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O ENIGMA DA DEMOCRACIA EM MARX

Thamy Pogrebinschi

Marx afirma, na Crítica da filosofia do direi- com seu mestre e recusar à política qualquer
to de Hegel, que “a democracia é o enigma resol- forma de mediação, Marx faz de seu conceito de
vido de toda constituição” (Marx, 1992a [1843], p. verdadeira democracia (wahre Demokratie) a reso-
87). Mais do que conceber a democracia como um lução do enigma colocado pelo Estado moderno.
enigma, Marx a concebe como um “enigma resol- Isso explica por que “na democracia o
vido” (aufgelöste Rätsel). Um enigma resolvido é Estado abstrato deixa de ser o momento gover-
aquele que se sabe ser a solução do próprio pro- nante” (Idem, p. 89). Quando a democracia atin-
blema para o qual aponta. Trata-se de um concei- ge a sua verdade, ela supera a si mesma, encon-
to que contém em si simultaneamente um enigma trando sua real expressão no processo de
e a solução capaz de decifrá-lo. Na qualidade de desvanecimento do Estado e da sociedade civil –
enigma resolvido de toda constituição, a democra- única solução possível para dois extremos reais
cia marxiana apresenta-se como resposta para os que, como tais, não admitem mediação. Com a
problemas levantados pelas formas políticas. O superação (Aufhebung) destes, o político encon-
principal destes problemas, de acordo com Marx, tra-se definitivamente com o social, e nenhuma
diz respeito à contradição entre o Estado e a socie- relação de subordinação ou dependência passa a
dade civil. É este, afinal, o enigma da modernida- ser possível entre uma e outra esfera. No entanto,
de política, que o mais astuto dos discípulos de a realização da democracia foi modernamente
Hegel soube logo cedo diagnosticar. Ao romper concebida na forma de um “Estado democrático”:
uma aliança impertinente entre dois termos
Artigo recebido em agosto/2005 inconciliáveis, afinal “todas as formas de Estado
Aprovado em agosto/2006 têm a democracia como sua verdade e por esta

RBCS Vol. 22 nº. 63 fevereiro/2007


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razão elas são falsas, na medida em que não são política moderna, isto é, a contradição entre o
a democracia” (Idem, ibidem). Estado e a sociedade civil? Em primeiro lugar, é
O Estado que desvanece com a verdadeira preciso entender a verdadeira democracia como
democracia consiste na forma ilusória daquela que um conceito que é em sua essência normativo. É
deve ser a comunidade política real (wirklich o que indica Engels em um texto de 1845, intitu-
Gemeinschaft), ou seja, ele é um produto da alie- lado “O festival das nações em Londres”:
nação política. As “falsas democracias”, ou as
democracias que não são verdadeiras, necessaria- Não estamos falando sobre a democracia real
mente coincidem com uma forma de Estado, seja que a Europa inteira apressa-se em adotar e que
ela aristocrática, monárquica ou republicana. A consiste em uma democracia bastante especial,
verdadeira democracia, por sua vez, não se identi- diferente de todas as democracias anteriores.
fica com nenhuma dessas formas e, ao contrário, Estamos falando sobre uma democracia bastante
se insurge em oposição a elas. A concepção de diferente que representa o meio-termo entre as
democracia de Marx é concomitantemente uma democracias grega, romana, americana e france-
democracia para além do Estado (Avineri, 1968, sa; em resumo, estamos falando sobre o conceito
p. 38) e contra o Estado (Abensour, 1998 [1997]) e, de democracia. Não estamos falando sobre as
coisas que pertencem ao século XIX, e que são
nesse sentido, ela rejeita todas as formas políticas
ruins e efêmeras, mas sobre categorias que são
que acompanham a moderna idéia de Estado. Por
eternas e que existiam antes de “as montanhas
isso, o principal pressuposto do pensamento polí-
terem sido criadas”. Em suma, não estamos dis-
tico de Marx é justamente o de que a contradição
cutindo aquilo sobre o que se tem falado, mas
entre o Estado e a sociedade civil deve ser supera- uma coisa bastante diferente (Engels, 1845, p. 3).
da para que, então, se possa encontrar o verdadei-
ro significado da democracia. E isso implica pensar
A excepcionalidade do conceito marxiano de
a política para além do Estado; ou melhor, isso
democracia encontra-se revelada nestas palavras
implica conceber uma outra forma de organização
de Engels. Não se trata da “democracia real”, aque-
política que possa servir de lugar à democracia.
la que se verifica hoje empiricamente ao redor do
O objetivo deste artigo consiste em exami-
mundo, e que no século XIX a “Europa inteira”
nar o conceito marxiano de verdadeira democra-
cia, tal como desenvolvido, sobretudo, na Crítica estava “apressando-se em adotar”. Trata-se de uma
da filosofia do direito de Hegel, de maneira a indi- democracia “bastante diferente”, inclusive diferen-
car o modo pelo qual ele se apresenta como o te “de todas as democracias anteriores” e desta
“enigma resolvido” das formas modernas de orga- “sobre a qual se tem falado”, na época de Marx e
nização política. Nesse sentido, argumentarei que na nossa. Não se encontra, esta democracia, entre
tal enigma aponta para a contradição entre Estado as “coisas que pertencem ao século XIX”. Ao con-
e sociedade civil que, para Marx, constitui a prin- trário, trata-se de algo que esteve desde sempre
cipal característica da modernidade política. Em posto, na forma de “categorias que são eternas” e
conseqüência, argumentarei também que como que nasce quando surgem os homens; trata-se de
solução do enigma que revela, a “verdadeira de- um “meio-termo” entre as democracias grega, ro-
mocracia” implica na superação daquela contradi- mana, americana e francesa.1 Trata-se, afinal, da
ção, a qual apenas pode se dar mediante a cria- essência, do ser (Wesen), da democracia; aquilo
ção de um novo lugar para a política: a que permite que ela possa ser formulada na forma
comunidade real fundada em uma livre associa- de um conceito e, como tal, concebida como o “vir
ção de homens igualmente livres. a ser” (Werden) do político, uma concepção nor-
mativa sobre como a política pode ser uma vez
concebida para além do Estado moderno com o
A democracia como a verdade qual ela historicamente se identifica.
da comunidade Duas oposições destacam-se aqui: o conceito
de democracia que se opõe à democracia real, e as
Como conceber a verdadeira democracia? categorias que são eternas e se contrapõem às coi-
Como ela resolve o enigma que Marx identifica na sas pertencentes ao século XIX. O que entender
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disso? Primeiro, não se trata de descrever, empiri- A intuição mais aguçada de Hegel foi sua per-
camente, uma realidade, mas de se opor a ela por cepção da separação da sociedade civil e política
meio de um conceito capaz de subvertê-la, capaz como uma contradição. Mas seu erro foi ter-se
de conduzi-la à sua própria transformação. Se- contentado com a aparência de sua dissolução, e
gundo, trata-se de entender este conceito propria- deixar passar o que importa; enquanto as “assim
chamadas teorias” que ele menospreza demandam
mente como uma categoria epistemológica e como
a separação das classes civil e política, e correta-
um princípio de ação que não se verifica em uma
mente, pois elas expressam uma conseqüência da
realidade estática, nem em um momento concreto sociedade moderna (Marx, 1992a [1843], p. 141).
e determinado; ao contrário, trata-se de entender a
democracia como um “conceito de movimento” Hegel reconhece o problema, nomeia-o, mas
que se espraia pelo espaço e pelo tempo, da Gré- não se mostra capaz de resolvê-lo. Ilude-se ao crer
cia à América, de Roma à França. Terceiro, esse serem os estamentos uma espécie de síntese entre
movimento não pode ser aprisionado em um o Estado e a sociedade civil, uma vez que eles
momento: se a democracia opõe-se às “coisas do teriam a função de mediar a relação entre um e
século XIX”, o conceito de verdadeira democracia outra. Para Marx, isso consiste em uma construção
não se identifica com a modernidade política; ele logicamente absurda, que apenas pode ter lugar
busca superá-la. no misticismo da dialética idealista. Contra Hegel,
Foi com o intuito de compreender o enigma
Marx concebe os estamentos como a mais pura
da modernidade política, a separação entre o
expressão da contradição entre Estado e socieda-
Estado e a sociedade civil, que, desenganado com
de civil: “os estamentos políticos não são nada
o fechamento de sua Gazeta Renana pelo gover-
senão a expressão fática da verdadeira relação
no prussiano, Marx refugia-se em Kreuznach,
entre o Estado e a sociedade civil – sua separação”
onde, entre março e agosto de 1843, irá formular
(Idem, p. 141). Portanto, crer que os estamentos
a crítica que marcou seu rompimento definitivo
operam como síntese da contradição entre Estado
com Hegel. Nesse profícuo período de sua ativi-
e sociedade civil, e mais, crer que uma contradi-
dade intelectual, Marx, buscando prover soluções
ção possa ser resolvida por meio de uma media-
para os problemas deixados em aberto por Hegel,
ção, implica crer em uma solução ilusória e logi-
elabora o conceito de verdadeira democracia e
camente falsa.
prepara sua primeira abordagem do comunismo,
o que resultará na nomeação, no ano seguinte, Extremos reais [wirkliche Extreme] não podem
daquele que viria a ser o seu sujeito histórico, o ser mediados precisamente porque são extremos
proletariado. reais. Nem precisam eles de mediação, porque
Em Hegel, a contradição entre o Estado e a são totalmente opostos. Eles não têm nada em
sociedade civil remete diretamente à dicotomia comum um com o outro, não têm necessidade um
entre o particular e o universal. A “esfera política”, do outro, não se complementam um ao outro
ou o Estado, apresenta-se como a esfera do uni- (Idem, p. 155).
versal, ao passo que a “esfera socioeconômica”,
ou a sociedade civil, é a esfera do particular. Extremos reais não são mediáveis. Em suas
Nessas duas dimensões separadas, a particulari- essências opostas, os extremos reais não podem
dade dos interesses privados ou pessoais contra- existir um pelo outro, não podem se completar.
põe-se à universalidade dos interesses “públicos” A oposição real de essências, uma contradição
ou estatais. Conseqüentemente, a relação dicotô- (Widerspruch) verdadeira, apenas pode ser resolvi-
mica entre o universal e o particular, por sua vez, da quando seus termos se excluem mutuamente. A
converte-se na relação também dicotômica entre única relação possível entre os dois termos de uma
o político e o social. Como então superar esses contradição, portanto, é a de exclusão. Para que
dualismos? Como fundir o universal e o particular cesse a oposição entre eles, os dois extremos pre-
em uma unidade que resolva o seu antagonismo, cisam ser definitiva e simultaneamente eliminados.
conciliando-os e tornando-os uma substância A fim de resolver este que seria o “dualismo
única? fundamental da lógica de Hegel”, ou seja, a oposi-
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ção entre universalidade e particularidade como dentro da qual elas têm espaço para se movimen-
expressão da contradição entre Estado e sociedade tar. Este é, em geral, o modo pelo qual contradi-
civil, Marx sabe, portanto, que as mediações não ções reais são resolvidas. Por exemplo, é uma
bastam. O problema da lógica hegeliana consistia, contradição descrever um corpo como constante-
segundo Marx, em não perceber que entre dois mente caindo sobre outro, e como, ao mesmo
tempo, constantemente voando para longe dele.
extremos não há mediação possível, de modo que
A elipse é uma forma de movimento dentro da
não há mediação possível entre o Estado e a socie-
qual esta contradição é ao mesmo tempo realiza-
dade civil. É por isso que Marx mostra que a repre- da e resolvida (Marx, 1992 [1867], p. 198).
sentação, por exemplo, não serve à democracia,
pois ela constitui uma mediação e, como tal, não No que toca à contradição entre o Estado e a
serve para resolver aquela contradição. Ao contrá- sociedade civil, o enigma resolve-se na forma elíp-
rio, a representação, seja ela estamental como no tica da comunidade. É a comunidade a “forma de
feudalismo, seja ela “política” como na modernida- movimento”, ou uma forma em movimento, que
de, apenas aprofunda a contradição entre o Estado
resolve a contradição ao mesmo tempo em que a
e a sociedade civil. A representação não é nada
realiza. Conforme argumentei alhures, a comuni-
além de uma forma de mediação, ou seja, implica
dade é o conceito marxiano que significa, simulta-
em uma solução falsa e ilusória para a principal
neamente, Estado e sociedade civil, precisamente
contradição engendrada com e pela modernidade
por não ser, ao mesmo tempo, nenhum dos dois.
política. Uma contradição real, o antagonismo entre
A unidade constituída pela comunidade tem como
dois extremos reais, portanto, apenas pode ser
fundamento os sujeitos políticos reais, os homens
resolvida por meio da negação da negação, isto é,
que realizam a sua liberdade na e através da asso-
do Aufhebung destes dois termos, simultaneamen-
ciação. Na comunidade real não se encontra mais
te. O desvanecimento do Estado e da sociedade
em jogo o problema da procedência ou derivação
civil consiste, assim, na única maneira de resolver a
da esfera socioeconômica e da esfera política. A
contradição que entre eles se expressa. Foi este o
realidade contida na idéia de comunidade torna
enigma que Hegel não soube decifrar.
desnecessário argumentar, contra Hegel, que o Es-
Já em 1843, por conseguinte, Marx forma
tado deriva da sociedade civil e não o contrário.2
uma convicção da qual jamais se desfará, qual
A comunidade como a forma política da
seja, a idéia de que a democracia não pode se rea-
sociedade comunista que viria se realizar após o
lizar senão em uma sociedade onde os homens
desvanecimento do Estado e da sociedade civil
não mais se alienam por meio de mediações,
não coincide com um suposto apelo marxiano de
sejam elas políticas, sejam econômicas. Isso impli-
retorno às formas comunitárias primitivas – como
ca reconhecer que a democracia não pode se rea-
a Gemeinwesen do medievo germânico ou os
lizar verdadeiramente no Estado moderno, tam-
artéis russos –, onde os modos de produção pré-
pouco na sociedade civil que a ele se contrapõe.
capitalista asseguravam a unidade do social e do
No primeiro livro de O capital, quando seu afas-
político por meio da unidade entre o homem e o
tamento de Hegel não mais se questiona, Marx
produto de seu trabalho na propriedade comuni-
volta a argumentar que as contradições não
tária. Tampouco, ao idealizar a sociedade pós-
devem ser resolvidas por meio de uma superação
revolucionária, Marx tinha em mente um retorno
abstrata, como são as mediações, mas sim pela
às formas políticas antigas, nas quais a união
dissolução dos termos opostos mediante a criação
entre o particular da sociedade civil e o universal
de uma forma nova, na qual as contradições a um
do Estado supostamente se encontraram. Nem
só tempo resolvem-se e reconciliam-se.
mesmo as comunidades feudais da Idade Média
Vimos em um capítulo anterior que a troca de
ou a pólis grega, que constituem exemplos recor-
mercadorias implica condições contraditórias e rentes na obra de Marx da unidade entre o Estado
mutuamente exclusivas. A diferenciação das mer- e a sociedade civil, viriam a ser convocadas a fim
cadorias em mercadoria e dinheiro não abole de restabelecer a unidade desejada entre o uni-
essas contradições, mas, antes, provê a forma versal e o particular. Essas duas formas políticas,
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afinal, traziam consigo o inconveniente da ausên- (Idem, p. 88), o que equivale a dizer que “a demo-
cia de liberdade, quando não da própria servidão. cracia é ao mesmo tempo forma e conteúdo”
(Idem, p. 87). Há uma indissociabilidade entre
Na Idade Média, a vida do povo era idêntica a comunidade e a democracia: a comunidade é a
à vida do Estado (i.e, vida política). O homem era forma política da democracia, ao passo que esta
o princípio real do Estado, mas o homem não era consiste no único conteúdo que pode preencher
livre. Conseqüentemente havia uma democracia aquela. Por conseguinte, na verdadeira democra-
da não-liberdade, um sistema perfeito de aliena- cia não há sentido conceber o “social” e o “políti-
ção. A antítese abstrata refletida disto pode ser co” como duas dimensões separadas. Assim como
encontrada apenas no mundo moderno. A Idade o universal se identifica com o particular, e o for-
Média foi uma idade do dualismo real; o mundo mal, com o material, também o político é ele
moderno é a idade do dualismo abstrato (Marx, mesmo o social. Nenhum desses conceitos adqui-
1992a [1843], p. 90). re conteúdo enquanto formas separadas: sua subs-
tância é conferida por sua unidade. O princípio
A recusa da modernidade não pode, portanto, material reatualiza-se constante e incessantemente,
ser compreendida como um elogio à pré-moderni- reconstruindo a sua própria forma; o particular
dade. Marx escrevia contra o seu tempo, mas em constitui-se na sua própria universalização; o polí-
favor do nosso tempo. Seu pensamento revela-se, tico, por sua vez, só constitui-se como político na
ainda, como uma alternativa para uma modernida- medida em que é social, e vice-versa.
de política que muito pouco se alterou desde o
século XIX. O meio que Marx encontra para clamar Na democracia, o Estado como particular é ape-
pela possibilidade de reunificação entre o universal nas particular, e como universal ele é realmente
e o particular é a verdadeira democracia. Um con- universal; ou seja, não é algo determinado, desta-
ceito que não se apresenta como abstração justa- cado de outros conteúdos. Nos tempos modernos,
mente por consistir, ele mesmo, em uma antiabs- os Franceses entenderam isso como significando
tração; um conceito desenvolvido não como uma que o Estado político desaparece em uma verda-
abstração da realidade existente, mas como uma deira democracia. Isso está correto no sentido de
projeção normativa do que ela pode vir a ser, na que o Estado político, a constituição, não é mais
forma de um princípio de concretização: “apenas a equivalente ao todo (Idem, p. 88).
democracia é a verdadeira unidade do particular e
do universal” (Idem, p. 88). O que está em jogo aqui? O reconhecimento
A verdadeira democracia, por conseguinte, da incompletude do Estado moderno que, separa-
consiste no momento da união entre o universal e do da sociedade civil, formaliza o divórcio entre
o particular; no momento da fusão entre as esferas outros conteúdos que supostamente deveriam estar
política e social; no momento do reencontro entre associados, como, no caso, o particular e o univer-
o indivíduo egoísta da sociedade civil e o cidadão sal. Em qualquer regime político – mesmo em uma
abstrato do Estado. O lugar onde o dualismo abs- democracia que não seja a “verdadeira democracia”
trato da modernidade se resolve e os extremos reais –, o Estado necessariamente apresenta-se de forma
se reunificam é a comunidade. Ao clamar pelo
incompleta, pois se revela incapaz de constituir-se
Aufhebung do Estado e da sociedade civil, isto é,
como o “todo”, que seria justamente o encontro
seu desvanecimento, Marx busca também transcen-
entre o social e o político, o homem e o cidadão, o
der todos os demais dualismos que derivam da
separação que existia entre eles. Assim, a comuni- universal e o particular, e todos os demais dualis-
dade, como forma em movimento, como um uno mos criados com a modernidade política e formali-
múltiplo fundado na associação, traz para dentro de zados com a separação entre a sociedade e o
si o universal e o particular, o social e o político, o Estado. Para superar esses dualismos é preciso
homem e o cidadão. Os dualismos característicos superar o Estado; esta é a primeira lição de um con-
do pensamento político moderno encontram abrigo ceito de democracia que almeja ter a sua verdade
na unidade da comunidade. revelada.3
Assim entende-se por que, “na democracia, o Percebe-se como o enigma simultaneamente
princípio formal é idêntico ao princípio material” formula-se e soluciona-se: com os tempos moder-
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nos, o Estado separa-se da sociedade; o Estado Estado, resta buscar na comunidade uma nova
moderno é o símbolo desta separação, e a sua rela- forma de organização política na qual ela possa
ção com a sociedade passa a ter a forma de um se desenvolver.
antagonismo. Para que essa contradição seja des-
feita é preciso desfazer o Estado. Com o seu desa-
parecimento, desaparecerá também a sociedade A democracia como
que, afinal, dele depende para assumir uma exis- constituição genérica
tência política. Apenas o desvanecimento dessas
duas esferas propiciará o surgimento de uma nova Marx antecipa, ainda na primeira metade do
forma de organização política, na qual tal separação século XIX, algumas das conseqüências resultan-
não tenha sentido uma vez que nela se realizaria a tes da contradição entre o Estado e a sociedade
união completa – um “todo” – entre todos os ele- civil que viriam a se tornar ainda mais exacerba-
mentos outrora separados e que apenas podem ser das no século seguinte, particularmente em fun-
apreendidos conjuntamente. Para que esse “todo” ção do enrijecimento do modo de produção capi-
seja alcançado e constituído, o Estado, que repre- talista, o qual encontraria na separação entre as
senta sua impossibilidade permanente, deve neces- esferas socioeconômica e política um terreno bas-
sariamente ser superado. tante propício ao seu desenvolvimento.
O Estado desaparece em uma verdadeira
democracia exatamente porque nela as antino- A atomização em que mergulha a sociedade
mias e os dualismos modernos deixam de ter sen- civil por seus atos políticos é uma conseqüência
tido; a verdadeira democracia, por sua vez, só necessária do fato de a comunidade (Gemeinwesen),
pode realizar-se em uma forma de organização do a essência comunista (das kommunistiche Wesen)
político que se substitua ao Estado moderno. na qual o indivíduo singular existe, a sociedade
Assim, quando Marx afirma que o Estado desapa- civil, ser separada do Estado. Ou em outras pala-
rece, ele tem em vista um movimento de mão vras: o Estado político é uma abstração da socie-
dupla, que apenas pode ser entendido pela simul- dade civil (Marx, 1992a [1843], p. 145).
taneidade ou concomitância que lhe é caracterís-
tica: o Estado desaparece porque perde sentido A sociedade civil moderna, que segue ao
em uma verdadeira democracia, na qual a eman- Estado moderno, funda-se no individualismo e é
cipação humana e o comunismo finalmente serão incapaz de fazer do homem um ser social.
realizados; e a verdadeira democracia, por sua Impondo aos indivíduos relações competitivas e
vez, realiza-se com a conquista da emancipação conflitivas, a sociedade civil os torna seres isolados.
humana e do comunismo, porque o Estado desa- Seus “atos políticos” – como é o caso do sufrágio e
parece, e uma nova forma de organização políti- da representação – apenas aprofundam esse indivi-
ca deverá surgir em seu lugar. dualismo, restando aos homens viver em uma situa-
O Estado, portanto, representa apenas um ção de atomismo que os separa até mesmo de si
dos conteúdos particulares da democracia, um de próprios. Não há outra conseqüência senão o
seus momentos, uma “forma particular de existên- encontro entre o estranhamento (Entfremdung) e a
cia do povo” (Idem, ibidem), dentre outras for- alienação (Entäusserung). É aqui que a verdadeira
mas possíveis. O sentido verdadeiro da democra- democracia se revela como enigma resolvido e
cia, entretanto, apenas revela-se quando ela se apresenta-se como aquilo que pode interromper
liberta do Estado e de toda forma de mediação essa seqüência: a verdadeira democracia pressupõe
política: “quanto mais a democracia se aproxima a comunidade, que, por sua vez, transforma os
de sua verdade, mais o Estado decresce, conhece indivíduos isolados em seres sociais justamente por
um processo de desaparecimento, isto é, deixa de meio do caráter político que assumem quaisquer de
exercer uma eficácia, uma dominação, enquanto suas atividades, mesmo enquanto atividades indivi-
parte que pretende valer pelo todo” (Abensour, duais. Como na Grécia antiga, a separação entre o
1998 [1997], p. 122). Se a existência da democra- mundo privado e o mundo público se desfaz em
cia no sentido verdadeiro é incompatível com o nome da democracia verdadeira. Este desfazimen-
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to, contudo, não teria mais o custo da liberdade. uma democracia liberal, burguesa; uma democracia
Essa, afinal, a verdadeira unidade entre o político e como abstração: uma “democracia moderna”. Por
o social a ser propiciada pela democracia. isso Marx fala em um “Estado político” como a
Ao afirmar que a verdadeira democracia é o forma do “Estado material” ou em uma “constitui-
enigma resolvido de toda constituição, Marx quer ção política” distinta do “Estado real”. A verdadeira
dizer que a democracia se identifica com a realida- democracia seria o “Estado material” ou “real” em
de material – ou com a “vida do povo” –, não obs- oposição ao “Estado político” ou “constituição polí-
tante a forma política que a contenha. Em outras tica” que é como Marx alternativamente se refere ao
palavras, o que define como verdadeira a demo- Estado moderno.
cracia é a experiência humana que se encontra em
sua base, e não as instituições de uma determina- A democracia é a verdade da monarquia, mas a
da forma de governo ou regime político que monarquia não é a verdade da democracia. A
porventura a reclamem. Por isso a democracia apre- monarquia é necessariamente democracia como
senta-se como a “verdade de todas as constituições”, uma inconseqüência e excrescência, o aspecto mo-
nárquico não é uma inconseqüência da democracia.
uma “constituição genérica” que, no entanto, não
A democracia pode, e a monarquia não pode, ser
tem qualquer forma política como a sua própria
concebida em seus próprios termos. Na democra-
verdade. cia, nenhum aspecto recebe qualquer outro signifi-
cado senão aquele apropriado para ele. Cada um é,
Nos modelos originais de monarquia, demo- na verdade, um aspecto do demos todo. Mas na
cracia e aristocracia não havia inicialmente cons- monarquia uma parte determina o caráter do todo.
tituição política como distinta do Estado real, A constituição inteira precisa conformar-se em fun-
material, e dos demais aspectos da vida do povo. ção de um ponto fixo. A democracia é a constitui-
O Estado político ainda não aparecia como a ção genérica. A monarquia é uma espécie, e de fato
forma do Estado material (Idem, p. 90). uma espécie ruim. A democracia é conteúdo e
forma. A monarquia pode ser apenas forma, mas ela
A institucionalização da realidade material, falsifica o conteúdo (Idem, p. 87).
seu aprisionamento em formas, é uma invenção
do pensamento político moderno – invenção esta Por que, afinal, a democracia pode ser con-
da qual Marx quer nos libertar. O pensamento polí- cebida em seus próprios termos e a monarquia
tico clássico, afinal, havia nos legado apenas uma não, podendo aquela ser uma verdade desta, mas
preocupação com os regimes de governo, sem criar jamais o contrário? A comparação entre monar-
formas rígidas, como a própria idéia de constitui- quia e democracia serve a Marx para mostrar a
ção, que os separassem de seu conteúdo material, diferença existente entre forma e conteúdo.4 A
real, expresso na própria existência e experiência monarquia é uma forma, uma forma política,
humanas. Observe-se que no trecho transcrito como também é uma forma a república, a qual
acima Marx apenas colocou lado a lado a demo- ele cita como exemplo em diversas passagens
cracia, a monarquia e a aristocracia com o fito de similares a esta. Já a democracia é um conteúdo
demonstrar como antes do pensamento político sem forma determinada, um conteúdo que não
moderno converter a realidade em abstração não pode ser traduzido por uma forma outra senão a
havia separação entre substância e forma. Com a deste próprio conteúdo. Por isso a democracia
modernidade, os regimes políticos passaram, na pode ser concebida em seus próprios termos,
prática, a se organizar com base em tal separação. pois que é concomitantemente forma e conteúdo.
A abstração torna-se uma realidade, mas esta não se Uma monarquia pode ser democrática, assim
identifica mais com a vida do povo. O Estado mo- como uma república pode ser democrática, mas
derno, afinal, instaura a alienação. E este passa a ser uma democracia não é, ela mesma, uma demo-
o problema não apenas da monarquia ou da aris- cracia monárquica ou uma democracia republi-
tocracia, mas também da república. Com efeito, em cana: a democracia é a verdade da monarquia
todas essas formas de governo apenas pode-se ter (como poderia ser a verdade da república), mas a
uma “democracia política” – o que equivale a dizer monarquia não é a verdade da democracia. A
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monarquia ou a república são apenas formas que do homem, com sua atividade, com sua prática,
falsificam o conteúdo, isto é, falsificam a demo- com sua vida. É assim que a democracia se faz con-
cracia. Colocado este ponto em outra perspectiva, teúdo e o pode refletir em distintas formas que, no
temos que a democracia é o sujeito, enquanto a entanto, com ele não se identificam. É nesse senti-
monarquia ou a república são predicados que po- do que a democracia é a “constituição genérica”.
dem ou não acompanhar tal sujeito. O sujeito exis-
te por si só, mas o predicado necessita do sujeito A democracia é a essência de todas as consti-
para completá-lo, sem o que ele não tem sentido, tuições políticas, o homem socializado (des sozia-
não atinge a sua verdade. lisierten Menschen) como uma constituição polí-
tica particular. A democracia está para as outras
formas de constituição como o gênero está para
Hegel parte do Estado e concebe o homem
as suas várias espécies, à diferença apenas que
como o Estado subjetivizado; a democracia pro-
aqui o gênero passa a existir e se manifesta como
cede do homem e concebe o Estado como um
uma espécie particular em relação às outras
homem objetificado (Idem, ibidem).
espécies, cuja existência não corresponde à es-
sência genérica (Idem, p. 88).
Quando Marx afirma que, ao contrário do
que pensava Hegel, a democracia deve partir do O que significa dizer que “a democracia é a
homem e não do Estado, ele quer dizer que este – essência de todas as constituições políticas”? O
assim como as formas monárquica ou republicana que Marx entende por “constituição política”?
que porventura assuma – pode, quando mais, ser Segundo Avineri, onde Marx escreve “constituição
apenas um reflexo do homem, uma de várias for- política”, devemos ler “Estado”. Essa interpretação
mas particulares da vida do povo, uma das várias parece-me limitada, na medida em que, neste con-
determinações que o conteúdo da democracia texto de definição do estatuto da verdadeira de-
pode assumir. Quando a democracia parte do ho- mocracia, “constituição política” implica, de fato,
mem, ela pode ou não chegar ao Estado, fazer dele algo mais genérico, tal como ‘forma política’ ou
seu objeto, seu predicado, um “homem objetifica- ‘organização política’. De acordo com esse último
do”. Este não é um caminho necessário. Fazer do sentido, o Estado poderia ser uma forma de orga-
homem, e não do Estado, o sujeito, implica que a nização política, assim como a comunidade pode-
democracia pode existir sem o Estado, que ela não ria ser outra dessas formas. Desse modo, a organi-
é uma característica ou uma determinação dele. zação política consiste em uma instância genérica,
Justamente o contrário: como conteúdo, a demo- da qual emanam formas particulares por meio das
cracia não pode ser aprisionada em formas, ela quais a política se processa. Tais formas podem
pode apenas percorrê-las, o que faz com que a ser tão diversas quanto o são a comunidade e o
dinamicidade de seu movimento natural se cristali- Estado, lembrando que este último ainda é susce-
ze em momentos. Na condição de movimento, a tível de outras instâncias de particularização inter-
democracia desenvolve-se como um processo; na na (formas de Estado e formas de governo). Vale
condição de momento, a democracia manifesta-se lembrar que o uso do termo “constituição” neste
molecularmente. Cada aspecto da democracia, sentido genérico de forma de organização política
cada uma de suas partes, é apenas um aspecto do é também usado por Spinoza, e encontra ainda
demos, do demos todo. Não há distinção entre o um significado semelhante àquele visado por
todo e suas partes: ambos remetem ao povo, à vida Aristóteles ao se referir à politeia como uma forma
do povo, não se distinguindo entre si. A verdadei- de organização política da polis. Logo, afirmar que
ra democracia consiste em um todo unitário, e é a democracia é “a essência de todas as constitui-
isso que permite que ela seja, concomitantemente, ções políticas” implica confirmar que a democra-
conteúdo e forma: seu conteúdo dá forma a si cia é uma substância sem forma, que pode poten-
mesmo, permanentemente. É por isso que a demo- cialmente se materializar em diferentes contextos
cracia parte do homem: ele é o sujeito da demo- de organização da política. No entanto, se todas as
cracia, o que equivale a dizer que ele é o seu con- formas políticas podem ter a democracia como
teúdo. A democracia identifica-se com a experiência sua verdade, a recíproca não se aplica: a demo-
O ENIGMA DA DEMOCRACIA EM MARX 63

cracia apenas encontra sua verdade na comunida- O político deve organizar-se não com base em
de que supera o Estado moderno. um artefato jurídico, mas a partir dos próprios
Isso remete a outra das questões suscitadas “seres humanos reais”, em sua atividade de deter-
na passagem transcrita acima, qual seja, a de que minar-se a si mesmos, de consolidar a sua exis-
“a democracia está para as outras formas de cons- tência como sujeitos. Não basta ao povo existir;
tituição política como o gênero está para a espé- para ser real ele tem que intervir diretamente na
cie”. A democracia é um gênero do qual o Estado realidade, constituindo-a, fazendo dela parte de si
em sua forma monárquica ou o Estado em sua mesmo, na medida em que ela também se orga-
forma republicana constituem apenas espécies. niza de acordo com a ação dos homens. A forma
Ela é uma essência da qual emanam todas essas política que resulta dessa organização não pode
“constituições políticas”. Mais uma vez, a demo- ser senão uma criação própria do povo, um resul-
cracia é uma substância que pode ou não preen- tado de sua capacidade de determinar-se a si pró-
cher as formas políticas. Todas a almejam como prio. Enquanto “criação livre do homem”, a de-
sua essência, como sua verdade. Nesse sentido mocracia prescinde de formas jurídicas. Ela deixa,
são apenas “espécies”, “momentos”, “expressões aliás, de ser uma forma, para ser simplesmente o
particulares”, “determinações” da democracia. De conteúdo resultante das capacidades criativas e
onde se explica ainda que “a democracia é […] o criadoras dos sujeitos. A democracia combina
homem socializado como uma constituição políti- abertura e reflexividade; ela se exerce verdadeira-
ca particular”. A democracia remete ao homem, e mente como uma atividade, e uma atividade do
ao homem socializado, isto é, o homem como ser povo.5
social, como parte constitutiva e constituinte da Em vez de definir-se como um vínculo jurídi-
sociedade. Esse “homem socializado”, ou a “vida co-político que une os homens ao Estado, a cida-
do povo”, apresenta-se, por sua vez, como uma dania passa a se definir ativa e efetivamente como
“constituição política particular”, ou seja, a mani- a prática democrática dos homens que é constitu-
festação do gênero que passa a existir e a se mani- tiva de sua própria forma de organização política.
festar “como uma espécie particular em relação às Cidadania “ativa” deixa de ser algo que é concei-
outras espécies, cuja existência não corresponde à tuado em contraposição a um sentido “passivo”,
essência genérica”. para remeter diretamente ao sentido de atividade.
A unidade da sociedade civil com o Estado Os cidadãos são ativos não porque deixam de ser
conduz à unidade do indivíduo e do cidadão, do passivos, mas porque é a sua própria atividade que
particular e do universal. Não há mais partes que passa a definir a cidadania. Nesse sentido, toda ati-
se sobreponham umas as outras, determinando-se vidade humana, todas as ações do homem são
exteriormente. O todo formado por esta unidade constitutivas da cidadania. Em outras palavras, com
determina-se a si mesmo. Isso propicia que o enig- a verdadeira democracia, toda atividade humana é
ma, afinal, se resolva: preenchida de sentido político.
Quando não há mais separação entre uma
A democracia é o enigma resolvido de toda esfera política e outra socioeconômica, vale dizer,
constituição. Nela encontramos a constituição fun-
quando a verdadeira democracia possibilita que a
dada em sua verdadeira base: seres humanos reais
comunidade surja no espaço onde antes havia a
e o povo real; não meramente, implicitamente e em
essência, mas em existência e em realidade. A
separação entre sociedade civil e Estado, todas as
constituição é assim postulada como criação pró- ações dos homens passam a ser ações políticas.
pria do povo. A constituição é, em aparência, o Marx reconhece um caráter político à prática, iden-
que é em realidade: a criação livre do homem tificando toda atividade individual como atividade
(Idem, p. 87). política. Não há separação entre o que seja uma
tarefa particular e uma tarefa pública: quando o
Os homens devem ter controle das condi- universal e o particular encontram-se, todas as ati-
ções de sua própria existência. A autodetermina- vidades individuais passam a ter um sentido públi-
ção apresenta-se como determinação da universa- co, dizem respeito à gestão coletiva da comunida-
lidade em cada evento que singulariza o sujeito. de. Conforme esclarece sobre este ponto Henry,
64 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 22 Nº. 63

[…] o político não se refere mais ao Estado, nem a idéia moderna de Estado desvanecesse, e não
uma atividade específica do Estado. A significação simplesmente postulasse que o poder fosse toma-
política da atividade de um indivíduo […] deve do por novos sujeitos. Afinal, o enigma para o
qualificar sua atividade individual como tal, sua qual aponta a verdadeira democracia não diz res-
atividade cotidiana, profissional e pessoal (Henry,
peito à titularidade do poder ou à forma de seu
1976, p. 136).
exercício. O enigma da democracia aponta para a
contradição que se encontra na base da moderni-
É nesse sentido, afinal, que a verdadeira de-
dade política, isto é, a separação do Estado em
mocracia se apresenta como um enigma resolvido,
relação à sociedade civil e a conseqüente aliena-
e não meramente como um enigma. Os homens tor-
ção política desta em face daquele.
nam-se sujeitos reais na medida em que ganham
É por isso que, conforme argumentei ao
consciência de si, e esta consciência os torna seres
longo deste artigo, pensar a democracia com
socialmente políticos. Não há distinção entre o indi-
Marx implica pensar uma nova forma de organi-
vidual, o social e o político, uma vez que toda ativi-
zação política que resolva a contradição entre
dade individual é também uma atividade social com
Estado e sociedade civil. Esta contradição, que
efeitos políticos. A atividade pessoal e profissional
responde por tantos dualismos que caracterizam a
dos indivíduos mescla-se com a administração das
modernidade política desde a Revolução
coisas públicas, de modo que a prática cotidiana
Francesa, não será definitivamente superada por
da democracia é constitutiva, ao mesmo tempo, da
mediações – como a representação política –, que
comunidade e dos homens que nela vivem.
apenas propiciam à sociedade civil uma “existên-
Assim, já de posse da resolução de seu enig-
cia política ilusória”, conforme já percebia Marx.
ma antes mesmo de formulá-lo na Crítica da filo-
Apenas uma nova forma política que ofereça
sofia do direito de Hegel, Marx escreveu em carta
espaço para que aquela contradição a um só
enviada a Ruge em maio de 1843:
tempo se realize e se resolva poderá tornar a
Apenas o sentimento próprio dos homens, sua
democracia verdadeira. É assim que Marx fornece
liberdade, pode fazer a sociedade novamente um uma resposta atual para um problema moderno
dia tornar-se uma comunidade na qual os homens que ainda nos é contemporâneo: a resolução do
possam realizar seus objetivos mais elevados, uma enigma deve ser buscada nas formas comunitárias
polis democrática (Marx, 1992b [1843], p. 201). que realizam a democracia sem mediações, por
meio da multiplicidade da experiência humana e
da prática constitutivamente política dos homens.
Considerações finais

Quando Marx afirma que a verdadeira Notas


democracia é o enigma resolvido de toda consti-
tuição, ele está a dizer, em outras palavras, que a 1 Quando anuncia “uma democracia bastante diferen-
democracia é a verdade de todas as formas de te que representa o meio-termo entre as democracias
organização política. Mas, em contrapartida, se o grega, romana, americana e francesa”, Engels denun-
Estado moderno consiste em apenas “um momen- cia algumas das fontes de Marx ao elaborar o con-
to” ou em “uma forma de existência particular” da ceito de verdadeira democracia. As lições sobre o
democracia, há apenas um tipo de organização modelo romano, Marx tomou de Robespierre e de
seu extenso estudo sobre Revolução Francesa, em
política que se identifica com o conteúdo da ver-
particular do jacobinismo. Marx nutriu-se do culto
dadeira democracia, qual seja, a comunidade. Na
jacobino à antiguidade clássica, muito embora achas-
comunidade, a democracia atinge a sua verdade: se que um de seus erros estratégicos foi o de tentar
revela-se como a forma da “sociedade comunista” transpor forçosamente princípios da antiguidade
ou a “sociedade do futuro”, isto é, a “sociedade para os tempos modernos. Quanto à democracia
sem classes” ou a “sociedade sem Estado”, que grega, Marx certamente se valeu de estudos sobre a
viria a servir de lugar para a realização do comu- Atenas de Péricles. Sabe-se que a democracia ate-
nismo após uma revolução que fizesse com que a niense e a antiguidade clássica em geral faziam parte
O ENIGMA DA DEMOCRACIA EM MARX 65

do currículo universitário de Marx, afinal na forma de uma introdução ao seu jornal La démocra-
Alemanha das primeiras décadas do século XIX a tie pacifique, que veio a substituir o jornal fourieris-
admiração por aquela época histórica acompanhada ta La Phalange. Na última parte deste belo manifes-
de um estudo sistemático da mesma era algo recor- to, após distinguir entre as tendências imobilista,
rente. No que tange à democracia americana, há conservadora, retrógrada, revolucionária e progres-
indícios interessantes nos cadernos de estudo de sista da democracia, Considerant elabora uma distin-
Marx do mesmo ano de 1843 em que ele propôs o ção entre o que seria uma “democracia verdadeira”
conceito de verdadeira democracia. Um desses e uma “democracia falsa”. A primeira consistiria no
cadernos traz inúmeras citações de Thomas Hamil- “pleno reconhecimento dos direitos e interesses de
ton, mais especificamente de sua obra Men and todos, e sua efetiva organização progressiva e inteli-
manners in America, publicada pela primeira vez gente”. Além disso, ela implicaria na “organização
em 1833. Marx, que leu Hamilton traduzido em ale- regulada da paz e do trabalho, no desenvolvimento
mão, copiou cerca de cinqüenta passagens de seu de prosperidade nacional e a realização progressiva
livro, que versavam majoritariamente sobre os da ordem, da justiça e da liberdade”, e resultaria em
seguintes temas: federalismo, sufrágio universal, uma “organização hierárquica das famílias e das clas-
situação jurídica dos cidadãos (questões de cidada- ses em uma commune, as communes nas províncias
nia), constituições dos estados americanos, conflitos na nação. E a associação das nações na humanida-
de interesse entre o norte e o sul, entre outros. Se de”. Já a “falsa democracia” se identificaria com o
Marx busca na democracia americana sinais de sua “espírito revolucionário” (!), o “espírito da inveja, do
potencialidade revolucionária, é certo que nas pági- ódio, da guerra”, pregaria a “liberdade anárquica, a
nas de Hamilton – particularmente em sua observa- igualdade violenta e cobiçosa, o patriotismo exclusi-
ção da economia americana – encontrou o suor das vo e dominador”, além da “independência feroz,
lutas de classe. Sabe-se ainda que neste período caótica, armada e hostil”. Desse modo, a “verdadei-
Marx também leu Tocqueville, muito embora seus ra democracia” “une, organiza, relaciona, classifica,
cadernos de estudo não tragam evidências explícitas associa, libera e centuplica o bem-estar e o desen-
disso. Esta influência se faz sentir não apenas em volvimento físico, moral e intelectual de todas as
conjugação com aquela exercida por Hamilton, no pessoas, de todas as classes”. A “falsa democracia”,
que tange ao provimento de um retrato empírico da por sua vez, “divide, subverte, destrói, empobrece e
democracia norte-americana, como também mais cobre a terra com ruínas. Ela incita as classes umas
diretamente no conteúdo de alguns artigos publica- contra as outras e os povos contra os seus gover-
dos na Gazeta Renana no período que precedeu a nos”. É assim que Considerant irá concluir que o
redação da Crítica da filosofia do direito de Hegel. A “espírito moderno” se bifurca em duas expressões
influência da democracia francesa na sua concepção opostas, a “democracia pacífica”, que ele advoga co-
de verdadeira democracia, particularmente dos teóri- mo verdadeira, e a “democracia violenta e revolu-
cos franceses da democracia, é decisiva. Uma das cionária”, a falsa democracia que a ela se oporia
principais idéias que Marx parece querer reter de tal (Considerant, 2006 [1843], pp. 91-92).
influência diz respeito à impossibilidade da realiza-
2 Este ponto encontra-se desenvolvido em
ção da democracia dentro dos limites do Estado. A
Pogrebinschi (2007, caps. 1 e 2).
verdadeira democracia engendra uma tensão entre
democracia e Estado, como se estes dois conceitos 3 Quem seriam estes franceses de quem Marx toma a
fossem incompatíveis; como se, onde existisse o lição sobre o desaparecimento do Estado? Não há um
Estado, a democracia não fosse possível, pelo menos consenso a esse respeito entre os diversos comenta-
não em sua forma verdadeira. Entretanto, é a in- dores. As hipóteses variam entre Victor Considerant
fluência do socialismo francês que parece ter sido (Abensour, 1998 [1997], p. 139), Proudhon e Fourier
determinante. Além de Fouret e Saint-Simon, sabe-se (Draper, 1970, p. 283), ou ainda outros revolucioná-
que Marx leu com atenção Victor Considerant, con- rios franceses como Saint-Simon e Robespierre. Com
siderado uma de suas influências mais importantes efeito, os cadernos de estudo de Marx referentes ao
ao conceber o conceito de verdadeira democracia. período entre 1842 e 1843 indicam um estudo atento
Um dos principais discípulos de Fourier e um dos da Revolução Francesa e de seus líderes, bem como
mais importantes difusores diretos e indiretos de sua do socialismo que a partir de então se fez emergen-
obra, Considerant publicou no mesmo ano em que te naquele país, para onde viria a se mudar no ano
Marx redigiu a Critica da filosofia do direito de Hegel seguinte. Não é de se descartar ainda que, como bom
o seu Manifeste de la démocratie au XIX siècle, na jovem hegeliano que era até mesmo em sua refuta-
66 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 22 Nº. 63

ção de Hegel, Marx tenha se nutrido também das entre a democracia e o homem e entre este e a liber-
idéias de um curioso documento que remonta às ori- dade, Marx certamente traz de Spinoza. O filósofo
gens do Idealismo alemão: “O mais antigo programa holandês, afinal, responderia aquilo que ele teria em
de sistema do idealismo alemão”, manuscrito anôni- vão demandado de Hegel ou Rousseau: a possibili-
mo de origem supostamente coletiva, mas por mui- dade de o indivíduo reconciliar existência social e
tos atribuídos à pena solitária de Schelling. Neste direito natural sem fazer recurso a uma ficção jurídi-
pequeno e surpreendente documento de cunho ine- ca (um contrato social no qual se transfiram direitos
gavelmente kantiano, encontra-se um ataque peculiar e por meio do qual se constituam a soberania e a
à idéia de Estado (e, como decorrência, a descons- representação). A associação, conceito que Marx de-
trução das idéias de governo, constituição e lei) que senvolve inspirado em Spinoza, possibilita que a
se faz acompanhar pela defesa irrestrita de sua supe- democracia seja realizada em uma forma de organi-
ração. O Estado, para este idealismo que parecia zação política na qual a permanência do chamado
ainda não ter-se separado do romantismo, não podia “estado de natureza” impede a separação entre a
ser tomado propriamente como uma “idéia”, redu- sociedade civil e o Estado. Marx encontra em Spinoza
zindo-se a uma espécie de máquina que se relaciona a idéia de uma democracia total, e dela se beneficiará
com os homens como se eles fossem engrenagens posteriormente sua noção de comunismo.
mecânicas. Para que a “idéia” dentre todas superior,
qual seja, a de um ser absolutamente livre, pudesse
se fazer plena, decorria a necessidade do desapareci- BIBLIOGRAFIA
mento do Estado, após o que se estabeleceria um
“mundo moral” que pudesse realizar a razão que ele ABENSOUR, Miguel. (1998) [1997], A democracia
apenas simulava. A verdadeira democracia, no entan- contra o Estado: Marx e o momento
to, em nada se assemelha a este universo moral alme- maquiaveliano. Belo Horizonte, Editora
jado nos primórdios do Idealismo alemão senão em da UFMG.
sua estratégia de constituir-se a si mesma em contra-
posição ao Estado e com ele mostrar-se irreconciliá- AVINERI, Shlomo. (1968), The social and political
vel. “Das älteste Systemprogramm des deutschen thought of Karl Marx. Cambridge,
Idealismus”, escrito entre 1796 e 1797, é usualmente Cambridge University Press.
atribuído conjuntamente a Hölderlin, Hegel e
Schelling, embora seu conteúdo seja extremamente
CONSIDERANT, Victor. (1843 [2003]), Principles of
similar à obra posterior deste último. socialism: Manifesto of 19th Century
democracy. Washington, Maisonneuve
4 Vale recordar, a título de curiosidade, que no âmbi- Press.
to do jusnaturalismo moderno faz-se freqüentemen-
te uma distinção entre Civitas e Respublica, as quais DRAPER, Hal. (1977), Karl Marx’s theory of revo-
são relacionadas como materia e forma, ou subjec- lution. Vol. 1: State and bureaucracy.
tum e finis, ou corpo e alma. A Civitas consiste no Nova York, Monthly Review Press.
grupo ou comunidade que é a base do Estado, en-
quanto a Respublica é a constituição daquele grupo;
ENGELS, Frederick. (1845), “The festival of
desse modo, a Civitas é definida como um corpo de nations in London”, in Marx and Engels
pessoas, e a Respublica, como uma ordem de rela- collected works, vol. 6. Nova York,
ções. Ainda, a idéia de societàs liga-se à primeira, e International Publishers.
a idéia de summa potestas, à segunda (cf. Gierke,
GIERKE, Otto Von. (1958), Natural law and the
1958, p. 235).
theory of society. Cambridge, Cambridge
5 A influência de Spinoza na concepção marxiana de University Press.
democracia pode ser percebida aqui. Spinoza é uma
das peças-chave para se entender a démarche inte- HENRY, Michel. (1976), Marx I: une philosophie
lectual que leva Marx à democracia, e desta ao comu- de la réalité. Paris, Gallimard.
nismo. Foi na escola de Spinoza que Marx teria, afi- MARX, Karl, (1976 [1867], Capital. Londres,
nal, aprendido a conciliar necessidade e liberdade, e Penguin Books, vol. 1.
uma vez de posse desse conhecimento lhe foi possí-
vel desconstruir a mistificação hegeliana, em particu- _________. 1992a [1843]. Critique of Hegel’s doc-
lar sua metafísica do Estado. A relação inseparável trine of the State, in Karl Marx: Early wri-
O ENIGMA DA DEMOCRACIA EM MARX 67

tings. Traduzido por Rodney Livingstone.


Londres, Penguin Books.
_________. (1992b [1843]), Letters from the
Franco-German yearbooks, in Karl Marx:
Early writings. Traduzido por Rodney
Livingstone. Londres, Penguin Books.
POGREBINSCHI, Thamy. (2007), O enigma do
político: Marx contra a política moderna.
Tese de doutorado em Ciência Política,
Rio de Janeiro, Iuperj.
168 REVISTA BRASILEIRA DE CIÊNCIAS SOCIAIS - VOL. 22 Nº. 63

O ENIGMA DA DEMOCRACIA DEMOCRACY ENIGMA IN MARX L’ÉNIGME DE LA DEMOCRATIE


EM MARX D’APRÈS MARX

Thamy Pogrebinschi Thamy Pogrebinschi Thamy Pogrebinschi

Palavras-chave: Karl Marx; Demo- Keywords: Karl Marx; Democracy; Mots-clés : Karl Marx; Démocratie;
cracia; Estado; Comunidade. State; Community. État; Communauté.

O objetivo deste artigo consiste em This article aims at analyzing the L’objectif de cet article est d’exami-
examinar o conceito marxiano de concept of Marx on true democracy ner le concept de la véritable démo-
verdadeira democracia, tal como as developed especially in the Criti- cratie selon Marx, tel qu’il a surtout
desenvolvido, sobretudo, na Crítica que of Hegel’s Philosophy of Right, in été développé dans la Critique de la
da filosofia do direito de Hegel, de order to indicate how he poses him- philosophie du droit de Hegel, de
modo a indicar a maneira pela qual self as the “resolved enigma” for façon à indiquer la façon par laquel-
ele se apresenta como o “enigma modern ways of political organiza- le il se présente comme l’“énigme ré-
resolvido” das formas modernas de tion. In doing so, the article argues solue” des formes modernes de l’or-
organização política. Nesse sentido, that such enigma points towards the ganisation politique. Ainsi, je défends
argumento que esse enigma aponta contradiction between state and civil que cette énigme indique la contra-
para a contradição entre o Estado e society, which for Marx constitutes diction existante entre l’État et la so-
a sociedade civil, que, para Marx, the main characteristic of political ciété civile, qui, pour Marx, a été la
constitui a principal característica da modernity. It consequently also ar- principale caractéristique de la moder-
modernidade política. Em conse- gues that a solution revealed to the nité politique. En conséquence, je
qüência, argumento também que co- enigma of the “true democracy” défends également que la “véritable
mo solução do enigma que revela, a implies in overcoming contradiction, démocratie”, en tant que solution de
“verdadeira democracia” implica na what can only happen through the l’énigme qu’elle révèle, implique le
superação daquela contradição, a instauration of a new place for poli- surpassement de cette contradiction,
qual apenas pode se dar mediante a tics: the real community founded on qui ne peut exister que par la créa-
criação de um novo lugar para a free association of equally free men. tion d’un nouvel emplacement pour
política: a comunidade real fundada la politique: la communauté réelle
em uma livre associação de homens fondée sur une libre association
igualmente livres. d’hommes également libres.

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