Você está na página 1de 24
A EVOLUCAO PEDAGOGICA EM FRANCA: Aigreja primitiva e 0 ensino fi uma ideia muita divulgada que qualquer pessoa que se preocupe com a Pratica deve distanciar-se em parte do passado para concentrar no presente todas as forcas da sua atengo, dado que 0 passado j& passou, dado que jf no podemos fazer nada por ele, parece que s6 nos pode interessar por curiosi- dade, Acteditamos que pertence ao Ambito da erudigao, Nao @ 0 que jf foi, mas sim o que é, que precisamos de conhecer, e melhor ainda, é o que tende a ser aquilo que temos de tratar de prever, para poder satisfazer as necessidades que nos preocupam. Na primeira lico dedicémo-nos a mostrar que este mé- todo é decepcionante. De facto, o presente, aquilo a que nos convidam a limi- tarmo-nos, esse presente nao vale nada em si mesmo; ndo é mais do que o pro- longamento do passaido do qual nfo se pode separar sem perder em grande parte 0 seu significado. O presente € formado por inumerdveis elementos, tao estreitamente emaranhados uns nos outros, que nos é dificil perceber onde comeca um, onde termina o outro, o que é cada um deles e quais as suas rela- Ges; deles, s6 temos, depois de uma observacdo imediata, uma impressao turva e confusa. A tnica forma de os distinguir, de os dissociar, de introduzir por consequéncia um pouco de clareza nesta confusio, € procurar na histéria como se foram progressivamente ligando uns aos outros, como se foram com- binando, organizando. Do mesmo modo que a sensacdo que temos da matéria 2 apresenta como uma extensio homogénea, apesar da anilise cientifica nos mostrar a sua sébia organizacio, a sensacao directa do presente nao nos per- mite suspeitar da sua complexidade até que a anilise hist6rica a possa revelar. Extracto do livro Histirla da Bducagdo ¢ das Dowtrinas Pedagéaicas, Texto teaduzido por Isabel Peceita da obra Historia de la Bdwcacitn y de las Doctrinas Pedagogicas, la evolncién pedagogtca en Francia, 1982, Colecgio Genealogia del Poder, drigida por Julia Varela e Fernando Alvarez Uta, Las Ediciones de La Piqueta, Madid, 1982 eoUOACay sociepape & cuirunas No entanto, o que para alguns parece ser mais perigoso € a importincia exage- rada que assim tendemos a atribuir as aspiragdes da hora presente quando nao as submetemos a nenhum control. Pois, precisamente, porque sdo actuais hipnotizam-nos, absorvem-nos e impedem-nos de sentir outra coisa que ndo sejam elas mesmas. O sentimento que temos de qualquer coisa que nos falta € sempre mais forte, por consequéncia, tende a ocupar na consciéncia um lugar preponderante e remete tudo mais para a sombra. Completamente voltados para 0 objecto que orienta os nossos desejos, este aparece-nos como a coisa preciosa por exceléncia, o que importa antes de mais, 0 fim ideal ao qual todo © ser deve estar subordinado, Sendo assim, muitas vezes, 0 que nos faz falta nao é mais essencial, nem menos essencial que o que temos; deste modo esta- mos expostos a sacrificar a necessidades passageiras secundérias, necessi- dades verdadeiramente vitais. Rousseau dé-se conta de que a educaclo do seu tempo no deixa muito espago 4 espontaneidade da crianga, faz do abstencio- nismo metédico, sistematico, a caracteristica de toda a sa pedagogia. Deste modo, s6 porque a crianga nao esté suficientemente em relaco com as coisas, faz do ensino pelas coisas 0 fundamento quase tinico de todo o ensino. Para fugirmos desta influéncia prestigiosa das preocupagées presentes que so necessétias @ unilaterais, é preciso car-Thes como contrapeso 0 conhecimento de todas as demais exig@ncias que é necessdrio ter igualmente em conta, e este conhecimento s6 0 pocemos adquirir através da historia que nos ensina a com- pletar o presente relacionando-o com o passado de que € continuagio, Estas razdes pelas quais mostrmos que o estudo histérico do ensino tem a sua utilidade pratica nao sto as tinicas. Este método no s6 nos permite preve- nit bastantes ertos possiveis no futuro, mas também podemos prever que nos proporcionard os meios para corrigir certos erros que se tenham cometido no passado © cujas consequéncias ainda sofremos. De facto, 0 desenvolvimento pedagdgico, como todo o desenvolvimento humano, nao foi sempre normal. No decurso das futas que libertaram as diferentes concepgdes que se suce- deram na historia, mais do que uma ideia justa foi ensombrada, embora o seu valor intrinseco a tivesse mantido. Aqui, como em outras alturas, a luta pela vida 86 produz resultados grosseiramente aproximativos. Em geral, so os mais dotados, os mais aptos que sobrevivem. Mas, ndo obstante, a par disto, quantos Exitos ilegitimos, quantas moztes e derrotas injustificadas, lamentiveis, devidas erUOAChg SOCIEDADE && CULTURAS a alguma combinago acidental de circunstincias! Sobretudo na histéria das ideias ha uma causa que contribui mais do que nenhuma outra para produzir este resultado. Quando se constitui uma concepgio nova, seja ela pedagdgica, moral, religiosa ou politica, tem naturalmente o ardor ¢ a vitalidade combativa da juventude presente, tende a mostrar-se violentamente agressiva para com as concepcOes antigas que aspira @ substituir, Nega-as, pois, radicaimente. Os campeées das ideias novas, transportados pela luta, acreditam de bom grado que nao tém nada que conservar das ideias antigas que combatem, fazem-lhes tuma guerra sem reservas ¢ sem piedade, E, contudo, na realidade, aqui como em outras alturas, o presente surge do passado, deriva dele ¢ dé-lhe continui- dade, Entre um estado hist6rico novo € aquele que o precedeu, nao ha um yazio, mas sim um vinculo estreito de parentesco, dado que, de certo modo, o primeiro nasceu do segundo. No entanto, os homens nao tém consciéncia deste vinculo, nao sentem mais do que a oposi¢a0 que 0s separa dos seus antecessores. Acreditam, pois, que nada suficiente para arruinar por completo esta tradicao a que se opdem e que lhes resiste, Dai derivam lamentiveis destruigdes. Desaparecem elementos do passado que se deveriam ter conver: tido em elementos do futuro. O Renascimento sucede a Escoldstica; os homens do Renascimento consideraram prontamente Obvio que nao havia nada que conservar do sistema escolstico. A nés cabe-nos perguntar se esta atitude revolucioniria nao tera dado lugar a lacunas no nosso ideal pedagdgico que se transmitiram até aos nossos dias, Além disso, o estudo hist6rico do ensino, 20 mesmo tempo que nos permitica conhecer melhor o presente, oferecer-nos-4 a oportunidade de rever 0 mesmo passado ¢ por em evidéncia alguns daqueles ros; importa que tomemos consciéncia deles j que somos seus herdeiros, No entanto, 4 parte este interesse pratico que devia assinalar antes que qualquer outra coisa por ser com mais frequéncia desconhecido, a investiga- ao que vamos empreender apresenta, além disso, um interesse teérico e cien- tifico que no é de desdenhar. A primeira vista, a historia do ensino secund’- tio em Franca pode parecer que é muito especial e que s6 deve interessar a ‘um corpo restrito de professores. No entanto, devido @ uma singularidade do nosso pais, acontece que, durante a maior parte da nossa histéria, 0 ensino secundario absorveu toda a vide escolar do pais, © ensino superior, depois de hascet, ndo tardou a enfraquecer completamente para renascer apenas a partir yoUCACKS socrepans & cULTURAS da guerra de 1870, O ensino primario aparece entre nds muito tardiamente e s6 apés 2 Revolucdo teve 0 seu desenvolvimento. Assim sendo, durante uma boa parte da nossa existéncia nacional, 0 ensino secundério ocupou toda a cena Disto resulta, primeiramente, que ndo podemos fazer a sua historia sem fazer, ao mesmo tempo, a hist6ria geral do ensino e da pedagogia em Franca, Vamos, assim, descrever a evoluco do ideal pedagégico francés, no que tem de mais essencial, através das doutrinas que de vez em quando tenham tratado de tomar consciéncia de si, e através das instituigdes escolares que tiveram a fun- 0 de o realizar. E dado que fof nos nossos colégios que desde o século XIV XV se formaram as forcas intelectuais mais importantes do pais, € quase uma hist6ria do espirito francés o que tentaremos fazer. Por outro lado, este impor- tante papel do ensino secundirio no conjunto da vida social do nosso pais, € que ndo se encontra em nenhum outro sitio do mesmo modo, podemos estar seguros, desde logo, que se deverd a alguma caracteristica distinta, pessoal, a alguma idiossincrasia do nosso temperamento nacional, idiossincrasia de que temos que nos dar conta, parque temos de procurar as causas que expliquem, esta particularidade do nossa historia pedagégica. Historia da pedagogia e eto- logia colectiva estéo, de facto, estreitamente ligadas, Depois de ter determinado assim o modo como entendemos © tema que vamos tratar, necessitamos abordar agora o interesse miiltiplo que representa. No entanto, por once comegar? Em que momento devemos comegar esta his- térla do ensino secundario? Para bem se compreender o desenvolvimento de um ser vivo, para se expli- carem as formas que apresenta nos momentos sucessivos da sua historia, teria que se comecar por conhecer a constitwi¢io do gérmen inicial que € 0 ponto de partida de toda a sus evolugio. Sem diivida, hoje nao se admite que um ser esteja completamente formado no ovo de que surgiu; sabe-se que a accao do meio ambiente, das circunstincias exteriores de todo o tipo, néio sao de des- prezar. Nao € menos certo que o 6vulo tem uma influéncia considerdvel sobre toda a sucessio da transformagdo, O momento em. que se constitui a primeira célula viva € um instante radical, incomparavel, cuja acco se faz sentir durante toda a vida. O mesmo acontece nas instituigdes sociais, quaisquer que sejam, como seres vivos. O seu futuro, o sentido em que se desenvolvem, a forga que apresentam na sucessdo da sua transformacao, dependem estritamente da natu- soe eoUCAGay soctepape & cuLTURAS reza do primeiro gérmen de que surgiram. Aqui, todavia, o papel do gérmen é considerivel, Assim, para se compreender 0 modo como se desenvolveu o sis- tema de ensino que nos propomos estudar, para entender o que chegou a ser, néio podemos temer 0 ter que remeter para as suas origens mais longinquas, Nao devemos parar nem no Renascimento nem na Escolastica. H4 que nos remetermos para mais longe, até que tenhamos alcancado o primeiro nticleo de ideias pedag6gicas ¢ 0 primeiro embridio da instituigio escolar que se encontra na historia das nossas sociedades modernas. A partir desta ligéo pode- remos comprovar que estas investigacdes retrospectivas nao so indteis e que cerlas particularidades essenciais das nossas concepgSes actuais levam ainda o selo destas influéncias muito remotas. No entanto, onde podemos encontrar este nticleo, esta célula germinal? Toda a matéria-prima da nossa civilizagdo intelectual nos chegou de Roma. Pode, pois, prever-se que a nossa pedagogia, os principios fundamentais do nosso ensino vieram da mesma fonte, dado que 0 ensino nao € mais do que o resumo da cultura intelectual do adulto. Contudo, por que via ¢ sob que forma se efectuou esta transmissio? Os povos germénicos, se nao todos, pelo menos os que deram 0 seu nome ao nosso pais, eram barbaros insensiveis a todos os refinamentos da civilizacdo. Letras, artes, filosofia eram para eles coisas sem valor; sabemos inclusivamente que os monumentos de arte romana $6 suscita- vam entre eles Odio e depreciacdo, Havia, pois, entre os romanos ¢ eles um verdadeito vazio moral que devia, ao que parece, impedir entre estes dois povos toda a comunicagao toda a assimilagdo, Dado que estas duas civiliza- gOes eram até este ponto estranhas uma 4 outra, ndo podiam, parece, fazer mais do que repelirem-se mutuamente. No entanto, felizmente, houve, nio de imediato sem davida, mas muito prontamente, um momento em que estas duas sociedades, antes antag6nicas e que s6 mantinham uma com a outra relagdes de tivalidade e de exclusio miitua, se aproximaram uma da outra e se comunica- ram entre si, Muito rapidamente, um dos Orgiios essenciais do Império Romano prolongou-se até a sociedade francesa, nela se estendeu e se desenvolveu sem mudar por isso de natureza: foi a Igreja. A Igreja serviv de mediadora entre os povos heterogéneos, foi ela o canal por onde a vida intelectual de Roma pas- 30U, @ pouco e pouco, para as sociedades novas que estavam em vias de for magio. E esta transfusio fez-se precisamente pelo ensino. gr¥CACay soctepapE & CULTURAS A primeira vista, seguramente, pode parecer surpreendente que 2 Igreja, ainda que permanecesse idéntica a si mesina, tenha conseguido deixar raizes € prosperar de igual modo em meios sociais td0 radicalmente diferentes. O que caracterizava essencialmente a Igreja ea moral que defendia era 0 desprezo pelos prazeres deste mundo, pelo luxo material ¢ moral; pretendia substitu a alegria de viver pelos gostos mais severos da rentincia. Que tal dovtrina tenha sido conveniente para o Império Romano, farto de largos séculos de hiperci- vilizacio, € 0 mais natural. Nao fazia mais do que traduzir e consagrar o senti- mento de saciedade e de fastio que produzia desde hé bastante tempo a socie- dade romana e que desde 0 epicurismo € 0 estoicismo se tinham expressado a sua maneira, Tinham-se esgotado todos os prazeres que podem dar os refina- mentos da cultura; estava-se, pois, preparado para recorrer, como salvagao, a uma religio que vinha revelar 20s homens uma fonte muita diferente de felici- dade. No entanto, como é que esta mesma religito, nascida no seio de uma sociedade envelhecida e em decomposi¢2o pode ser aceite tao facilmente pelos povos jovens, que longe de terem abusado dos prazeres deste mundo, nao os haviam ainda esgotado, que, longe de estarem cansados da vida, acaba- vam de entrar nela? Como & que sociedades tho robustas, to vigorosas, lo wansbordantes de vitalidade puderam submeter-se to espontaneamente a uma disciplina t40 deprimente que hes ordenava, antes de mais nada, que se contivessem, privas- sem ¢ renunciassem? Como € que estes impulsos fogosos puderam, impacien- tes em toda a sua medida e com todo o freio, acomodar-se a uma doutrina que thes recomendava, acima de tudo, que se limitassem? A contradigao € to sur- preendente que Paulsen, no seu geschichte des gelebrien Unterricbis, nao hesita em admitir que toda a civilizacdo da Idade Média continha ém si, em principio, uma contradigio interna e constitufa uma verdadeira antinomia, Segundo ele, o contetido ¢ 0 continente, a forma ¢ a matéria desta civilizagao contradiziam-se € negavam-se reciprocamente. © contetido era a vida real dos povos germa- nicos com as suas paixdes violentas, indémitas, a sua necessidade de viver e de gozat, € 0 continente era a moral crist’ com a sua concepeao de sactficio e de reniincia, 0 seu gosto to marcado pela vida limitada e regulamentada, No entanto, s¢ a civilizagio medieval tivesse verdadeiramente encerrado no seu seio uma contradigdo téo flagrante, uma antinomia tao insoltivel, nao teria s¥eACEy socispans & cuLTuRas durado, A matéria teria rompido esta forma, que era tho pouco adequada para cla; 0 contetido teria arrebatado o continente; as necessidades sentidas pelos homens teriam, de seguida, feito esialar a moral rigida que as comprimia. Contudo, na realidade, havia um aspecto em que a doutrina se encontrava em perfeita harmonia com as aspiracées e 0 estado de animo das sociedades germinicas, Era, por exceléncia, a religito das criancas, dos humikies, dos pobres, pobres em bens e pobres de espitito. Exaltava as virtudes da humil- dade, da mediocridade tanto intelectual como material. Ponderava a simplici- dade dos coragdes das inteligéncias. Sendo assim, os germinicos, porque eram povos pequenos, eram, também, simples e humildes. Seria um erro ima- ginar-se que levavam uma vida de desenfreamento passional. A sua existéncia estava melhor composta de actos involuntirios, de privagdes forcadas, de rudes trabalhos que vinham a interromper, quando alguma ocasido surgia, orgias vio- Jentas, mas intermitentes. Povos ainda ontem némadas nao podiam ser mais do que povos pobres, miserdveis, de costumes simples, ¢ que deviam natural- mente acolher com alegria uma douttina que glorifica a pobreza, que defende a simplicidade de costumes. Esta civilizagio pag’, que a Igreja combatia, era- -lhes menos odiosa que a propria Igreja; cristdos e germanicos eram igualmente seus inimigos, e este sentimento comum de hostilidade, de aversio, unia-os estreitamente, porque uns e outros tinham a sua frente o mesmo adversario. Deste modo, a Igreja nascente nao hesitava em pér os barbaros acima dos gentis, em testemunhar-thes uma verdadeira preferéncia: «Os bérbaros, diz Sal- viano aos romanos, so melhores do que vos Havia, pois, uma poderosa afinidade, uma simpatia secreta entre a Igreja ¢ os birbaros; isto explica o facto de a Igreja ter conseguido cimentar-se e implantar-se tao fortemente entre eles. Respondia as suas necessidades, as suas aspiragdes, dava-lhes um consolo moral que nao encontravam noutro lado. No entanto, por outro lado, era de origem greco-tatina e 86 podia per- manecer mais ou menos fiel as suas origens. Tinha-se formado e organizado no mundo romano; a lingua latina cra a sua lingua; estava completamente impcegnada pela civilizagéo romana. Como consequéncia, 20 introduzir-se nos meios barbaros, introduziu neles, ao mesmo tempo, esta mesma civilizagio da qual no se podia desfazer, fosse ela o que fosse, € assim se tomou a profes sora natural dos povos que convertia. Estes s6 pediam & nova religiio uma f6, eP¥CACAG SOCIEDADE & CULTURAS uma base moral; mas, ocasionalmente, encontraram uma cultura como coro- lario desta fe. Nao obstanie, se a Igreja desempenhou realmente este papel, foi tendo em conta uma contadicao contra a qual se debateu durante séculos sem nunca poder sair dela, Com efeito, nesses monumentos literdrios ¢ artisticos da Antiguidade vivia e respirava este espitito paglo cuja destruico a Igreja consi- derava tarefa sua; sem contar que, de uma forma geral, a arte, a literatura € a ciéncia s6 podiam inspirar ao fiel ideias profanas € separi-lo do tinico pensa- mento ao qual deveria dar-se por inteiro, 0 pensamento da sua salvagio. A Igreja nfo podia deixar espaco as letras antigas sem escrapulo € sem inquieta- clo. Assim, os padres insistiram nos petigos a que se expde 0 ctisto que se entrega sem medida aos estudos profanos. Multiplicam as recomendagdes para ‘os reduzir a0 minimo. No entanto, por outro lado, nao podiam passar sem eles. A seu pesar, estavam obrigados a nao os prescrever ¢ isto confirma a regra enunciada por Minucius Felix: Si quando cogimur titterarum secularium recor- dari et aliguid ex his discere, non nostrae sit voluntatis, sed, ut ita dicam, gravissimae necessitatis. Com efeito, antes de mais nada, o latim era irremedia- velmente a lingua da Igreja, a lingua sagrada em que estavam redigidos os canones da fé. Deste modo, como aprender latim sen2o nos monumentos da literatura latina? Podiamos elegé-los com discernimento, deles admitir apenas um pequeno nimero, mas, de um modo ou de outro, era preciso a eles recor- rer. Por outro lado, enquanto que o paganismo era sobretudo um sistema de priticas riruais, além de ser indubitavelmente uma mitologia, embora vago, inconsistente © sem forca expressamente obrigatoria, o cristianismo era, pelo contrério, uma religito idealista, um sistema de ideias, um corpo de doutrinas. Ser cristo no era praticar segundo prescrigdes tradicionais tal e qual uma ope- rago material, era aderi a certas verdades da (6, partilhar certas crengas, admi- tir certas ideias. Deste modo, para inculear préticas, bastava um simples adestramento ma- quinal, era inclusivamente 0 Gnico meio eficaz; no entanto, as ideias, os senti- mentos, s6 podem comunicar-se através do ensino, € que este ensino se disija a0 coraco ou a raz4o, ou a um e a outro de cada vez. Por isso, desde que se fundou o ctistianismo, a pregagio, que ao contririo era desconhecida na Anti- guidade, nele ocupou sapidamente uma parte importante; porque pregar é ensi- gr¥CAcgy sociepane & curtuaas ‘nas, Ora, 0 ensino supde uma cultura € nao havia entao outra cultura sendo a aga. Era preciso, pois, que a Igreja dela se apropriasse. O ensino, a pregacio, pressupde naquele que ensina uma certa pritica da lingua, uma certa dialéctica, um certo conhecimento do Homem e da historia, Deste modo, onde encontrar estes conhecimentos sendo nas obras dos antigos? O tinico feito em que a dou- tina ctisté foi complexa foi nesses livros, que se expressou diariamente nas pre- ces que dizia cada fiel e das quais devia conhecer nao s6 a letra, mas também o espitito, 0 que obrigava, tanto ao sacerdote como ao laico, a adquirir uma ceita cultura. E 0 que demonstra Santo Agostinho na sua Doctrina Christiana, E preciso ver que para bem entender as Santas Escrituras temos que ter um conhecimento profundo da lingua e das mesmas coisas expressas pelas pala- vras. Porque quantos simbolos, quantas figuras so ininteligiveis se nfo tiver- mos uma nocao das coisas que entram nessas figuras ov nesses simbolos? A historia € incispensivel para cronologia. A prpria ret6rica € uma arma sem a qual nfo pode passar 0 defensor da fé; porque haveria de permanecer débil ¢ desarmado frente ao erro que deve combater? Tals silo as necessidades superiores que forcaram a Igreja a abrir escolas e a deixar espaco nas escolas & cultura paga. As primeiras escolas deste tipo foram, as que abriram junto as catedrais, Os seus alunos eram sobretudo jovens que se preparavam para 0 sacerdécio; no entanto, recebiam-se nelas laicos que ainda nao se haviam decidido a abragar o santo ministério. Os alunos viviam ali juntos em convicis, formas muito novas e muito particulares de estabeleci- meatos escolares, a cuja significacao teremos oportunidade de voltar, Sabemos, muito particularmente, que Santo Agostinho fundou em Hipona um convict deste tipo, de onde sairam, segundo informa a biografia do santo, Possidius, dez bispos ilustres pela sua ciéncia e que, por sua vez, fundaram nos seus bis- pacos estabelecimentos andlogos. Natural ¢ itremediavelmente, a instituigao propagou-se pelo Ocidente; descreveremos a sua sorte. No entanto, o clero secular nao foi o tinico a suscitar escolas. © clero regu- lar, desde a sua aparicao, teve ele proprio o mesmo papel. O monacato nao teve uma influéncia pedagdgica menos considerivel que o episcopado. Sabe-se, de facto, como desde os primeiros séculos do cristianismo a dou- trina da rentincia fez nascer a instituic¢do monacal. A melhor maneira de esca- par & corrupgao do século nao seria sair dele completamente? Assim, desde as pPPeh Gag socigpape & CULTURAS séculos III e IV vemos multiplicar-se, desde o Oriente até a Gélia, comunidades de homens e de mulheres. As invasdes, as comogdes de todo o tipo, quaisquer que tenham sido as suas consequéncias, aceleraram 0 movimento, Parecia que ‘© mundo ia acabar: orbis nuit, 0 avundo vinha abaixo por todos os lados, e as multidées salvavam-se nos lugares desertos. No entanto, 0 monacato cristao distinguiv-se, desde o inicio, do monacato hinda, por exemplo, na medida em que nunca foi meramente contemplativo. Isto porque o cristo no deve velar 86 pela sua salvag%o pessoal, mas sim pela salvagio da humanidade. O seu papel € preparar o reino da verdade, o reino de Cristo, ndo somente na sua consciéncia, mas sim no mundo. A verdade que possui nio deve guardé-la piedosa ow zelosamente para ele proprio, mas sim espalhd-la activamente em seu redor. Deve abrir para a luz os olhos que mio a veer, deve levar a palavra da vida Aqueles que no a conhecem e que no a entendam, deve recrutar para Cristo novos soldadlos. Para ele, é indispensvel que nao se encerre num, isolamento egoista, € preciso que, ainda que fuja do mundo, permanega em contacto com ele. Por isso, 0s monges no foram simples solitarios medita- dores, mas sim activos propagadores da fé, pregadores, conversores, mission’- ios, E por isso, ao lado da maioria dos mosteiros, constituiu-se uma escola onde nao s6 os candidatos & vida monacal, mas também as criangas de todas as condigdes e de todas as vocagées, iam receber uma instrugdo tanto religiosa como profana Escolas catedtais, escolas claustrais, este é 0 tipo bastante humilde ¢ bas- tante modesto de onde surgiu todo o nosso sistema de ensino. Escolas primé- tias, universidades, colégios, tudo procede dai; e por isso é preciso partir dai. E também porque a nossa organizacdo escolar com toda a sua complexidade derivou desta célula primitiva, esta € a que nos explica e a nica que pode explicar-nos certas caracteristicas essenciais que apresentou ao longo da sua historia € que conservou até aos nossos dias. Fim primeiro lugar, agora pode compreender-se, porque € que o ensino permaneceu durante tanto tempo, aqui e nos restantes povos da Europa, como coisa da Igreja e como um anexo da religtio; porque é que, inclusivamente depois que os professores deixaram de ser sacerdotes, contudo, conservaram ainda ~ ¢ durante muito tempo ~ algo da fisionomia sacerdotal ¢ inclusivamente das obsigagdes sacerdotais (principalmente a obrigagio do celibato). Quando grUOrcay sociepape & currunas observamos, numa época um pouco mais avangada, esta absor¢4o do ensino pela Igreja, poderfamos ficar tentados a ver nele o resultado de uma manobra politica; poderiamos acreditar que a Igreja se apoderou das escolas para obs- truir toda a cultura cuja natureza pudesse estorvar a f6. Na verdade, esta dependéncia procede simplesmente do facto de as escolas terem comegado por ser obra da Igreia; a Igreja trouxe a sua existéncia, e assim se encontraram, desde 0 seu nascimento, desde a sua concepgdo, por assim dizer, marcadas pelo seu caracter eclesidstico, do quat tantas dificuldades tiveram em despojar- -se depois, Se a Igreja teve esse papel foi porque s6 ela o podia desempenkhar. $6 ela podia servir de professora aos povos barbaros € inicié-los na Gnica cul- tura que entdo existia; refiro-me a cultura classic. Porque como ela continha ao mesmo tempo a sociedade romana e as sociedades germinicas, como tinha de certo modo duas caras € dois aspectos, como ainda conservasse pontos de contacto com © passado, estava, ndo obstante isso, orientada para o futuro, podia, e s6 ela podia, servir de ponto de unio entre esses dois mundos tio dispares. No entanio, vimos que, a0 mesmo tempo, esse embrido do ensino continha em si uma espécie de contradigaio. Era formado por dois elementos que, sem davida, se se atraiam num sentido e se completavam, contudo, por vezes, se excluiam mutuamente, Estava, por um fado, 0 elemento religioso, a doutrina cristé; por outro, a civilizacao antiga e todos os empréstimos que a Igreja foi obrigada a receber dela, ou seja, 0 elemento profano, Para se defender e para se estender, a Igreja, como vimos, era obrigada a apoiar-se numa cultura e esta cultura 36 podia ser paga, dado que nao havia outra. No entanto, as ideias que se desprendiam dela contrastavam evidentemente com aquelas que estavam na base do cristianismo, Entre umas e outras estava todo 0 abismo que separa o sagrado do profano, 0 laico do religioso. E assim se explica um facto que domina todo 0 nosso desenvolvimento escolar e pedagogico: se a escola come- cou por ser essencialmente religiosa, por outro lado, desde que se constituiu, viu-se tender por si mesma a assumir um cardcter cada vez mais laico, porque, desde 0 momento em que apareceu na historia, tinha em si um principio de laicismo. Nao se sabe como, nao recebeu este principio de fora, ao longo da sua evolugio; era-lhe intrinseco. De débil e rudimentar, como era no inicio, aumentou € desenvolveu-se; de um segundo plano, passou a pouco € pouco eoUC Cag SOCIEDADE && CULTURAS para primeiro, contudo existia desde a sua origem. Desde a sua origem, a escola continha em si mesma o gérmen desta grande luta entre o sagrado e © profano, o ico ¢ 0 religioso, cuja historia vamos descrever. No entanto, a organizagio exterior deste ensino nascente apresenta jé uma particularidade essencial que caracteriza todo o sistema que se seguiu. Na Antiguidade, o aluno recebia a sua instrugio de professores diferentes uns dos outros e sem nenhum vinculo entre eles. Ia a casa do gramitico ov do literata para aprender gramética, a casa do citarista para aprender misica, a casa do retrico pata aprender retérica, etc. Todos estes ensinos diversos se reuniam nele, no entanto ignoravam-se mutuamente. Era um mosaico de ensi- nos diversos que s6 se relacionavam exteriormente. Vimos que isto é muito distinto nas primeiras escolas cristiis. Toclos os ensinos estavam ali agrupados, se davam num mesmo lugar, € em consequéncia, estavam submetidos 2 uma mesma influéncia, a uma mesma direego moral. Era a que emanava da dou- trina cist, era a que formava as almas. A dispersio anterior sucedia, pois, uma unidade de ensino. No entanto o contacto entre os professores € os alu- nos era constante; de facto, esta permanéncia dle relagdes era 0 que caracteri- zava © convict, esta primeira forma de internato, Na verdade, esta concentra- cdo do ensino constitui uma inovago capital, que testemunha uma mudanga profunda vinda da concepgio que se tinha da natureza e do papel da cultura intelectual. As escolas monacais até ao renascimento carolingio ‘Vimos na Ultima licao o gérmen de que o nosso actual sistema de ensino so € 0 prolongamento, Ao lado das catedrais € nos mosteiros abritam-se escolas que se podem considerar como o primeiro embrido da nossa vida escolar. E tal como o gérmen contém jf, de forma rudimentar, as propriedades caractetisticas do ser vivo que dele deve sais, encontramos neste primeiro gérmen da nossa organizago pedagogica a origem de certas particularidades que distinguem a sua evolucio ulterior. De facto, dado que as escolas nasceram na Igreja, dado que sto obra da Igreja, explicamos sem dificuldade que foram na origem algo essencialmente religioso, que © espirito religioso predominou nelas; no entanto, 4o¥CACay socrEpaDE & GULTURAS por outro lado, porque continham jé um elemento profano, a saber, todos os empréstimos tomados pela igteja da civilizag&o paga, percebe-se como, enquanto s¢ constitufam, se esforgavam por se desembaracar do seu caricter eclesiastico € tornarem-se cada vez mais laicas. Porque 0 principio do laicismo que estava nelas, desde esse momento, tinha tendéncia a desenvolver-se. O inicio deste desenvolvimento é inexplicavel se nao se tiver em conta necessidade que teve a Igreja nascente de -tomar emprestada« a matéria do seu ensino do paganismo, quer dizer, de se abrir a ideias € sentimentos que contradiziam a sua propria doutrina, Isto nao € tudo; a anlise desta primeira organizacdo escolar vai ajudar-nos a compreender um dos carficteres ca nossa organizagio presente, a0 qual inclusivamente ndo atendemos ordinariamente, de to habitual como nos che- gou a ser € que, no entanto, merece atrair a nossa atencdo. Na Antiguidade, tanto grega como latina, o aluno recebia a sua instrugdo de professores diferentes uns dos outros ¢€ sem neahuma ligacdo entre eles. Cada um dos seus professores ensinava em sua casa, a sua maneira, € se estes ensi- 10s diversos se reuniam na mente do aluno que os recebia, isso dava-se inde- pendentemente uns dos outros e ignorando-se reciprocamente, Nenhum im- pulso, nenhuma orientago comum, Cada um se dedicava sua propria rarefa; um ensinava-o a ler, outro a utilizar o seu idioma correctamente, outro a fazer misica, outro a falar como homem eloquente. No entanto, cada um destes fins era perseguido em separado, Ja no acontece o mesmo nas primeiras escolas cristis, A escola crist2, desde que apareceu, tem a pretensdo de dar a ctianga a totalidade da instrugio que convém para a sua idade; envolve-a por completo, Encontra nela tudo o que necesita. Inclusivamente, ndo € obtigada a abando- néla para satisfazer as demais exigéncias materiais; passa ali toda a sua exis- téncia; ali come, ali dorme, ali se dedica aos seus deveres religiosos. De facto, esta é a caracteristica do convict, esta € a primeira forma de internato. A extre- ma dispersdo anterior sucede, pois, uma extrema concentragao, E como nesta escola reina uma Gnica ¢ mesma influéncia, a influéncia da ideia crist, a crianca enconira-se submetida a esta tinica influéncia em todos os momentos da sua vida. Na verdade, esta novidade na organizago contém uma nova concepeo da educagio e do ensino. pPUeACag socigpane & curtunas Na Antiguidade, a educaco tinha como objectivo comunicar a crianga uma ceria quantidade de talentos determinados, jf que considerava estes conheci- mentos uma espécie de ornamentacdo destinada a realgar o valor estético do individuo, j4 que via neles, como em Roma, instrumentos de accdo, Gteis, daqueles que se tem necessidade para desempenhar um papel na vida. ‘Tanto num caso como noutro, tratava-se de inculcar no aluno tais habitos, tais conhe- cimentos. Na verdade, esses conhecimentos definidos, esses habitos particula- res podiam, sem nenhum inconveniente, adquirirse em casa de professores diferentes, N3o se tratava de actuar na sua personalidade, no que compée a sua unidade fundamental, mas sim de revesti-la de uma espécie de armadura exterior cujas diferentes pecas podiam forjar-se independentemente umas das outras de modo que cacla obreiro podia colocé-las em separado. O cristianismo, pelo contrario, percebeu em seguida que, sob este estado particular da inteli- géncia e da sensibilidade, ha em cada um de nés um estado profundo de onde desivam. os primeiros ¢ onde se encontra a sua unidade; e que este estado pro- fundo é 0 que se tem de conseguir se quiser actuar verdadeiramente como um educador e exercer uma acco duradoira. Percebeu que formar um homem nao € adorar o seu espirito com certas ideias, nem fazé-lo contrair certos habi- tos particulares, é criar nele uma disposigo geral de espitito e de vontade que © deixe ver as coisas em geral sob uma luz determinada, £ facil entender como o cristianismo criou esta instituigo. Acontece que, como dissemos, para ser cristo nao basta ter aprendido isto ou aquilo, saber discernir certos ritos e pronunciar certas formulas, conhecer certas crengas tra- dicionais. O cristianismo consiste essencialmente num certo estado de alma, num certo habitus do nosso ser moral, Suscitar na crianga esta atitude sera o objectivo essencial da educacao, Isto 0 que explica a aparigiio de uma ideia que a Antiguidade ignorou completamente e que, pelo contririo, deu ao cris- tianismo um papel considerivel: a ideia da converséo. De facto, uma conversio, tal como a entende o cristianismo, nao é a ade- sdo a certas concepgées particulares, a certas verdades determinadas pela fé. A verdadeira conversio € um movimento profundo pelo qual toda a alma, a0 girar numa direccio completamente nova, muda de posigio, de base e modi- fica, consequentemente, 0 seu ponto de vista sobre 0 mundo, Nao se trata tanto de adquirit uma determinada quantidade de verdades enquanto que este erUeaCig SOCIEDADE & CULTURAS movimento se possa realizar instantaneamente, Pode suceder que, sacudida até 0s seus alicerces por um golpe repentino ¢ forte, a alma efectue esse movi- mento de conversio, quer dizer, mude a sua orientago bruscamente de uma 86 vez, Isto é 0 que acontece quando, para empregar a terminologia consa- grada, € subitamente tocada pela graca. Entio, por uma espécie de viragem brusca, num abrir e fechar de olhos, encontrar-se-a frente a perspectivas completamente novas; revelam-se perante ela realidades insuspeitiveis, mun- dos ignorados, vé, sabe coisas que wm instante antes ignorava por completo. No entanto, esta mesma deslocagiéo pode produzir-se lentamente, sob uma presséo gradual ¢ insensivel; e ¢ isto que se passa de facto na educagéo. & necessério unicamente, para se poder actuar com tal forga sobre as profundi- dades da alma, evidentemente, que as diferentes influéncias a que esta subme- tida a crianga nao se dispersem em sentidos divergentes, nuas que estejam, pelo contririo, energicamente concentradas em torno de um mesmo objectivo; s6 se pode chegar a este resultado fazendo as criangas viver num mesmo meio moral, que esteja sempre presente perante elas, que as envolva, a cuja accio nfo possam, por assim dizer, escapar. Assim se explica a concentragao de todas as aprendizagens, e inclusivamente de toda a vida da crianca, na escola, tal como 0 ctistianismo a onganizou. Na verdade, ainda hoje ndo entendemos a educacio intelectual de outra forma. Para nés, também, tem por principal objectivo nao dar a crianga conhe- cimentos mais ou menos numerosos, mas sim constituir nela um estado interior e profundo, uma espécie de polaridade da alma que a oriente num sentido definido no s6 durante a infancia mas durante toda a vida, Isto nao é, indubi- tavelmente, para fazer dele um cristo, dado que temos renunciado a perseguir fins confessionais, mas sim para fazer dela um homem. Porque do mesmo modo que para ser cristo temos que adquirir uma forma cristi de pensar e de sentir, também para se tornar num homem ndo basta ter a inteligéncia cheia de uma cesta quantidade de ideias, mas antes ter adquirido uma forma verdadeira- mente humana de sentir e de pensar. A nossa concepcdo deste objective secu- Jarizou-se; por consequéncia, os meios utilizados devern mudar em si-mesmos; no entanto, o esquema abstracto do processo educativo nao variou, Trata-se sempre de descer a essas profundidades da alma, das quais a Antiguidade no tinha consciéacia, er¥CACKS SOCIEDADE (& CULTURAS Assim se explica a nossa concepgdo presente da Escola. Porque, para nds, a Escola no deve ser uma espécie de hotel onde professores diferentes, estra- nhos uns 20s outros, vio dar ensinamentos heterogéneos a alunos temporaria mente reunidos e sem vinculos entre eles. Para nds também, a Escola, em todos os graus, deve ser um meio moralmente unido, que envolva a crianca € que actue sobre toda a sua natureza. Compatamo-la com uma sociedade, fala~ mos da sociedade escolar, ¢ é, de facto, um grupo social que tem a sua uni- dade, a sua fisionomia propria, a sua organizagio, exactamente igual 2 socie- dade dos adultos. Isto supde evidentemente que nio é simplesmente consti- tuida, como na Antiguidade, por uma assembleia de alunos reunidos exterior- mente num mesmo local, Bsta nogdo de Escola, como um meio moral organi- zado, é t20 habitual para nds que acreditamos que existiu desde sempre. ‘Vemos, pelo contririo, que € de origem relativamente tardia, que s6 apareceu que 36 podia aparecer num momento determinado da hist6ria, que € solidlria com um determinado estado da civilizagéo e vimos qual é esse estado. $6 podia nascer quando se formaram povos para 0s quais o verdadeito selo da cultura humana consistia no na aquisicao de certas priticas ou habitos mentais determinados, mas sim numa orientagao geral do espirito ¢ da vontade, quer dizer, quando os povos chegaram a um grau suficiente de idealismo. Desde entio, a educagdo teve necessariamente por objectivo dar a crianca o impulso necessario no sentido que convinha, ¢ era preciso que estivesse organizada de maneira que pudesse produzir o efeito profundo e duradoiro que se esperava dela. Esta observagao gera outta, como corolério. Quando se chama Idade Média 20 periodo historico que decorreu entre a queda do Império Romano o Renas- cimento, concebemo-lo evidentemente como uma época intermédia, cujo pape! tetia sido unicamente o de servit de ponto de unido entre a Antiguidade e os tempos modernos, entre o momento em que se extinguiu a civilizagio antiga e aquele em que se despertou para recomegar um caminho novo. Parece que nao teve outra funcdo histérica para além de estar af, ocupar a cena durante uma espécie de entreacto, No entanto, nada € mais inexacto do que esta con- cepcdo de Idade Média e nada, por conseguinte, é mais impréprio do que a palavra pela qual se designa esta época. Muito longe de ter sido um simples periodo de transi¢do, sem originalidade, entre duas civilizagdes originals e bri- erUCaCag soctepape & curturas lhantes, é pelo contrdrio um perfodo em que se elaboraram os gérmens fecun- dos de uma civilizagao completamente nova. E é isto que nos mostra principal- mente a historia do ensino e da pedagogia. A Escola, tal como a encontramos no inicio da Idade Média, constitui, de facto, uma grande € importante novi- dade; distingue-se por rasgos separados de tudo o que os antigos chamavam pelo mesmo nome. Sem ditvida, jf 0 temos dito, pede emprestada a civilizacZo pag a matéria do ensino que ai se ministrava, no entanto esta matéria elabora- -se de um modo completamente novo. E 0 que acabamos de mostrar. Contudo, pode dizer-se que foi neste momento que a Escola, no verdadeiro sentido do termo, apareceu. Porque uma escola nao é simplesmente um local onde um professor ensina; é um ser moral, um meio moral, impregnado de certas ideias, de certos sentimentos, um meio que envolve tanto 0 professor como os alunos. Na verdade, a antiguidade nao conheceu nada parecido. ‘Teve professores, nao teve no entanto verdadeiras Escolas. A [dade Média fol, pois, em pedagogia, inovadora. Veremos mais tarde o alcance desta observacdo. Agora que jé caracterizAmos a nascente Escola Cristi de forma geral, temmos de tratar de descrever a sua histéria no nosso pais. Depois da ocupacao romana, a Galia abriu-se as letras latinas, Esta transfor- magio, para dizer a verdade, n&o se produziu de seguida, imediatamente depois da ocupacio. A Gélia aprendeu primeiro com os seus vencedores a transformar 0 seu solo e o aspecto material das suas cidades; construiu, aro- teou, enriqueceu-se, Mas no século IV estava madura para receber uma cultura intelectual ¢ isso aconteceu. Os municipios atrairam professores, fundaram-se escolas de entre as quais houve muitas que brilharam com um resplendor excepcional: € 0 caso das escolas de Marselha, de Bordéus, de Autun, de ‘Tréves, etc. Muitos bispos cristdos das Gdlias formarani-se nestas escolas, ali aprenderam a gostar da literatura antiga e, por conseguinte, esforgaram-se por conciliar 0 culto das belas-letras com as exigéncias da nova {é. Este resplendor sobreviveu inclusivamente as primeiras invasGes dos barbaros. Alguns deles, como os godos € os borgonheses, jé cristios, invejaram muito cedo aos Gélios a comtesia dos seus habitos e fizeram-se iniciar nas letras, nas ciéncias e nas artes. Viu-se Teodorico estudar retérica e direito romano em Toulouse; Gonde- baud, rei dos borgonheses, a aprender grego e a chamar para o seu lado sabios tomanos aos quais confiava 0 mais altos cargos. Sem divida, houve um pri- eP¥CNCAG sociepapg & curturas ‘meiro momento de desordem e desconcerto; mas muito rapidamente se torna- ram a ver abrir as escolas € a vida retomou o seu curso. No entanto, nfo ocorreu © mesmo quando os francos, por sua vez, atraves- saram o Rin e se espatharam pela Gélia, Passaram como uma yerdadeira tor rente furiosa por cinta de todas as povoagées em que se haviam estabelecido sucessivamente no pais, romanos, gilios, godos e borgonheses, nao deixando atrés deles mais do que ruinas. -Seria dificil, dizem os autores da Historia lite- varia de Franca, detalhar todas as més consequéncias que deixou atrés de si o desejo feroz destes novos habitantes das Galias:, $e ignoramos os pormenares de todas estas devastacdes, € porque esses tempos sombrios nao tiveram his- t6ria, “Nessa altura no se escrevia, porque ainda no se sabia escrever:. Vae diebus nosiris, exclama Gregorio de Tours, quia periit studium litterarum a nobis, Ai de nds, porque o gosto pelas letras desapareceu do nosso meio, E, com efeito, este mesmo Gregorio de Tours, que sem diivida era considerado no seu tempo como um erudito € um grande orador, confessa-nos ele proprio que nao tem nenhum conhecimento das letras, nullam litterarum scientiam. Nunca aprenden nem a retérica, nem a gramitica: Sum sine litteris rbetorics et arte grammatica, Nao podemos imaginar a rapidez com que se fizeram estas destruigdes. Entre Gregorio de Tours e Sidoine Appolinaire (morto em 489) ha apenas um espaco de cinquenta anos. Na verdade, quando se comparam as obras de antes e depois, elas parecem, como se disse, -pertencer a duas épocas do mundo». Se, neste momento, no se encontrasse ali a Igreja, ter-se-ia perdido a cul- tura humana, e poderfamos perguntar o que teria acontecido com a civilizagio. No entanto, por um lado, os conquistadores francos, 4 medida que punham os pés na Gélia, convertiam-se & nova f ¢ a Igreja tornou-se uma forca regular do novo Estado que se formava, Como consequéncia, tudo o que ela protegia, todos 0s vestigios do passado a que pode dar asilo, participaram da protec¢do de que ela gozava e beneficiaram da situagdo privilegiada que se the tinhs dado. Na verdade, como temos mostrado, nio podia prescindit completamente as letras antigas, unicamente pata poder falar ¢ entender a lingua, que se con- verteu desde essa altura na lingua do culto. Por isso, gracas a ela, salvow-se um pouco da Antiguidade. De todas as escolas municipais que ilustraram a Gélia a partir do século IV nao sobrou nada, todas foram varridas, arrastadas pela cor- | I gp UCACdg socizpape & CULTURAS rente da invasdo; unicamente as escolas das catedrais e dos mosteiros perma- neceram abertas. Foram os Gnicos érgos da educagio piblica, os imicos luga- res de asilo da actividade intelectual, € gragas a ¢las ndo houve uma interrup- do completa, solugdo de continuidade irrepasiivel no progresso humano. Contudo, nao devemos exagerar a importincia da vida literdria que conse- ‘guiu assim sobreviver, Vimos que, se a Igreja estava obtigada a recorrer @ Anti- guidade classica, era a seu proprio pesar; apontémos as razdes para ela suspei- tar dos estudos seculares. Mas, por outro lado, os barbaros nao sentiam ne- nhuma necessidade deles. Compreende-se assim que tivessem chegado a estar ‘no meio desta dupla indiferenca, ou melhor, desta dupla hostilidade. O distan- ciamento que espontaneamente experimentava a Igreja de toda a ciéncia pro- fana, reforgado pelo mesmo distanciamento que experimentavam os barbaros, jf nao conheceu limites. Continuou ensinando um pouco de latim € alguns conhecimentos indispensiveis, mas ensinava 0 menos possivel. Nunca, nem antes nem depois, a cultura intelectual que deu aos homens se reduziu a um minimo tao triste. Tudo o que ultrapassava o esiritamente necessario estava severamente proibido, ¢ um conhecimento um pouco profundo da gramitica considerava-se j4 como um luxo censurdvel. Unia das maiores inteligéncias do século VII, 0 papa Gregorio, o Grande, ao inteirar-se que Didier, arcebispo de Viena, se tinha proposto, numa das cidades anteriormente mais letradas da Galia, 2 clevar a qualidade dos estudos ensinando ele mesmo a gramdtica, escteveu: -Inmio, disseram-me, € nao posso repeti-lo sem vergonha, que vos acreditais na obrigacao de ensinar gramitica a algumas pessoas. Sine verecun- dia memorare non possumus fraternitatem tuam grammaticam quidbusdam exponere, Sabei, pois, quanto € grave, quanto é impio (quam grave nefandun- que) que um bispo fale dessa coisas que deve ignorar inclusivamente um leigo, Este foi para mim um motivo de desgosto e de tristeza, porque os elogios a Jipiter e os elogios a Cristo ndio podem sair juntos de uma mesma boca. Se me demonstrar que fui induzido em erro e que vés nao estais preocupados com essas frivolidades, por essas letras seculares, darei gragas a Deus, que mio dei- ow manchar 0 vosso coracio pelas felicidades impuras dos perversoss. Estamos muito longe do tempo em que Santo Agostinho pedia ao Cristéo que se dedicasse 4 meditagao dos livros santos ¢ reclamava, para que esta medita- cdo pudesse ser verdadeiramente proveitosa, todo 0 tipo de conhecimentos lin- 2o¥ACag SOCIEDADE C& CULTURAS guisticos, literétios, histéricos, etc, No momento da hist6ria a que chegamos, pelo contratio, mais do que um abade, mais do que um bispo proibiam que se meditasse sobre os livros santos. Inguiunt multi Non es tempus jam nunc dis- serendi super Scripturas, Considerava-se que tudo estava dito e que todo o comentério novo era obra va. Convém acrescentar, por outro lado, que em seguida, a comupg2o do clero, tanto secular como regular, ndo fez mais do que agravar este tipo de coisas. Deste modo, no século VIII, a civilizacdo em Franca desceu a0 seu ponto mais baixo. F inclusivamente nao era preciso descer até ai para voltar a sair dali em seguida e medi, relativamente a esse ponto de partida, 0 caminho que sera percortido até ao futuro. Por outro lado, para apreciar exactamente a situa- 40, niio pocemos perder de vista que se s6 restavam entio vestigios da vida intelectual, contudo, é ainda uma vide, e no foi um simples servigo té-la man- lido inclusivamente sob esta forma reduzida e precéria. Porque mesmo que nao se tenha extinguido completamente, por pouco que subsista, pode-se sem- pre esperar reanimi-la, e, com efeito, vamos assistir 4 sua ressurrei¢do progres- siva. Por muito profundas que sejam as trevas em que a Gélia esté, agora, sub- metida, esto contudo salpicadas por pontos huminosos; sio as humildes esco- las que sobrevivem nos claustros e nas catedrais. Vamos ver agora reanimarem- -se esses débeis resplendores, tomar pouico a pouco mais forca e brilho; poste- riormente, em vez de permanecerem separadas umas das outras, juntaram-se, confundiram-se, reforgaram-se mutvamente como consequéncia desta concen- ttagio, até se converterem, com as universidades ¢ os colégios, em poderosos focos de luminosidade. Costumamos reservar o nome de Renascimento para o grande movimento intelectual e moral que se efectuou no século XVI. Na reali- dade, a hist6ria do pensamento e a histéria do ensino nao foram mais do que uma série ininterrupta de renascimentos; ¢ vamos encontrar-nos com um deles desde 0 principio deste estudo No entanto, a civilizagdo da Gdlia tinha caido tao baixo que, abandonada a si mesma, teria provavelmente muitas dificuldades em levantar-se. Foi do estrangeiro que aos vieram em parte as forgas que revitalizaram o nosso pais, Por um feliz conjunto de circunsténcias, fora desta Galia completamente envolta em sombras, tinam-se mantide e desenvolvido centros importantes de cultura, um no Sul da Itilia € 0 outro no Norte da Islanda, A projecedo que g0¥CACAG socrepane & cuttuRas teriam sobre a Franca foi o que determinou, ou pelo menos preparou © pri- meiro renascimento, o primeiro passo em frente no caminho da nossa organi- zacdo escolar, Inevitavelmente, a civilizagao tinha tao profundamente impregnado o solo de Itélia, que as invasdes tiveram sempre muitas dificuldades em climiné-la, ¢ 86 © conseguiram de um modo muito mais incompleto que nos demais paises da Europa. Com os vestigios materiais da Antiguidade, algo do espirito antigo ali sobreviveu e transmitiu-se de época em época. Havia ali recordagdes que néo desapareciam completamente, que estavam sempre dispostas a reaparecer. Deste modo, © gosto pelas letras foi sempre mais facil de despertar 14 do que noutros sitios. Por isso, veio da Itélia o primeiro impulso de uma revolucio pedagégica, e por isso, particularmente desde o século VI, formou-se ali uma ordem que deveria contribuir mais do que qualquer outra pata o despertar dos estudos. Foi a ordem dos beneditinos, fundada por S. Bento, Nao 6, certamente, que S, Bento se propusesse defender a causa das letras e da cultura intelectual. Catélico ortodoxo, subordinava todos os interesses pro- fanos, quaisquer que fossem, aos interesses da fé. No entanto, inevitavelmente, tendeu a conceder ao estudo um lugar importante na vida monacal. Para nao deixar os seus monges ociosos, ensinava-lhes trabalhos materiais activos,; no entanto havia horas no dia, que variavam segundo a estacdo, em que estes tra- balhos serio impossiveis. Estes momentos deveriam aplicar-se na leitura, & certo que, em principio, o monge so deve ler livros santos. Certis temporibus occupari debent fraies in labore manuum, ceteris iterum boris in lectione di- vina, Mas por livros santos deveria entender-se, além do Antigo e Novo Testa- mento, todos os comentérios, todas as exposigdes que tinham feito acerca de todos eles os pacires mais famosos: et expositiones earum quae a nomitissimis doctiribus orhodoxis et caibolicis patribus factae sunt, No entanto, precisamente por isso, abria-se uma porta ao estudo e a reflexdo. Porque quem pode dizer onde comeca a lista dos Padres ortodoxos e mais famosos? Além disso, para entender os seus comentirios, as suas controvérsias, era preciso conhecer as teorias que discutiam e defendiam. Deste modo, 4 literatura profana houve necessariamente acesso nos mosteiros. Contudo, se os beneditinos se tivessem abandonado ao espirito da sua ordem, se 86 se tivessem deseavolvido segundo os seus principios internos € gvUGACas socrepape & curturas primitivos, € provavel que o progresso tivesse sido singularmente lento, No entanto, uma causa exterior, que veio estimular a sua actividade literiria e pedagogica, obrigou-os a renovarem-se, a abrirem-se a ideias e preocupacées novas. Foi 0 seu encontro com os monges ¢ a Igreja de Inland, Houve ai um entrecruzamento de influéncias que teve um papel bastante importante na evo- lugao intelectual dos monges crist4os, © Cristianismo foi levado a Irlanca numa época bastante primitiva e, sem que se saiba exactamente de que maneira, era de origem oriental, Durante bas- tante tempo, a Igreja Irlandesa permaneceu, em muitos aspectos, mais proxima da Igreja do Oriente do que da Igreja romana. Os primeiros cristios da Idanda trouxeram consigo, pois, elementos da cultura grega que 0 resto do Ocidente ignorava quase por completo, Por outro lado, a paz de que gozava a ilha, dado que © continente europeu estava sacudido pelas invases, permitiu que se desenvolvessem esses gérmens da civilizacdo, Assim o pais cobriu-se rapida- mente de mosteiros que, ainda que praticassem um ascetismo severo, conce- diam 4 educago intelectual um lugar considerivel. Neles ensinava-se astrono- mia, dialéctica, versificago, ao estudo do grego acrescentou-se o do latim. ‘Também vinha gente de todas as partes para visitar «a ilha dos santos ¢ dos sdbios. Se, contudo, a Igreja Irlandesa tivesse permanecido encerrada nos limites da itha, apesar da sua reputacao crescente, nao teria grande influéncia sobre mentalidade do continente, No entanto, o monge da Idade Média era essencial- mente viajante. Além disso, esta acgdo nio era especialmente sua. Encon- traremos 0 mesmo desejo nos cavaleiros ¢ nos professores das primeiras Universidades. Aqui est4 presente uma particularidade do cardcter medieval que explicaremos mais tarde. Deste modo, os monges ilandeses disseminaram coldnias até ao continente. Em sentido contrério, os beneditinos, movidos pela mesma tendéncia, enviaram por seu lado missiondrios para Inglaterra. O espi- tito que animava estas instituigGes monacais era completamente distinto, A orem de §, Bento era inteiramente dedicada a causa do papado; o principio que representava era o da unidade da Igreja catélica sob a supremacia da Santa Sé, Os Irlandeses, pelo contririo, tinham tendéncias particularistas muito vinca- las; tinham ritos especiais, ¢ a consciéncia de tudo que tinham feito por si mesmos, dos resultados considerdveis a que tinham chegado com as suas tni- eDUCACdy SOCIEDADE & CULTURAS cas forcas, dava-lhes um vivo sentimento de autonomia. Disso resulta uma luta que nao deixou de ser violenta, Foi a ordem de S$. Bento, mais fortemente, mais solidamente organizada, mais activa, que vencea, No entanto, ainda que vencedora, deixou-se penetrar pelo espirito dos vencidos, Para triunfar, com efeito, devia imitar os seus adversdrios, tomar as suas proprias armas ¢, por conseguinte, oferecer 4s populagdes que conquistava um ensino menos es- casso, menos pobre do que aquele que se dava no continente, Assim se consti- tui a Igreja anglo-saxOnica, que teve e que conservou no conjunto da igreja cat6lica uma fisionomia propria, O que a distingue @ um gosto pelas coisas intelectuais que nZo se encontra noutros sitios com 0 mesmo grau. Nela € por ela elevou o nivel dos estudos. E como continuov a enviar missiondtios para o resto da Europa, touxeram para aqui este espirito novo, Deste modo, 0 mesmo monacado continental experimentou a necessidade de outorgar’ nas suas escolas um lugar mais considerdvel aos estudos seculares, Assita, estimulados pelo exemplo dos monges Irlandeses, os beneditinos prepararam, pois, as vias para a renovago mental da Europa. No entanto, niio fizeram mais do que prepari-la; no foram eles, em absoluto, que a efectua- ram. Ajudaram as mentes a sacudir um pouco o seu entorpecimento; gracas 4 stia propaganda espalhou-se um pouco mais de instruc. No entanto, eles nao podiam fazer uma transformagao verdadeiramente profunda. Primeiro, porque © ensino néo tinha a seu ver um valor por si mesmo. Nao era apenas uma sim- pies arma de guerra, um modo de ampliar o citculo da sua influéncia, de con- quistar mais almas. Por isso, tudo o que faziam e podiam fazer era propagar este ensino a pouco e pouco por meio de uma espécie de disseminacio silen- ciosa ¢ de difusto lenta. Levaram mais longe as trincheiras que tinham aberto no mundo barbaro; acrescentaram mosteiros 20s mosteiros, escolas as escolas; por conseguinte, estes poucos pontos brilhantes que salpicavam de luz a som- bra que cobria a Galia aumentavam de ntimero ao mesmo tempo que ganha- vam um pouco mais de brilho, Nao € assim, ndo € pela via da disseminacao, ainda que seja continua, que se podem formar os grandes Orgios de ensino, E eram drgfios deste tipo que faziam falta, Para que pudessem nascer, era necessésio que todas as forcas inte- lectuais do pais se aproximassem, se concentrassem, numa pequena quantidade de pontos, pare que se pudessem reforcar uns aos outros. Um centro de cul- evvchedy SOCIEDADE & CULTURAS tura de aiguma importincia sé pode resultar de um enérgico movimento de concentracdo. Deste modo, para dar um passo importante na via do progresso escolar pedagdgico, era preciso que novas combinagdes sociais tornassem a instrugdo mais necessdria e que experimentassem a sua necessidade mais viva- mente. Era preciso também, e sobretudo, que uma mio poderosa reunisse num mesmo feixe 0s recursos intelectuais dispersos em todas as direcgdes, Esta foi a obra pedagégica de Carlos Magno, Sem nos determos nela por muito tempo, temos necessariamente que a conhecer, porque foi ela o prelidio de outro movimento de concentracdo ainda mais intenso do qual resultaram um pouco mais tarde a Universidade e os Colégios, quer dizer, o Ensino superior e Ea- sino secundério, com todas as caracteristicas essenciais que conservaram até ‘aos tempos recentes. Ainda que o Renascimento Carolingio pareca muito afas- tado no tempo, vemos, contudo, que 20 abordé-lo temos a oportunidade de entender melhor a evolugio que nos conduzird até 4 organizacio pedag6gica moderna.

Você também pode gostar