altar do culto do ícone pelo ícone. “Eis que
vem a grande Cultura da comunicação tátil, sob o signo do espaço tecno-
luminoso-cinético e do teatro total espácio-dinâmico” (BAUDRILLARD,
1976 : 111). A produção incessante de imagens sem referência a qualquer
realidade demonstra como a cultura contemporânea se refugia na
estetização generalizada dos simulacros de simulação. Tal estetização
corresponde antes à passagem do estético ao “extático”, afirmada pela
ludicidade fria do universo da comunicação e pela hiper-realidade da
simulação operacional. Substitui-se a estética da sedução pela anestesia
do fascínio e do êxtase face a um real produzido que se faz passar por
realidade na hiper-realidade.
Em As estratégias fatais, Baudrillard define a cultura do simulacro
pela proximidade absoluta e instântanea das coisas, pelo fim da intimidade
do sujeito, pela superexposição e transparência do mundo, pelo fim da cena
e pela assunção do obsceno.

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Mais visível do que o visível, eis o obsceno. (...)


A cena é da ordem do visível. Mas já não existe cena do obsceno, já
só existe a dilação da visibilidade de todas as coisas até o êxtase. O
obsceno é o fim de toda a cena. (BAUDRILLARD, 1990 : 47)

Trata-se de, por meio da produção incessante de imagens, dar resposta


ao desaparecimento do real, na tentativa compensatória de manufaturá-lo.
Para tanto, a simulação consolida as oposições da ordem do sentido em
formas extáticas. No exagero do real (o hiper-real) e do belo (o fascinante),
do funcional (a hiperfuncionalidade) e do rápido (a vertigem), da finalidade
(a hipertelia) e do visível (a obscenidade), a ordem do simulacro nos
precipita num universo onde o exorbitante da verdade, a sobre-representação
dos acontecimentos através dos media, realiza-se “para ser visto sem ser
olhado, alucinado em filigrana, absorvido como o sexo absorve o voyeur: a
distância. Não somos nem espectadores nem atores, mas voyeurs sem ilusão
(BAUDRILLARD, 1990 : 55). Trata-se, enfim, de um excesso que é
restrição, de um mais que é menos.

2. Sob o Signo de Dromos

No âmbito da literatura, a crise da representação se exacerba com o


efeito nivelador do meio técnico, por meio do qual as obras tendem à
indiferença, a estereótipos formais ou temáticos. A substituição do suporte
simbólico pelo suporte técnico, operada pela comunicação de massa,
subentende a afirmação de um princípio de reprodutibilidade radical,
disssuasiva e subliminar, de forma que a obra literária converte-se em objeto
de consumo. E, como qualquer objeto inserido no ciclo inelutável de
produção e consumo, sujeita-se ao movimento da cultura contemporânea,
cujo desenvolvimento se dá em torno da reciclagem, incluindo a
obsolescência programada e as oscilações da moda, o retorno do mesmo ao
mesmo – Narciso condenado ao consumo de espelhos.
Convertida em combinatória lúdico-técnica por força da lógica do
modelo simulado, a obra literária não escapa ao que Baudrillard denomina
“semiurgia da arte contemporânea”, ou seja, o advento do valor-signo como
mais-valia que se acrescenta à obra como garantia de autenticidade: a
assinatura. Quando a sofisticação das técnicas de reprodução dessacraliza
e ameaça a obra singular com o fantasma de seu duplo – a falsificação –, a
assinatura assume o valor mítico de “legenda”. Assim, ao escritor se impõe
o modelo da produção em série, da qual o termo final já não é a representação
de um mundo, mas o próprio sujeito criador que, por estar sempre ausente,
deve “produzir, infatigavelmente, a prova de si próprio” (BAUDRILLARD,

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1981a : 113). A produção de tal prova implica condenar o escritor ao


estilo e à assinatura, elementos que atestam a autenticidade do autor
consigo mesmo e a obra como objeto deste sujeito. “Atualmente, só o
artista se pode copiar a si próprio. Em certo sentido, ele está condenado
a fazê-lo e a assumir, se for lógico, o caráter serial da criação”
(BAUDRILLARD, 1981a : 115).
Seja através da tautologia formal do roman-feuilleton novecentista
nos best-sellers ou da reciclagem dos elementos experimentais das
vanguardas históricas com a supressão do signo crítico, a tendência à
serialidade na produção literária contemporânea encontra sua gênese nos
primórdios das técnicas de reprodução, conforme podemos inferir das
palavras de Paul Virilio em Guerra e cinema:

Desde a Renascença, quando a invenção da imprensa desencadeia


na Europa a revolução da leitura silenciosa, a paramnésia da
narrativa onírica, freqüentemente religiosa..., não mais passa pela
reunião e pela troca da palavra, mas pela produção industrial, pela
estandardização. Depois de algumas décadas, milhões de livros
seriam editados, prefaciando a futura difusão da fotografia, do
cinema e, hoje em dia, da eletrônica. (...) Existem numerosas
afinidades entre o instante da escrita e o instantâneo fotográfico,
cada um se inscreve menos no tempo que passa do que no tempo de
exposição. Com a impressão, já se estabelece uma nova interface
técnica em que o meio de comunicação retém o imediato e
desacelera-o para fixá-lo em um tempo de exposição que escapa à
duração diária e ao calendário social, aprofundando a separação
entre o instrumento de transmissão e nossa capacidade de assumir
a existência presente. (VIRILIO, 1993a : 66-7)

A possibilidade de conversão da obra literária em meio de massa


anuncia a sua submissão ao código e à obrigação de significar, à dimensão
serial e à redundância, à substituição da fruição pelo fascínio e do estético
pelo extático. Mas não apenas a narrativa será afetada pelas exigências da
reprodução técnica. De acordo com Lewis Mumford em A cultura das
cidades, a generalização do uso de veículos de tração animal no século
XVI determinou profundas mudanças no traçado urbano e arquitetônico
das cidades barrocas, com recorrência à disposição regular de edifícios,
1
com fachadas simétricas e cornijas uniformes .

1
A aceleração do movimento implica, pois, a serialidade e a sistemática dos elementos arquitetônicos,
dos objetos urbanos, numa tautologia formal que acaba por envolver todo o ambiente e, por fim, até
mesmo a aparência e o comportamento dos habitantes das cidades.

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Na caminhada, o olhar corteja a variedade, mas em ritmo mais


acelerado, o movimento exige repetição das unidades que se hão de
ver: somente assim é que a parte individual, à medida que se desloca
velozmente, pode ser recuperada e reconstituída. O que seria
monotonia, para uma posição fixa ou mesmo numa procissão, torna-
se um correspondente necessário ao ritmo de andar dos cavalos
rápidos. (MUMFORD, 1961 : 106)

Por mais inusitada que tal aproximação possa parecer, ela nos
permite introduzir aqui uma questão que, consoante o pensamento de Paul
Virilio, é fundamental para a compreensão da crise da narrativa: a produção
industrial de velocidade. Neste sentido, já em Velocidade e política, o
autor francês recorre a uma assertiva de Joseph Paul Goebbels – “A
propaganda deve ser feita diretamente pela palavra e pela imagem, não
pelo escrito” – para analisar o papel desempenhado pela velocidade na
instauração da “ditadura do movimento” pelas revoluções modernas. A
instauração da sociedade dromocrática exigirá a transformação das massas
em produtoras de velocidade, recorrendo-se a métodos que privilegiam
estímulos grosseiros e repertório sígnico reduzido, com preponderância
dos meios icônicos em detrimento dos simbólicos, pois “o tempo de leitura
implica o de reflexão, uma desaceleração que destrói a eficiência dinâmica
da massa” (VIRILIO, 1996 : 21).
Mesmo considerando que “toda sociedade é fundada numa relação
de velocidade” (VIRILIO, 1984 : 49), não podemos olvidar que a “lógica
da corrida” das revoluções modernas, ainda empenhadas no assalto do
espaço territorial, será transfigurada pelo evolucionismo tecnológico
ocidental, pelo progresso dromológico, de forma que a velocidade começa
a se desterritorializar, afirmando-se como idéia pura e sem conteúdo.
Substituindo a velocidade metabólica, a velocidade tecnológica se converte
em valor supremo, tornando necessário o investimento contínuo nas próteses
de deslocamento e nas máquinas de visão. A energia cinética de corpos
automotivos cada vez mais sofisticados e, principalmente, a transferência
do olhar por meio dos dispositivos eletrônicos anunciam o abandono da
terra e seus obstáculos em nome de uma contração do mundo que suprime
todas as distâncias.

A proximidade do mundo será tal que a “automobilidade” não será


mais necessária. (...) Quando a mobilidade física igualar as
performances da mobilidade eletrônica, estaremos diante de uma
inaudita situação de permutabilidade de lugares. Com efeito, este é
o projeto atual. (...) Proximidade, interface única entre todos os
corpos, todos os lugares, todos os pontos do mundo – essa é a
tendência. (VIRILIO, 1984 : 64)

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A ficção científica anuncia-se como princípio de realidade. Somos,


a um só tempo, o objeto e os donatários
2
do olho ubiqüitário do Big Brother
de 1984 (George Orwell, 1949) . A tecnologia é um enigma que nos desafia
e, como o computador HAL 9000 de 2001: uma odisséia no espaço (2001:
a space odyssey, 1968), de Stanley Kubrick, parece ocultar o plano de vôo
do Ocidente. E, se ainda não realizamos as viagens imaginadas por H. G.
Wells em The time machine (1895), a instantaneidade da ação a distância e
o continuum de imagens em tempo real, já nos permitem suprimir a geografia
e as distâncias de tempo. “O espaço não está mais na geografia – mas na
eletrônica. A unidade está nos terminais” (VIRILIO, 1984 : 109).

3. A Literatura no Inferno das Imagens

A produção industrial da velocidade acaba por determinar o


desaparecimento da localização topográfica, constituindo-se o não-lugar, o
inferno das imagens que estão presentes apenas porque desaparecem
rapidamente. As imagens fáticas dos meios audiovisuais ilustram as
considerações de Baudrillard acerca da simulação como “segundo batismo
das coisas”, como produção de realidade, como fim da cena da representação
para que se instaure um estado de semiurgia generalizada. Se “simular é
fingir ter aquilo que não se tem” (BAUDRILLARD, 1981b : 12), resta-nos
questionar o papel das máquinas de visão e de transporte na elisão do real,
pois que, por meio da decomposição e da fragmentação deste, as imagens
técnicas empenham-se na geração de um real sem origem nem realidade.
Num contexto de visibilidade e transparência absoluta, a especularidade da
representação ameaça dissolver-se, uma vez que, como simulacro de
simulação, a imagem de alta definição absorve o real e o assume, fazendo
coincidir em si a realidade e a sua representação.
3
Não por acaso, Baudrillard e Virilio recorrem ao mesmo filme – O
estudante de Praga (Der Student von Prag, 1913), de Paul Wegener – em
suas reflexões acerca da questão da imagem. Em ambos os casos, considera-
se a obra como premonitória, seja da alienação social concreta da imagem,
da fatalidade da técnica ou da crise da representação , seja do advento de
uma estética do desaparecimento, do domínio da atualidade pela virtualidade
(com a conseqüente subversão da noção de realidade) ou do “produtivo
tráfico de aparências”. De acordo com Baudrillard, ao vender para o
2
“Sempre os olhos fitando o indivíduo, a voz a envolvê-lo. Adormecido ou desperto, trabalhando ou
comendo, dentro e fora de casa, no banheiro ou na cama – não havia fuga. Nada pertencia ao indivíduo,
com exceção de alguns centímetros cúbicos dentro do crânio.” (ORWELL, 1984 : 29) A descrição
antecipa os sistemas extensivos de vigilância eletrônica, a substituição do private eye pelo public eye.
3
Em A sociedade de consumo, Baudrillard recorre a O estudante de Praga para analisar a transformação
da imagem em mercadoria (BAUDRILLARD, 1981c : 231-44), enquanto Virilio refere-se ao mesmo
como um dos primeiros filmes que fala do cinema (VIRILIO, 1993a : 53-4).

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feiticeiro Scapinelli sua imagem no espelho, o estudante Baldwin submete-


se a um processo de alienação que tem como princípio o transtorno da
reciprocidade entre o mundo e o indivíduo.

A imagem especular representa aqui simbolicamente o sentido dos


nossos atos, que formam em redor de nós um mundo à nossa imagem.
A transparência da nossa relação ao mundo exprime-se bastante
bem pela relação inalterável do indivíduo ao respectivo reflexo no
espelho: a fidelidade de semelhante reflexo testifica, de certa
maneira, a reciprocidade real entre o mundo e nós. Simbolicamente
portanto, no caso de a imagem nos vir a faltar, é sinal de que o
mundo se torna opaco e os nossos atos nos fogem – encontrando-
nos então nós sem perspectiva sobre nós mesmos. Sem esta caução,
deixa de haver identidade possível: torno-me outro em relação a
mim próprio, estou alienado. (BAUDRILLARD, 1981c : 234-5)

Já para Virilio, o metafilme de Wegener interessa na medida em que


denuncia como a produção desenfreada de imagens através da fotografia e do
cinema, da videografia e da infografia, transtorna o espaço-tempo clássico pela
estratégia do perceptron (ou “máquina de visão”) e acaba por colocar em crise os
modos de aquisição e restituição do mundo exterior. À estética do aparecimento
sucede a estética da desaparição, a amnésia topográfica e cronológica substitui a
anamnese das experiências dos lugares e distâncias percorridas pelo ser do trajeto.

Ao lado da ordem sensível e bem visível já se instala o caos de uma


ordem insensível, novas imagens espectrais e delirantes que, depois
de terem sido roubadas, retocadas e invocadas, podem ser
capturadas, vendidas, transformando-se em objeto atraente de um
produtivo tráfico de aparências, além de poderem ser projetadas no
espaço e no tempo. (VIRILIO, 1993a : 54)

Neste sentido, a produção industrial de velocidade encontra nas


telecomunicações a distância os materiais de transferência adeqüados à
4
constituição de uma nova lógica da imagem , que remete a uma visão
4
Em A máquina de visão, ao analisar a logística da imagem e das eras de propagação que marcaram a sua
história, Virilio define a lógica paradoxal que caracterizam as imagens numéricas, holográficas e videográficas:
“O paradoxo lógico é finalmente o desta imagem em tempo real que domina a coisa representada, este
tempo que a partir de então se impõe ao espaço real. Esta virtualidade que domina a atualidade, subvertendo
a própria noção de realidade. Daí esta crise das representações públicas tradicionais (gráficas, fotográficas,
cinematográficas...) em benefício de uma apresentação, de uma presença paradoxal, telepresença à distância
do objeto ou do ser que supre a sua própria existência, aqui e agora.
“É esta, finalmente, a ‘alta definição’, a alta resolução não tanto mais da imagem (fotográfica e
televisiva), quanto da própria realidade.
“Com a lógica paradoxal, na verdade, é a realidade da presença em tempo real do objeto que é
definitivamente resolvida...” (VIRILIO, 1994 : 91)

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resultante da própria velocidade. A profusão de imagens de alta resolução,


conforme já assinalamos, instaura um não-lugar. Na verdade, como
fenômenos da velocidade, as tecnologias de transporte e de comunicação
realizam a “cine-sensação do mundo” propugnada por Dziga VERTOV
(1983 : 253), mas num sentido pervertido que determina o domínio do atual
pelo virtual, da cena pela obscenidade, da coisa pela imagem, da
representação pela apresentação instantânea, do espaço real pelo tempo
real. Por meio dos vetores da velocidade cinemática, instaura-se a
visibilidade total e a transparência absoluta, subvertendo a própria noção
de realidade, principalmente no que concerne ao espaço, enfim convertido
em circuito fechado.

Se o espaço é aquilo que impede que tudo esteja no mesmo lugar,


este confinamento brusco faz com que tudo, absolutamente tudo
retorne a este “lugar”, a esta localização sem localização...
A instantaneidade da ubiqüidade resulta na atopia de uma interface
única. Depois das distâncias de espaço e de tempo, a distância-
velocidade abole a noção de dimensão física. (VIRILIO, 1993b : 13).

Tal atopia implica o esquecimento do mundo “exterior”, na aniqui-


lação dos lugares e da aparência, de modo a engendrar um universo audio-
visual e teletopológico, uma realidade sensível co-produzida com base na
excessiva exatidão na definição da forma-imagem. Para se tornar repre-
sentação da velocidade, o mundo é investido de imagens instáveis, fulgu-
rações ininterruptas, cujas referências estão em vias de desaparecimento.
O public eye das telas-teia não mais participa do sentido de redução carac-
terístico de toda representação: “... aqui a redução é recusada, a recepção
coletiva simultânea é a de um olho ubiqüitário capaz de ver tudo ao mesmo
tempo” (VIRILIO, 1993b : 55).
Em O espaço crítico, Virilio insiste nas relações entre as crises das
dimensões, das referências e da narrativa:

A questão que se coloca, portanto, não é mais a da “crise da


modernidade” como declínio progressivo dos ideais comuns,
protofundação do sentido da História, em benefício de narrativas
mais ou menos restritas ligadas ao desenvolvimento autônomo dos
indivíduos, mas antes a questão da narrativa em si, ou seja, de um
discurso ou modo de representação oficial, herdeiro da Renascença e
até o momento ligado à capacidade universalmente reconhecida de
dizer, descrever e inscrever o real. Desta forma, a crise da noção de
“narrativa” se mostra como a outra face da crise da noção de
“dimensão” como narrativa geometral, discurso de mensuração de
um real visivelmente oferecido a todos. (VIRILIO, 1993b : 18-9)

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Os transtornos que afetam os modos habituais de representação se


tornam ainda mais agudos quando a velocidade, a instantaneidade e a
simultaneidade de um tempo real desvelam uma transferência desconhecida
do olhar, cujo foco converte o próprio real em território ex-ótico. Caberá à
literatura empenhar-se na preservação incerta da nossa capacidade de dizer,
descrever e inscrever o real? A consciência de seu ser-linguagem será
suficiente para resistir à voracidade do virtual? Do autoquestionamento que
a crise da linguagem implica poderão advir as forças necessárias para
enfrentar o enigma das novas tecnologias e o desaparecimento do real?

Conclusão

Nas páginas precedentes, estivemos sempre em busca da “distância


amorosa”, do locus flutuante, onde a reflexão encontra analogia com a
flânerie e o cálculo, com a fabulação e a geometria. De tudo o que ficou
dito – e, principalmente, de como ficou dito –, resta-nos as imagens do
itinerário hesitante daquele que navega sob o signo do questionamento.
Círculo, espiral ou labirinto: qual forma melhor representaria esta viagem
cuja destinação é o horizonte, não o cais que aqui inventamos sob o nome
de conclusão?
Talvez o círculo, pela recorrência constante e repetitiva às relações
entre as crises da linguagem, da representação e da narrativa, pela
insistência em empregar as reflexões de alguns poucos autores, pela
reiteração de algumas das questões que problematizam o estatuto da arte
e da literatura sob a égide da “condição pós-moderna”, pela utilização de
notas que pretendem funcionar como marginalia, como indícios de
reflexões que se encontram em devir. Talvez a espiral, pois que, nestas
variações sobre um reduzido número de temas, desejamos a cada
movimento ter acrescentado senão novas considerações, ao menos uma
palavra, uma vírgula, um olhar de distinção.
Não, foi ao labirinto que nos condenamos: as muitas indagações o
indicam. E conduzidos pelo fio tênue de um corpus teórico sem a perspicácia
de Ariadne, insistimos em encontrar um centro, quando só havia margens,
desvãos e precários horizontes. No entanto, tatear as linhas de força da
literatura na cena finissecular nos permitiu compreender que encontrar um
centro seria defrontar-se com a estase ou a morte. Então preferimos a viagem
aventurosa das margens, do abismo planificado, o risco calculado do
itinerário provisório, quando todo ancoradouro está aparentemente
disponível. Na distância que persegue um outro olhar, acolhemos a questão
da literatura na Baixa Modernidade, procurando responder às indagações
que nos assaltaram, conferindo-lhe uma abordagem que ao menos fosse o

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empenho de estar à margem do território ex-ótico onde vigora e domina a


epistéme única. Diante das aporias da literatura face à virtualidade
assinalamos a necessidade de provocar à questão, sem olvidar a natureza
paradoxal e paroxística da crítica.

Referências Bibliográficas

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14. ——. Velocidade e política. Trad. Celso Mauro Paciornik. São Paulo :
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Ipotesi: revista de Estudos Literários, Juiz de Fora, vol. 1, nº 2 - p. 69 a 79


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