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Para entender a alienação: Marx, Fromm e Marcuse

Maria Angélica Peixoto*

Resumo: O artigo aborda a interpretação de Marcuse e Fromm acerca do


conceito de alienação, discutindo as divergências e convergências do
pensamento destes teóricos, bem como compara a formulação do conceito de
alienação por Marx com a apresentada por eles. O trabalho ressalta ainda as
contribuições de Marcuse e Fromm para o pensamento social contemporâneo,
pois ao tentarem resgatar o conceito de alienação em Marx, proporcionam
elementos importantes para se repensar a problemática em torno deste conceito.
Palavras-chave: alienação, trabalho, idolatria, materialismo histórico.
Abstract: The article approaches the interpretation of Marcuse and Fromm
concerning the alienation concept, discussing the divergences and convergences
of the thought of these theoretical ones, as well as it compares the formulation
of the alienation concept for Marx with introduced your by them. The work still
points out the contributions of Marcuse and Fromm for the contemporary social
thought, because to the they try to rescue the alienation concept in Marx, they
provide important elements to rethink the problem around this concept.
Key word: alienation, work, idolatry, historical materialism.

*
MARIA ANGÉLICA PEIXOTO é Socióloga e Professora do Instituto Federal
de Educação, Ciência e Tecnologia de Goiás/IFG; Mestra em Sociologia pela UnB.

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alienação surge com a divisão social do
trabalho e com esta divisão surge a
separação entre os que dirigem e os que
executam o processo de trabalho. Há,
pois, nesta relação, a instauração da
alienação. O trabalhador é constrangido
a atender suas necessidades mais
Erich Fromm (1900-1980) e Herbert Marcuse (1898-1979)
imediatas, tais como: comer, beber,
vestir, etc., se não o fizer porá em risco
Este trabalho objetiva apresentar o sua própria existência. Ao fazer de sua
conceito de alienação tal como visto por capacidade de trabalho um meio para
Herbert Marcuse e Erich Fromm. atingir determinados fins, a sua
Abordaremos as possíveis atividade deixa de ser uma atividade
convergências e divergências destes livre (auto-atividade) e torna-se trabalho
autores em relação a este tema. Antes de alienado.
tudo, apresentaremos o conceito de Por conseguinte, o trabalhador
alienação em Marx, já que a discussão confronta-se com o produto de seu
em torno deste conceito pelos dois trabalho como algo “estranho e hostil”,
autores parte desta discussão. Assim, é sintoma de que seu trabalho é trabalho
importante comparar o conceito de alienado. Como dissemos acima, esta
alienação tal como desenvolvido por alienação do trabalhador se dá no
Marx com a abordagem destes dois próprio processo de trabalho. A
pensadores. Depois de explicitar como conseqüência disto é que o produto do
Fromm e Marcuse interpretam o trabalho confronta-se com quem o criou:
conceito marxista de alienação, o trabalhador. Este processo se
apresentaremos nosso ponto de vista concretiza na medida em que o
sobre estas abordagens. Vale esclarecer trabalhador ao se separar do produto do
que este trabalho não tem a intenção de seu trabalho, outro que não o
descartar as contribuições de Marcuse e trabalhador se apropriará dele. Ao se
Fromm. Ao contrário, estamos certos da apropriar do trabalho do trabalhador, o
importância de tais autores e seus não-trabalhador criará as condições
estudos e nossa intenção aqui é somente necessárias para a efetivação da
aprofundar a questão e apresentá-la tal propriedade privada.
como a interpretamos. Para tanto, as
divergências surgem e para o bem do Marx, ao analisar a economia política,
debate são sempre bem recebidas. observa que esta toma a propriedade
Enfim, são estas as intenções do nosso como a responsável pela acumulação.
trabalho. Ao contrário, o que Marx quer nos fazer
ver é que é no próprio processo de
O conceito de alienação em Marx trabalho que se cria as condições para tal
Para Marx (1983), a alienação humana acumulação. Sendo, pois, a propriedade
está no fato de haver no processo de privada uma mera conseqüência do
produção uma relação que impede e processo de trabalho. É então na esfera
constrange a realização do trabalho da produção que o trabalho alienado se
como “objetivação”, ou seja, como efetiva, tornando possível a apropriação
realização da natureza humana. Mas por parte do não-trabalhador dos
antes de tudo devemos perguntar: o que produtos do trabalho do trabalhador. É
é a alienação? Segundo Marx, a justamente neste processo que se

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engendra a alienação. Ela passa da sendo criação humana, acaba finalmente
esfera da produção para todas as demais por sujeitar o próprio criador. Ao adorar
esferas da sociedade, se generalizando. aquilo que criou, o criador torna-se,
A alienação contamina assim todas as então, vazio de vida. Fromm define o
outras relações sociais. Marx aponta conceito de idolatria da seguinte forma:
como única saída a emancipação por “A essência do que era chamado
parte dos próprios trabalhadores deste ‘idolatria’ pelos antigos profetas
processo que gera o trabalho alienado. não está em o homem adorar muitos
Só o trabalhador libertando-se, libertará deuses em vez de um único. Está
toda a humanidade de sua alienação. em os ídolos serem a obra das mãos
Quando a alienação não fizer parte do do próprio homem — eles são
processo de trabalho, a humanidade coisas, e no entanto o homem
estará livre dela e poderá, então, se curva-se ante elas e as reverencia;
reconhecer como ente-espécie. adora aquilo que ele mesmo criou.
Ao fazê-lo ele se transforma em
Fromm: alienação e idolatria coisa. Transfere às coisas de sua
criação os atributos de sua vida, e,
Fromm inicia o capítulo dedicado a
em vez de experenciar-se como
alienação com a seguinte frase: pessoa criadora, só entra em contato
“O conceito do homem ativo e consigo mesmo através da adoração
produtivo, que compreende e do ídolo. Ele se alheou às forças de
controla o mundo objetivo com suas sua própria vida, à riqueza de suas
próprias faculdades, não pode ser próprias potencialidades, e só entra
plenamente entendido sem o em contato consigo mesmo de
conceito de negação da maneira indireta, e submetendo-se à
produtividade: a alienação” vida congelada nos ídolos” (Fromm,
(Fromm, 1983, p. 50). 1983, p. 51).
A partir disto se coloca a questão: o que Segundo Fromm, os ídolos são por
é alienação para Fromm? Alienação é o vezes, um Deus, ora o Estado, a Igreja,
homem estar separado (alheado) daquilo posses, etc. É claro que a pessoa idólatra
que criou. Sendo que o objeto criado muda o objeto de sua adoração, mas isto
pelo homem muitas vezes se volta dependerá de suas motivações, e tais
contra ele próprio. Isto o impede de motivações não possuem apenas um
vivenciar o mundo como ser autônomo. sentido religioso, há por detrás dela
Ao contrário, a sua relação com o vários outros sentidos. Mais adiante,
mundo externo e com ele próprio é uma Fromm irá apresentar o conceito de
relação passiva, receptiva. Alienação, alienação tal como visto por Marx:
então, nada mais é do que a negação da Para Marx, o processo de alienação
produtividade, ou seja, da capacidade manifesta-se no trabalho e na
criadora do homem. divisão do trabalho. O trabalho é,
Erich Fromm vai nos mostrar que o para ele, o relacionamento ativo do
homem com a natureza, a criação
conceito de alienação foi pela primeira
do próprio homem (...). Com a
vez expresso no Ocidente pelo conceito expansão da propriedade privada e
de idolatria, sendo que este aparece no da divisão do trabalho, todavia, o
Antigo Testamento. O conceito de trabalho perde sua característica de
idolatria expressa o quanto o indivíduo expressão do poder do homem; o
está perdido de si mesmo. A vida se trabalho e seus produtos assumem
petrifica na adoração de ídolos. Ao ídolo uma existência à parte do homem,
entrega-se todo o potencial humano,

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de sua vontade e de seu aponta a possibilidade de generalização
planejamento (Fromm, 1983, p. 53). da alienação. Ela inicia no processo de
Ao apontar a divisão do trabalho como trabalho e se generaliza por toda parte.
uma das causas principais que levam o Com isto, vimos que “a alienação
homem à alienação na visão marxista, conduz à perversão de todos os valores”.
Fromm segue o raciocínio de Marx A alienação torna cada esfera da vida
apontando que não é através de uma (econômica, moral) separada,
distribuição igualitária de renda que se desmembrada uma da outra. Ele alude
supera a alienação, ao contrário, é com a ao fato de a alienação ser cada vez
abolição do modo de produção maior em segmentos da sociedade que
capitalista que se pode superá-la. manipulam símbolos e homens. Afirma
que Marx não previu o quanto a
O trabalho alienado não só escraviza o alienação se expandiria, contaminando
trabalhador como também o capitalista. assim, toda a vida social. Aponta,
Para Fromm tal escravização é feita por finalmente, o nível de coisificação das
“coisas e circunstâncias” criadas pelos relações humanas e conclui dizendo que
próprios homens. Segundo Fromm, a humanidade se tornou prisioneira das
Marx ressalta que é na sociedade coisas que criou, tornando a si própria
capitalista que a alienação atinge o seu mercadoria, coisa vendável. Enfim, no
mais alto grau, embora ela tornou-se essencial, estas são as contribuições de
presente na história da humanidade a Erich Fromm ao estudo da questão da
partir do momento em que se instaurou a alienação.
divisão social do trabalho e a separação
execução e direção: de um lado, os Marcuse: alienação e materialismo
trabalhadores, que executam o trabalho; histórico
de outro, os que dirigem o processo de No capítulo “Novas Fontes Para a
trabalho. Fundamentação do Materialismo
No capitalismo é que se pode sentir mais Histórico”, em seu livro Idéias Para
cruelmente a alienação. O operário ao Uma Teoria Crítica da Sociedade”,
produzir, produz não para si, mas para o Marcuse se baseia na crítica de Marx, no
capitalista que é o que dirige o processo momento em que este último busca a
de trabalho. É nesta relação que a base para uma “crítica e fundamentação
humanidade se perde como “ente- filosóficas da Economia Política no
espécie” e se coloca em inferioridade sentido de uma teoria da revolução”
em relação aos animais. Toda servidão (Marcuse, 1981, p. 9), para apresentar
deriva desta relação entre trabalhador e sua discussão sobre a questão da
não-trabalhador. E a emancipação é obra alienação.
dos próprios trabalhadores que Marcuse procura nos Manuscritos
libertando-se libertam a humanidade Econômicos e Filosóficos de Marx
inteira. elementos que possibilitem a discussão
Fromm ressalta a importância de das categorias fundamentais da teoria
percebermos que no processo de marxista, a saber: trabalho, objetivação,
trabalho alienado “não só o mundo das alienação, superação, propriedade.
coisas que se torna superior ao homem, Embora o objetivo desta parte de nosso
mas também as circunstâncias sociais e trabalho apresente como principal meta
políticas por ele criadas se tornam seus a definição de alienação na visão de
senhores” (Fromm, 1983, p. 57). Marcuse, não podemos deixar de
Fromm, em consonância com Marx, reconhecer que para ele as categorias

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fundamentais da teoria de Marx estão comunista. A interpretação deve,
implicadas entre si, sendo que o portanto, fixar-se no conceito
conceito de alienação passa marxista de trabalho (Marcuse,
necessariamente pelas demais categorias 1981, p. 14).
(citadas acima), sem as quais não seria Percebemos, então, que para Marcuse, o
possível delinearmos o conceito de conceito marxista de trabalho é a chave
alienação na concepção de Marx. Neste para se interpretar os Manuscritos.
sentido, o conceito de trabalho será
Quando Marx descreve a forma de
tomado aqui como o determinante. trabalho e a forma de existência do
Perguntamos, então: como é definida a trabalhador existentes na sociedade
categoria trabalho? E mais: porque tal capitalista: completa separação em
categoria fornece os elementos relação aos meios de produção e ao
necessários para a compreensão das produto do trabalho transformado
demais? em mercadoria, oscilação dos
salários, do trabalho em torno do
Marcuse leva o leitor a compreender a mínimo físico de subsistência,
importância de se distinguir, tal como desconexão entre o trabalho —
fez Marx, a “economia política realizado como ‘trabalho forçado’ a
tradicional” da “economia política serviço do capitalista — e a
socialista”. A primeira, oculta a ‘realidade humana’ do trabalhador,
realidade social alienando e então todas essas características
desvalorando o homem; e a segunda é a podem apresentar-se como simples
única capaz de desvendar as “leis fatos da Economia Política. Esta
aparentemente inalteráveis” da impressão parece ser confirmada
sociedade. É aqui que a economia pelo fato de que Marx retira ‘por
meio da análise do conceito de
política socialista toma como fato a
trabalho exteriorizado’ o conceito
“exteriorização” e a “alienação”, de ‘propriedade privada’, ou seja, o
enquanto a tradicional não aceita tais conceito de Economia Política
conceitos como fatos. Ao operar a (Marcuse, 1981, p. 14).
“crítica positiva” da economia política,
Marx afirma que a alienação e a Marcuse, ao analisar a “caracterização
exteriorização fazem parte da economia do trabalho exteriorizado” percebe que o
política tradicional. A seguir, ele que caracteriza tal trabalho não é
dividirá inicialmente a análise em três somente “uma situação econômica” mas
conceitos: “salário do trabalho”, “lucro uma alienação e desvalorização da vida
do capital” e “renda da terra”. No humana, que leva a uma “distorção” de
entanto, Marcuse vai nos mostrar logo fatos da existência humana. Neste
adiante que Marx vai romper com estes contexto, a análise de Marcuse tenta
três conceitos e apresentar um novo resgatar a importância de se tomar o
conceito — o de trabalho alienado. É homem como tal e não como mero
então que Marcuse vai apresentar o fato “sujeito econômico”. Tal resgate implica
novo descoberto por Marx: em superar a propriedade privada —
nela o homem é tomado como objeto.
O conceito de trabalho, portanto, Aqui há uma conexão positiva entre a
em seu desenvolvimento rompe o essência humana e filosofia, esta última
âmbito delineado pela colocação do
fornece as bases filosóficas para a
problema; sob este conceito
prossegue a discussão que, então,
superação da alienação.
descobre um novo ‘fato’ que se Desta forma podemos compreender o
transforma em base da revolução conceito marxista de trabalho, que não é

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apenas um “fato econômico” ou um “gênero” de um ser é a sua raiz, sua
conceito de economia política burguesa essência. Esta essência é comum a todos
e sim a “essência humana”, ou seja, o que pertencem a este gênero. Para
que caracteriza as “forças essenciais Marcuse,
humanas”. Marcuse, mais adiante, após Ele pode relacionar-se livremente
definir a categoria trabalho, descreve o com todo ser; ele não está limitado
desenvolvimento histórico da pela determinação fatual
humanidade, e vimos que nessa momentânea do ser e por sua
concepção de trabalho já estava lançado relação direta com essa
as possibilidades de existência do determinação; essência de qualquer
trabalho alienado. A partir do momento determinação direta factual; ele
em que o trabalhador na sua pode reconhecer e apreender as
determinidade se separa do produto que possibilidades que existem em cada
criou, outro se apropriará dele, ou seja, o ser; ele pode esgotar, transformar,
construir, dirigir (‘produzir’) todo
não-trabalhador. Esta separação do
ser segundo esta ‘medida imanente’.
trabalhador do objeto criado por ele O trabalho como ‘atividade vital’
ocasiona uma divisão do trabalho. Não especificamente humana se baseia
se trata apenas do fato, verdadeiro, de nesse ‘ser genérico’ do homem: o
que o trabalhador perca o produto do seu trabalho pressupõe o poder
próprio trabalho, mas sim da própria relacionar-se com o ‘universal’ dos
transformação do trabalho em objetos e com as possibilidades
mercadoria, em algo que é vendável. neles imanentes. E no poder
Segundo Marcuse, relacionar-se com o próprio gênero
se baseia a liberdade
Assim o trabalho, em vez de uma especificamente humana: a auto-
manifestação do todo do homem, se realização, ‘autoprodução’ do
transforma em ‘exteriorização’, em homem. Por meio do conceito de
vez de plena e livre realização do trabalho livre (do livre produzir), a
homem se transforma em total relação do homem como ser
‘desrealização’: ele apresenta de tal genérico com seus objetos se torna
forma como desrealização que o mais clara (Marcuse, 1981, p. 22-
trabalhador é desrealizado até o 23).
estado de inanição (Marcuse, 1981,
p. 17). Neste sentido, o trabalho possui duas
faces: é ao mesmo tempo, realização e
Como, então, Marcuse irá definir destruição da essência humana. Isto só
alienação? Ele a define como sendo uma pode ser explicado pela situação
determinada relação do trabalhador com histórica concreta do homem, onde se dá
o objeto de seu trabalho, é, pois, nesta a inter-relação entre “essência” e
relação que se “funda o fato da “facticidade”. Não se trata de essência
alienação e coisificação”. Assim, a humana abstrata que está acima da
exteriorização do trabalho apresenta história e sim algo que se determina na
uma “destruição” e “alienação” da história e somente nela. Daí a
essência humana. O trabalho é o espaço possibilidade do trabalho passar de
da realização autêntica do homem, mas “realização” para “desrealização”
não o trabalho alienado. Para expressar humana. Houve, no processo histórico
esta realização autêntica do homem no da humanidade, uma separação entre
trabalho, Marcuse fala em objetivação. essência e existência. A existência deixa
Ele considera que, para Marx, o homem de ser um meio para manifestação de
é um “ser genérico”, “universal”. O sua essência para que a essência seja um

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meio para manter a existência física do relacionamento do homem com o
homem. Assim, se estabelece a objeto de seu trabalho é
alienação do trabalho. Marcuse conclui imediatamente seu relacionamento
que: com outros homens, com os quais
ele tem esse objeto e a si mesmo
Se, desse modo, a essência e a como ser social (Marcuse, 1981, p.
existência se separam e sua 45).
reunificação como realização
factual é a tarefa propriamente livre Se o produto do trabalho não pertence
da prática humana, então, quando a ao trabalhador, é porque pertence a
facticidade chegou até a inteira outros homens que não o trabalhador,
inversão da essência humana, a então, surge a figura do não-trabalhador.
superação radical dessa facticidade Através da alienação, o trabalhador se
é a tarefa pura e simplesmente. relaciona com sua própria atividade
Exatamente a visão certeira da como “atividade não-livre”, sob o
essência do homem se transforma domínio e a coerção de outro, o não-
em impulso para a fundamentação
trabalhador. Marcuse afirma que:
da revolução radical: o fato de que
na situação factual do capitalismo Não se trata de que existe primeiro
não se trata apenas de uma crise um ‘senhor’ que submete um outro
econômica ou política, e sim de homem, exterioriza dele o seu
uma catástrofe da essência humana trabalho, transforma-o em um
— esta concepção condena toda e simples trabalhador e a si mesmo
qualquer reforma econômica ou em não-trabalhador; mas tampouco
política ao fracasso e exige a se trata de que a relação de
superação catastrófica da situação dominação e servidão seja mera
factual por meio da revolução total. conseqüência da exteriorização do
Somente a partir de uma trabalho, pois a exteriorização do
fundamentação correta, cuja solidez trabalho, como alienação da própria
não possa ser abalada por meio de atividade e de seu objeto, em si
argumentos econômicos ou mesma já é a relação entre
políticos, é que surge a questão das trabalhador e não-trabalhador,
condições históricas e dos dominação e servidão (Marcuse,
portadores da revolução: a teoria da 1981, p. 45).
luta de classes e da ditadura do
Marcuse, Fromm e o conceito
proletariado. Toda crítica que se
ocupa dessa teoria sem discutir seu marxista de alienação
fundamento próprio não atinge seu Podemos dizer que Fromm e Marcuse
objeto (Marcuse, 1981, p. 36-37). divergem na concepção do que vem a
Qual é a origem da alienação? Segundo ser alienação. Fromm define alienação
Marcuse a demonstração disto é tarefa como sendo a “negação da
da análise econômico-histórica. Para produtividade” humana, ou seja, da
Marx, tal origem se encontra na divisão capacidade criadora do homem. Ele
do trabalho. Isto deriva da concepção de também coloca tal conceito como
Marx de que o próprio trabalhador sinônimo de idolatria. Alienação e
produz o domínio capitalista, pois a idolatria, então, são, na concepção de
auto-alienação do homem de si mesmo Fromm, a mesma coisa. Tal questão
se dá na relação com outros homens. abre possibilidades para
Segundo Marcuse, questionamentos: idolatria não seria
apenas uma conseqüência da alienação e
O contexto em que essa afirmação
não a própria alienação?
se encontra já é conhecido: o

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Apesar de Fromm concordar com Marx, trabalhador com o produto do trabalho e
no que concerne a questão da origem da o não-trabalhador Marx cunharia a
alienação, ou seja, na idéia de que a expressão exploração e para relação do
alienação surge com o aparecimento da trabalhador com o produto de seu
divisão social do trabalho, ele tende a trabalho na consciência, ele adotaria o
definir a alienação como sendo um conceito de fetichismo (Viana, 1995;
processo que ocorre na relação do Marx, 1988).
homem com o produto de seu trabalho, Fromm, assim, confunde fetichismo
tal como visto pela consciência humana, (idolatria) com alienação, pois a
daí sua identificação entre alienação e idolatria é o resultado da alienação e a
idolatria. Mas, se retomarmos a alienação é o próprio processo. Fromm
definição de alienação fornecida por reconhece a alienação no trabalho
Marx, veremos que as duas definições (“negação da produtividade humana”)
são contraditórias. Para Marx, é no mas acaba deslizando sua interpretação
trabalho (atividade vital humana, para a consciência do trabalhador a
característica da essência humana) que respeito do produto do trabalho e este é
ocorre a alienação. É por isso que ele o seu grande equívoco.
fala em trabalho alienado. Este se
caracteriza por uma determinada E a interpretação de Marcuse? Ele acaba
relação social onde o não-trabalhador caindo na mesma ambigüidade que
dirige o processo de trabalho do Fromm, pois, inicialmente, ele define a
trabalhador. alienação como uma determinada
relação entre o trabalhador com o objeto
A relação do trabalhador com o produto do seu trabalho (exploração) e
do seu trabalho, bem como a visão que posteriormente como sendo a própria
ele possui deste produto, é uma atividade, a relação do trabalhador com
conseqüência daquela relação anterior. seu trabalho caracterizada pela
Se o trabalhador não dirige o seu dominação do não-trabalhador sobre o
processo de trabalho, então ele também seu processo. Neste sentido, Marcuse
não irá ter o domínio sobre este seu comete equívocos semelhantes aos de
produto e por isso terá um Fromm.
“estranhamento” em relação a ele.
Portanto, são três processos inter- Quais são as divergências e
relacionados: relação homem/trabalho; convergências entre Fromm e Marcuse?
relação homem/produto do trabalho; A principal convergência entre ambos
relação da consciência humana com o está na definição do conceito de trabalho
produto do trabalho. Marx utiliza a e nisto eles estão de pleno acordo com
expressão “alienação” para expressar Marx: o trabalho, em sentido amplo, é a
estas três relações (Viana, 1995). essência humana1. O homem humaniza
o mundo através de seu trabalho sobre
Porém, deve-se reconhecer que ele ele e assim revela sua essência e
utiliza esta expressão em vários manifesta suas capacidades produtivas.
sentidos, tanto no sentido tradicional Entretanto, em determinadas condições
fornecido pela filosofia alemã (ligado à sociais surge o trabalho alienado, que é
questão da consciência) quanto no
a negação desta essência. Portanto, tanto
sentido novo fornecido por ele (trabalho
alienado), que, às vezes, para distinguir 1
Claro que acrescentando que tal trabalho é
de outros sentidos, ele chama de “auto- realizado através da cooperação, o que faz a
alienação”. Para a relação do sociabilidade ser parte da essência humana
(Viana, 2007).

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Fromm quanto Marcuse reconhecem o transformação da questão da alienação
caráter dual do trabalho na história: em um “problema da consciência”,
pode ser objetivação ou alienação. sendo este um procedimento da filosofia
idealista em visível contradição com a
Mas também existe divergência entre
concepção materialista de Marx.
ambos. Marcuse faz uma abordagem
excessivamente filosófica dos Por fim, devemos reconhecer os méritos
Manuscritos, enquanto que Fromm tanto de Fromm quanto de Marcuse.
coloca sua interpretação em termos Ambos buscam interpretar e
históricos-concretos, ou seja, num compreender os Manuscritos de Marx,
sentido mais próximo de Marx. Marcuse que são considerados por muitos como
não compreende a ruptura efetuada por escritos “pré-marxistas” e “pré-
Marx com a filosofia, (que culminará científicos” (Godelier, 1969). Eles
com a formação do “socialismo também esclarecem importantes
científico”) e faz uma interpretação que questões sobre os Manuscritos e, além
não sai do campo filosófico e quando disso, recuperam o significado autêntico
isto se faz necessário pela própria do conceito marxista de trabalho. São,
exigência do texto de Marx (por portanto, duas contribuições importantes
exemplo, o problema da origem da para o pensamento social
alienação) Marcuse diz que se trata de contemporâneo, apesar de suas
uma análise histórico-econômica que ele deficiências no processo de análise do
não irá abordar. Neste sentido, Fromm conceito de alienação.
avança mais que Marcuse. Assim, fica
claro os limites da “filosofia da
psicanálise” de Marcuse, já discutidas Referências
por Viana, uma das razões das FROMM, Erich. O Conceito Marxista do
divergências entre os dois pensadores Homem. 8a edição, Rio de Janeiro, Zahar, 1983.
(Viana, 2008). GODELIER, Maurice. Racionalidade e
Irracionalidade na Economia. Rio de Janeiro,
Outra divergência se encontra na ênfase Tempo Brasileiro, 1969.
que cada um coloca na definição de
MARCUSE, Herbert. Idéias Para Uma Teoria
alienação. Para Fromm a alienação se
Crítica da Sociedade. Rio de Janeiro, Zahar,
realiza no processo de trabalho e 1981.
derivado daí a visão do trabalhador a
MARX, Karl. Manuscritos Econômico-
respeito do produto do seu trabalho (em Filosóficos. In: FROMM, Erich. O Conceito
termos marxistas: alienação e Marxista do Homem. 8a edição, Rio de Janeiro,
fetichismo) e Marcuse observa a Zahar, 1983.
alienação no processo de trabalho e na __________. O Capital. Vol. 1. 3a edição, São
ralação entre o trabalhador e o produto Paulo, Nova Cultural, 1988.
do trabalho (em termos marxistas: VIANA, Nildo. Alienação e Fetichismo em
alienação e exploração ou Marx. In: Revista Fragmentos de Cultura. Ano
“alheamento”). Nesta parte é Marcuse 05, No 11, maio de 1995.
que avança mais do que Fromm. A __________. Marcuse e a Crítica ao
razão disto se encontra no fato de que Neofreudismo. In: Universo Psíquico e
Marcuse focaliza as relações sociais Reprodução do Capital. Ensaios Freudo-
como locus da alienação, enquanto que Marxistas. São Paulo: Escuta, 2008.
Fromm ao confundir alienação e __________. Os Valores na Sociedade
fetichismo abre a possibilidade para a Moderna. Brasília, Thesaurus, 2007.

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