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© 1989 Copyright by Faber and Faber Ltda. Capa: Tebaldo A. Simionato Edigdo de texto e reviséo: Vera Silvia de O. Roselli e Maria Carolina de Araujo (Sintagma Editorial) Composi¢do, Paginacdo e Filmes: Helvética Editorial Ltda. Foto de: T. S. Eliot — Agéncia Estado O ensaio “Dante’’ foi traduzido por Jorge Wanderley Dedos de Catalogagio na Publicagio (CIP) Internacional (Camara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Eliot, T.S., 1888-1965. Ensaios / T.S. Eliot ; tradu¢do, introdugao e notas de Ivan Jun- queira, — Sao Paulo : Art Editora, 1989. 1. Ensaios ingleses I. Junqueira, Ivan, 1934- II. Titulo. 89-2106 CDD-824.91 Indices para catélogo sistematico: 1. Ensaios : Século 20 : Literatura inglesa 824,91 2. Século 20 : Ensaios : Literatura inglesa 824.91 Direitos de edigao da obra em lingua portuguesa no Brasil adquiridos por Art Editora S.A. Rua Francisco Leitao, 435 03414 Sao Paulo, Brasil Tel: 282-3690 TRADICAO E TALENTO INDIVIDUAL! I N os textos ingleses é raro falarmos de tradicéo, embo- ra ocasionalmente utilizemos essa palavra para lamen- tar a sua auséncia. Nao sabemos nos referir a ‘“‘tradic&o’’ ou a “‘uma tradi¢fo’’; quando muito, empregamos o adje- tivo para dizer que a poesia de fulano é ‘‘tradicional”’ ou mesmo ‘‘muito tradicional’. A palavra sé ocorre talvez ra- ramente, exceto numa frase de censura. Ao contrario, ela é vagamente aprobatéria se envolver, como no caso de um. trabalho reconhecido, alguma deleitosa reconstrucdo ar- queologica. E dificil tornarmos a palavra agradavel aos ou- vidos ingleses sem essa cOmoda referéncia a tranqiiilizado- ra ciéncia da arqueologia. Com toda certeza, a palavra nao costuma aparecer em nossas apreciagées de escritores vivos ou mortos. Cada na- ¢&o, cada raca, tem no apenas sua tendéncia criadora, mas também sua tendéncia critica de pensar; e esta também mais alheia as falhas e limitagdes de seus hdbitos criticos do que as de seu génio criador. Conhecemos, ou supomos conhe- cer, a partir da volumosa massa de textos criticos que sur- giram em lingua francesa, 0 método ou habito critico dos franceses; concluimos apenas (somos, portanto, pessoas in- conscientes) que os franceses sdo ‘‘mais criticos’’ do que nds; e as vezes até nos envaidecemos desse fato, como se - 37 TRADICAO E os franceses fossem menos espontaneos. Talvez o sejam; mas cabe lembrar que a critica é tio inevitavel quanto 0 ato de respirar, ¢ que nao estarfamos em piores condic¢ées pelo fa- to de articularmos o que se engendra em nossas mentes quan- do lemos um livro e ele nos emociona, por criticarmos as nossas prdéprias mentes em sua tarefa de criticar. Um dos fatos capazes de vir a luz nesse processo é nossa tendéncia em insistir, quando elogiamos um poeta, sobre os aspectos de sua obra nos quais ele menos se assemelha a qualquer outro. Em tais aspectos ou trechos de sua obra pretende- mos encontrar o que é individual, o que é a esséncia pecu- liar do homem. Salientamos com satisfagao a diferenca que © separa poeticamente de seus antecessores, em especial os mais préximos; empenhamo-nos em descobrir algo que pos- sa ser isolado para assim nos deleitar. Ao contrario, se nos aproximarmos de um poeta sem esse preconceito, podere- mos amitide descobrir que nao apenas o melhor mas tam- bém as passagens mais individuais de sua obra podem ser aquelas em que os poetas mortos, seus ancestrais, revelam mais vigorosamente sua imortalidade. E nao me refiro 4 épo- ca influenciavel da adolescéncia, mas ao periodo de plena maturidade. Todavia, se a unica forma de tradicao, de legado a ge- rag&o seguinte, consiste em seguir os caminhos da geracgéo imediatamente anterior 4 nossa gracas a uma timida e cega aderéncia a seus éxitos, a ‘“‘tradicao”’ deve ser positivamente desestimulada. Ja vimos muitas correntes semelhantes se per- derem nas areias; e a novidade é melhor do que a repeti- * g&o. A tradicao implica um significado muito mais amplo. Ela nao pode ser herdada, e se alguém a deseja, deve conquisté-la através de um grande esforco. Ela envolve, em primeiro lugar, o sentido histérico, que podemos conside- rar quase indispensdvel a alguém que pretenda continuar 38 x TALENTO INDIVIDUAL poeta depois dos vinte e cinco anos; e o sentido histérico implica a percepcao, nado apenas da caducidade do passa- do, mas de sua presenga; 0 sentido historico leva um ho- mem a escrever ndo somente com a propria geragao a que pertence em seus ossos, mas com um sentimento de que to- daa literatura européia desde Homero e, nela incluida, to- da a literatura de seu proprio pais tem uma existéncia si multanea e constituem uma ordem simult&nea. Esse senti- do histérico, que é 0 sentido tanto do atemporal quanto do temporal e do atemporal e do temporal reunidos, ¢ que torna um escritor tradicional. E € isso que, ao mesmo tempo, faz com que um escritor se torne mais agudamente consciente de seu lugar no tempo, de sua propria contemporaneidade. Nenhum poeta, nenhum artista, tem sua significagao completa sozinho. Seu significado e a apreciacao que dele fazemos constituem a apreciacao de sua relaco com os poe- tas € os artistas mortos. Nao se pode estima-lo em si; é pre- «iso situd-lo; para contraste e comparacdo, entre os mor- tos. Entendo isso como um principio de estética, nao ape- “has historica, mas no sentido critico. E necessdrio que ele seja harménico, coeso, e nao unilateral; o que ocorre quando yma nova obra de arte aparece é, as vezes, 0 que ocorre -simultaneamente com relacdo a todas as obras de arte que a precedem. Os monumentos existentes formam uma ordem ideal entre si, e esta sO se modifica pelo aparecimento de uma nova (realmente nova) obra entre eles. A ordem exis- tente é completa antes que a nova obra aparega; para que a zerdem persista apés a introducao da novidade, a toralida- de da ordem existente deve ser, se jamais o foi sequer leve- “umente, alterada: e desse modo as relacdes, propor¢des, va- jores de cada obra de arte rumo ao todo sao reajustados; eai reside a harmonia entre o antigo e o novo. Quem quer aque. haja aceito essa idéia de ordem, da forma da literatura 39 TRADICAO E européia ou inglesa, nao julgara absurdo que o passado deva ser modificado pelo presente tanto quanto o presente este- ja orientado pelo passado. E o poeta que disso esta ciente teré consciéncia de grandes dificuldades e responsabilida- des. Num sentido peculiar, tera ele também a consciéncia de que deve inevitavelmente ser julgado pelos padrdes do passado. Eu disse julgado, nao amputado, por eles; julga- do nao para ser tao bom quanto, ou pior ou melhor do que © morto; e decerto nao julgado pelos canones de criticos mortos. Trata-se de um julgamento, uma comparacio, na qual duas coisas so medidas por cada uma delas. Estar ape- nas em harmonia poderia significar que a nova obra nao estivesse de modo algum realmente em harmonia; ela nado seria nova e, por isso, nao seria uma obra de arte. E nao queremos em absoluto dizer que o novo é mais valioso por- que se ajusta a essa harmonia; mas esse ajuste é um teste de seu valor — um teste, é verdade, que s6 pode ser lenta e cautelosamente aplicado, pois nenhum de nés é juiz infa- livel em matéria do que esté ou ndo em conformidade. Di- zemos: isso parece estar de acordo, e é talvez individual, ou parece individual, e pode estar de acordo; mas prova- velmente nos ser dificil se se trata de uma coisa, e nao de outra. Procedamos a uma exposicao mais inteligivel sobre a Telagdo entre o poeta € o passado: ele ndio deve tomar o pas- sado por uma massa, um mingau indiscriminado, nem con- cebé-lo inteiramente a partir de uma ou duas admiracdes particulares, nem organiza-lo totalmente com base num pe- riodo de sua preferéncia. O primeiro caminho é inadmissi- vel; o segundo, uma importante experiéncia da juventude; € 0 terceiro, uma prazerosa e altamente desejavel comple- mentagao. O poeta deve estar extremamente cénscio da 40 TALENTO INDIVIDUAL principal corrente, que de modo algum flui invariavelmen- te através das mais altas reputacdes. Deve estar absoluta- mente atento para o 6bvio fato de que em arte nunca se aper- feicoa, mas de que o material da arte jamais é inteiramente o'mesmo. Deve estar cénscio de que a mentalidade euro- péia — a mentalidade de nosso pais —, uma mentalidade que ele aprende com o tempo ser muito mais importante do que sua prépria mente particular, é uma mentalidade que muda, é de que essa mudanga é um desenvolvimento que nada abandona en route, que nado aposenta nem Shakes- peare nem Homero, nem os desenhos rupestres do artista’ . magdaleniano. E que esse desenvolvimento — talvez um re- finamento, decerto uma complexidade — nao constitui, do ponto de vista do artista, nenhum aperfeicoamento. Tal- vez nem mesmo um aperfeicoamento do Angulo do psicé- logo ou no 4mbito que imaginamos; talvez apenas numa fase tardia, devido a complicagdes em economia e maqui- nario. Mas a diferenga entre o presente e o passado é que © presente consciente constitui de certo modo uma conscién- cia do passado, num sentido e numa extensao que a cons- ciéncia que o passado tem de si mesmo nao pode revelar. Alguém disse: ‘‘Os escritores mortos estao distantes de ndés porque conhecemos muito mais do que eles conhece- ram’’. Exatamente, e sao eles aquilo que conhecemos. Estou cénscio de uma objecdo habitual aquilo que cla- ramente faz parte de meu programa para o métier da poe- sia. A objecdo é que a doutrina requer uma ridicula soma de erudic&o (pedanteria), alegac&o que pode ser rejeitada se recorrermos as vidas de poetas em qualquer pantedo. Is- so equivaleria a afirmar que uma grande cultura debilita ou perverte a sensibilidade poética. Enquanto, porém, persis- tirmos em acreditar que um poeta deve saber tanto quanto © exijam os limites de sua necessdria receptividade ou ne- 41

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