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HERBERT MARCUSE

LID A D E

ZAHAR EDITORES
. Rift TW! .TANEmO
Título original:

Counter-Revohitíon and Revoit


Traduzido da primeira edição, publicada em 1972 por Beacon Press,
sob os auspícios da Unitarian Universalist Association, Boston, USA.

Copyright © 1972 by Herbert Marcuse

"Die Liebenden" por Bertolt Brecht é © 1967 by Suhrkamp Verlag ÍNDICE


e reproduzido das Gesammelte Werke por permissão da Suhrkamp
Verlag1 e Stefan Brecht.
Agradecimentos 9

1. A ESQUERDA SOB A CONTRA-REVOLUÇÃO 11

2. NATUREZA E REVOLUÇÃO 63

3. ARTE E REVOLUÇÃO 81

capa, de 4. CONCLUSÃO 125


érico Lista de Obras Citadas 131

1973

Direitos para a língua portuguesa adquiridos por


ZAHAR EDITORES
Rua México, 31 — Rio de Janeiro
que se reservam a propriedade desta tradução

Impresso no Brasil
80 CONTRA-REVOLUÇÃO E REVOLTA

do trabalho alienado do capitalismo habilitou a mulher "... certos períodos de máximo desenvolvimento da arte
a permanecer menos brutalizada pelo Princípio de De- não têm ligação direta com o desenvolvimento geral da
sempenho, a ficar mais fiel à sua sensibilidade: mais sociedade nem com a base material e a estrutura da
humana do que o homem. Que essa imagem (e reali- sua organização." MARX
dade) da mulher tenha sido determinada por uma so-
ciedade agressiva, dominada pelo homem, não significa
que essa determinação deva ser rejeitada, que a liber-
tação das mulheres deve superar a "natureza" feminina.
(D
Essa igualação de macho e fêmea seria regressiva; seria
uma nova forma de aceitação feminina de um princípio Revolução Cultural: A frase, no Ocidente, sugere pri-
masculino. Também aqui «© processo histórico é dialé- meiro que os desenvolvimentos ideológicos se antecipam
tico; a sociedade patriarcal criou uma imagem feminina, aos desenvolvimentos na base da sociedade; revolução
uma contraforça feminina, que poderá vir a ser ainda cultural mas (ainda) vão revolução política e econômi-
um dos coveiros da sociedade patriarcal. Igualmente ca. Enquanto que nas artes, na literatura e na música,
neste sentido, a mulher sustenta a promessa de liber- na comunicação, nos costu-
tação. É a mulher quem, no quadro de Delacroix, se- mes e modas, ocorreram mu-
gura a bandeira da revolução, lidera o povo sobre as danças que sugerem uma
barricadas. Ela não usa uniforme algum; tem o seio nova experiência, uma trans-
desnudo e seu belo rosto não revela traço algum de formação radical de valores,
violência. Mas tem um rifle na mão — pois ainda é a estrutura social e suas ex- ARTE
preciso combater pelo fim da violência... pressões políticas parecem
permanecer basicamente inal-
teradas ou, pelo menos, atra-
sadas em relação às mudan-
ças culturais. Mas "Revolu-
ção Cultural" também sugere que a oposição radical en-
volve, hoje, em um novo sentido, todo o domínio situa-
do além do das necessidades materiais — melhor ainda,
que visa à transformação total da cultura tradicional.
A forte ênfase sobre o potencial político das artes,
que constitui uma característica dessê radicalismo, "ex-
pressa, sobretudo, a necessidade de uma comunicação
efetiva da denúncia da realidade estabelecida e dos obje-
tivos da libertação. É o esforço para encontrar formas de
comunicação que possam romper o domínio opressivo da
linguagem e imagens que há muito se converteram num
meio de dominação, doutrinação e impostura. A comuni-
cação dos novos objetivos históricos, radicalmente não-
conformistas, da revolução exige uma linguagem igualmen-
te não-conformista (na mais lata acepção), uma lingua-
gem que atinja uma população que introjetou as necessi-
dades e valores dos seus amos e gerentes e os tornou
seus, assim reproduzindo o sistema estabelecido em seus
espíritos, suas consciências, seus sentidos e instintos.
Semelhante linguagem, para ser política, não tem pos-
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sibilidade de ser "inventada"; dependerá, necessaria-
mente, do uso subversivo do material tradicional; e as No outro pólo da sociedade, no domínio das artes,
possibilidades dessa subversão" são procuradas, natural- a tradição de protesto, a negação do que é "dado", per-
mente, onde a tradição permitiu, sancionou e preservou siste em seu próprio universo e por direito próprio.
uma outra linguagem e outras imagens. Essas lingua- Aqui, a outra linguagem, as outras imagens, continuam
gens existem, principalmente, em dois domínios situa- sendo comunicadas, para ser ouvidas e vistas; e é essa
dos em pólos opostos da sociedade: arte que, numa forma subvertida, está sendo hoje usada
1 ) em arte;87 f como arma na luta política contra a sociedade estabe-
2) na tradição popular (linguagem negra, jargão,, lecida — com um impacto que transcende em muito um
gíria). grupo privilegiado ou subprivilegiado específico. | O uso
subversivo da"tradição artística
A segunda é, predominantemente, a linguagem dos;
a uma dessublimação sistemática da cultura; quer dizer,
oprimidos e, como tal, possui uma afinidade natural:
com o protesto e a recusa. Na linguagem negra, hoje' a dissolução da forma estética. 58> "Forma estética" sig-
metodicamente fomentada pelo povo negro norte-ameri- nifica o total de qualidades (harmonia, ritmo, contraste);
cano, fortalece-se a solidariedade, a consciência de sua que faz de uma obra de arte um todo em si, com uma
identidade e de sua tradição cultural reprimida ou des- estrutura e uma ordem próprias (o estilo). Em virtude
torcida. E, por causa dessa função, milita contra a ge- dessas qualidades, a obra de arte transforma a ordem
neralização. Uma outra forma de rebelião lingüística é predominante em realidade. Essa transformação é "ilu-
o uso sistemático de "obscenidades". Eu sublinhei o são", mas uma ilusão que confere ao conteúdo represen-
seu suposto potencial revolucionário (em An Essay on tado um significado e uma função diferentes daqueles
Liberation, pág. 35); hoje, esse potencial já é ineficaz. que têm no universo predominante de discurso. Pala-
Usada na comunicação com o "Establishment", que pode- vras, sons, imagens, de uma outra dimensão, "enqua-
muito bem permitir-se a "obscenidade", essa linguagem dram" e invalidam o direito da realidade estabelecida,
deixou de identificar o radical, aquele que não pertence.. em nome de uma reconciliação ainda por vir.
Além disso, a linguagem obscena padronizada é dessu- A ilusão harmonizadora, a transfiguração idealista e,
blimação repressiva: satisfação fácil (embora indireta) concomitantemente, o divórcio entre as artes e a reali-
da agressividade. Volta-se facilmente contra a própria dade têm sido uma característica dessa forma estética.
sexualidade? Ä verbalização da esfera genital e anal, A sua dessublimação significa: retorno a uma arte "ime-
que se tornou um ritual na fala da esquerda-radical (o- diata" que responda não só ao intelecto e a uma sensi-
uso "obrigatório" de "juck", "shit"), é uma degradação, bilidade refinada, "destilada", restrita (e seja o agente
da sexualidade. Se um radical diz "Fuck Nixon" [Nixon, de sua ativação) mas sejam também, e primordialmente,
que se f . . . ] , ele associa a palavra para máxima grati- uma experiência sensorial "natural", emancipada dos re-
ficação genital com o representante máximo das insti- quisitos de uma sociedade exploradora em crescente en-
tuições opressoras e "shit" para os produtos do Inimigo- velhecimento. A busca é de formas artísticas que ex-
sucede à rejeição burguesa do erotismo anal. Nesta pressem a experiência do corpo (e da "alma"),* não
(totalmente inconsciente) degradação da sexualidade, o- como veículos do poder e resignação do trabalho mas.
radical parece punir-se a si próprio pela sua falta de como veículos de libertação. Ë a busca de uma cultura,
poder; a sua linguagem está perdendo o impacto polí- sensual, "sensual" no sentido em que envolve a trans-
tico. E embora servindo como palavra de passe de iden- formação radical da experiência e receptividade dos sen-
tificação (pertencer aos não-conformistas radicais), essa tidos do homem; a sua emancipação de uma produtivi-
rebelião lingüística prejudica a identidade política pela dade autopropulsora, lucrativa e mutiladora. Mas a re-
mera verbalização de mesquinhos tabus burgueses.
88s Ver An Essay on Liberation, loe. cit., págs. 42 e segs.
®7j Uso o termo "arte" incluindo nele a literatura e a música» * " A l m a " , em inglês "soul" — como em "soul music", por
exemplo. [N. do T.]
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volução cultural vai muito além da reavaliação artística;
ela ataca as raízes do capitalismo no próprio indivíduo.
No capítulo anterior, tentei descrever, em suas A distinção entre essas duas esferas de cultura deve
linhas gerais, a força material, prática, dessa emanci- ser recordada:
pação. As mudanças culturais já não podem ser ade-
quadamente compreendidas dentro do esquema abstrato — a cultura material compreende os padrões
reais de comportamento em "ganhar a vida",
de base e superestrutura (ideologia). Na fase atual, a
o sistema de valores operacionais; a hege-
desintegração da "cultura burguesa" afeta os valores
monia do Princípio de Desempenho; a fa-
operacionais do capitalismo. Uma nova experiência da
mília patriarcal como Unidade educativa; o
realidade, novos valores enfraquecem a conformidade trabalho como vocação;
na população subjacente.TVÍais efetivamente do que suas
— a cultura intelectual abrange os "valores
metas e slogans políticos, esse protesto "existencial",
superiores", a ciência e as "humanidades",
difícil de isolar e difícil de punir, ameaça a coesão do
as artes, a religião.
sistema social. E é esse protesto que motiva os esfor-
ços para subverter também a cultura "superior" do
Veremos que essas duas dimensões da cultura bur-
sistema; a luta por modos essencialmente diferentes de
guesa, longe de constituírem um todo unificado, desen-
vida parece depender, em grande parte, da libertação
volveram uma tensão — inclusive uma contradição —
da "cultura burguesa". entre si.
Hoje, o rompimento com a tradição burguesa na Na cultura material, foram tipicamente burguesas:
arte, tanto a erudita como a popular, parece estar quase
concluído. As novas formas "abertas", ou "formas — a preocupação com dinheiro, negócio,
livres", expressam não só um novo estilo na sucessão "comércio" como valor "existencial", com
histórica mas, sobretudo, a negação do próprio universo sanção religiosa e ética;
em que a arte se movimentava, os esforços para mudar — a função econômica e "espiritual" domi-
a função histórica da arte. Serão esses esforços, real- nante do pai, como chefe da família e da
mente, passos no caminho da libertação? Subvertem, empresa; e
realmente, o que pretendem subverter? Para preparar — uma educação autoritária com a finali-
uma resposta, convém colocar primeiramente em foco o dade de reproduzir e introjetar esses obje-
alvo de tais esforços. tivos utilitários.
"Cultura burguesa": Existe um significativo denomi-
nador comum (além de um vago denominador não-his- Esse "estilo de vida" do materialismo burguês es-
tórico) que caracteriza a cultura dominante dos séculos tava totalmente impregnado de uma racionalidade instru-
XVI a X X ? O sujeito histórico dessa cultura é a bur- mentalista que milita contra as tendências libertárias,
guesia; primeiro, a classe média urbana entre a nobre- degrada o sexo, discrimina contras as mulheres e impõe
za e os trabalhadores agrícolas e manuais; subseqüen- a repressão em nome de Deus e do negócio.
temente, a classe dominante em confronto com a classe Ao mesmo tempo, a cultura intelectual, depreciando
trabalhadora industrial, no século XIX. Mas a burgue- e mesmo negando essa cultura material, era preponde-
sia que é (supõe-se ser) representada pela cultura desse ramente idealista; sublimava as forças repressivas unin-
período, essa burguesia, em termos de sua função e do, inexoravelmente, realização e renúncia, liberdade e
espírito sociais, já não é a classe dominante de hoje e submissão, beleza e ilusão (Schein).
a sua cultura já deixou de ser a cultura dominante na Ora, é bastante óbvio que isso deixou de ser hoje
atual sociedade capitalista avançada: nem a cultura ma- a cultura dominante. |A classe dominante, atualmente,
terial nem a intelectual e artística ("superior"). nao tem uma "cultura própria (para que as idéias da
classe dominante possam se tornar as idéias dominan
tes) nem pratica a cultura burguesa que herdou. A cultu-
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xa burguesa clássica está hoje antiquada e em desinte- porque nenhuma ideologia é capaz de esconder o fato
gração — não sob o impacto da revolução cultural e da de que essa classe dominante já não está desenvolvendo
irebelião estudantil mas, outrossim, em virtude da dinâ- as forças produtivas outrora contidas nessas instituições
mica, do capitalismo monopolístico que tornou essa mas limita-se a prender e a difamar. A ideologia retira-
cultura incompatível com os requisitos para sua sobre- se da superestrutura (onde foi substituída por um sis-
vivência e crescimento.
tema de mentiras e absurdos gritantes) e passa a incor-
Recapitularei, sucintamente, os indícios mais gené- porar-se nos bens e serviços da sociedade de consumo,
ricos dessa desintegração interna da cultura burguesa: sustentáculo de uma falsa consciência de vida boa.
Levanta-se agora a questão: Se estamos testemu-
•— a inversão de rumo do "ascetismo ínti- nhando hoje uma desintegração da cultura burguesa,
mo e mundano" como espírito do capitalis- que é obra da própria dinâmica interna do capitalismo
mo clássico; a "revolução keynesiana" como •contemporâneo, e o ajustamento da cultura aos requi-
requisito da acumulação ampliada de ca- sitos do capitalismo contemporâneo, não estará a revo-
pital; lução cultural, nesse caso, tanto quanto visa à destruição
— a dependência da classe dominante da da cultura burguesa, harmonizando-se com o ajustamen-
reprodução de uma "sociedade de consumo" to capitalista e a redefinição de cultura? Não estará,
que se encontra em contradição crescente pois, derrotando sua própria finalidade, isto é, preparar
com a necessidade capitalista de perpetua- o terreno para uma cultura qualitativamente diferente
ção do trabalho alienado;
e radicalmente anticapitalista? Não haverá uma perigo-
— em linha com a necessidade social de sa divergência, ou mesmo uma contradição, entre as
uma integração intensiva do comportamen-
.metas políticas da rebelião e sua teoria e praxis culturais?
to na órbita capitalista: descrédito das no-
ções idealistas, educação para o positivismo, E não deve a rebelião mudar a sua estratégia cultural,
ingresso dos métodos das ciências "práti- a fim de resolver essa contradição?
cas" na esfera das Ciências Sociais e Hu- A contradição manifesta-se mais claramente nos es-
manas; forços para desenvolver uma antiarte, uma "arte viva"
— a coopção de subculturas libertárias que — na rejeição da forma estética. Esses esforços devem
podem ampliar o mercado de produtos; e servir um objetivo de maior alcance: anular a separação
— a destruição do universo de linguagem: entre a cultura intelectual e a material, uma separação
super-orwellianismo como comunicação nor- •que se afirma expressar o caráter de classe da cultura
mal (ver pág. 108, adiante); "burguesa. E sustenta-se que esse caráter de classe é
— o declínio da imagem do pai e do supe- constitutivo das obras mais representativas e mais perfei-
xego na família burguesa.'5®! tas do período burguês.
Façamos, primeiro, uma breve análise crítica dessa
Onde e quando a classe dominante ainda adere aos noção. Uma investigação dessas obras, pelo menos desde
tradicionais valores culturais, é com o cinismo ritual o século XIX, indicaria que predomina uma postura
com que se fala da defesa do Mundo Livre, da iniciativa completamente antiburguesa; a cultura superior denun-
privada, dos direitos civis, do individualismo. Cinismo: cia, rejeita, afasta-se da cultura material da burguesia.
Está, de fato, separada dela; dissocia-se do mundo de
b» Ver Eros and Civilization (Boston: Beacon Press, 1955, mercadorias, da brutalidade da indústria e do comércio
1966), págs. 85 e segs. [Eros e Civilização, Rio de Janeiro, Zahar burgueses, da distorção das relações humanas, do ma-
Editores, 5. a edição, 1972, trad. de Álvaro Cabral] ; e Henry e Yela terialismo capitalista, da razão instrumentalista. O uni-
Xowenfeld. "Our Permissive Society and the Superego", em The
IPsychoanatytic Quarterhy, outubro de 1970.
verso estético contradiz a realidade — uma contradição
^metódica", intencional.
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_ Essa contradição nunca é "direta", imediata e total; nação humanos — qualidades que a tradição da estética
nao assume a forma de um romance, poema, quadro etc. filosófica interpretou como a idéia de Belo.60)
social ou político. Ga, quando assume (como na obra Em virtude dessa transformação do universo histó-
de Büchner, Zola, Ibsen. Brecht. Delacroix. Daumier, rico específico da obra de arte — uma transformação
Picasso), a obra permanece comprometida còm a estru- que se destaca na apresentação do próprio conteúdo
tura da arte, com a forma do drama, do romance, da específico — a arte abre a realidade estabelecida a uma
pintura, articulando, por conseguinte, a distância da outra dimensão: a da possível libertação. Certo, isso
realidade. A negação está "contida" pela forma, é sem- é ilusão, Schein, mas uma ilusão em que outra reali-
pre uma contradição "interrompida", "sublimada", que dade se manifesta. E somente o faz se a arte for deli-
transfigura, transubstancia a realidade dada — e a li- beradamente ilusória — como um mundo irreal dife-
bertação desta. Essa transfiguração cria um universo rente do estabelecido. E nessa transfiguração, precisa-
fechado sobre si mesmo; por mais realista, naturalista, mente, a arte preserva e transcende o seu caráter de
que seja, continuará sendo o outro da realidade e natu- classe. E transcende-o, não no sentido de mera ficção
reza. E, nesse universo estético, as contradições são e fantasia, mas no de um universo de possibilidades
"resolvidas", de fato, tanto mais que aparecem dentro concretas.
de uma ordem universal a que pertencem. E essa ordem Tentarei isolar primeiro as características que me
Universal é, primeiramente, muito concreta e histórica: parecem ser típicas do caráter de classe da cultura
a da cidade-Estado dos gregos, ou das cortes feudais, superior do período burguês. Elas observam-se, geral-
ou da sociedade burguesa. Nesse universo, o destino mente, na descoberta e celebração do sujeito individual,
do indivíduo (tal como é retratado na obra de arte) a "pessoa autônoma", que tem de encontrar-se a si mes-
é mais do que individual: é também o de outros. Não ma para ser um eu no mundo e contra o mundo que
há obra de arte onde esse universal não se manifesta destrói o seu. Esse subjetivismo abre a nova dimensão
em configurações, ações e sofrimentos particularejs. na realidade burguesa, uma dimensão de liberdade e
"Manifestação" mais imediata e sensual do que "simbó- plena realização; mas esse domínio de liberdade é en-
lica": o indivíduo "consubstancia" o universal; assim, contrado, finalmente, no ser íntimo (Innerlichkeit = in-
torna-se o precursor de uma verdade universal que irrom- terioridade) e, assim, é "sublimado", quando não se
pe em seu destino e lugar únicos. torna irreal. Na realidade dada, o indivíduo acomoda-
se, ou renuncia, ou destrói-se. A realidade dada existe
Primeiro, a obra de arte transforma um conteúdo em seu próprio direito, sua própria verdade; tem sua
particular, individual, numa ordem social universal da própria ética, sua própria felicidade e prazeres (e muito
qual compartilha — mas a transformação termina nessa se pode dizer em seu abono!). A outra verdade é mú-
ordem? Está a verdade, a "validade" da obra de arte sica, canção, verso, imagem, no mundo dos mestres:
confinada à cidade-Estado grega, à sociedade burguesa, um domínio estético, auto-suficiente, um mundo de har-
e assim por diante? Evidentemente que não. A teoria monia estética que deixa a realidade miserável entregue
estética defronta-se com a interrogação velha de séculos: aos seus próprios recursos, j É precisamente essa "ver-
quais são as qualidades que fazem a tragédia grega, a dade interior", essa beleza, profundidade e harmonia
épica medieval, ser verdadeiras ainda hoje — não só sublime das imagens estéticas que hoje se nos apre-
compreensíveis mas também motivos de deleite? A res- sentam como mental e fisicamente intoleráveis, falsas,
posta deve ser procurada em dois níveis de "objetivi- como parte da cultura de mercadoria, como um obstáculo
dade": (1) a transformação estética revela a condição à libertação.
humana no concernente à história (Marx: pré-história)
da humanidade inteira, acima de quálquer condição es-
pecífica; e (2) a forma estética responde a certas qua- 6 0 ^ Para uma análise do debate sobre a "posição objetivista em

lidades constantes do intelecto, sensibilidade e imagi- estética", ver Stefan Morawski. "Artistic Value", em The Journal of
Aesthetic Education, vol. 5, n.° 1, especialmente págs. 36 e segs.
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Confesso que tenho dificuldades em definir o cará- e recebendo seu verdadeiro conteúdo. O ca-
ter específico de classe da arte burguesa. Sem dúvida, ráter contingente da existência externa
as obras da arte burguesa são mercadorias; podem converteu-se numa ordem estável e segura
mesmo ter sido criadas como artigos para venda no da sociedade cívica e do Estado, pelo que
mercado. Mas esse fato, pfr si só, não altera a sua a polícia, os tribunais de justiça, o exército
.substância, a sua verdade. A "verdade" em arte refere- e o governo tomam agora o lugar daqueles
,se não só à coerência e lógica internas da obra mas objetos quiméricos que o cavaleiro medie-
também à validade do que ela diz, das suas imagens, val se propunha. Por esta razão, o caráter
som, ritmo. Elas revelam e comunicam fatos e possibi- cavalheiresco dos heróis que desempenham
lidades da existência humana; elas vêem essa existência os seus papéis nos romances modernos está
numa luz muito diferente daquela em que a realidade alterado. Apresentam-se diante de nós como
;se manifesta na linguagem e comunicação correntes (e indivíduos cujos propósitos subjetivos de
científicas). Neste sentido, a obra autêntica possui, de amor, honra, ambição ou idéias de reforma
fato, um significado que reivindica validade e objetivi- do mundo são defrontados por essa ordem
dade gerais. Afinal de contas, existe uma coisa texto, estabelecida e pela prosa ordinária da vida,
estrutura, ritmo, de uma obra que aí está, "objetiva- que apresenta obstáculos por todos os la-
mente", e que pode ser reconstruída e identificada como dos. O resultado é que os desejos e exigên-
-estando aí, idêntica em (através de e contra) todas as cias subjetivos sobem a alturas incomensu-
interpretações, recepções e distorções particulares. Essa ráveis. Cada um encontra-se frente a frente
•objetividade da obra, sua validade geral, tampouco são com um mundo encantado (verzauberte =
canceladas pelo fato daqueles que a criaram terem vindo mistifiçado) — um mundo que lhe é inade-
-de famílias burguesas —.uma confusão entre o domínio quado (ungehörig = alheio), que ele deve
psicológico e o ontológicoT Certo, a estrutura ontoló- combater porque lhe resiste e, em sua te-
;gica da arte é histórica, mas a história é história de naz estabilidade, recusa-se a ceder ante suas
todas as classes. Elas compartilham de um meio que paixões e, pelo contrário, interpõe como
é o mesmo em suas características gerais (cidade, cam- obstáculos a vontade de um pai, uma tia,
po, natureza, estações etc.) e a sua luta ocorre dentro condições burguesas etc.61 >
desse meio objetivo universal.
Além disso, a arte ainda préfigura como que uma
outra e mais vasta totalidade "negativa": o universo Sem dúvida, existem conflitos e soluções que são
"trágico" da existência humana e de uma sempre reno- especificamente burgueses, estranhos aos períodos histó-
vada busca de redenção secular: a promessa de liber- ricos precedentes (ver Defoe, Lessing, Flaubert, Dickens,
tação. Eu_ sugeri que_ a arte préfigura essa promessa Ibsen, Thomas Mann)*; mas o seu caráter específico
•está carregado de significação universal. Analogamente,
e, em virtude dessa função, transcende todo o conteúdo
serão Parsifal, Tristão, Siegfried, apenas cavaleiros feu-
•de classe sem que, entretanto, o elimine. Evidentemen-
dais cujo destino se devia, simplesmente, ao código
te, existe esse particular conteúdo de classe na arte bur-
feudal? Obviamente, o conteúdo de classe faz-se presen-
guesa: o burguês, com seu décor e seus problemas, do-
te mas torna-se transparente como a condição e o sonho
mina a cena, como o cavaleiro, com seu décor e seus
da humanidade, conflito e reconciliação entre homem
problemas, domina a arte medieval; mas bastará esse
e homem, homem e natureza — o milagre da forma
fato para definir a verdade, o conteúdo e a forma da
estética. No conteúdo particular surge uma outra di-
obra de arte? Hegel revelou a continuidade da subs-
tância, a verdade que une o romance moderno e a épica
medieval: 6 1 ) Hegel, Vorlesungen über die Aesthetik (Sämmtliehe Werke),
[O] espírito da moderna ficção é, de edição organizada por Glockner (Stuttgart, 1928), vol. XIII, págs. 215
fato, o da cavalaria, uma vez levado a sério •e segs. Traduzido por F. P. R. Osmaston, The Philosophy of Fine
Art (Londres: G. Bell & Sons, 1920), vol. II, pág. 375.
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O classicismo é a contraparte intelectual da


mensão, em que os homens e mulheres burgueses (e tirania política. Assim foi no mundo antigo
feudais) encarnam a espécie homem: o ser humano. e nos impérios medievais; foi renovado para
Certo, a cultura superior do período burguês foi expressar as ditaduras do Renascimento e
(e é) uma cultura elitista, acessível e mesmo significa- nunca mais deixou de ser o credo oficial
tiva apenas para uma minoria privilegiada — mas esse do capitalismo.
caráter compartilha ela com toda a cultura, desde a an- [E mais adiante] As normas da arte
tigüidade. O lugar inferior (ou ausência) das classes clássica são padrões típicos de ordem, pro-
trabalhadoras nesse universo cultural certamente faz porção, simetria, equilíbrio, harmonia e de
dela uma cultura de classe mas não, especificamente, todas as qualidades estéticas e inorgânicas.
burguesa. | Sendo assim, temos razão em supor que a São conceitos intelectuais que controlam ou
j revolução cultural visa muito além da cultura burguesa; reprimem os instintos vitais de que depen-
que é dirigida contra a forma estética como tal, contra dem o crescimento e, portanto, a mudança;
Lã arte como tal, a literatura como literatura. E. de fato, e não representam, em absoluto, uma pre-
os argumentos propostos pela revolução cultural corro- ferência livremente determinada mas ape-
boram esta suposição. nas um ideal imposto.

f II J Quais são os principais artigos de acusação, na de- A revolução cultural hodierna amplia a rejeição de
— núncia da forma estética? Herbert Read do classicismo a praticamente todos os
estilos, à própria essência da arte burguesa.
— não é adequadamente expressiva da ver- Está em jogo o "caráter afirmativo" da cultura bur-
dadeira condição humana; guesa, em virtude do qual a arte serve para embelezar
— está divorciada da realidade, à medida e justificar a ordem estabelecida,. 63J A forma estética
que cria um mundo de bela ilusão (schöner responde à angústia do indivíduo burguês isolado cele-
Schein), de justiça poética, de harmonia e brando a humanidade universal, à privação física exal-
ordem artísticas, que reconciliam o irrecon- tando a beleza da alma, à servidão externa elevando o
ciliável, justificam o justificável; valor da liberdade interior.
— nesse mundo de reconciliação ilusória, a Mas essa afirmação tem a sua própria dialética.
energia dos instintos vitais, a energia sen- Não existe obra que não evoque, em sua própria estru-
sual do corpo, a criatividade da matéria, tura, as palavras, as imagens, a música de uma outra
que são as forças de libertação, encontram- realidade, de uma outra ordem repelida pela ordem exis-
se reprimidas; e, em virtudes dessas carac- tente e, entretanto, viva na memória e na antecipação,
terísticas, viva no que acontece aos homens e mulheres, e na re-
— a forma estética é um fator de estabili- belião contra isso. Quando essa tensão entre afirmação
e negação, entre prazer e dor, cultura superior e cultura
zação na sociedade repressiva e, portanto»
material, deixa de prevalecer, sempre que a obra deixa
é repressiva em si mesma. de sustentar a unidade dialética do que é e do que pode
(e deve)' ser, a arte perdeu a sua verdade, perdeu-se
Em uma das primeiras manifestações da revolução a si própria. E é precisamente na forma estética que
cultural, na primeira exposição surrealista de Londres,
Herbert Read formulou programaticamente essa relação
entre arte clássica e repressão: 82 Surrealism, com uma introdução de Herbert Read (Nova
York, Harcourt, Brace & Co., 1936), págs. 237*25 e segs.
O classicismo, afirme-se sem mais 63 Ver o meu artigo Der affirmative Charakter der Kultur
preâmbulos, representa agora para nós e (1937), tradução inglesa em Négations (Boston: Beaeon Press, 1968),
págs. 88 e segs., especialmente a pág. 98.
sempre representou as forças da opressão.
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estão essa tensão e as qualidades críticas, negadoras. delando radicalmente a tradição burguesa, preservam,
e transcendentes da arte burguesa — as suas qualidades, as suas qualidades progressivas.
antiburguesas. Recuperá-las e transformá-las, para salvá- Nessa tradição, a ordem, a proporção, a harmonia,,
las da expulsão, deve ser uma das tarefas da revolução têm sido, de fato, qualidades estéticas. Entretanto, essas
cuiturEi. qualidades não são "conceitos intelectuais" nem repre-
Essa avaliação diferente, positiva, da forma estética, sentam as "forças da repressão". Elas são o oposto:,
sua valxdaçao para a reconstrução radical da sociedade a idéia, ideação de um mundo libertado, redimido —
parece ter sido provocada pela nova fase do processo" livre das forças de repressão. Essas qualidades são
historico em que a revolução cultural se situou: a fase "estáticas" porque a obra "prende" o movimento des-
de desintegração intensificada do sistema capitalista & trutivo da realidade, porque tem um "fim" perpétuo;64
de reaçao intensificada contra aquela, isto é, a organi- mas isso é a estática da realização plena, do repouso;
zação contra-revolucionária da supressão. No grau em o fim da violência; a esperança sempre renovada que
que esta última leva a melhor sobre a primeira, é nesse remata as tragédias de Shakespeare — a esperança de
mesmo grau que a oposição é "deslocada" para o domí- que o mundo talvez seja agora diferente. É a qualidade
nio cultural e subcultural, para encontrar aí as imagens, estática da música de Orfeu, que susta a luta da exis-
e os sons que podem penetrar no universo estabelecida tência animal — talvez uma qualidade de toda a grande
de discurso e preservar o futuro. música.65 As normas que governam a ordem de arte-
- A situação é pior agora do que no período que trans- não são as mesmas que governam a realidade mas, antes,
correu entre os começos da arte moderna (no último normas de sua negação: é a ordem que reinaria na terra
quartel do século X I X ) e a ascensão do fascismo. A re- de Mignon, da Invitation au Voyage, de Baudelaire, das.
volução no Ocidente foi derrotada, o fascismo apontou paisagens de Claude Lorrain... A ordem que obedece
um caminho para institucionalizar o terror, a fim de* às "leis da beleza", da forma.
salvar o sistema capitalista, e, no país industrial mais Sem dúvida, a forma estética contém uma outra
avançado do mundo que ainda domina esse sistema, ordem que pode representar, de fato, as forças da opres-
numa escala global, a classe trabalhadora não é uma são, notadamente, aquela que sujeita homem e coisas-
classe revolucionária. Embora a cultura burguesa clás- à raison d'état, ou razão da sociedade estabelecida. Esta,
sica já tenha acabado, o desenvolvimento de uma cultu- é uma ordem que exige resignação, autoridade, controla
ra independente pós-burguesa (socialista) foi sustado. de "os instintos vitais", reconhecimento do direito da-
Sem terreno propício nem base na sociedade, a revolu- quilo que é. E essa ordem é imposta pelo Destino, ou.
ção cultural parece mais uma negação abstrata do que^ os deuses, reis, magos, ou pela consciência e o senti-
a herdeira histórica da cultura burguesa. Não levada a
cabo por uma classe revolucionária, busca apoio em
duas direções diferentes, até contrárias: de um lado,
64 Isso suscita a questão sobre se a arte não conterá em si
mesma uma limitação de temas; sobre se certos assuntos não são-
tenta dar palavra, imagem e som aos sentimentos e ne- excluídos a priori, como incompatíveis com a arte. Por exemplo, a
cessidades de "as massas" (que não são revolucionárias); apresentação — sem as qualidades negativas — de crueldade, vio-
por outro lado, elabora antiformas que são constituídas, lência etc. Existem, certamente, grandes pinturas de cenas de ba-
pela mera atomização e fragmentação das formas tra- talha, tortura, crucificação, que não provocam uma rebelião contra
dicionais: poemas que são, simplesmente, prosa comum o que acontece. Serão realmente obras de arte num sentido que,
transcende o puramente técnico e, portanto, sem aquela mensagem
cortada em verso, pinturas que substituem um arranjo de verdade que é a própria verdade da arte? Nesse caso, a arte
meramente técnico de partes e peças para qualquer todo torna-se, de fato, totalmente afirmativa; nem as mais perfeitas qua-
significativo, música que substitui uma harmonia clás- lidades estéticas salvam a obra de redundar em "decoração"; falta-lhe-
sica altamente "intelectual", "extraterrena", por uma uma necessidade (íntima).
polifonia altamente espontânea. Mas as antiformas sã& 05 Nietzsche perguntou: "Pertencerá a música, porventura, a
incapazes de suprir o hiato entre "vida real" e arte, uma cultura em que o domínio de todas as espécies, de violência
(Gewaltmenschen) já chegou ao fim?" Werke (Stuttgart: Alfredi
E, contra essas tendências estão as que, embora remo- ,Kröner, vol. X V I , 1911), pág. 260.
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mento de culpa, ou que simplesmente aí está. É a ordem
que triunfa sobre Hamlet, Lear, Shylock, Antônio, Be- crocósmica) das coisas. Assim, podemos dizer que, na
renice e Pedra, Mignon, Madame Bovary, Julien Sorel, ordem estética, as coisas são colocadas em seus luga-
Romeu e Julieta, Don Juan, Violetta — sobre os dissi- res, que não são os lugares que elas têm e que, nessa
dentes, as vítimas e os amantes de todos os tempos. transformação, acabam ficando onde lhes compete.
Entretanto, mesmo quando à justiça imparcial da obra Certo, a transformação estética é imaginária — tem
pouco falta para absolver o poder da realidade do crime de ser imaginária, pois que outra faculdade senão a ima-
de opressão, a forma estética nega essa imparcialidade ginação poderia invocar a presença sensual daquilo que
e exalta a vítima: a verdade está na beleza, ternura e não é (ainda)? E essa transformação em sensual e não-
paixão das vítimas e não na racionalidade dos opressores. conceptual deve ser agradável ("prazer desinteressado");
As normas que governam a ordem estética não são permanece vinculada à harmonia. Essa vinculação, esse
"conceitos intelectuais". " Sem "dúvida, não existe quãT compromisso, farão inevitavelmente da arte tradicional
quer obra autêntica" sem o máximo esforço intelectual um agente de repressão, uma dimensão do respectivo
e completa disciplina intelectual na formação do mate- "Establishment"?
rial. Não existe uma arte "automática" nem a arte
•<•"—x
"imita": ela compreende o mundo. O imediatismo sen-
sual que a arte alcança pressupõe uma síntese de expe- j n ) O caráter afirmativo da arte não se baseia tanto
riência de acordo com princípios universais, os quais em seu divórcio da realidade como na facilidade
são os únicos que podem emprestar à obra mais do com que poderia se reconciliar com a realidade dada,
que um significado particular. É a síntese de dois níveis usada como seu décor, ensinada e experimentada como
antagônicos de realidade: a ordem estabelecida das valor incompromissivo mas recompensador, cuja posse
coisas e a libertação possível ou impossível dessa ordem distinguia a ordem "superior" da sociedade, os educa-
— em ambos os níveis, intenção do histórico e do uni- dos, das massas. Mas o poder afirmativo da arte é tam-
versal. Na própria síntese, conjugam-se a sensibilidade, bém o poder que nega essa afirmação. Apesar do seu
a imaginação e a compreensão. uso (feudal e burguês) como símbolo de status, con-
sumo conspícuo e refinamento, a arte conserva aquela
O resultado é a criação de um mundo objetai dife- alienação da realidade estabelecida que está na origem
rente e, no entanto, derivado do mundo existente; mas da arte. É uma segunda alienação, em virtude da qual
essa transformação não violenta os objetos (homem e o artista se dissocia metodicamente da sociedade alie-
coisas) — outrossim, falar por eles, dá palavra, som e nada e cria o universo irreal, "ilusório", em que a arte
imagem ao que é silencioso, destorcido, suprimido, na tem e comunica a sua verdade. Ao mesmo tempo, essa
realidade estabelecida. E esse poder libertador e cogni- alienação relaciona arte e sociedade: preserva o conteú-
tivo,inerente na arte, está em todos os seus^estilos do de classe e torna-o transparente. Como "ideologia",
e formas. Mesmo no romance ou pintura realisía, que a arte "invalida" a ideologia dominante'. Õ " conteúdo "de
conta uma história do modo que poderia, de fato, acon- classe é "idealizado", estilizado e, por conseguinte, con-
tecer (e talvez acontecesse) nesse tempo e lugar, a verte-se no receptáculo de uma verdade universal que
história é mudada pela forma estética. Na obra, homens transcende o conteúdo particular de classe. Assim, o
e mulheres podem falar e agir do modo que o fazem teatro clássico estiliza o mundo de príncipes, nobres e
"na realidade"; as coisas podem parecer como são "em burgueses do respectivo período. Embora essa classe
realidade" — apesar disso, uma outra dimensão está
presente: na descrição do meio, a estruturação de tempo romance, como a da pintura, não está no tema. O que conta não é
e espaço (interiores e exteriores), no silêncio marcado, tanto que Julien Sorel, quando ouve que Mme. de Rènal o traiu,
no que não está lá,66)'e na visão micròcósmica (ou ma- vá a Verrière e tente matá-la — o que conta é, depois das notícias,
esse silêncio, essa cavalgada onírica, essa certeza sem pensamento,
essa eterna resolução... Mas nada disso é dito em parte alguma"
68 Merleau-Ponty, com referência a Stendhal : "Pode-se narrar (Maurice Merleau-Ponty. La Prose du Monde, Paris: Gallimard,
o tema "He um romance como o de uma pintura, mas a força do 1969, pág. 124).
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dominante dificilmente falasse e atuasse como os seus para uma nova dimensão da existência. É essa a obra
protagonistas no palco, ela pôde reconhecer neles, pelo do estilo que é o poema, o romance, o quadro, a com-
menos, a sua própria ideologia, o seu próprio ideal ou posição musical. O estilo, consubstanciação da forma
modelo (ou caricatura) ,mJ A corte de Versalhes podia estética, ao submeter a realidade a uma outra ordem,
ainda compreender o teatro de Corneille e reconhecer sujeita-a às "leis da beleza".
nele o seu código ideológico; analogamente, poder-se-ia Verdadeiro e falso, certo e errado, dor e prazer,
esperar que a corte de Weimar ainda encontrasse a sua calma e violência, tornam-se categorias estéticas dentro
ideologia na corte de Thaos, na Ifigênia, de Goethe, ou da estrutura da obra. Assim privadas de sua realidade
na corte de Ferrara do seu Torquato Tasso. (imediata), elas entram num diferente contexto, em que
O meio onde a arte e a realidade se encontraram foi até o feio, o cruel e o mórbido passam a participar da
0 estilo de vida. A nobreza parasitária tinha ã suiTpnSh
harmonia estética que governa o todo. Portanto, não
pria forma estética, a qual exigiu um comportamento são "cancelados": o horror das gravuras de Goya con-
ritual: honra, dignidade, exibição de prazeres, educação, tinua sendo horror mas, ao mesmo tempo, "eterniza"
até "cultura superior". O teatro clássico era a mimese o horror do horror.
e, ao mesmo tempo, a idealização crítica dessa ordem.
Mas, através de toda a acomodação, através de todas
as afinidades com a realidade estabelecida, o teatro pro- ( T v ) No capítulo 2, referi-me à sobrevivência subterrâ-
clama a sua própria dissociação dessa realidade. A alie- nea da antiga teoria da recordação em Marx.
nação artística apresenta-se no teatro como seu cenário A noção dirigia-se a uma qualidade reprimida em ho-
histórico, sua linguagem, seus "exageros" e condensações. mens e coisas que, uma vez reconhecida, poderia levar
a uma mudança radical na relação entre homem e na-
Os modos de alienação mudam com as mudanças tureza. O exame da teoria original de Marx localizou
básicas na sociedade. Com a democratização e industria- o conceito de recordação no contexto da "emancipação
lização capitalistas, o classicismo perdeu, de fato, muita dos sentidos": a "estética" como pertinente à sensibili-
de sua verdade — perdeu sua afinidade, sua afinidade dade. Ora, ao examinar a teoria crítica da arte, a noção
com o código e a cultura da classe dominante. Qualquer de recordação volta a ser sugerida: a "estética" como
afinidade entre a Casa Branca e o classicismo está além pertinente à arte.
mesmo da imaginação mais absurda e o que era ainda Num nível primário, arte é recordação: ela recorre
tenuemente concebível na França, com De Gaulle, tornou- a uma experiência e "compreensão pré-conceptuais que
se inconcebível com o seu sucessor. ressurgem em (e contra) o contexto do funcionamento
A alienação artística torna a obra de arte, o universo social da experiência e da compreensão — contra a
da arte, essencialmente irreal — cria um mundo que não razão e a sensibilidade instrumentalistas.
existe, um mundo de Schein, aparência, ilusão. Mas nessa Quando atinge esse nível primário — o ponto ter-
transformação da realidade em ilusão e somente nela, minal do esforço intelectual — a arte viola tabus: dá
a verdade subversiva da arte se manifesta.
Nesse universo, toda e qualquer palavra, cor ou som
é "novo", diferente — rompendo o contexto familiar da Eis a magnífica descrição de Merleau-Ponty da alienação
percepção e compreensão, da certeza e razão dos senti- metódica nas pinturas de Cézanne. Cézanne rompe com a experiência
rotineira do nosso mundo: " É l e revela o fundo de natureza inumana
dos em que os homens e a natureza estão encerrados. sobre o qúal o homem se instala. Por isso é que suas personagens
Ao tornarem-se componentes da forma estética, as pala- são estranhas, como se fossem vistas por um ser de uma outra
vras, sons, formas e cores estão isolados contra o seu espécie. A própria natureza é despojada dos atributos que a pre-
uso e função familiares e correntes; assim, estão livres param para as comunhões animistas: a paisagem não tem vento,
a água do lago de Annecy é sem movimento, os objetos são gelados
e hesitantes como na origem da Terra. É um mundo sem familiari-
° v Ver Leo Lowenthal, Literature and the Image of Man dade, onde as, pessoas não se sentem bem, que interdita toda a
(Boston: Beaeon Press,, 1957), especialmente a introdução e o ca- efusão humana" ( " L e Doute de Cézanne", em Sens et Non-Sens
pítulo IV. [Paris: Nagel, 1948], pág. 30).

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voz, olhos e ouvidos a coisas que estão normalmente
reprimidas: sonhos, recordações, anseios — os estados palco, o conteúdo burguês específico é transcendido: o
últimos da sensibilidade. Agora, não existe mais res- mundo burguês é despedaçado por figuras ou configu-
trições superimpostas: a forma, longe de reprimir o rações simbólicas que se convertem em mensageiras de
pleno conteúdo, fá-lo aparecer em toda a sua integri- catástrofe e libertação (Ibsen, Gerhart Hauptmann).
dade Agora, tampouco há mais conformidade e mais O romance não está fechado para" a sua "transcen-
rebelião — apenas mágoa e júbilo. Essas qualidades dência estética. Seja qual for o ambiente ou "enredo"
extremas, os pontos supremos da arte, parecem consti- escolhido para tema do romance, a sua prosa pode de-
tuir uma prerrogativa da música (a qual "dá o âmago sintegrar o universo estabelecido. Kafka talvez seia o
mais recôndito que precede toda a arte, ou o núcleo exemplo mais notável. Desde o começo, os vínculos
das coisas")6® e dentro da música, da melodia. Agora com a realidade dada são cortados, chamando as coisas
a melodia — dominante, cantabile — é a unidade bási- pelos seus nomes, os quais resulta serem nomes erra-
ca de recordação: repetindo-se através de todas as va- dos. A discrepância entre aquilo que o nome diz e
riações, permanecendo quando é cortada e não mais aquilo que é torna-se inexpugnável. Ou será antes a
transporta a composição, ela sustenta o ponto supremo coincidência, a identidade literal entre os dois, que pro-
— em e contra a riqueza e a complexidade da obra. voca o horror? Em todo o caso, a linguagem penetra
E a voz, beleza e calma de um outro mundo aqui na e traspassa de lado a lado a mascarada: a ilusão está
Terra; e é principalmente essa voz que constitui a es- na própria realidade — não na obra de arte. Em sua
trutura bidimensional da música clássica e romântica. própria estrutura, a obra é rebelião; não existe recon-
No teatro clássico, o verso é a voz dominante do ciliação possível com o mundo que ela retrata.
mundo bidimensional. O verso desafia a^regra ^ l i n - É esta segunda alienação que desaparece nos siste-
guagem comum e torna-se um veículo para a expressão máticos esforços de hoje para reduzir, senão eliminar,
daquilo que ficou por dizer na realidade estabelecida. o hiato entre a arte e a realidade. O esforço está con-
Uma vez mais, é o ritmo do verso que possibilita, antes denado ao fracasso. Há rebelião,, sem dúvida, no teatro
de todo o conteúdo específico, a erupção da realidade de guerrilha, na poesia da "imprensa livre", na música
irreal e sua verdade. As "leis da beleza" formam a "rock" — mas permanece artística sem o poder negador
realidade para torná-la transparente. É o modo "su- da arte. No grau em que se faz parte da vida real,
blimado" em que os protagonistas do teatro clássico perde a transcendência que opõe a arte à ordem esta-
falam e não só o que eles fazem e sofrem que, ao mes- belecida; permanece imanente nessa ordem, unidimen-
mo tempo, suscita e rejeita aquilo que é. sional, e, portanto, sucumbe a essa ordem. A sua "qua-
O teatro burguês (significando aqui o teatro em lidade vital" imediata consiste, precisamente, no desfa-
que os protagonistas são membros da burguesia) move- zer dessa antiarte e seus atrativos. Move-se (literal e
se desde o início num universo estético dessublimado, figurativamente ) aqui e agora, dentro do universo exis-
desidealizado. A prosa substitui o verso; o cenário his- tente e termina no tumulto frustrado de sua anulação.
tórico é abandonado; prevalece o realismo. A forma
clássica cede o lugar às formas abertas ( "Sturm und Existe, com efeito, uma profunda intranqüilidade
Drang"). Mas as idéias igualitárias da revolução bur- em relação à arte clássica e romântica. De algum modo,
guesa explodem o universo realista: o conflito de classe parece uma coisa do passado; parece ter perdido a sua
entre a aristocracia e a burguesia assume a forma de verdade, o seu significado. É porque essa arte é exces-
uma tragédia para a qual não há solução. E quando sivamente sublime, porque substitui uma alma real, viva,
esse conflito de classe deixa de ocupar o centro do por uma alma "intelectual", metafísica, e é, portanto,
repressiva? Ou poderia ser o inverso?
Talvez as qualidades extremas dessa arte nos im-
® Arthur Schopenhauer, The World as Will and Representation, pressionem hoje como uma expressão total, excessiva-
trad. de E. F. J. Payne (Nova York: Dover), I, § 52. mente insublimada, direta e irrestrita, de paixão e dor
— uma espécie de vergonha reage contra esse gênero de
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S Ï Ï Ï ? ^ da alma" Talvez não invalida a linguagem corrente, a prose du monde


sejamos capazes de continuar suportando esse vatho* A mensagem libertadora da arte também transcende as
eZr! S l ï T - ? S ^ ^ existênciaTumfna - metas realmente alcançáveis da libertação, assim como
e para alem dos limites da restrição social. Talvez essa transcende a crítica real da sociedade. A arte continua
d \ P a r t ? d 0 r e c i ^ n t e , aquela ïistân comprometida com a Idéia (Schopenhauer), com o uni-
SSdnrtP S ° contemplação, aquele silêncio e recep- versal no particular; e como a tensão entré idéia e reali-
Selta aUt°-impostos' <*ue a " ^ g star" de hoje dade, entre o universal e o particular, persistirá, prova-
velmente, até o advento do Milênio que nunca haverá,
resultado de processos materiais^TT^iwãõ a arte tem de continuar sendo jiMenaçãn. Se a arte,
por causa dessa alienação, não" "fala" às massas, isso é
SvadSaS áo e ag?efsTvfdade° obra da sociedade de classes que cria e perpetua as
invadiram o espaço interior e exterior, onde as cmali massas. Se e quando uma sociedade sem classes reali-
dades extremas da arte ainda podem serSperimenta zar a transformação das massas em indivíduos "livre-
S L n J C e i t ã S d e b0a"fé- Elas contradizem de ^ S d o mente associados", a arte terá perdido o seu caráter
r Z S f grÍtant6' 08 h o r r o r e s realidade e o seu distanciamento da sociedade.
' dond en^ío existe f Z ™ v ™ f U g a d e u m a validade A tensão entre afirmação e negação impede qualquer'
«s«S ex^te Exigem um grau de emanrins identificação da arte com a praxis revolucionária. A arte
çao da experiência imediata, da "intimidade^ aSe í P não pode representar a revolução;70 ela pode apenas
tornou quase impossível, falsa. Trata-se d e u m a a r t e
nao-comportamental, não-operacional; não "atira" para invocá-la em um outro meio, numa forma estética em
coisa alguma exceto reflexão e recordação - a promes que o conteúdo político torna-se meíapolítico, governado
sa do sonho. Mas_o__sonho deve se t Z L , u m ^ S - c a pela necessidade interna de arte. E a meta de toda a
revolução — um mundo de tranqüilidade e liberdade
de se converter numa força p S í H S T s T r S sonlS — aparece num meio totalmente apolítico, sob as leis
de libertaçao dentro do espectro da história a reahza da beleza, da harmonia. Assim ouviu Stravinsky a re-
ser' dossívp! 1 z 3 r f ° d ° S O n h o a t r a v é s d a revolução deve volução nos quartetos de Beethoven:
ser possível — o programa surrealista ainda deve ser

ÂáSSSS' 0lütural será te


"° " Minha outra convicção pessoal é que os
quartetos são uma Carta dos Direitos Hu-
r—v manos, de um teor perpetuamente sedicioso,
V Y J a revolução cultural continua sendo uma força ra- no sentido platônico da subversão em arte...
dicalmente progressiva. Contudo, em seus esforços Um alto conceito de liberdade está con-
para libertar o potencial político da arte, vê-se bloquea substanciado nos quartetos... incluindo e
da por uma contradição não resolvida. Um p o t e r S transcendendo o que o próprio Beethoven
subversivo é da própria natureza da arte - m ï ï como significou quando escreveu [ao Príncipe Ga-
pode ser traduzido para a realidade de hoje isto e litzin] que a sua música podia "ajudar a
como pode ser expresso de modo que se torne um guia' humanidade sofredora". Eles são uma me-
e um elemento na praxis da mudança sem deixar de ser
arte, sem perder a sua força subversiva interna? Como Há, certamente, grandes apresentações da Revolução Fran-
pode ser traduzida de tal modo que a forma estética cesa na Morte de Danton, de Büchner (1848), e na Educação Senti-
mental, de Flaubert: são apresentações críticas, senão hostis, à prá-
IZsT^SaTZ P°r "alg0rr^"' e q u e ,Tntretnto! tica revolucionária concreta e suas, exigências. Há o magnífico frag-
transcenda e negue a realidade estabelecida? mento épico de William Blake — que termina antes da reunião dos
como artr Pm J?° de e x p r e s f a r 0 s e u Potencial radical Estados-Gerais; o fragmento é uma transfiguração cósmica da revo-
como arte, em sua propria linguagem e imagem, a qual lução, onde montanhas, vales e rios se juntam à luta política.
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dida do homem... e parte da descrição da
qualidade do homem, e a existência deles , — nao a da revolução. Arte e revolução estão unidas
é uma garantia.71 em "mudar o mundo" — libertação. Mas, em sua prá-
tica, a arte não abandona as suas próprias exigências
nem abdica de sua dimensão: permanece não-operacio-
Existe um evento simbólico que anuncia a transição
nal. Na arte, a meta política somente se manifesta na
da vida cotidiana para um meio essencialmente diferen-
transfiguração que é a forma estética. A revolução pode
te, o "salto" do universo social estabelecido para o uni- estar ausente da obra de arte, mesmo quando o próprio
verso distanciado da arte; é a ocorrência do silêncio: artista é um "engajado", um revolucionário.
André Breton recorda o caso de Courbet e Rimbaud.
O momento em que uma peça de mú- Durante a Comuna de 1871, CourbeTfõi membro" do
sica começa fornece uma pista para a natu- Conselho da Comuna, foi tido por responsável pelo des-
reza de toda a arte. A incongruência desse mantelamento da coluna de Vendôme. Bateu-se por
momento, comparada com o silêncio indes- uma arte "livre e não-privilegiada". Contudo, não existe
critível e inobservado que o precedeu é o um testemunho direto da revolução em suas pinturas
segredo da arte... é na distinção entre o (embora haja em seus desenhos); não há conteúdo po-
real e o desejável. Toda a arte é uma ten- lítico. Depois do colapso da Comuna, e depois do mas-
tativa para definir e tornar inatural essa sacre de seus heróis, Courbet pinta naturezas mortas.
distinção. VI)
. . . algumas dessas maçãs... prodigio-
. E e s s e .silêncio torna-se parte da forma estética não sas, colossais, extraordinárias em seu peso
so na musica; impregna toda a obra de Kafka; é oni- e sensualidade, são mais poderosas e mais
Cézarme ^ ^ de J°9°' de Beckett: e n a t u r a de "protestaire" do que qualquer pintura po-
lítica. 74>
. . . a única aspiração [do pintor] deve
Escreve Breton:
ser o silêncio. Ele deve abafar em seu ín-
timo as vozes do preconceito, deve esquecer
e continuar esquecendo, deve silenciar tudo Tudo acontece como se ele tivesse de-
a seu respeito, deve ser um perfeito eco.73) cidido que deve existir algum meio de re-
fletir a sua profunda fé no aperfeiçoamento
Um "eco" não do que é natureza, realidade imedia- do mundo em tudo o que tentou evocar,
ta, mas daquela realidade que deflagra no distanciamen- algum meio de o apresentar, de um modo
to entre o artista e a realidade imediata — mesmo que ou outro, na luz que ele fez cair no hori-
esta seja a da revolução. zonte ou no ventre de uma corça.75 >
— A relação entre arte e revolução é uma unidade de
opostos, uma unidade antagônica. A arte obedece a E Rimbaud: ele simpatizou com a Comuna; redigiu

uma necessidade e tem uma liberdade que lhe é própria uma constituição para uma sociedade comunista, mas
o teor dé seus poemas, escritos sob o impacto imediato
da Comuna, "não difere, em nenhum aspecto, de todos
Stravinski em The New York Review of Books, 24 de
v
abril de 1969, pag. 4. os outros poemas". A revolução estava, do princípio ao
John Berber, The Moment of Cubism (Nova York: Pantheon,
1969), pags. 31 e segs.
, 74 André Fernigier. citado em Robert Fernier, Gustave Courbet
, ™ Çézanne, citado por Gaaquet em Max Raphael. The Demands (Paris: Bibliothèque des Arts, 1969)7 pàgTÏÏÔT"
of Art, trad. de Norbert Guterman, Bölingen Series T X X V I I I (Prin- 75 Manifestos of SwrreaMsm, trad. de R. Scaver e Helen R.
ceton Universitär Press, 1968), pág. 8. Lane (Ann Arbor: University of Michigan Press, 1969), pág. 219.
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ARTE E R E V O L U Ç Ã O 106
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téSicT aSUlTrÍat; T ™ Uma P r e o c »P a ?äo de ordem significaria que a imaginação se tornou totalmente fun-
linguagem. ?6 tradUZlr ° mundo Para ™ nova cional, a,o serviço da Razão instrumentalista.
Falei da "arte como uma forma de realidade"78
de w S ^ f r " P O l í t Í C ° c o n v ^ t e - S e num problema
numa sociedade livre. A frase é ambígua. Tinha o pro-
de técnica artística e, em vez de se traduzir arte pósito de indicar um aspecto essencial da libertação,
(poesia) para realidade, a realidade é traduzida para
notadamente a transformação radical do universo técni-
uma nova forma estética. A recusa, o protestoradiä
co e natural de acordo com a sensibilidade (e raciona-
manifesta-se no modo como as p a t a ™ s ã o a g r u p a d a s
lidade) emancipada do homem. Ainda sustento esse
e reagrupadas, libertas de seu uso e abuso t r a S n a f s
ponto de vista. Mas o objetivo é permanente; quer
Mquimia da palavra: a imagem, o som, criação de uma
dizer, seja qual for a sua forma, a arte nunca poderá
i n * 6 ' " Partlr da existente ~ Permanente 7e eliminar a tensão entre arte e realidade. A eliminação
S » e r f P ^ a g í f a n a ' . S . U r g i m e n t o d e uma «segunda histó- dessa tensão seria a impossível unidade final de sujeito
ria , dentro da seqüência histórica
e objeto: a versão materialista do idealismo absoluto.
da a r t e m a n e n t e S U b v e r s ã o e s t é t i c a ~ e s t e é o caminho Nega o limite insuperável da mutabilidade da natureza
A abolição da forma estética, a noção de que a arte humana: um limite biológico, não teológico. Interpretar
.podia se tornar uma parte componente da praxis revo- essa alienação irredimível da arte como um sinal da
lucionaria (e pre-revolucionária) até que, sob o socia- sociedade burguesa (ou qualquer outra) de classes cons-
lismo plenamente desenvolvido, fosse adequadamente titui um absurdo.
traduzida em realidade (ou absorvida pela "ciência") — O absurdo tem uma base fatual. A representação
essa noção e falsa e opressiva: significaria o fim da arte. estética da Idéia, do universal no particular, leva a arte
Martin Walser formulou bem essa falsidade a respeito a transformar condições (históricas) particulares em
ciei lit8rcituro.i universais — a mostrar como destino trágico ou cós-
mico do homem o que é apenas o seu destino na socie-
A metáfora da "morte da literatura" é dade estabelecida. Na tradição ocidental existe a cele-
excessivamente prematura: Só quando os bração de uma tragédia desnecessária, de um destino
objetos e seus nomes se fundissem num só desnecessário — desnecessário à medida que diz respei-
(m eins verschmelzen), só então a litera- to a ideologias e instituições sociais específicas, não à
tura estaria morta. Enquanto esse estado condição humana. Referi-me previamente a uma obra
paradisíaco não chegar, a luta pelos objetos em que o conteúdo de classe parece mais conspicua-
(Streit um die Gegenstände) também será mente a substância: a catástrofe de Madame Bovary é
travada com a ajuda de palavras.77 devida, evidentemente, à situação específica da pequena
burguesia numa província francesa. Não obstante, ao
1er a novela, é possível, em imaginação, remover (ou,
E o significado das palavras continuará desvalori- melhor, "isolar") o meio "externo", extrínseco, e ler-se-á
zando o seu significado comum: elas (assim como as na história a recusa e negação do mundo da pequena
imagens e os sons) continuarão a transformação imagi- burguesia francesa, seus valores, sua moralidade, suas
naria do mundo objetai, do homem e da natureza. aspirações e desejos, mormente o destino de homens e
Coincidência de palavras e coisas: isso significaria que mulheres colhidos na catástrofe do amor. O iluminis-
todas as potencialidades das coisas seriam concretiza- mo, a democracia e a psicanálise podem mitigar os con-
das, que o "poder da negativa" deixaria de operar — flitos tipicamente feudais ou burgueses e talvez mudar
até o desfecho — mas a substância trágica permaneceria.
76 Ibid., pág. 220.
77 Em Kursbuch, 20 de março de 1970 (Frankfurt: Suhrkamp), 78 Em On the Future of Art, ensaios de Arnold J. Toynbee,
pag. o I. Louis I. Kahn e outros, coletânea organizada por Edward Fry (Nova
York: Yiking Press, 1970), págs. 123 e segs.
108 CONTRA-REVOLUÇÃO E REVOLTA ARTE E REVOLUÇÃO 103

Essa interação entre o universal e o particular, entre o fato de que a palavra, tal como foi definida pela admi-
conteúdo de classe e forma transcendente é a história nistração (pública e privada), permanece válida, efetiva,
da arte. operacional: ela estimula o comportamento e ação de-
Talvez exista uma "escala" segundo a qual o con- sejados. j A linguàgem volta a assumir um caráter má-
teúdo de classe se manifesta mais distintamente na li- ígico: um porta-voz governamental tem que pronunciar
teratura e menos distintamente (se porventura se ma- | apenas as palavras "segurança nacional" e obtém o que
nifesta!) na música (a hierarquia das artes, de Schope- ; quer, mais cedo do que tarde.
nhauer,1). A palavra comunica diariamente a soclêdacíé
aos seus membros; converte-se em um nome para os (VIJ Precisamente nesta fase, o esforço radical para
objetos, a medida que estes são feitos, moldados, usados manter e intensificar o "poder da negativa", o po-
pela sociedade estabelecida. Cores, formas, sons, não tencial subversivo da arte, deve manter e intensificar o
transmitem semelhante "significado"; num certo sentido poder aliénante da arte: a forma estética, a única em
sao mais universais, "neutros", em relação ao seu uso que a força radical da arte é comunicável.
social. Em contraste, a palavra perde quase todo o seu No seu ensaio Die Phantasie im Spätkapitalismus
significado transcendente — e tende a fazê-lo quanto und die Kulturrevolution, Peter Schneider chama a essa
mais a sociedade se aproximar da fase de controle total reconquista da transcendência estética a "função propa-
sobre o universo de discurso. Então poderemos falar gandística da arte":
de tato, de uma "coincidência entre o nome e o seu
objeto" — mas uma falsa, ilusória e imposta coincidên-
cia: instrumento de dominação. A arte propagandística procuraria na
Refiro-me de novo ao uso da linguagem orwelliana história fantasiosa (Wunschgeschichte) da
dessa linguagem sobre as mentes e os corpos dos ho- humanidade as imagens utópicas, libertá-
mens é mais do que uma completa lavagem cerebral, las-ia das formas destorcidas que lhes foram
mais do que a sistemática aplicação de mentiras como' impostas pelas condições materiais da vida,
meio de manipulação. Num sentido, essa linguagem é e mostraria a essas fantasias e anseios
correta; ela expressa, muito inocentemente, as contradi- (Wünschen) o caminho da realização con-
ções onipresentes que impregnam essa sociedade. Sob creta que, finalmente, se tornou agora pos-
o regime que ela própria se deu, lutar pela paz é, de sível. .. A estética dessa arte seria a estra-
fato, fazer a guerra (contra os "comunistas", por toda tégia da concretização de sonhos.81^
a parte); pôr fim à guerra significa, exatamente, o que
o governo bélico está fazendo — embora possa, de fato, Essa estratégia de concretização, precisamente por-
ser o oposto, isto é, intensificar em vez de ampliar o' que tem de ser a de um sonho, jamais pode ser "com-
morticínio; 7»3 liberdade é exatamente aquilo que as pes- pleta", nunca será uma tradução para a realidade, o que
soas têm sob o governo — embora possa, de fato, ser converteria a arte num processo psicanalítico. Concre-
o oposto; os gases lacrimogêneos e os produtos quími- tização significa, antes, descoberta de formas estéticas
cos exterminadores de plantas são, de fato, "legítimos que possam comunicar as possibilidades de uma trans-
e humanos" contra os vietnamitas, pois causam "menos formação libertadora do meio técnico e natural. Mas
sofrimento" às pessoas do que "carbonizá-las com na- também neste caso fica a distância entre arte e prática,
palm" a única alternativa que, evidentemente, ocor- a dissociação da primeira em relação à segunda.
re a este governo. Essas contradições gritantes podem
penetrar na consciência das pessoas, mas isso não altera
:81 / G- Warren Nutter. Secretário-Adjunto da Defesa para a
Ver o relatório Cormell sobre a intensificação dos bombardeios Segurança Internacional, New York Times, 23 de março de 1971.
na Indochina, New York Times, 6 de novembro de 1971
80 Kursbuch 16, 1969, pág. 31.
110 CONTRA-REVOLUÇÃO E REVOLTA ARTE E REVOLUÇÃO
103
No período entre as duas Guerras Mundiais, quando zá-lo e destruí-lo ainda mais eficazmente. E hoje, que
o protesto parecia ser diretamente traduzível em ação, linguagem possível, que imagem possível será capaz de
estar conjugado com a ação; quando o despedaçamento esmagar e hipnotizar corpos e mentes que vivem em
da forma estética parecia ser a réplica às forças revo- coexistência pacífica e tirando até lucro do genocídio,
lucionárias em ação, Antonin Artaud formulou o pro- da tortura e do envenenamento?84) E se Artaud quer
grama da abolição da arte: "En finir avec les chefs- uma "sonorização constante" — sons, ruídos e gritos,
d'oeuvres." A arte deve tornar-se preocupação das primeiro pela sua qualidade de vibração, depois pelo
massas (la foule), deve ser um assunto das ruas e, so- que representam,85 nós perguntamos: O público, mesmo
bretudo, do organismo, do corpo, da natureza. Assim, o público "natural" das ruas, não se familiarizou há
ela movimentaria os homens e as coisas porque "il faut muito com os ruídos violentos, os gritos, que são o
que les choses crèvent pour repartir et recommencer." equipamento diário dos meios de comunicação de massa,
[É preciso que as coisas se desmoronem, se liquidem, dos esportes de multidão, das estradas, dos lugares de
para partir de novo e recomeçar tudo. N. do T.] A ser- recreio? Eles não rompem a familiaridade opressiva
pente move-se ao som da música, não por causa do "con- com a destruição; reproduzem-na.
teúdo espiritual" dos song, mas porque as suas vibra- O escritor alemão Peter Handke fez explodir a
ções se comunicam através da terra a todo o corpo do "ekelhafte Unwahrheit von Ernsthaftigkeiten im Spiel-
réptil. A arte cortou essa comunicação e "privou um raum" (a odiosa inverdade da seriedade na sala de tea-
gesto (un geste) de sua repercussão no organismo"; tro). 86 r Esta denúncia não constitui uma tentativa para
essa unidade com a natureza deve ser recuperada: "sob manter a política fora do teatro mas para indicar a
a poesia do texto há uma poesia tout court, sem forma, forma em que pode encontrar expressão. A denúncia
e sem texto". Essa poesia natural deve ser reconquis- não pode ser sustentada a respeito da tragédia grega,
tada, a qual ainda está presente nos mitos eternos da d e Shakespeare, Racine, Kleist, Ibsen, Brecht, Beckett;
humanidade (como, por exemplo, "sob o texto" de aí, em virtude da forma estética, a "peça" cria o seu
Édipo, de Sófocles) e na magia dos primitivos; a sua próprio universo de "seriedade", que não é o da reali-
redescoberta é um requisito prévio para a libertação dade mas, antes, a sua negação. Mas a denúncia vale
do homem. Pois "nós não somos livres e o céu ainda para o teatro de guerrilha de hoje; é uma contradictio
pode tombar sobre nossas cabeças. E o teatro é feito, in adjecto; inteiramente diferente do chinês (quer ence-
em primeiro lugar, para nos ensinar tudo isso". 82 Para nado durante ou depois da Longa Marcha); aí, o teatro
atingir esse objetivo, o teatro deve abandonar o palco não ocorre num "universo de representação"; era parte
e ir para a rua, para as massas. E deve chocar, deve de uma revolução em processo real de desenvolvimento
chocar cruelmente e despedaçar a consciência compla- e estabeleceu, como um episódio, a identidade entre os
cente e o inconsciente. atores e os combatentes: unidade do espaço de repre-
sentação teatral e do espaço de revolução.
[um teatro] em que as violentas ima- O grupo Living Theatre pode servir como um exem-
gens físicas esmaguem e hipnotizem a sen-
plo de finalidade que a si mesmo se frustrara.87) Reali-
sibilidade do espectador, arrebatada no tea-
za uma tentativa sistemática de união do Teatro e da
tro como que por um turbilhão de forças
superiores.8S) Revolução, da peça e da batalha, libertação corporal e

Mesmo na época em que Artaud escreveu, as "forças , Ibid.


84
superiores" eram de uma espécie muito diferente e arre- Ibid., pág. 124.
86

bataram o homem não para libertá-lo mas para escravi- 8« Citado em Yark Karsunke. "Die Strasse und das Theater",
em Kursbuch 20, lac. cit., pág. 67.
82 Antonin Artaud, Le Théâtre et son Double (Paris: Gallimard,
87 Ver Paradise Now, criação coletiva do "Living Theatre",
1964), págs. 113, 124, 123, 119, 121 (escrito em 1933). redigida por Judith Melina e Julian Beck (Nova York: Random
83 Ibid., pág. 126. House, 1971). ~~
101 CONTRA-REVOLUÇÃO E REVOLTA
113 ARTE E REVOLUÇÃO
113

espiritual, mudança individual interna e social externa.


Mas essa união está envolta em misticismo: "A Cabala, propria vida e morte dos homens e mulheres negros são
os ensinamentos tântricos e hassídicos, o I Ching e revividas: a música é corpo; a forma estética é o "gesto"
outras fontes." O amálgama de marxismo e misticismo, de dor, sofrimento, mágoa, denúncia. Com a sua en-
de Lênin e Dr. R. D. Laing. não funciona; vicia o impul- campação pelos brancos, ocorreu uma mudança signifi-
so político. A libertação do corpo, a revolução sexual, cativa: o "rock" branco é o que o seu paradigma negro
tornando-se um ritual para ser desempenhado ("o rito não é, mormente, desempenho. É como se os gritos e
do intercurso universal"), perde o seu lugar na revolu- prantos, os saltos e o balanço, a execução, tudo tivesse
ção política; se o sexo é uma viagem para Deus, pode lugar num espaço artificial, organizado; como se tudo
ser tolerado até em formas extremas. A revolução do se dirigisse a um público (favorável). O que tinha sido
amor, a revolução não-violenta, não é uma séria ameaça; parte da permanência da vida, converte-se num concer-
os poderes vigentes sempre foram capazes de levar a to, um festival, um disco. "O grupo" torna-se uma en-
melhor sobre as forças do amor. A dessublimação ra- tidade fixa (verdinglicht), absorvendo os indivíduos; é
dical que tem lugar no teatro, como teatro, é uma des- totahtano" no modo como subjuga a consciência indi-
sublimação organizada, arranjada, desempenhada — está vidual e mobiliza um inconsciente coletivo, que perma-
perto de se converter no seu oposto.88 nece sem fundamento social.
A inverdade é o destino da representação direta, E à medida que a música perde o seu impacto ra-
não-sublimada. Aqui, o caráter "ilusório" da arte não dical, ela tende para a massificação: os ouvintes e os
é abolido mas duplicado; os atores apenas interpretam co-mterpretes numa platéia são massas fluindo para um
as ações que eles querem demonstrar e essa ação é in- espetáculo, uma performance.
trinsecamente irreal, é representação teatral. É certo que a platéia participa ativamente nesse
A distinção entre uma revolução interna da forma espetáculo; a música movimenta os corpos, torna-os
estética e sua destruição, entre direção autêntica e in- naturais". Mas sua excitação (literalmente) elétrica
ventada (uma distinção baseada na tensão entre arte e assume, com freqüência, as características da histeria.
realidade), também se tornou decisiva no desenvolvi- A força agressiva do ritmo martelado e infinitamente
mento (e função) da "música viva" (living music), da repetido (cujas variações não abrem uma outra dimen-
"música natural". É como se a revolução cultural ti- são de música), as dissonâncias confrangedoras, as pa-
vesse preenchido a exigência de Artaud de que, num dronizadas distorções rígidas, "congeladas", o nível de
sentido literal, a música movimente o corpo, atraindo ruído, em geral — não será isso a força da frustração?»0
assim a natureza para a rebelião. A música viva tem, E os gestos idênticos, as contorções e convulsões de
de fato, uma base autêntica: a música negra como grito, corpos que raramente (ou nunca) se tocam entre si —
e cântico dos escravos e dos guetos.89) Nessa música, a parece um caminhar sem sentido, um marcar passo no
mesmo lugar, que não leva a parte alguma exceto uma
Quero sublinhar que a minha crítica é fraterna, visto que massa que breve se dispersará. Num sentido literal,
compartilho da mesma luta de Judith Melina, Julian Beck e seu essa música é imitação, mimese de uma agressão efe-
grupo. tiva; além disso, é mais um caso de catarse — terapia
iSS££S_îiS e analisa a dialética dessa música negra em seu
artigo "Free Jazz: Evolution ou Révolution": " . . . A liberdade das
formas musicais é apenas a tradução estética da vontade de liber- (esthetique du cri). Esse grito, o característico elemento sonoro da
tação social. Transcendendo a estrutura tonai do tema, o músico musica livre', nascido numa tensão exasperada, anuncia a violenta
encontra-se numa situação de liberdade. Essa busca de liberdade é ruptura com a ordem branca estabelecida e traduz a violência pro-
traduzida em musicalidade atonal; define um clima modal em que o motora de uma nova ordem negra" (Revue d'Esthétique, vols. 3-4,
Negro expressa uma nova ordem. A linha melódica torna-se o meio 1970, págs. 320, 321).
de comunicação entre uma ordem inicial que é rejeitada e uma A frustração subjacente na agressão ruidosa é revelada muito
ordem final que se espera. A posse frustradora de uma, em con- claramente numa declaração de Grace Slick, do grupo "Jefferson
junto com a realização libertadora da outra, estabelece uma brecha Airplane", relatada no New York Times Magazine (18 de outubro
na tessitura, da harmonia que dá lugar a uma estética do grito de 1970) : " O nosso eterno objetivo na vida", disse Grace. "com uma
expressão inteiramente impassível, é fazer cada vez mais barulho."
114 CONTrA-REVOLUÇÃO E REVOLTA ArTE E REVOLUÇÃO 103

de grupo que, temporariamente, remove inibições. A li- Isso é a morte da antiarte, o ressurgimento da
bertação continua sendo um assunto particular. forma. E, com ele, encontramos uma nova expressão
/ s das qualidades inerentemente subversivas da dimensão
( y U j A tensão entre arte e revolução parece irredutível. estética, especialmente o Belo como aparência sensual
A própria arte, na prática, não pode mudar a rea- tia idéia de liberdade. O deleite do Belo e o horror da
lidade e a arte não pode submeter-se às exigências con- política; Brecht condensou-o em cinco versos:
cretas da revolução sem se negar a si própria. Mas a
arte pode extrair suas inspirações e sua forma do mo- Dentro de mim há uma luta entre
vimento revolucionário que então prevalecer — pois a O deleite de uma cerejeira em flor
revolução está na substância da arte. A substância his- E o horror de um discurso de Hitler.
tórica da arte afirma-se em todos os modos de aliena- Mas só este último
ção; impede qualquer noção de que a retomada da forma Me força a escrever.
estética pudesse significar hoje o renascimento do clas-
A imagem da árvore permanece presente no poema
sicismo, romantismo ou de qualquer outra forma tradi-
que foi "imposto" por um discurso de Hitler. O horror
cional. Uma análise da realidade social permitiria qual-
daquilo que é marca o momento da criação, é a origem
quer indicação quanto à forma de arte que correspon-
do poema que celebra a beleza de uma cerejeira em
deria ao potencial revolucionário no mundo contem-
flor. A dimensão política permanece vinculada à outra,
porâneo?
a dimensão estética que, por seu turno, adquire valor
Segundo Adorno, a arte responde ao caráter total político. Isso ocorre não só na obra de Brecht (que já
da repressão e administração com uma total alienação. é considerado um "clássico") mas também em algumas
A música altamente intelectual, construtivista e, ao mesmo das canções radicais de protesto de hoje — ou ontem,
tempo, espontaneamente informe de John Cage, Stock- especialmente a música e letra de Bob Dylan. A beleza
hausen e Pierre Boulez, pode ser um exemplo extremo. retorna, a "alma" retorna: não a alma em alimento nem
Mas terá esse esforço atingido já o ponto sem re- a "alma em gelo", mas a velha e reprimida alma, a que
gresso, isto é, o ponto em que a obra salta fora da di- estava no Lied, na melodia: cantabile. Torna-se a forma
mensão de alienação, de negação e contradição formadas, do conteúdo subversivo, não uma ressurreição artificial
para se converter num jogo de sons, num jogo idiomá- mas como "retorno do reprimido". A música, em seu
tico-inofensivo e sem compromisso, choque que já não próprio desenvolvimento, leva a canção ao ponto de re-
choca e, portanto, um esforço prestes a sucumbir? belião onde a voz, em palavra e em tom, susta a melo-
A literatura radical que fala numa informe semi-es- dia, a canção, e converte-se em grito, em clamor.
pontaneidade e franqueza perde, com a forma estética,
Conjunção da arte e da revolução na dimensão es-
o conteúdo político, embora esse conteúdo se manifeste
tética, 91/ na própria arte. Arte que se tornou capaz de
nos mais altamente formados poemas de Allan Ginsberg
e Ferlinghetti. A denúncia mais extrema è intransigente
encontrou sua expressão numa obra que, precisamente 91) Bastará 1er alguns dos poemas que soam a autênticos de
por causa do seu radicalismo, repele a esfera política: jovens ativistas (ou ex-ativistas) para se ver como a poesia, perma-
necendo poesia, também hoje pode ser política. Esses poemas de
na obra de Beckett não há esperança que possa ser amor são políticos como poemas de amor; não onde eles são requin-
traduzida em termos políticos, a forma estética exclui tadamente dessublimados, descarga verbal de sexualidade, mas pelo
toda a acomodação e abandona a literatura como lite- contrário: onde a energia erótica encontra uma expressão poética,
ratura. E, como literatura, a obra transmite uma única sublimada — uma linguagem poética que se converteu em clamor
mensagem: pôr fim às coisas como elas estão. Analo- contra o que é feito aos homens e mulheres que amam nesta socie-
gamente, a revolução está mais na perfeitíssima lírica dade. E m contraste, a união de amor e subversão, a, libertação social
Inerente em Eros, perde-se onde a linguagem poética é abandonada
de Bertolt Brecht do que em suas peças políticas; e no em favor da linguagem obscena versificada (ou pseudoversificada).
Wozzeck, de Alban Berg, mais do que na ópera antifas- Isso existe mas como pornografia, notadamente a publicidade sexual,
cista de hoje. a propaganda com o Eros exibicionista e comerciável. Hoje, a lin-
116 ARTE E REVOLUÇÃO
CONTRA-REVOLUÇÃO E REVOLTA 103

ser política, mesmo na ausência (aparentemente) total A imagem de libertação está no vôo das cegonhas,
de conteúdo político, onde nada resta senão o poema através do seu belo céu, com as nuvens que as acom-
— sobre o quê? Brecht realiza o milagre de fazer com panham: céu e nuvens pertencem-lhes — sem posse nem
que a mais simples linguagem comum diga o impro- domínio. A imagem está em sua capacidade para fugir
nunciável: o poema invoca, por um breve momento, as dos espaços onde são ameaçadas: a chuva e os tiros de
imagens de um mundo liberto, de uma natureza liberta: rifle. Sentem-se seguras enquanto forem elas próprias,
inteiramente, uma com a outra. A imagem é de extin-
"DIE LIEBENDEN ção, além de toda a perspectiva: o vento pode empurrá-
las para o nada — mesmo assim estarão seguras: voarão
Sieh jene Kraniche in grossem Bogen! de uma vida para outra. O próprio tempo deixa de
Die Wolken, welche ihnen beigegeben ter importância: as cegonhas encontraram-se há pouco
Zogen mit ihnen schon, als sie entflogen tempo e cedo se separarão. O espaço deixa de ser um
Aus einem Leben in ein andres Leben. limite: elas voam para nenhuma parte e fogem de tudo
In gleicher Höhe und mit gleicher Eile e de todos. O fim é ilusão: o amor parece dar duração,
Scheinen sie alle beider nur daneben.
conquistar o espaço e o tempo, furtar-se à destruição.
Dass so der Kranich mit der Wolke teile
Mas a ilusão não pode negar a realidade que invoca:
Den schönen Himmel, den sie kurz befliegen
as cegonhas estão em seu céu, com suas nuvens. O fim
Dass also keiner länger hier verweile
Und keines andres sehe als das Wiegen também é negação da ilusão, insistência na realidade,
Des andern in dem Wind, den beide spüren concretização. Essa insistência está na linguagem do
Die jetzt im Fluge beieinander liegen poema, que é prosa tornando-se verso e canção no meio
So mag der Wind sie in das Nichts entführen da brutalidade e corrupção da Netzestadt (Mahagonny)
Wenn sie nur nicht vergehen und sich bleiben — no diálogo entre uma prostituta e um vagabundo.
So lange kann sie beide nichts berühren Não há uma palavra nesse poema que não seja prosa.
So lange kann man sie von jedem Ort vertreiben Mas essas palavras estão unidas a frases, ou partes de
Wo Regen drohen oder Schüsse schallen. frases, que dizem e mostram o que a linguagem vulgar
So under Sonn und Monds wenig verschiedenen nunca diz ou mostra. As "declarações protocolares",
Scheiben que parecem descrever coisas e movimentos em percep-
ção direta, convertem-se em imagens daquilo que se
Fliegen sie hin, einander ganz verfallen. passa além de toda a percepção direta: o vôo para o
Wohin, ihr?—Nirgend hin.—Von wem davon?—
Von allen.
Ihr fragt, wie lange sind sie schon beisammen? quando partiram, / Uma vida para entrar, voando, numa outra
Seit kurzem.—Und wann werden sie sich trennen? vida. / À mesma altura e com a mesma rapidez, / Parecem umas
—Bald. ser, meramente, os flancos de outras. / Que a cegonha possa re-
So scheint die Liebe Liebenden ein Halt."®2)* partir com a nuvem / A beleza do céu onde brevemente voam, / Que
não se atar dem mais por aqui / E nada vejam senão o oscilar da
outra / No vento que ambas sentem agora / Jazendo perto delas,
guagem suja (piff language) e a fotografia envernizada do sexo durante o vôo. / Se ao menos, não sucumbissem e ficassem lado a
possuem valor de troca — não o poema de amor romântico. lado / Talvez o vento pudesse levá-las para o Nada, / Elas podem
92 Gedichte, vol. II (Frankfurt: Suhrkamp, i960), pág. 210. ser expulsas de cada lugar / Onde a chuva ameaça e tiros res-
Erich Kahler e Theodor W . Adorno revelaram o significado deste soam / Que nada tocará em uma ou outra. / Assim, sob as peque-
poema. Ver Adorno, Aesthetische Theorie, loc. cit., pág. 123. nas órbitas variáveis do sol e da lua, / Elas, continuam voando,
* © 1967 by Suhrkamp Verlag e reproduzido das Gesammelte perdidas juntas pertencendo uma à outra. / Vocês, para onde vão?
Werke de Bertolt Brecht por especial permissão da Suhrkamp — A parte nenhuma. — Fogem de quem? — De todos. / Pergun-
Verlag, que também autoriza a publicação da sua tradução: tam-me há quanto tempo elas estão juntas? / Há pouco tempo.
E quando se separarão? Em breve. / Assim parece que os amantes
" O S A M A N T E S / Olha as cegonhas em seu amplo vôo! / Olha extraem força do amor."
as nuvens, dispostas a ficar ao lado delas, / Viajando com elas já
118
CONTRA-REVOLUÇÃO E REVOLTA ArTE E REVOLUÇÃO 103

domínio da liberdade, que é também o domínio da outro livro. Mas uma questão específica deve ser levan-
beleza.
tada ainda neste contexto: a do significado e a da pró-
Estranho fenômeno: beleza como uma qualidade pria possibilidade de uma "literatura proletária" (ou li-
que esta tanto numa ópera de Verdi como numa canção teratura da classe trabalhadora). Em minha opinião, o
d e JsobJSYlan, n u m de Ingres como num de
quadro debate nunca mais voltou a atingir o nível da década
Picasso, numa frase de Flaubert como "numa de James de 1920 e começos da de 1930, especialmente na con-
J°yce> n u r a gesto da Duquesa de Guermantes como no trovérsia entre Georg Lukács, Johannes R. Becher e
de uma garota hippiel Comum a todos eles é a expres- Aixdor Gabor, de um lado, e Bertolt Brecht, Walter Ben-
são, contra a sua deserotização plástica, da beleza como jamin, Hans Eisler e Ernest Bloch, do outro. O debate
negaçao do mundo de mercadoria e de desempenhos, durante esse período "está registrado e reexaminado no
atitudes, gestos, semblantes, requeridos por ele. excelente livro de Helga Gallas, Marxistische Literatur-
A forma estética continuará a mudar à medida que theorie (Nenwied: Luchterhand, 1971).
a prática política consiga (ou não) construir uma socie-
Todos os protagonistas aceitam o conceito central
dade melhor. Nas condições mais favoráveis, podemos
segundo o qual a arte (a discussão está praticamente
prever um universo comum à arte e à realidade mas
limitada à literatura) é determinada, tanto em seu "con-
nesse universo comum, a arte conservaria a sua trans-
teúdo de verdade" como em suas formas, pela situação
cendência. Com toda a probabilidade, as pessoas não
de classe do autor (é claro, não simplesmente em ter-
falariam, escreveriam ou comporiam poesia; la prose du
mos de sua posição e consciência pessoais, mas da cor-
monde persistiria. O "fim da arte" só é concebível se
respondência objetiva de sua obra com a posição mate-
os homens não forem mais capazes de distinguir entre
rial e ideológica da classe). A conclusão que se destaca
verdadeiro e falso, bom e mau, belo e feio, presente e
dessa discussão é que, na fase histórica em que só a
futuro. Isso seria o estado de perfeito barbarismo no
posição do proletariado possibilita uma visão da tota-
auge da civilização — e tal estado é, de fato, uma pos-
lidade do processo social e da necessidade e direção da
sibilidade histórica.
mudança radical (isto é, uma visão íntima de "a ver-
A arte nada pode fazer para impedir a ascensão do dade"), a literatura proletária é a única que pode preen-
barbarismo — por si mesma, não pode manter aberto cher a função progressiva da arte e desenvolver uma
o seu próprio domínio na (e contra a) sociedade. Para consciência revolucionária: arma indispensável na luta
sua própria preservação e desenvolvimento, a arte de- de classes.
pende da luta pela abolição do sistema social que gera
Pode uma tal literatura surgir nas formas tradicio-
o barbarismo como sua própria fase potencial: a forma
nais de arte ou novas formas e técnicas serão desenvol-
potencial do seu progresso. O destino da arte continua
vidas? Esse é o ponto básico da controvérsia: enquanto
vinculado ao da revolução. Neste sentido, é deveras
que Lukács (e com ele a linha comunista então "oficial")
uma exigência interna da arte que empurra o artista
insistia na validade da tradição (recomposta), especial-
para as ruas — para lutar pela Comuna, pela revolução
mente a grande tradição novelística do século XIX,
bolchevique, pela revolução alemã de 1918, pelas revo-
Brecht exige formas radicalmente diferentes (como o
luções chinesa e cubana, por todas as revoluções que
"teatro épico") e Benjamin propunha a transição da
têm uma possibilidade histórica de libertação. Mas, ao
própria forma artística parã novas expressões técnicas
fazê-lo, o artista abandona o universo da arte e penetra
como o filme: "grandes formas fechadas contra peque-
no universo mais vasto de que a arte continua sendo
nas formas abertas".
uma parte antagônica: o universo da prática radical.
Num certo sentido, o confronto entre formas fecha-
das e abertas parece não ser mais uma expressão ade-
y i f ) A revolução cultural de hoje coloca novamente na quada do problema: comparadas com a antiarte de hoje,
— agenda os problemas de uma estética marxista. as formas abertas de Brecht parecem literatura "tradi-
Nas seções precedentes, tentei dar uma contribuição cional" . O problema consiste mais num conceito subja-
sobre o problema; uma análise adequada exigiria um cente de mundivisão proletária que, em virtude do seu
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CONTRA-REVOLUÇÃO E REVOLTA ARTE E REVOLUÇÃO
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Tari Äp t i C ™ } de ClaSSe' r e P r e s e n t a
a verdade que cia e uma qualidade essencial de toda a arte, segue-se
Essa teona comunicar quiser ser arte autêntica. que as metas da revolução podem encontrar expressão
na arte burguesa e em todas as formas de arte. Parece
ser mais do que uma questão de preferência pessoal se
pressupõe a existência de uma visão prole- Marx tinha gostos conservadores em arte e tanto Tr.otsky
tana do mundo. Mas, precisamente, essa como JLêrtín criticaram a noção de uma "cultura pro-
pressuposição não suporta um exame nem Ietaria , 94 /
mesmo aproximativo (annähernde) ,93f
Portanto, não constitui paradoxo nem exceção que
mesmo conteúdos especificamente proletários encontrem
_ Isso é uma declaração de fato — e uma introvisão abrigo na "literatura burguesa". Eles são freqüentemente
teórica. Se a expressão mundivisão proletária quer sig- acompanhados por uma espécie de revolução lingüística
nificar a visao do mundo que predomina na classe tra- a qual substitui a linguagem da classe dominante pela
balhadora, então trata-se, nos países capitalistas avan- do proletariado — sem destruir a forma tradicional (do
çados, de uma visão do mundo que é compartilhada romance, do drama). Ou, inversamente, os conteúdos
por uma considerável parte das outras classes, especial- revolucionários proletários são formados na linguagem
mente as classes médias. (Na linguagem marxista ritua- elevada" e estilizada da poesia (tradicional), como na
íizada, chamar-se-lhe-ia consciência reformista pequeno- opera dos Três Vinténs e em Mahagonny, de Brecht
burguesa. ) Se a expressão é para designar a consciência e na prosa "artística" do seu Galileu.
revolucionaria (latente ou a atual), então não é hoje O porta-voz de uma literatura especificamente pro-
por certo, nitidamente — nem mesmo predominante- letana tentou salvar essa noção estabelecendo um crité-
mente — "proletária", não só porque a revolução contra rio geral que permitiria rejeitar os radicais burgueses
o capitalismo monopolístico global é mais e diferente reformistas", notadamente o aparecimento, na obra,
do que uma revolução proletária, mas também porque das leis básicas que governam a sociedade capitalista.
as suas condições, perspectivas e metas não podem ser O proprio Lukács fez disso o santo-e-senha para iden-
adequadamente formuladas em termos de uma revolu- tificar a literatura revolucionária autêntica. Mas esse
ção proletária (ver capítulo 1). E se essa revolução vai requisito, precisamente, ofende a própria natureza da
estar presente (sob qualquer forma) como um objetivo arte. A estrutura e dinâmica básicas da sociedade nunca
da literatura, tal literatura não poderá ser tipicamente poderão encontrar expressão sensual, estética; elas são,
prolclbilb. na teoria marxista, a essência subentendida na aparência,
Esta é, pelo menos, a conclusão sugerida pela teoria a qual só pode ser atingida através da análise científica
marxista. Recordo, uma vez mais, a dialética do univer- e formulada unicamente em função de tal análise. A
sal e do particular no conceito do proletariado; como "forma aberta" não pode fechar o hiato entre verdade
uma classe na (mas não da) sociedade capitalista, o seu científica e aparência estética. A introdução, na peça de
interesse particular (a sua própria libertação) é ao teatro ou no romance, de montagem, documentação,
mesmo tempo, o interesse geral: não pode libertár-se « reportagem, poderá muito bem tornar-se (como em
sem abolir-se como classe e abolir todas as classes. Isso Brecht) uma parte essencial da forma estética — mas
nao e um "ideal", mas a própria dinâmica da revolução só pode fazê-lo como parte subordinada.
socialista. Segue-se que as metas do proletariado como A arte pode, de fato, tornar-se uma arma na luta
classe revolucionária transcendem-se a si próprias- en- de classes, ao promover mudanças na consciência pre-
quanto que permanecem metas históricas, concretas dominante. Contudo, os casos em que existe uma corre-
elas expandem-se, em seu conteúdo de classe, para além lação transparente entre a respectiva consciência de
ao conteúdo específico de classe. E se tal transcendên- classe e a obra de arte são extremamente raros (Molière,

93> Gallas, loc. cit., pág. 73. 94>? Gallas, loc. cit., págs. 210 e segs.
122 CONTRA-REVOLUÇÃO E REVOLTA ARTE E REVOLUÇÃO
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Beaumarchais, Defoe). Em virtude de sua própria qua- literatura radical e socialista: o que é proclamado como
lidade subversiva, a arte está associada à consciência sendo o ponto focai de uma nova cultura revolucionária
revolucionária, mas no grau em que a consciência pre- não passa, de fato, de um ajustamento à cultura esta-
dominante de uma classe é afirmativa, integrada e em- belecida.
botada, a arte revolucionária será o oposto disso. Onde Sem dúvida, a revolução cultural deve reconhecer
o proletariado for não-revolucionário, a literatura revo- e subverter essa atmosfera do lar da classe trabalhado-
lucionária não será literatura proletária. Nem pode se ra, mas isso não será feito "sintonizando" as emoções
"escorar" na consciência (não-revolucionária) predomi- provocadas pela entrega de uma máquina de lavar.
nante: só a ruptura, o salto, pode impedir a ressurreição Pelo contrário, tal empatia perpetua a "atmosfera" pre-
da "falsa" consciência numa sociedade socialista. dominante.
As falácias que cercam a noção de uma literatura O conceito de literatura proletária continua sendo
revolucionária ainda são agravadas pela revolução de hoje. discutível, mesmo que se liberte da "sintonia" com emo-
O antiintelectualismo que está lavrando na Nova Es- ções predominantes e se relacione, outrossim, com a
querda advoga a exigência de uma literatura da classe mais avançada consciência da classe trabalhadora. Esta
trabalhadora que expresse os interesses e "emoções" seria uma consciência política e só preponderaria numa
reais do trabalhador. Por exemplo: minoria da classe trabalhadora. Se a arte e a literatura
"Os 'mestres' intelectuais da Esquerda" são censu- refletissem essa consciência avançada, teriam de expres-
rados por sua "estética revolucionária" e "uma certa sar as condições reais da luta de classes e as perspecti-
curriola de talmudistas" foi chamada à pedra por ser vas concretas de subversão do sistema capitalista. Mas,
mais "perita em analisar as muitas nuanças de uma pa- precisamente, esse conteúdo brutalmente político milita
lavra do que em envolver-se no processo revolucioná- contra a sua transformação estética — portanto, a obje-
rio". 9 5 -^ antiintelectualismo arcaico tem aversão à idéia ção muito válida contra a "arte pura". Contudo, esse
de que a palavra possa fazer parte essencial do processo conteúdo também milita contra uma tradução menos
revolucionário, uma parte daquela tradução do mundo pura em arte, a saber, a tradução no concretismo da
em uma nova linguagem que pode comunicar reivindi- vida e prática cotidianas. Com tais fundamentos, Lukács
cações radicalmente novas de libertação. criticou um romance representativo dos trabalhadores
Tais porta-vozes da ideologia proletária criticam a do seu tempo: os personagens desse romance falam à
revolução cultural como uma "viagem de classe média". mesa do jantar, no seio da família, a mesma linguagem
A mente prosaica atinge seu nível máximo quando pro- de um delegado numa reunião do Partido.9^
clama que essa revolução só se tornará "significativa" Uma literatura revolucionária em que a classe tra-
quando "começar a compreender o verdadeiro significà- balhadora é o tema e que seja a herdeira histórica, a
do cultural que uma máquina de lavar, por exemplo, negação definitiva, da literatura "burguesa", continua
tem para uma família da classe trabalhadora, com filhos sendo uma coisa do futuro.
pequenos de fraldas". E a mente prosaica que "os ar- Mas o que é válido para a noção de arte revolucio-
tistas dessa revolução... sintonizem com as emoções nária, com respeito às classes trabalhadoras nos países
dessa família no dia, após meses de debate e planeja- capitalistas avançados, não se aplica à situação das
mento, em que a máquina de lavar foi entregue..." 90 ) minorias raciais nesses mesmos países nem às maiorias
Essa exigência é reacionária, não só de um ponto no Terceiro Mundo. Já me referi à música negra; existe
de vista artístico como político. O que é regressivo não também uma literatura negra, especialmente a poesia,
são as emoções da família de classe trabalhadora mas que pode ser denominada revolucionária; empresta voz
a idéia de fazer daquelas um padrão para a autêntica

^ fiãüãâjL loc. cit., pág. 121. Um participante comunista no


Irvin Silber, em Guardian, 13 de dezembro de 1969.
debate observou corretamente que, nesse caso, deveríamos chamar
961 Irvin Silber, em Guardian, 6 de dezembro de 1969, pág. 17. as coisas pelos seus, nomes e não falar de arte ou literatura mas
de propaganda.
124 CONTRA-REVOLUÇÃO E REVOLTA

a uma rebelião total que encontra expressão na forma


estetica. Não é uma literatura de "classe" e o seu con- O DENOMINADOR OOMUM para o radicalismo deslocado na
teúdo particular é, ao mesmo tempo, universal: o que revolução cultural é o antiintelectualismo de que com-
esta em jogo na situação específica da minoria racial partilha com os representantes mais reacionários do
oprimida e a mais geral de todas as necessidades, isto "Establishment": a revolta contra a Razão — não só
e, a propria existência do indivíduo e seu grupo como a Razão do capitalismo, da sociedade burguesa etc., mas
seres humanos. O conteúdo político mais extremo não contra a Razão per se. E as-
repele as formas tradicionais. sim como a luta deveras ur-
gente contra o adestramento
de quadros para o "Establish-
ment" nas universidades se ( 4 j
converte numa luta contra ^
a universidade, também a mNrincxn
destruição da forma estética ^JiNiLuaAU
se converte numa destruição
da a,rte. Sem dúvida, em am-
bos os ramos da cultura in-
telectual, isolamento e alienação da realidade dada po-
dem levar, de fato, a uma "torre de marfim"; mas tam-
bém podem conduzir (e conduzem) a algo que as Ins-
tituições da sociedade estabelecida são cada vez mais
incapazes de tolerar: o pensamento e o sentimento
independentes. ~~ ~ '
Mas com todo o seu radicalismo deslocado, o movi-
mento ainda é a contraforça mais avançada. Ampliou a
rebelião em duas investidas principais: atraiu para a luta
política o domínio das necessidades não-materiais (de
autodeterminação, de relações humanas não-alienadas)
e a dimensão fisiológica da existência — o domínio da
natureza. A emancipação da sensibilidade é o terreno
comum.. Engendra uma nova experiência de um mundo
violado pelos requisitos da sociedade estabelecida e de
uma necessidade vital de transformação total. O que se
tornou intolerável foi a maciça unidade de opostos neste
mundo: unidade de prazer e horror, calma e violência
gratificação e destruição, beleza e fealdade, que nos
atinge em nosso meio vital cotidiano, de modo tangível
O desprezo predominante pelo "esnobismo estético" não
deveria continuar nos dissuadindo de articular essa ex-
periência: a repulsiva unidade de opostos (a manifesta-
ção mais concreta e não-sublimada da dialética capita-
lista!) tornou-se o elemento vital do sistema; o protesto
contra essas condições deve converter-se numa arma
política.
A luta será ganha quando a simbiose obscena de
opostos for desfeita — a simbiose entre o jogo erótico

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