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Epouarb GLissANT INTRODUCAO A UMA POETICA DA DIVERSIDADE Trango: Entice An sercarta RocuA EDITORA veye ‘Olducus UE 2003 fate nso ow pase WM obo code ver vapeedurtie por avolquer mmo ani aulonegto eavesta do ediore a By E w Eot@u UFIF UniveRsioae FEDERAL Puc Benya Constant, 790 oe Juiz ve Fora Peécio da Rate 2° Ancor - Cairo Reitora ep 36015 409 dit doF ora. MG Masia Mergeride Martins Soloméo Fone/Fumt 8% 3229 3992 Vice-Reitor ”) 3229 3993 Paylo Fereira Pino venbl be Pré-Rallora de Pesquisa isnadho (Claudia Maric Ribeiro Viscardi echicrletoa.ul.br Direlora de Editora weiliore. uli br Helena do Motto Salles Coordenag6o e projat@ grilico: Afonso Rodrigues Consetho Editorial Reviséor bey Magalhées Adu Andriolo " Grilico Editora UBJF rile ho Carmo Albargario Rocha “ tenn Francisco de AssisPerteado Mazeto i Gillone Alves de Sibes ‘Capo: Mariana Feydit Colagde Colivra: ‘pat ht Brose Ceslonon Diregso: Sania Cristina Lima Marcas Vinicio Chein Feres {hvee Albergorio Roche FICHA CATALOGRAFICA Eloborode pele Biblioteca Universtina do UH or Vanda Cardoso de Alnarengs- CAIY 6:13819 Gilissant, Ei |, 1928- [Introduction fj line poétique du divers. Portugués] Inteodug3o a (BW pottica da diversidade / Edounrd Gil Enilce do Caffte Albergaria Rocha. - Juiz de Foru: 176 p. (Coppllo Cultura, v. 1) cant; traducio de :ditora UFJF, 2005. Tradugao de: Piroduction 4 une poétique du divers. ISBN: 85-769ib128-6 I. Glissant, |, 1928 - - Entrevistas. 2. Poesia francesa. 1. Rocha, Enilce do Ci Albergaria. 11. Titulo. CDU: 840-1(079.5) IMPRESSO NO BRASIL - 2005 Inpice Crocnzacors NO Carnet NAS AMERICAS Ling AINGUAG Cunrera £ Ibenrinape O CAOS-MUNDO: POR UMA LS SICA DA RuLAGAo ENTREVISTAS O IMAGINARIO Das LINGLAS O rscnrvor EO SOPRO DO LUGAR, PREMIOS F DISTINCOFS PUBLICAGOES DO MESMO AUTOR 41 97 131 151 172 173 A primeira edigdo deste livro foi publicada pela editoru Presses de Université de Montreal,em outubro de 1995, quando da entrega do pré- mio da revista Etudes francaises et de la francophonie. ©Editions Gallimard, 1996. O texto destas quatro conferéncias, cujo thulo genérico foi escathido em homenagem a Victor Segalen, padece, sem ditvida, de wn excesso de “teovia”, ao passo que teria sido melhor abordar 0 Diversa e os entrelaga- mentos do “Tado-o-mundo” atiavés de um fluxo de abordagens pocticas, de descrigées de paisagens ¢ situagées, de uni jogo ecoando harmonias e desar- monias, que dessem conta do nosso “sendo-no-mundo”, comm a. todos. Mas aregra, neste caso, élentar dizer o méxima posstvel no lapso de tempo que nos é concedido, ¢ ubordar, se ndo 0 que nos parece mais claro, pelo menos 0 que parece mais imedialamente probante. Tratu-se de um wabalho construtdo de um sé félego, em que a fala predomina quase sempre sobre as reservas da escrila, ¢ em que o “eu” se manifesta exageradamente, mais ainda porque as entrevistas que se seguem. as conferéncias reforcam, obviamente, o engajamento e « tomada de posi- do. Espero que apds a leitura prevaleceré o sentimento de wma pesquisa - talvez inquieta ou errante - endo de wn sistema fechado em si mesmo. Meus agradecimentos a Jean-Claude Castelain, Joél Desrosiers, Lise Gauvin, Jean-Claude Gémar, Robert Melangon, Gaston Miron, Pierre Nepveu, entre outros, que me acompanharam neste rastro. E também a Martin Robitaille, que realizou a transcrigda do conjunto do texto. Edouard Glissant Prefacio Antropdlogo, fildsofo, pocta, romancista e ensaista, fdouard Glissant, integra a geracio de intelectuais das co- lénias que emigraram para a Metrdpole (L‘ranga), ¢ cuja teflexdo critica se formou durante 0 pés-guerra, na atmos- fera das lutas anticoloniais, ¢ na reflexao sobre o colonialismo. O conjunto de sua obra representa uma importante con- tribui¢fo para a discussao da identidade ¢ do encontro das culturas na contemporaneidade. Fim sua Introdugéa a uma poctica da diversidude 0 autor descnvolve uma rcflexao - ao mesmo tempo sutil ¢ vigorosa que se constréi longe dos sistemas fechados c dos caminhos tedricos ja trilhados - acerca da defesa da diversidade das culturas face ao pro- cesso de estandardizagio globalizadora, questionando os parametros impostos pela cultura dita ocidental, dos pai- ses hegemndnicos. Para Glissant, os povos que irrompem na contemporancidade necessitam construir sua modernidade a forga, e cabe as artes em geral, e a literatura em patticu- lar, a funcio essencial na propulsdo do imaginario ut6pico de suas coletividades; do contrario estas correm o risco de nio se nomear, de calar sua voz, sua identidade ¢ seu projeto coletivo, Assim sendo, sua escrita — de grande densidade poética — esté conscientemente ancorada na espessura an- tropoldgica ¢ na singularidade histérica do /ygar de onde o intelectual, o poeta, o escritor e 0 artista emitem a sua voz, o seu canto. Em sua produgio poética, ficcional ¢ ensaistica, Glissant discute as forgas centripetas das culcuras antilhanas ¢ das Américas marcadas pelo Trafico de africanos, pelo sistema de plantagao ¢ a escravidio, forgas que considera determinantes no processo de constituigéo da identidade cultural de uma grande parte dos povos da América colo- nizada pela Europa, e marcada pela presenga africana, Nessa petspectiva, o autor fornece os. parametros para compre- ender a complexidade das questées culturais colocadas aos povos historicamente colonizados, e que hoje vivenciam os impactos dos processos de globalizagio. Entretanto, sua reflexao transborda 0 espaco do Caribe eda América da diaspora africana, e, dentro de uma pers- pectiva supranacional, nos remete 4 questio do contato entre as culturas, as linguas e as civilizacGes, na contemporaneidade. Em Introdugao a uma pottica da diversidade o autor parte da andlise das identidades culturais do espago geopolitico do Caribe ¢ das Américas para abordar 0 imaginatio dis lin- guas - os conflitos e negociagées entre as linguas e as lin- guagens —as cultutas e as identidadcs em movimento den- tro do processo de crioufizardo relativo a todos os povos na atualidade; o /ygar cultural e 0 Todo-o-mundo, entre outros, ptopondo uma estética da Re/agdo que considera a questio da identidade das minorias e dos povos e/ ou das nagdes emergentes, e a fungio emancipatoria das literaturas dos povos cm face da dominagao politica e econémica, ¢ da ameaga de uniformizagao das culturas. Na reflexao glissantina as fronteiras entre os géneros ¢ a tipologia textual sao deslocadas, abolidas ¢ o pensamento poético — que procura tragar um “rizoma com o mundo” - conforme precisa o autor, irriga a escrita na delicada bu ca de deciframento do real, tanto no campo estético, quay to nos campos hist6rico, politico ¢ ideologico. No proces so de claboragio desse rizoma as trarisformagées do espa- ¢o-tempo e das realidades culturais, bem como os desloca- mentos ¢ as errdncéas tornam-se constitutivos de sua pr6- pria escrita, no sentido de que o pensamento divaga do espacgo-tempo ocidental a diversidade cultural do mundo, ao encontro entre as culturas cujas resultantes, “sao imptevisiveis”. Para Glissant, as culturas nao sdo, mas esfdo dentro do proccsso da Relagdo, e a fungao exploratéria das artes ¢ das | literaturas coloca-se como urgente e necessatia no Arduo trabalho de fazer emergir a complexidade e a heterogeneidade de cada cultura especifica em Re/apao den- “tro da Totalidade-Terra, tendo em vista pensar os caminhos possiveis para a preservagio da diversidade dentro da con- fluéncia dag culturas. . ant Enilce Albergaria Rocha* F. Doute com aU “douard G! 1 em Estudos "A Utopia issiamt € Mia eoria da Literatura da UK] gua Portugues” scritas dle *Vrofi. do Mestrado em Comparacos de Literautras de do Diverso: © Pensamento Gl Couto”. Crioulizacées no Caribe e nas Américas © objeto destas quatro conferéncias parecera comple- xo c erratico, ¢ é provavel que ao longo desta exposigio eu venha a retomar temas que se entrelagario, temas que se repetirao ¢, antecipadamente, peco desculpas, mas essa Ga minha mancira de trabalhar. A primeira abordagem que tive daquilo que se pode cha- mar de as Américas, meu primeiro contato foi com a pai- sagem, antes mesmo de ter consciéncia dos dramas huma- nos coletivos ou privados que ali se acumularam. A Amé- rica pareccu-me sempre - ¢ eu estou falando do pais das Américas — muito particular em relagio ao que pude co- nhecer, por exemplo, das paisagens européias, quando co- mecci meus estudos na l’ranga. A paisagem curopéia me pareceu constituir um conjunto muito regrado, cronometrado, em telagao com uma espécie de ritmos das estacées. Toda vez que eu volto as Américas, s seja em uma pequena ilha como a Martinica, que ¢ 0 pais onde nasci, ou no continente americano, pressiona-me a abertura de paisagem. Digo que se trata de uma paisagem “irrué”- é uma palavra que eu fabriquei evidentemente -, cla contém itrupgao ¢ impeto, também erupgio, talvez muita realida- de e muita irrealidade. F. parece-me que quando estou na parte alta de Sainte-Maric, no morro Bezaudin, lugar de meu nascimento nesta Paisagem martinicana, ¢ vcjo cultu- ras em terraco, quase verticais nestas terras altas de Bezaudin e em um outro morro que se chama Pérou, ¢ em um outro ainda que se chama Reculée, reencontro a mesma scnsagio que experimento em uma paisagem muito maior, muito mais vasta que é a paisagem de Chavin, no Peru. Chavin que é 0 bergo das culturas pré-incaicas do Peru, onde vi estas mesmas culturas, diante das quais indagamos como o camponés que nelas trabalha néo despenca, pois cle nio tem mais do que trinta centimetros de largura para plantar os pés. Nesscs tipos de espacos, 0 olho nao se familiariza com as astucias ¢ finezas da perspectiva; o olhar abarca com um s6 impulso a platitude vertical ¢ o acamulo rugoso do real. Essa paisagem americana que reencontramos cm uma pequena ilha ou no continente me parece, sempre e por toda parte, “irrué”. E é disso, provavelmente, que me vem © sentimento que sempre tive de uma espécie de unidade- diversidade, por um lado, dos paises do Caribe, e por ou- tro lado, do conjunto dos paises do continente americano. Nessc sentido, o Caribe sempre me pareceu ser uma espé- cie de prefacio ao continente americano. Uma vez mais as palavras falam, e eu gostaria de lembrar-lhes que nos sécu- los XVI e XVI, chamava-se o mar do Caribe de mar do Peru. Ora, o Peru esta do outro lado do continente e nao 14 existe nenhuma telagao possivel. Ja se havia entio compre- endido que estava ali uma espécie de introdugio av conti- nente, umna.capécie de elo entre o.que é preciso deixar atris de si a conhece O Caribe foi o lugar do primeiro desembarque dos escravos vitimas do trafico, dos africanos que vivenciaram o trifico — ¢ que depois eram orientados para a América do Norte, para o Brasil, ou para as ilhas da regiao. Esses paises do Caribe sempre me pareceram - nao diria exem- plares, pois desconfio da nogdo de exemplaridade - mas significativos do universo americano, Entretanto, sao pai- ses que durante muito tempo permancceram ignorados — exceto o Haiti, primeira reptiblica negra da historia do mundo, e Cuba e a revolugao cubana. Nao gostatia de vangloria-los, mas sim tentar mostrar que existe nesses pa- ises uma referéncia a algo que acontece nas Américas, com muitas vicissitudes, e que tentarei estudar, desenvolver aqui com a colaboraciio dos senhores. Comegarei definindo o que acredito ser, juntamente com alguns outros pesquisadotes, a primeira caracteristica das Américas, ou seja, a divisio que podemos fazer das Américas -- juntamente com Darcy Ribeiro no Brasil, e Emmanuel Bonfil Batalla no México, ou Rex Nettleford na Jamaica’= = ear wes especies de Américas: a América dos povosautéctones, dos povos- testemunhas, ou seja, que sempre lé estiveram e que definimos como a Meso-Améri- ca, a Meso-America, a Amética daqueles que chegaram pro- venientes da Europa e que preservaram no novo continen- te seus usos ¢ costumes, bem como as tradigdes de seus TS paises de otigei, que poderiamos chamar de Euro-America e que compreende evidentemente 0 Quebec, o Canada, os Estados-Unidos e uma parte (cultural) do Chile ¢ da Ar- gentina; a América que poderiamos chamar de Neo-Awerica ¢ que corresponde 4 Amética da ctioulizacao. Essa Améri- ca compreende © Caribe, o nordeste do Brasil, as Guianas ¢ Curacao, o sul dos Estados-Unidos, a costa caribenha da Venezuela ¢ da Colémbia, ¢ wma grande parte da América Central e do México. Nessa divisio nao cxistem fronteiras, pois existem imbricagées entre essas trés Américas, A Meso-Ammerica esta presente no Quebec ¢ no € canada, bem como nos Istados- Unidos. Um pais como a Venezuela ¢ um pais como a Co- Ié6mbia possucm uma parte caribenha c uma parte andina, ou seja, uma Neo-America ¢ uma Meso-America. Nesses con- tinentes c nessas ilhas, os choques ¢ os conflitos entre esses trés tipos de América se multiplicaram. Mas igualmente, o que predomina nessa relagéo, é que cada vez mais a Neo- Amurica, ou seja, a América da crioulizagao, ao mesmo tem- po em que continua a absorver empréstimos da Meso- America e da Euro-America, tende a influenciar essas duas outras Américas. E 0 que ¢ interessante no fendmeno da crioulizagao, no fendmeno que constitui a Neo-America, € que 0 povoamento dessa América é muito especial: nele, é Ja Africa que prevalece. Em geral podemos dizer que houve trés tipos de “povoadores” nas Américas. O “migrante armhadq”, ou seja, aquele que desembarca do MayF/ower ou que sobe o 16 tio Saint Laurent. Este chega com seus barcos, suas armas, etc, € se constitui como o “migrante fundador”. Ha em seguida o “migrante familiar’, civil, aquele que chega com seus habitos alimentatcs, secu forno, suas panelas, suas fotos de familia ¢ povoa uma grande. patte das Américas do Norte ou do Sul. I%, finalmente, aquele que chamamos de “migrante nu”, ou scja, aqucle que foi transportado 4 forga para o continente ¢ que constimui a base do povoamento dessa espécie de citcularidade fundamental que, no meu entendimento, o Caribe constitui, Aqui nao podemos ne- gligenciar o termo “circularidade” porque se trata, com efeito, de uma espécic de irradiagio, de uma “espiralidade”, o que é bem diferente da “projecio em flecha” que carac- teriza toda ¢ qualquer colonizagio. Repito sempre que o mar do Caribe se diferencia do mar Mediterraneo por set um mar aberto, um mar que difrata, ao passo que © Mediterrineo ¢ um mar que con- centra. Se as civilizagGes € as grandes religides monotcistas nasceram cm torno da bacia do Mediterraneo, isto se deve a forga que tem esse mar de predispor © pensamento do homem, mesmo que através de dramas, guerras ¢ conflitos, aum pensamento do Uno e da unidade. Ao passo que 0 mar do Caribe ¢ um mar queGifratije leva A efervescéncia da diversidade. Ele no ¢ apenas um mar de transito e de passagens, mas é também um mar de encontros e de impli- cagdes. O que acontece no Caribe durante trés séculos é, literalmente, o scguinte: um encontro de elementos cultu- rais vindos de horizontes absolutamente diversos ¢ que rcal- mente se crioulizam, tcalmente se imbricam ¢ se confun- dem um no outro para dar nascimento a algo absoluta- mente imprevisivel, absolutamente novo - a realidade cri- oula. A Neo-America, scja no Brasil, nas costas carilbenhas, nas ilhas ou no sul dos lstados Unidos, vive a experiéncia real da crioulizagao através da ‘escravidao, da opressio, do desapossamenwo perpetrados pelos diversos sistemas escravocratas, cuja aboligio se estende por um longo peri- odo (mais ou menos de 1830 a 1868), ¢ através desses desapossamentos, dessas opressGes e desses crimes realiza uma verdadeira conversio do “ser”. Gostatia de estudar, ao longo destas quatro confc- réncias, essa conversio do ser. A tese que defenderei é a \seguinte: a crioulizagéo que se da na Neo-Amerita ¢ que se estende pelas outras Américas ¢ a mesma que vem aconte- cendo no mundo inteiro. A tese que defenderei é a de que @ mundo se crionliza. Isto é: hoje, as culturas do mundo coloca- das em contato umas com as outras de maneira fulminante e absolutamente consciente transformam-se, permutando entre si, através de choques irremissiveis, de guerras impiedosas, mas também através de avangos de conscién- cia e de esperanca que nos permitem dizer— sem ser utdpi- co e mesmo sendo-o — que as humanidades de hoje cstio abandonando dificilmente algo em que se obstinavam ha muito tempo - a crenga de que a identidade de um ser sé é valida ¢ reconhecivel se for exclusiva, diferente da identi- dade de todos os outros seres possiveis. E é essa mutagao dolorosa do pensamento humano que eu gostaria de de- cantar com os senhores. 18 O que vem a set a crioulizagao? Conforme propus anteriormente, existem trés tipos de povoamento, ¢ aqucle realizado através do trafico de afticanos foi o que determi- nou mais softimento c infelicidade nas Américas — se nio considerarmos o exterminio dos povos amerindios ao norte ¢ ao sul do continente; ¢ é preciso considera-lo. Atu- almente existe uma quarta modalidade de povoamento, um povoamento interno: os deslocamentos haitianos e cuba- nos através dos bout people. Trata-sc de uma modalidade critica do devir das sociedades americanas. Mas se exami- narmos as trés formas historicas de povoamento, percebc- remos que ao passo que Os povos migrantes da Europa, como os escaceses, os irlandeses, os italianos, os alerniics, os franceses, ctc., chegam com suas canc¢6es, suas tradigdes de familia, seus instrumentos, a imagem de seus deuses, etc, os africanos chegam despojados de tudo, de toda e qual- quer possibilidade, e mesmo despojados de sua lingua. Porque o ventre do navio negreiro é 0 lugar e o momento em que as linguas africanas desaparecem, porque nunca se colocavam juntas no navio negreiro, nem nas plantagdes, pessoas que falavam a mesma lingua. O ser se encontrava dessa mancira despojado de toda espécie de elementos de sua vida cotidiana, mas também, ¢ sobretudo, de-sua lin- gua. =e) que acontece com essc migrante? Ele recompée, através de zastros/ reséduos, uma lingua e manifestagées ar- tisticas, que podetiamos dizer validas para todos. Por exem- plo, uma comunidade étnica do continente americano pre- servou a memoria dos cantos entoados nos funerais, ca- 19 samentos, batismos, que expressam a dor, a alegtia, vin- dos do antigo pais de origem, ¢ que sao cantados ha cem anos ou mais em diversas ocasiGes da vida familiar. Ora, o afticano deportado nao teve a possibilidade de manter, de consetvar essa espécie de herangas pontuais. Mas criou algo imprevisivel a partir unicamente dos poderes da memoria, isto 6, somente a partir dos pensamentos do rastro/ tresi- duo, que lhe testavam: compés linguagens crioulas c for- mas de arte validas para todos, como por cxemplo a nvisi- ca de jazz, que ¢ te-constituida com a ajuda de instrumen- tos por cles adotados, mas a partir de rastros/ residuos de ritmos africanos fundamentais. Embora esse nco-america- no nfo cante cangécs africanas que datam de dois ou trés séculos, cle re-instaura no Caribe, no Brasil e na América do Norte, através do pensamento do rastro/ residuo, fot- mas de arte que prope como vilidas para todos. O pensa- mento do rastro/ residuo me parece constituir uma dimen- so nova daquilo que ¢ necessdrio opormos, na situagao atual do mundo, ao que chamo de pensamentos de sistema ou sistemas de pensamento. Os pensamentos de sistema ou os sistemas de pensamento foram prodigiosamente fe- cundos, prodigiosamente conquistadores ¢ prodigiosamen- te mortais. O pensamento do tastro/ residuo é aquele que sc aplica, em nossos dias, da forma mais valida, 4 falsa uni- versalidade dos pensamentos de sistema. Os fenémenos de ctioulizagiio sio fendmenos impor- tantes porque permitem praticar uma nova abordagem da dimensao espititual das humanidades. Uma abotdagem que passa por uma recomposicao da paisagem mental dessas 20 humanidades presentes hoje no mundo. Porque a crioulizagio supde que, os elementos cultutais colocados em presenga uns dos outros devam ser obrigatoriamente “equivalentes em valor” para que essa crioulizagio se cfe- tue realmente. Isso significa que se nos elementos culturais colocados em relagao, alguns sao inferiorizados em tela- cdo a outros, a crioulizacgao nao se da verdadciramente. Ela se da, mas de modo desequilibrado, que deixa a desejar, e de maneira injusta. por essa tazio que em paises ortun- dos do processo de crioulizagdo, como é 0 caso do Caribe ou do Brasil, nos quais os elementos culturais foram colo- cados em presenga uns dos outros através do modo de povoamento tepresentado pelo trafico de afticanos, os com- ponentes culturais africanos c negros foram normalmente inferiorizados. A crioulizagio se da, entrctanto, também nesses casos, nessas condigdes, mas deixa um residuo amar- go, incontrolavel. E quase por toda parte na Neo-America foi preciso restabelecer © cquilibrio entre os elementos colocados em presenga, primeiramente attavés de uma revalorizagao da heranga africana, ¢ foi o que constituiu o chamado indianismo haitiano, o renascimento de Harlem e enfim, a negritude — a poética da negritude de Damas ¢ de Césaire que converge com a teoria da negritude de Senghor. A crioulizagao em ato que se da no ventre da plantagao — 0 Universo mais iniquo, mais sinistto que possa existir —acon- tece todavia, mas deixa o “ser” voando com uma $6 asa. Porque o “ser” é desestabilizado pela diminuigao de si mesmo que catrega consigo, e que ele mesmo assume, di- minuigiio esta que corresponde, por cxemplo, a diminui- a1 Gao de seu valor propriamente afticano. Isso também acon- tece nas Antilhas c no Caribe com outros componentes, entre outros com o elemento hindu apds 1848, quando os paises foram parcialmente povoados por esses migtantes, persuadidos de que ali encontrariam trabalho, mas foram pura c simplesmente tratados como escravos. Também nesse caso, houve uma desconsidcragio dos valores vindos da india, ¢ foi preciso muito tempo para que se reconhecesse, apenas nos dias atuais, que as populagées de descendéncia hindu constituem uma parte importante do fendmeno de crioulizagao no Caribe. Na ilha de Trindade a descendén- cia hindu ¢ a descendéncia afticana dividem praticamente entre sio povoamento da ilha. “colocados ct cm relacio “ se intervalorizem”, ou seja, que nao thaja degradagio ou diminuigao do ser nesse contato ¢ nes- sa mistura, scja internamente, isto é, de dentro para fora, seja externamente, de fora para dentro. E por que a crioulizagao ¢ nao a mestigagem? Porque a crioulizagio é imprevisivel, ao passo que poderiamos calcular os efeitos de uma mestigagem. Podemos calcular os efeitos da mestigagem por enxertia cm diferentes plantas ¢ por cru- zamento nos animais; podemos calcular que ervilhas ver- melhas e ervilhas brancas misturadas, através da técnica do enxerto, darao um tal resultado em uma geracio, um tal outto resultado em uma outra geracao. Mas a crioulizacao é a mestigagem acrescida de uma mais-valia que é a imprevisibilidade. Da mesma forma, era absolutamente imprevisivel- que os pensamentos do rastro/ residuo pre- 22 dispusessem populagdes das Américas a criar linguas ou formas de arte tao inéditas. Ao contrario da mesticagem, a crioulizagao rege a imprevisibilidade; ela cria nas Améri- cas microclimas culturais e lingiiisticos absolutamente incs- perados, lugares nos quais as repercussdes das linguas was sobre as outtras, ou das culturas umas sobre as outras, sio abruptas. Na Luisiana, por exemplo: a criagdo da misica deco é uma aplicagio a musica cajun* tradicional dos rit- mos ¢ poderes do jazz. ¢ mesmo do tock. Na Luisiana, en- contramos os Black Indians, tribos que nasceram da mistura entre os escravos negros foragidos e¢ os indios. Fim Nova Orleans, assisti ao desfile de etnias Black Indian. Havia algo absolutamente imprevisivel, que vai além do simples fato da mestigagem. Esses microclimas culturais e lingitisticos que a crioulizagao cria nas Américas so decisivos porque constituem verdadciramente indicios do que esta ocorren- do realmente no mundo. E 0 que esta realmente aconte- cendo no mundo é que esto sendo criados microclirnas ¢ macroclimas de intetpenetragio cultutal e linguistica. E quando essa interpenetragao cultural ¢ lingiiistica é muito forte, entio os velhos deménios da pureza e da anti- mesticagem resistem e inflamam csses focos infernais que vemos queimar na superficie da terra. Por que aplicar 0 termo de ctioulizagao a choques, harmonias, distor¢écs, recuos, rejeigdes, atragdes entre cle- mentos de cultura? J expliquei_ por que nao gosto da pala- dos Unidos da ‘ancés. Também o 0: individuo que vive no estado da Lavisiana, nos dialeto [rancés falado por esse individuo (N.T). 23 > 3 vra “mestigagem”. A palavta “crioulizacio”, obviamente, vein do termo crioulo (a) ¢ da realidade das linguas criou- las. Eo que é uma lingua crioula? E uma lingua composita, nascida do contato entre clementos lingiiisticos absoluta- mente heterogéncos uns aos outros. Os crioulos frane6fonos do Caribe, por exemplo, nasceram do conta- to entre falares bretées ¢ normandos do século XVII, ¢ uma sintaxe gue, embora nio saibamos muito bem como funciona, pressentimos ser uma espécie de sintese das sin- taxes das linguas da Africa negra subsahariana do oeste. Isso significa entio, que o éxico, 0 vocabuliriv, o falar da Normandia nao tém nada a ver com a sintaxe que talvez seja uma “sintaxc-de-sintaxe” dessas linguas africanas. A combinagao dessc léxico c dessa sintaxe que — nao importa 0 que se diga - comega sob a forma de um linguajar rudi- mentar pois tratava-se de resolver os problemas de ttaba- tho nas ilhas do Caribe, é imprevisivel. Lira absolutamente imprevisivel que, cm dois séculos, uma comunidade sub- missa tivesse podido produzir uma lingua a partir de ele- mentos tao hetcrogéncos. © que chamo de lingua crioula é uma lingua cujos elementos constiquintes sio heterogéncos uns aos outtos. Nao chamo de lingua crioula, por exem- plo, a extraordiniria lingua dos poetas jamaicanos da dub poetry*, como Michael Smith e Linton Kwesi Johnson ou “Dub poetry (canto falado jammaicano): un Gpo de poesia que surgi na Jamaica ¢ na Inglaterra durante o infcio dos anos 70 do século XX, influenciado pelos reggae. Essa poesia de origen) popular foi inaugurada por uka ¢ Oku Onuora na Jamaica e por Linton Kw son na mera. A “dub perry” inclui letras de miisica e poemas de assuntos como os protestos contra o racismo, a brut celebragio do sexo (N.T). dade poticial ea 24 mais recentemente Edward Kamau Braithwaite. Diz-se que se trata de um crioulo jamaicano — talvez seja necessirio inventar uma palavta — mas nao a chamo de lingua crioula por tratar-se da genial ¢ agressiva deformagio de sma lin- gua, a lingua inglesa, deformagao praticada dentro dessa lingua, por praticantes que subvertem essa lingua. Nao es- tou estabelecendo aqui nenhuma hierarquia. Seria um pidgin? Mas “pidgin” é um termo tao negativo e pejorati- vo que nao se pode aplic4-lo a uma tal lingua. Meus amigos jamaicanos pensam que essa lingua nao pode ser um pidgin, que se trata de uma lingua crioula. Nao penso que ela o seja e faz-se necessario encontrar uma outra palavea, porque uma lingua crioula é pelo menos bifida, isto 6, possui pelo menos dois elementos na sua constituicao, e isto é verdade tanto para o crioulo de Cabo-Verde, quanto para o.crio do Senegal, o papiamento de Curacao, as linguas crioulas da Mattinica, do Haiti, de Guadalupe, de Reuniado, ou de San- ta Liicia, ou ainda da ilha de Sao Domingos. As linguas crioulas provém do choque, da consumpgao, da consuma- g4o reciproca de elementos lingiiisticos, de inicio absoluta- mente heterogéncos uns aos outros, com uma resultante imprcvisivel. Uma lingua crioula nao é portanto nem o re- sultado dessa extraordinaria operacio que os poetas jamaicanos praticam voluntariamente e de maneira decidi- dana lingua inglesa, nem um pidgin, nem um dialeto. E algo novo, de que tomamos consciéncia, mas algo que nio podemos dizer tratat-sc de uma operagio original, porque quando estudamos as origens de toda e qualquer lingua, 25 inclusive da lingua francesa, percebemos que quase toda lingua nas suas origens ¢ uma lingua crioula. No que concerne as linguas crioulas francéfonas do Caribe ¢ do Oceano Indico, minhas hipdtese sio: - Os falares franceses, bretdcs ¢ normandos “deriva- ram’™* suficientemente para permitir a aparigio do fend- meno crioulo (a crioulizagao linguistica), enquanto 0 espa- nhol co inglés, linguas ja fortemente “orginicas” e consti- tuidas, resistiram quase que por toda parte a crioulizacao. - E possivel que a crioulizagio lingiiistica se realize melhor em territorios cxiguos c bem delimitados: ilhas, or- ganizadas ou nio em arquipélagos (Caribe, Oceano Indico, ilhas de Cabo-Verde) - uma cspécic de laboratérios, Essas hipdtescs nao creditam a lingua francesa o mérito da crioulizagio, conforme quiseram cret ou supuseram que eu havia dito. E por essas razGes que penso que o termo crioulizagio se aplica a situac4o atual do mundo, ou seja, a situacaio na qual uma “‘totalidade terra”, “enfim realizada”, permite que dentro dessa totalidade (onde nao existe mais nenhuma autoridade “orginica” e onde tudo é arquipélago) os ele- mentos culturais talvez mais distantes e mais heterogéncos *O verbo "derivar” refere-se ao vocdbulo “deriva”, que na linguagem de E.Glissant significa o apetite do mundo. A deriva nos leva a tragar caminhos no wuudo, € € também una disponibilidade do sendo para todas as migragdes possiveis (NT). 26 uns aos outros possam ser colocados em relacio. Isso pro- duz resultantes imprevisiveis. Essa percepg¢io do que esta acontecendo no mundo repousa sobre a distinc4o, que para nés se torna obrigaté- tia, entre duas formas genéricas de culturas. Formas de culturas que chamarei de atavicas, cuja crioulizagao se deu ha muito tempo, e cuja natureza abordaremos ulteriormente —e formas de culturas que chamarei de compésitas, cuja crioulizagao sc da praticamente sob os nossos olhos. Os paises do Caribe ¢ aqueles que compdem a circularidade disseminada que ja mencionci fazem parte dessas culturas compésitas. Vemos que as culturas compédsitas tendem a tornar-se atavicas, ou scja, tendem a rcivindicar uma espé- cie de petdutagao — uma honorabilidade confetida pelo tempo, que seria necessaria a toda cultura para estar segura de sie ter a audacia de afirmar-se. Assim, as culturas atavicas tendem a crioulizat-se, isto é, a questionar ou a defender de forma freqiientemente dramatica — como na ex-lugos- lavia, no Libano, etc — 0 estatuto da identidade como raiz tinica. Porque de fato é disso que se trata: de uma concep- Gao sublime e mortal que os povos da Europa e as culturas ocidentais veicularam no mundo; ou seja, toda identidade é uma identidade de raiz unica e excluio outro. Essa visio da identidade se opGe 4 nogio hoje “real”, nas culturas compésitas, da identidade como fator e como resultado. de uma crioulizagao, ou seja, da identidade como rizoma, da identidade nao mais como raiz unica mas como raiz indo ao encontto de outras raizes. Assim que formulamos essa afirmacao, os problemas se revelam inquictantes, por- 27 que quando falamos de identidade raiz_ indo ao encontro de outras identidades, temos a impressao de uma ameacga de diluicao: fancionamos sempre segundo © antigo mode loe, entio repito a mim mesmo que se eu for ao encontro do outro nao serei mais cu mesmo, e, se eu nao for mais cu mesmo, perco-me de mim! Ora, no atual panorama do mundo uma questio importante se apresenta: Como ser si mesmo sem fechat-se ao outro, ¢ como abrit-se ao outro sem perder-se a si mesmo? Essa é a questo que as culturas compésitas no mundo das Américas propdem c ilustram. Onde fica o ponto de tangéncia entre cssas culturas compésitas que tendem ao atavismo ¢ essas culturas atavicas que comegam a criolizar-se? FE absolutamente necessario abotdarmos essa ques- to se quisermos escapar 4s oposigdes mortais, sangrentas, que animam ¢ agitam neste momento a desordem do mun- do. Se nfo nos fizermos a seguinte pergunta: é necessirio renunciarmos a espiritualidade, a mentalidade € ao imagi- nario movidos pela concepgao de uma identidade raiz Gni- ca que mata tudo 4 sua volta, para cntrarmos na difici/ complexio de uma identidade re/agdo, de uma identidade que comporta uma abertura ao outro, sem perigo de dilui- Go? — se nao nos fizermos esse tipo de pergunta, parece- me que no estaremos em simbiose, em relagiio coma situ- agio real do mundo, com a situagio teal do que esta acon- tecendo no mundo. E, no meu entendimento, somente uma pottica da Relagao, ou seja, um imaginario, que nos permi- tira “compreender” essas fases e essas implicagées das si- tuagdes dos povos no mundo de hoje, nos autorizara tal- 28 vez. a tentar ir do confinamento ao qual estamos reduzi- dos. Tenho a impressao de que existem lugares no mundo nos quais essa espécic de desafio, essa espécie de impossi. vel estiio acontecendo, como por exemplo, na Africa do Sul. Um dos grandes objetivos da ANC e de Nelson Mandela é, obviamente, o de encontrar solugdes para a sobrevivéncia econdmica para todo esse contingente da populagio que durante tanto tempo foi mantida na miséria e na escravidaio pelo regime de apartheid. Mas parece-me existit um outro desafio que solicita o engajamento do sé- culo XX1: se a ANC ¢ Nelson Mandela nao conseguirem que os zulus, os negros, os mesti¢os, os indianos ¢ os bran- cos vivam juntos dentro do contexto da Africa do Sul, algo do nosso século XXI, de nosso devir, do futuro das huma- nidades que representamos, estara visivel mente ameaga- do, visivelmente perdido, No final de sua autobiogra fia, Nelson Mandela faz csta pergunta, mais ou menos nos se- guintes termos: “Todo o caminho que percorri até agora [de 1912 a 1994], todas essas lutas nao representam nada comparado ao que nos resta fazer, porque o que nos testa fazer é o mais importante, ou seja, conseguir que todas es- sas populagées vivam juntas.” No mcu cntendimento, essa proposta significa sair da identidade raiz Unica e entrar na verdade da crioulizagio do mundo. Penso que sera neces- satio nos aproximarmos do pensamento do rastto/ resi- duo, de um nao-sistema de pensamento que nao seja nem dominadotr, nem sistematico, nem imponente, mas talvez um nio-sistema intuitivo, fragil c ambiguo de pensamento, que convenha melhor 4 extraordindria complexidade e a 29 extraordinaria dimensao de multiplicidade do mundo no qual vivemos. Atravessada e sustentada pelo rastro/ tesi- duo, a paisagem deixa de ser um cenario convenicnte e tor- na-sc um personagem do drama da Relagio. A paisagem nfo é mais o invdlucto passivo da todo - poderosa Narra- tiva, mas a dimensio mutante ¢ perduravel de toda mu- danga ¢ de toda troca. Lisse imaginatio do pensamento do rastro/ residuo nos é consubstancial quando vivemos uma poética da Relagio no mundo atual. Todas a manifestagdes inesperadas ampliam a Diver- sidade: minorias ainda ha pouco desconhecidas ¢c esmagadas sob o peso de um pensamento monolitico, ma- nifestagGes fractais das sensibilidades que se reconstituem ¢ se reagrupam de maneira inédita. . ‘ Todas as contradigées, todos os possiveis estdo ing: ‘critos nessa diversidade do mundo. Na Martinica, por exemplo, néo podemos deixar de ser sensfveis a uma espé- cie de participacao na vivacidade do Caribe, vivacidade que comega a brotar e que reaproxima, finalmente, os di- versos Caribes - hispanico, anglofono, francofono € os de- mais criouléfonos — e também, na mesma Martinica, nio odemos ignorar uma enxurtada de modas (na musica, na alimentagao, nas artes do vestuario) que submetem passi- vamente os martinicanos a fluxos “planetarios”, sem divida alguma alienantes, porque adotados sem nenhu- qna critica. PERGUNTAS Robert Melangon. — Von comecar fazendo-the uma pergunta que considera apenas um detalbe: anotei rapidamente sua definigzo da nogéo de crioulizagao, ¢ vou tentar citd-la com exatidao, sem trair o que disse: “Tlementos heterogéneos, os mais distantes uns dos ou- tros, sao colocados em presenga uns dos outros ¢ produ: do imprevisivel.” Parece-me que a forga e a imprevis sultado dependent da distancia dos chementos colocados em presenga uns dos outros. Fissa definigéo me parece evocar, irresistivelmente, a definigaia de André Breton e de Pierre Reverdy da imagem pottica que aproxima dois elementos tao distantes quanto posstvel un do outro, ¢ é dessa distancia e desse chogue que nasce algo de imprevistvel que se chama intagem. Minha primeira pergunta seria entao: O se- nhor aceita essa aproxintagao entre as dias definigées? Edouard Glissant. — Sim, totalmente. Isso confirma- tia que 0 ato poético é um elemento de conhecimento do! ‘real , . “ RM. — Minha segunda pergunia é muito mais ampla, O senbor descreven, de forma muito convincente, um processo de crioulizagao do mundo que esta ocorrendo atualnente, ¢ 0 senbor evo- cou, rapidamrente mas suficientemente para que 0 acompanbdssemos em seu ratiocinio, a criouligagdo anterior, como por exemplo a do mundo antigo através do advento do cristianismo e da chegada desses nowos povos que denominamos “bdrbaros”. E sendo assim, podemos redefinir a crioulizacao conto um estado de turbuléncia de sistemas que sao colocados em presenga uns dos outros. Serd que nao somos evados a pensar que ao término de um periodo bastante longo de turbuléncias, se produza fatalmente uma estas, ou s¢ja, uma estag- ‘ 31 nagao? — O senbor mesmo nao disse que todas as lingnas sao crioulas cent suas origens, se nos aprofundarmos unt pouco mais em busca de suas raixes? A crioulizagao do mundo gue acontece ew nossos dias em um momento em que a terra € enfin wna sé, nao chegara aun estado de unificagdo que estagnaria completamente o movimento, por- que nio haveria elementos externos, elementos estrangeiros? E.G. —No que concerne a sua primeira observagio, ¢s- tou inteiramente de acordo quanto a definigdo da imagem poética, especialmente como foi definida por Pierre Reverdy — penso que este conseguiu circunscrever mais precisamente do que André Breton a questao da imagem posttica. No que tange ao fendmeno de crioulizagio, uma dimen- sio é importante na crioulizacio contemporanea: por um lado, o fato de que cla acontece de maneira fulminante, ¢ por outro, 0 fato de que a consciéncia se da conta de que ela esta ocorrendo. Os contatos culturais sempre acontece- ram, mas se estendiam ao longo de espagos temporais tao amplos, que a consciéncia nao tomava conhecimento. Ou seja, um cidadao galo-romano do século VIII — ainda havia galo-romanos nessa época ~ nao tinha consciéncia de que ele eta uma “mistuta” de Galia ¢ de Roma. Pensava ser para todo o sempre um cidadao romano.O resultado cul- tural nio emergira em sua consciéncia por set algo que ja estava subentendido. O que ha de fantastico na crioulizacao moderna é que, de maneira fulminante, cla penetra nas cons- ciéncias. Quando vejo na televisiéo um tremor de terra em algum pais, de maneira fulminante nao apenas tomo cons- 32 ciencia desse tremor de terra, mas sou quase que impreg- nado pela lingua daqueles que foram atingidos, pela sua ma- neira de viver, por tudo aquilo que foi perdido, etc. Pensa entio imediatamente no tremor de terta gue sobrevird em meu pais. Sou impregnado por tudo isso e € por isso que digo freqiientemente que o escritor contemporineo, © es- ctitor moderne, nao ¢ monoglota, mesino se conhece ape- nas uma lingua, porque escreve em presenga de todas as linguas do mundo, Entio, retomando a sua pergunta, sera que esse processo — porque a ctioulizagio é um proccsso — chegaria a um estado, a uma fase final? Nao penso que isso possa acontecer porque ¢ a consciéncia que teativa o pro- cesso e 6a nao-ciéncia, o nao conhecimento, gue o estabili- zaria em uma identidade definida. Penso que chegamos a um momento da vida das humanidades em que o ser hu- mano comega a aceitar a idéia de que ele mesmo esta em perpétuo processo. Le nao é ser, mas sendo* c e como todo sendo, muda. Penso que esta é uma das Sans pet per- mutacgdes intelectuais, espirituais e mentais de nossa época que da medo a todos nés. Todos temos medo desta idéia: um dia vamos admitir que nig somos uma entidade abso- luta, mas sim um sendo muravel. Essa nogao de conscién- cia e de rapidez fulminante tem como consegiiéncia nao chegarmos a uma nova estasc, a wna nova fase, digamos, * dant & tradurida para o portugués como “eute", definido pela filosofia come “cada um dos maltiplos seres e ox seres htimanos. os tentes € concretos da realidade circundante: ‘os abjetos do pensamento e da vatureza, etc Atreranto, optames por twaduzi-lo por sendo termo que enfatiza a presenga do sema de “movimento” presente no participio presente dant (NT). . de fixagao. A menos que a essa totalidade terra enfim teali- zada se oponha um outro absoluto. Por exemplo, se so- brevierem extratertestres. Sera entio o absoluto que iré se opor 4 identidade terra. I! a partir desse momento esse processo em curso corre 0 risco, efetivamente, de fixar-se em uma nova identidade-terra-unica que, por sua vez, opor- se-4 ao outto absoluto, absolutamente estranho. Mas, fora isso, nio penso que a crioulizacdo possa cessar ¢ fixar-se. Q.—No meu entendintento, a lingua crioula é algo bastante “Io- cal” e, embora o proceso que o senhor descreve globalmente seja idén- tico, nao podemos extrapolar da situagao especifica crioulu para a situagao do mundo, E. G. — Nao estou inteitamente de acordo. Penso que nao é bem assim. Efetivamente, denominamos como lin- guas crioulas linguas que hoje sao linguas locais, mas con- forme ja disse, penso que toda lingua originalmente é uma lingua crioula. A questao é que os falantes das linguas, logo que tomavam consciéncia de sua lingua, queriam que esta nao fosse mais uma lingua crioula, mas sim uma lingua es- pecifica. O sonho de toda humanidade é que sua lingua Ihe tenha sido ditada por um deus, ou seja, que sua lingua seja a lingua da identidade exclusiva. Hi um ano atras, na cida- de de Estrasburgo, no leste da Franga, tive a oportunidade de conversar corn dois romancistas japoneses que me dis- seram o seguinte: “Ha um grande debate, uma grande po- lémica no Japao. Os fascistas afirmam que a lingua japone- sa € pura, ditada pelos deuses. E nos reivindicamos que a 34 lingua japonesa é uma lingua ctioula, que houve emprésti- mos (e eles se referem até mesmo 4 lingua basca, as linguas coreanas, as linguas da Indonésia, ...).” Existe portanto um embatc. Um dos escritores desse mesmo grupo, que fale- ceu ha dois anos, escreveu um livro ainda nao traduzido para o francés, que se intitula Crronsismos. Isso significa que o fendmeno que estou deserevendo nao tem nada de local, trata-se de uma discussao cuja amplitude é muito maior. E se utilizo o termo crioulizagao, nao é por referéncia 4 Martinica, ou as Antilhas, ou ao Caribe, etc. E porque nada transmite melhor a imagem daquilo que esta acontecendo no mundo do que essa realizacio imprevisivel a partir de elementos heterogéncos. Trata-se portanto de uma ques- tao que no momento atual interroga o mundo inteiro, por- que esta éa situacao atual do mundo. Quando uso o termo “crioulizagao” nao se trata de mancira alguma de uma re- feréncia a lingua crioula, mas sim ao fendmeno que estruturou as linguas crioulas, o que nao é a mesma coisa. Q. — O senhor vé nesse processo de crioulizagao a constituigao de um “perigo”, na medida ent que a crioulizagao poderia levar a uma certa relativizagao da terra natal? E.G. —A relacao é intensa entre a necessidade ¢ a teali- dade incontornaveis da crioulizaciio e a necessidade e a re- alidade incontornaveis do lugar, isto ¢, do lugar de onde se emite a fala humana. Nao emitimos palavras ao vento, sol- tas no ar. O lugar de onde emitimos a fala, de onde emiti- 35 mos 0 texto, de onde emitimos a voz, de onde emitimos o grito, esse lugar é imenso. Mas podemos fechar esse lugar, e nos enclausurarmos dentro dele. Podemos constitui area de onde cmitimos o grito em testitério, isto é, fecha-la com muros, muralhas espirituais, idcoldgicas, etc. F entio, cla cessa de ser “area”. Hoje, o importante ¢ pre te, sabermos discutit wma, ica da Relagao que nos pos- sibilite abrir o lugar, sem desfazé-lo, sem dilui-lo. Sera que temos condigdes de fazé- Jo? Sera que isso é realizavel pelo homem, pelo géncro humano, pelo ser humano? Ou sera que | devemos considerar de uma vez por todas que, para’ preservar o lugar, precisamos preservar aquilo que é cx- clusivo do lu: lugar? Nunca neguei que se trata de uma ques- tio dificil. Mas insisto que se nao formulatmos essa pet- gunta, perpetuaremos os enclausuramentos cegos, ¢ estes geram tertitérios do tipo Bésnia, Croacia, Sérvia, etc. Ne- nhuma solug4o, nem politica, nem econdmica, nem militar, ser “Soziale gica, resolverd tais “problemas enquanto | a espiritudlidade, ar a mentalidade, a int lectualidade_ do_ser humano nao tiverem dado uma ma verdadeira guinada, e nao avétém trabalhado a questo fundamental. E + perpetua- “"yeMOSAS guerras in impossivei cres generalizados. Nio nego que se trata de um problema, mas insisto que é esse problema que precisa ser abordado. a isamen- as mortes Tauteis ¢ é€ Os Massa- Q.-Osenhor pode nos precisar o que entende por “Re- lagio”, por uma poética da “Relagao”? 36 E.G. — Nas culturas ocidentais diz-se que 0 absoluto é 0 absoluto do ser ¢ que o ser nio pode ser sem conceber-se como absoluto. Entretanto, j4 nos pré-socraticc s, prevale- cia o pensamento.de.que.a ser co, ou © set nao é éam absoluto acre te Gao com 0 sata lant Son ° indo, 5 ndo, relacio com ¢ com o cosmos. A. tendéncia ho e.g voltar- mos a esse pensar mento pré pré-socratico. Der maneira muito” tats leiga, quando certos ccologistas lutam em defesa de seu ideal, o que dizem eles? Dizem: “Se voce mata 0 fio, se, mata a arvore, sc mata.o.céu, se mata a terra, vocé mata homem.” Ou seja, estabcle numa \ rede de 2 relagdcs oset liumano é o seu meio-ambiente. O que eu digo é que anogad de SC ae absotOdoserestd associada a nogio de identidade “ raiz Gnica” c 4 exclusividade da identidade, eque ‘se concebermos uma identidade rizomna, isto é, raiz, mas que va ao encontro das outras raizes, entao o que se torna importante, nao é tanto um pretenso absoluto de cada raiz, mas 0 modo, a mancira como ela entra cm contato, ‘com outras raizes: a Relagio. Uma pasta da Relagio n me P rece mais evidente ¢ mais “enraizante”’ ¢ que uma 1a politica do ser. Q. — Como a Martinica vivencion a crioulizagao? E.G. — A crioulizagdo nao se confunde em nada com uma politica da “mistura do sangue”: esse seria um ponto de vista bastante literal e de perspectiva limitada. Na Martinica vivenciamos a criouliza¢cao sob dois aspectos: 0 37 aspecto negativo da escravidio e da sujci¢io, e, nos dias atuais, sob um outro aspecto negativo, que ¢ a assimilacao 4 cultura francesa. Ha um csforgo muito forte de assimila- cao da cultura francesa na Martinica e cm Guadalupe. En- tretanto, a crioulizagado, quando praticada de forma negati- va, continua a avangar mesmo assim. F. “dentro” do pro- cesso de crioulizagio, surgiram diversos meios de escapar a negatividade. E por isso que os antilhanos que vivenciam a crioulizagdo, como podemos observar, estio sempre voltados para © estrangeiro: Marcus Garvey se volta para os negros dos Estados Unidos; Fanon para a Argélia; os textos de Aimé Césaire se voltam para a Africa Negra.; 0 conselheiro de Nkrumah na Africa, Padmore, era origina- tio de Trindade, etc. Ha sempre nesse processo uma espé- cie de dilatagio. Como se, niv podendo talvez resolver os problemas no Caribe, os caribenhos fossem levados a aju- dar os outros, em um “alhures” que corresponderia sem- pre ao “aqui”. Bolado positivo: uma maneira dolorosa de viver a crioulizacio, mas uma maneira real, que prefigura as solidariedades futuras. ~ Por terem se desenvolvido em um tempo em que a re- gta da identidade cra a raiz unica, as sociedades crioulas do Caribe, e mais especificamente as das Antilhas francéfonas (onde os processos de assimilagio eram implementados de maneira visivel e desoladora), puderam scr vistas como sendo uma variante da superficialidade, uma suspensio do ser, sem intensidade. Foi essa a impressio de dois artistas errantes em busca de uma esséncia, de uma 38 verdade primordial, que aportaram na Martinica no inicio do século XX: Lafcadio Hearn e Paul Gauguin. O extremo goz0 €0 extrcmo sofrimento das mutagdes quase alquimicas que eles viveram - Hearn transformando-se em japonés ¢ Gauguin em oceanico, embora conscientes de apenas bor- dejar os limites de uma alteridade que desejariam assumir (adaptar, adotar) — foram o proprio sinal de que eles nao teriam podido viver nem accitar o gozo e o sofrimento da crioulizagao, que talvez lhes tenha parccido gerar a afeta- cio, a deterioracio, a perda de esséncia. E por isso que Hearn e Gauguin partiram em busca de lugares mais den- sos, de tradigdes milenares, de uma origem, de uma per- manéncia. Isso é também o que fazem os rastas, que encon- tram forga na mistica rastafari da [:tidpia sem, entretanto, afastar-se do cntorno caribenho. Assim como os mais ge- nerosos ou os mais hicidos dos antilhanos buscaram em seu tempo, Frantz Fanon o absoluto da revolta do Tercei- ro Mundo, Aimé Césaire a essencialidade da negritude. Ainda nao havia chegado o tempo de se avaliar, no aqui ¢ agora, “aquilo que ao permutar com 0 outro, se transfor- ” ma. 39 Linguas e linguagens on a Gostaria de propor-lhes esta meditagao sgb dois auspicios. Primeiramente, afirmar que podemos rfpetit as coisas. Penso que a repeticio constitui uma das ff mas do conhecimento no nosso mundo; é repetindo qyle comega- mos a ver os indiciog de uma novic que ‘comega 2 aapa- secet. A segunda considcracio tem a ver com o lugar co- mum. Para mim, os lugares comuns nao sag idéias precon- s sim, literal sim, literalmente ate, lugares onde um n pensamet Y indo cn cncontra um pensamento o do ‘mundo, Ocor- screver, cnunciar ou meditar uma idéia que reen- contramos, em um jornal italiano ou brasileiro, sob uma outra forma, produzida em um contexto diferente por al- guém com quem nao temos nada a ver. Sao lugares co- muns. Isto é, lugares onde um pensamento do mundo con- firma um pensamento do mundo. . Oo objeto maior de toda ¢. -qpalquer. literatura que se pos- sa propor é 9 que chamo de “caos-mundo”, vamos vér ‘Sta verdade se atticula p paca mim. Podemos consi- derat como certeza que mesmo quando a literatura explo- te-nos es ecle rava os reconditos mais secretamente preservados do ser humano e disso se servia, negligenciando conseqiientemente essa rclagio do mundo de que falo, a literatura sempre de- fendeu — 0 que me parece evidente - uma concepgao ¢ do mundo. Sob o poema aparentemente mais claro, pulsa em surdina uma visio do mundo. O pocta sempre reivindicou para 0 seu conhecimento essa relagio com a “totalidada- mundo” que autoriza, ela, c apenas cla, as suas mais inc centes inflex6es. Mas é apenas nos dias de hoje, gragas i totalidade-mundo concreta e geograficamente tcalizada, que essa visio de mundo, que antes na literatura era “proféti- ca”, pode manifestar-se ou excrcer-se, tomando como objeto verdadeiramente aquilo que antes era apenas a sua pretensao. Quando digo isso, nao tenho a intencao de pro- jetar a literatura cm uma espécie de generalizagao abstrata. Praticar uma poética da totalidade-mundo, ¢ uni de ma- neira femissivel c © lugar, de: onde uma poetica ou uma hte: fatura é emitida, AM totalidade- mundo, ¢ inversamente. Ou seja, a literatuta no é ptoduzida em suspensio, nao se tra- ta de algo em suspensao no at. Ela aps ém de um lugar, ha ane oe de -emissao da obra literdria. Mas, va ncia me permitira abordar melhor essa nova dimensio da literatura. Penso no destino dos grandes livros que marcaram o inicio das comunidades humanas. E no inicio de todas essas comunidades esta presente, evi- : os! : 42, 4 dentemente, de mancirairresistivel,o grito postico. stou mé féferindo a comunidades que ja sc constituiram ha um ou varios milénios e que por comodidade chamarei de co- munidades a#dvicas. Penso que j4 evoquei esse tema em ou- tro momento, no qual mostrei a diferenga entre as comuni- dades atavicas bascadas na idéia de Génese, isto é, de uma criagio do mundo, e na idéia de uma filiagao, ou seja, de um elo continuo do presente da comunidade com essa Génese (considero como comunidades atavicas as antigas comunidades da Asia, da Africa Negra, da Europa, bem como as culturas amerindias) e as culturas compdsitas nas- cidas da crioulizacgio, nas quais toda ¢ qualquer idéia de uma Génesc s6 pode ser ou ter sido importada, adotada ou imposta: a verdadeira Génese dos povos do Caribe da- se no ventre do navio negreiro e o no antro da Plantacio. E 0 grito poético esta presente no inicio da formacio de todas essas comunidades atavicas: o Antigo Testamen- to, a Iliada e a Odisstia, a Cancao de Rolando, os Nibelungen, o Kalevala finlandés, os livros sagtados da india, as Sagas islandesas, 0 Popol Vuh e 0 Chilam Balam dos amerindios. Hegel, no capitulo trés de sua Estética, caracteriza essa lite- ratura épica como uma literatura da consciéncia da comu- nidade, mas da consciéncia ainda ingénua, isto é, nao ainda politica, em um momento em que a comunidade nao esta certa de sua otdem, emum momento em que esta necessita sentit-se segura em relacio a essa ordem (scja no caso da Iiada, da Cangao de Rolando ou do Antigo Testamento). Ora, esse grito poético da consciéncia incipiente ¢ também o grito de uma consciéncia excludente. Isso signific ica que 0 43 €pico tradicional reaine tudo aquilo lo que constitul.a. comuni- dade exclui tudo aquilo que nao cla. E certo que i “ainda mais verdadeiro no que concerne outras criagdes do épico, que so, poderiamos dizer, mais impetiais, como a Eneida para o Impétio romano, a Divina Comédia para o mundo catdélico; ou em se tratando de criagdes mais sccretamente pungentes como Les Tragques de Agrippa d@Aubigné, por exemplo, para a consciéncia protestante. Essas comunidades que se iniciam modclam ¢ projetam um grito poctico cuja fungio ¢ reunir a morada, o lugar ¢ a Aatureza da
    poeta tradicional cra um sonho unitario ou universalizador, torna-se para nds um dificil mergulho no caos-mundo. No que concerne 4 nocio de caos, quando digo caos- mundo, vou repetir uma vez mais 0 que ja expliquei a pro- posito da crioulizagaio: existe caos-mundo porque existe imprevisivel. E A nogio de impréVisibilidade da relacio mundial que cria’e determina agio de caos-mundo. Desse nascimento dificil de uma outra espécie de participacio ‘comunitatia em uma cidade impossivel que se chamou de aldeia-terra (mas toda aldeia supde ainda um Centro hegeménico) temos uma consciéncia que nao é mais ingé- nua, como nos primeiros textos fundadores das comuni- dadces do mundo, porque essa questo ja foi pensada do ponto de vista politico; nico podemos portanto, aborda-la sem considera-la sob esse angulo. Nossa consciéncia no que tange a esse dificil nascimento nao é mais ingénua, mas sim angustiada. Por que essa angustia em face da rcalidade do caos-mundo? Por que nos damos conta de que aconscién- cia nao mais ingénua dessa totalidade nao pode mais set excludente, nao pode mais contar com essa seguranga que proporcionava, na I/iada ou no Antigo Testamento, a cer- teza da comunidade eleita estabelecendo-se em uma terra eleita, que assim se tornava seu territétio. Isso porque a consciéncia nao mais ingénua dessa comunidade nova ¢ total se aptesenta a seguinte pergunta: como ser si mesmo sem fechar-se ao outro; e como consentir na existéncia do ou- tro, na existéncia de todos os outros, sem renunciar a si mesmo? Essa € a questo que perturba o pocta é que este necessita debater quando esté em sintonia com swa comu- nidade, quando esta em sintonia com a comunidade que deve defender, porque trata-se, e isso € 0 que mais 46 freqiientcmente acontece, de uma communidade ameagada atualiente no mundo. Mas deve defendé-la nao mais basc- ado no sonho de uma totalidade-mundo ja universalmente alcangada (como no tempo cm que essa totalidade-mundo era ainda um sonho); deve defendé-la dentro da realidade de um caos-mundo que nao mais permite o universal gencralizante. Ha essa angustia da relagiio de si com 0 outro, ¢ ha um: outra questo, uma outra angtistia: sera que nao percebe- mos que nfio conseguimos mais assegurar a unicidade for- mal da lingua escrita ¢ que todos temos que inventar for- mas multiplas cuja necessidade barroca nos assusta no abun- dante panorama atual de todas as linguas do mundo, ¢ no \xato momento em que estamos dando uma guinada, ou seja, estamos vivenciando a passagem da escrita 4 oralidade, e nao mais da oralidade a escrita? Assim, essas duas ques- tdes estio interligadas. A escrita, ditada por deus, esta as- sociada 4 transcendéncia, esta associada 4 imobilidade do corpo, esta associada a uma espécie de tradigio de encade- amento que chamatiamos de pensamento linear. A oralidade, o movimento do corpo se manifestam na repe- tigao, na redundancia, na preponderincia do ritmo, na re- movacio das assonancias ¢ tudo isso se da bem longe do pensamento da transcendéncia, ¢ da seguranga que o pen- samento da transcendéncia continha, bem como dos exa- geros sectarios que esse pensamento desencadeia como que naturalmente. Neste ponto de nossa reflexfio ou de nossa meditagio ou de nosso devaneio, nao podemos deixar de ver que, Ve per Fas 47 atualmente, a passagem da escrita a oralidade é uma ques- tdo importante, crucial, que nos intertoga sobre a questio da transcendéncia, sobre a questao do absolute, e sobre questio da Relagao ¢ do relativismo em oposi¢io ao abso- luto. Constatamos que a tecnologia leva 4 oralidade (dizem por toda parte que o livro desaparecera, etc). Rintretanto, constatamos também que culturas orais, civilizacdes orais ainda ontem amontoadas na face oculta do mundo des- pontam “na grande cena do mundo”. FE. no podemos dei- xat de ver, ao escrutar a escrita ¢ a oralidade em no: dias, que existem, na verdade, dois tipos de oralidade. Existe a oralidade difundida pela. midia, que. lidade da estandardizacio, ea a i alizacao. E fade de ‘bém uma outta forma de oralidade, fremente ¢ criativa, € que corresponde aqucla dessas culturas que surgem atual- mente na “grande cena do mundo” ¢ que, por outro lado, nao adotam, preferencialmente, 0 caminho de utilizagio do instrumento da escrita, mas que se utilizam também dos meios oferecidos pelo cinema, pela ctiacdo plastica, ctc. E nem por isso deixam de sf culturas orais ¢ de manifesta- Ges da oralidade. Penso, por exemplo, que a pintura cam- ponesa haitiana, que, erroneamente, chamam de pintura “naive”, éa pintura da lingua crioula ¢ que existe uma rela- cao entre a oralidade crioula do Haiti c essa pintura haitiana. A questio sobre a escrita ¢ a ofalidade gera, nos dias de hoje, uma situagao de angustia vivificante para 0 poeta, o escritor. Estes necessitam enfrentar duas problematicas que estao interligadas: a primeira é a expressio de sua comuni- dade dentro de uma relagio com a totalidade-mundo, ea ro Nipé tl « segunda é a expressio de sua comunidade dentro de uma busca de absoluto ¢ de nao-absoluto, ou de escrita ¢ de oralidade, ao mesmo tempo. O poeta necesita realizar a sintesc de tudo isso, ¢ é 0 que considero como exaltante c complexo no panorama 5 atual das linguas ¢ das literaturas do mundo. Essa an, gts a criativa éo Spon do O Pessimis: mo ou do deses * qui samente-do.“ser”. Falo ¢ sobretudo eserevo na presenga de todas as lin- guas do mundo. Muitas linguas morrem hoje no mundo — por exemplo, na Africa Negra desaparecem linguas devi- do ao fato de que aqueles que as utilizam sio absorvidos por uma comunidade nacional mais ampla, ou porque a lingua em questo nao é mais uma lingua de produgao dos camponeses, ou simplesmente, porque se tornou impro- dutiva, ¢ entio esta corroida; ou ainda, pura e simplesmen- te, porque aqueles que a utilizam desaparecem fisicamente do pais onde viviam — mas sabemos que escrevemos na presenga de todas as linguas do mundo, mesmo se nao co- nhecemos nenhuma delas. Por exemplo, sou pessoalmente itnpregnado, pocticamente impregnado dessa necessidade, quando, na verdadc, tenho uma terrivel dificuldade de fa- lar uma outra lingua que nfo aquclas quc uso (0 crioulo ¢ 0 francés). Mas escrever na presenga de todas as linguas do, mundo nao significa conhecer todas as linguas do mundo. Significa que no contexto atual das literaturas ¢ da relagio da poética com o caos-mundo, nao posso mais esctever de maneira monolingie. O que quero dizer é que deporto e desarrumo minha lingua, nao elaborando sinteses, mas sim 49 através de aberturas lingitisticas que me permitem conce- ber as relagdes das linguas entre si cm nossos dias, na su- perficie da terra — rclagGes de dominagio, de convivéncia, de absorcio, de opressao, de crosio, de tangéncia, etc. - , como em um imenso drama, em uma imensa tragédia de que minha pr6pria lingua nao pode ficar isenta e salva. F., por conseguinte, nio posse escrever minha lingua de ma- neira monolingtie; escrevo-a na presenga dessa tragédia, na presenga desse drama. Nao salvaremos uma lingua do mundo deixando morter as demais. Ou seja, na atual rela- Ao dramatica entre as linguas, da mesma forma como nao escrevo mais de maneita monolingie, nao posso mais de- fender minha lingua de maneira monolingiic. E preciso que cu_a defenda tendo consciéncia de que ela nio é a tnica ameacada no mundo (¢ isso, mesmo que a lingua crioula seja aquela que mais me interessa — sc desejarem podere- mos reservar para o momenio da discussio a pergunta que vao me fazer: pot que o senhor nao escteve em crioulo, se essa é a sua lingua materna?) Abre-se uma nova perspectiva para o antilhano que sou, pertencente a um pais onde existe uma lingua dominante, a lingua francesa, e uma lingua dominada, a lingua crioula; ¢ ue dentro da tragédia mundial das linguas, nas Antilhas, a a francesa ¢ a lingua crigula sao, afinal, solidarias. Uma ame a outra, mas foi necessario nos esforcarmos para considerar que essa dominagio, que é real, é uma demina- gao que esta, em segundo, ou mesmo ¢m terceiro plano dentro da tragédia mundial das linguas. Chegamos aum momento da historia em que constatamos que o imagina- 50 tio do homem necessita de todas as linguas do mundo, e que em conseqiiéncia disso, no lagar incontornavel de onde se dia emissao da obra literaria, nas Antilhas, o imagindrio do homem antilhano precisa da lingua crioula ¢ da lingua francesa. Isso explica, alias, porque nunca pude aceitar essa espécie de vaga adesio representada pela francofonia. Essa dimensao incontornavel deve estar inscrita na pratica e na aptendizagem de toda lingua. Gostaria de repetir que o multilingiiismo nfo sup6e a coexisténcia das linguas nem o ¢onhecimento de varias linguas, mas a presenga das linguas do mundo na pratica de sua propria lingua; ¢ isso que cha- mo de multilingitismo. Daia necessidade de se fazer uma distingao entre a lin- gua que usamos e a linguagem, isto é, a telagao que cons- truimos com as palavras, em maiéria de lite: dé po- esia. Vou resumir dizendo que a defesa da lingua é irreme- didvel porque é através dessa defesa que conseguimos nos opor a estandardizagao, estandardizagio que poderia, por exemplo, scr proveniente de uma universalizagio do anglo- americano bisico. Repito que, se por acaso essa estandardizagio se se estabelecesse no mundo, nao scriam apenas a lingua francesa ou a lingua italiana ou a lingua cri- oula que cstariam ameagadas, mas sim, primciramente, a lingua inglesa, porque esta deixaria de ser uma lingua.com suas obscuridades, suas_fraquezas, se pulsos, seus vigores, seus recuos e€ suas ade ria de ser a lingua do camponés, a lingua do oscritos, a lin gua do homem do porto, etc. Tudo isso desapareceria, a lingua deixaria de ser viva € se tornatia uma cspécie de cd- digo internacional, um esperanco. Se a lingua inglesa fosse a minha lingua, cu cstaria preocupado em relac universalizacio e a estandardizacio do anglo-americano. A defesa da lingua é incontornavel ¢ é através dessa de- fesa que nos opomos a estandardizacio. Fé também atra- vés dessa defesa que nos opomos 4 diluigao, porque, reto- mando aquilo sobre o que ja insisti, a poética da Relagio ‘no é uma poética do magma, do indifércricind6, doncu- tro. Para que haja relacio é preciso que : haja duas.ou yu varias identidades ou entidades donas de si ¢ que aceitem trans- formar-se a0 permutar com o outro. Segunda consideka- Gao: a defesa de uma lingua especifica, vamos repetir, pas- sa pela defesa de todas as linguas do mundo. Mas a cons- trugio de uma linguagem na lingua que usamos permite- nos abrir nosso olhar para o caos-mundo, pois i solestabe- lece relagdes entre linguas possiveis do mundé. Cc onsidere- mos o caso antilhano. No caso antilhano, uma linguagem é a manifestagao de nossa relagao com a lingua, de nossa ati- tude em relagdo ao mundo, atitude de confianga ou de 1 serva, de profusao ou de siléncio, de abertura para o mun- do ou de fechamento, de adapragio das técnicas da oralidade ou de compressao em | torn das exigéncias secu- lares da escrita, ou ainda de uma atitude de simbiose em rclagio a tudo isso. Dessa maneira, surgiu no Caribe uma \linguagem que tece uma tama através das linguas inglesa, francesa, espanhola, crioula do universo do Caribe e talvez. também da América do Sul. Alejo Carpentier me dizia em uma conversa que tivemmos pouco tempo antes de sua mor- a 52 te: “Nés, caribenhos, escrcvemos em quatro ou cinco lin guas diférentcs mas temos a mesma linguagem.” A arte do contador de istérias crioulo é feita de détivas ¢ ao mesmo) tempo de acumulasécs, com a presenca desse lado barro- co da frase ¢-do- -periade, essas distorsdes do discurso onde oO que é inserido funciona como uma respiragao natural, essa citcularidade da natrativa c essa incansavel repeticio do tema.Tudo isso converge para uma linguagem que cor- re através das linguas do Caribe: inglesa, crioula, espanho- la ou francesa, € esta presente tanto em Carpentier, quanto em Walcott ou em escritorcs francdéfonos da Martinica, de Guadalupe ou do Haiti. I: o maravilhoso é que essa explo- ragdo de uma linguagem através das diversas linguas utili- zadas, ¢ para além delas, nao perverte em nada nenhuma dessas linguas ¢ acrescenta a cada uma delas, convocando- as todas cm um ponto focal, um lugar de mistério ou de magia onde, se encontrando, elas enfim se “compreendem”. No passado, no tempo desses livros fundadores dos quais falava e de todas as literaturas que deles provicram, o pensamento — 0 que chamo de pensamento de sistema — organizou, estudou, projetou essas repercussdes lentas ¢ insensiveis entre as linguas — previu e colocou dentro de uma perspectiva ideolégica 0 movimento do mundo que ele regia legitimamente. Em nossos dias, esse pensamento de sistema que me sinto a yontade para chamar de “pensa- mento continental”, mostrou-se incapaz de dar conta do nao-sisterna generalizado das culturas do mundo, Uma outra forma de pensamento, mais intuitivo, mais fragil, ameagado, mas sintonizado com 0 caos-mundo ¢ seus im- 53 previstos, se desenvolve hoje, apoiando-se talvez nas con- quistas das ciéncias humanas e sociais, mas em deriva rumo a uma visio do poético e do imaginario do mundo. Cha- mo esse pensamento de pensamento “arquipélago”, ou seja, um pensamento nao sistematico, indutivo, que explora 0 imprevisto da totalidade-mundo, ¢ que sintoniza, harmo- niza a escrita A oralidade a oralidade tita. Hoje, me dou conta de que 0s continentes “se tornam arquipélagos”, pelo menos do ponto de vista de um olhar externo. As Américas “sc tornam arquip¢lagos” 2 Sc constituem em re- gides para além das frontciras nacionais. 3 penso que se trata de um terimo que precisamos restabelecer dentro de sua dignidade, otermo regia. AF suropa se torna um a arqui- pélago. As rcgides lingtiisticas, as regides culvurais, para além das barreiras das nagGes, sao ilhas, mas ilhas abertas, e essa éa principal condigio para a sua sobrevivéncia. O pensa- mento de sistema, o pensamento continental, o antigo pen- samento ideoldgico baseado na previsio do mundo avali- ava as linguas que nfo fossein linguas francas — que doravante chamaremos de linguas regionais, sc atribuirmos um sentido novo, exaustivo, ao termo regido — como lin- guas do enclausuramento, linguas voltadas para 0 scu pr6- prio umbigo, linguas da folclorizagao ¢ do particularismo, ineficiente. Isso, imediatamente, nos imp6e deveres ¢ a con- clusio a que chegamos é a seguinte: seria necessdrio que todas elas se entendessem através do espago, nos trés senti- dos do termo entendes; ou scja, que sc ouvissem, que se compreendessem e se harmonizassem. Ouvir o Outre, Os outtos é ampli ra dimensao espiritual de st de sua propria gua, ou s¢ja, coloca-la em relagao, Comprcender 0 outro, os outros, é aceitar que a vetdade de outro lugar se justa- ponha a verdade daqui. E harmonizar-sc ao outro, é acei- tar acrescentat as estratégias particulares desenvolvidas em favor de cada lingua regional ou nacional, estratégias de conjunto que seriam discutidas em comum. Tenho a im- pressio de que no panorama atual do mundo, é a missio do poeta, do escritor e do intelectual refletit ¢ avancar pro- postas, considerando todas essas coordenadas, todas cssas telagdes, todos esses entrelagamentos que envolvem a ques- tao das linguas. Pata terminat, gostatia de fazer algumas breves consi- deragées sobre o que considero como uma das artes fatu- ras das mais importantes: a arte da tradugio. Doravante, o que toda tradugao sugere em seu principio mesmo, através da prépria passagem que cla realizaria de uma lingua para a outra, ¢a soberania de todas as linguas do mundo. E, por essa Lazio, a tradugio é 0 indicio ¢ a evidéncia de que te- mos que conceber em nosso imaginario essa totalidade das linguas. Da mesma forma que o escrito realiza cssa totali- dade, doravante, através da pratica de sua lingua de expres- so, o traduror manifesta essa totalidade através da passa- gem de wa lingua para uma outta, sendo confrontado com a unicidade de cada uma dessas linguas. Assim como no nosso caos-mundo nio salvaremos nenhuma lingua do mundo deixando morrer as outras linguas, da mesma for- ma o tradutor sé saberia estabelccer relagdo entre dois sis- temas de unicidade, entre duas linguas, na presenga de to- das as outras linguas, pois essas sio fortes cm scu imagina- 55 tio, e isso setia verdade mesmo que o tradutor nio conhe- cesse nenhuma outra lingua além das que traduz. O que isso significa, senio que o tradutor inventa uma linguagem necessaria de uma lingua para a outra, assim como 0 pocta inventa uma linguagem em sua propria lingua? Uma lingua necessaria de uma lingua para a outta, uma linguagem co- mum as duas linguas, mas, de uma certa forma, imprevisivel em relagaéo tanto a uma como 4 outra. A linguagem do tra- dutor age como a crioulizagio e como a Relagio no mun- do, ou scja, essa linguagem produz imprevisivel. Arte do imaginario, nesse sentido, a tradugio ¢ uma verdadcira operagio de crioulizacio, doravante uma pritica nova ¢ inevitavel da preciosa mestigagem cultural. Arte do cruza- mento das mestigagens que aspiram 4 totalidadc-mundo, arte da vettigern c da salutar errancia, a tradugao inscreve- se, dessa maneira, ¢ cada vez mais, na multiplicidade de nosso mundo. EL, por conseguinte, a tradugio encontra-se entre as espécies mais importantes desse novo pensamento arquipélago. Arte da fuga de uma lingua a outta, sem quc, © entanto, a primeira e-e-SCiN que a segunda Te. WHICIe a apresentar-se. “Mas arte da fuga também, porque cada traducao, em nossos dias, acompanha a rede de todas as tradugées possiveis de toda lingua em toda e qualquer lingua. Se é verdade que com toda lingua que desaparece, desa- patece uma parte do imagindrio humano, a traducio de toda e qualquer lingua enriquece esse imaginario de manci- ra errante e fixa ao mesmo tempo. A tradugao ¢ fuga, o que significa, de uma forma belissima, rentincia. O que talvez seja mais necessfrio adivinhar no ato de traduzir, é a beleza 56 dessa remincia. E bem verdade que 0 pocma, traduzido em uma outra lingua, perde algo de seu ritmo, de suas assonancias, do acaso quc, ao mesmo tempo, constitui o acidente e a permanéncia da escrita. Mas talvez seja neces- sario consentir nessa renuncia. Porque eu diria que essa re- nuncia constitui, na totalidade-mundo, a parte de si mesmo gue se abandona, em toda ¢ qualquer poética, ao outro. |iu diria que essa renuncia, quando é sustentada por razdes ¢ inveng6es suficientes, quando levaa essa linguagem de co- munhao sobre a qual j4 falei, essa rentincia corresponde a maneira de pensar que apenas roga, toca de leve, ou seja, ela corresponde av pensamento arquipélago gragas ao qual recompomos as paisagens do mundo. Pensamento que, contra todos os pensamentos de sistema, nos ensina 0 in- certo, o ameagado, mas também a intuicdo poética na qual avangamos, doravante. A tradugao, arte do saber tocar de leve c da aproximagao, é uma pratica do rastro/ residuo. Contra a absoluta limitagio do ser, a arte da tradugao con- tribui para acumulat a extensio de todos os sendos e de todos os existentes do mundo. Rastrear nas linguas, signifi- ca rastrear dentro do imprevisivel de nossa — doravante - condigéo comum, PERGUNTAS Pierre Nepveu. — Gostaria de fazer-lhe uma pergunta sobre essa presenga das outras linguas. O senbor afirma o seguinte: “Escrevo na presenga de todas as linguas do mundo, mesmo se nao as conhego.” Como o senhor define essa presenta, de que presenga se trata, como esta se manifesta, através de que modalidades? Edouard Glissant. — Fla nao se manifesta, evidentemen- te, de maneira lingtiistica. O que quero dizer é que nas tra- dig6es das literaturas do mundo, quer estas scjam orais ou escritas, a fungao do pocta sempre foi, por um lado, c mais ou menos visivelmente, a de afirmar a unicidade excludente da comunidade ou daquilo que pode scr considerado como a comunidade, em contraposi¢gao a qualquer outra comu- nidade possivel. Por outro lado, parece-me bastante claro que quasc todas as literatutas do mundo se basearam na idéia de que a lingua da comunidade é uma lingua eleita. No Ocidente, e particularmente na Europa, a percepcao que se tem da fungao literaria, inconscientemente, é a de que se trata de uma funcao ditada por algum deus. Chama- 'sc a isso inspiracao, da-se a isso 6 HOme que e€ quer dar, mas esta subentendido que a fala, a lingua, foi ditada por um deus, o deus da comunidade, que a lingua é € transcen- dente ¢ que a escrita dessa lingua é uma transcend ncia. Em nome dessa transcendéncia, todas as literaturas orais ‘foram desprezadas, dominadas, oprimidas| e jogadas na ombra, e concebeu-se que toda cultura oral é uma cultura feriorizada em relacio 4 as culturas da escrita. indictio di cidade edo divino- Nessé'contexto, o escri- tor, até 0 século RIX, escreve de maneira monolingiifstica. Imaginem que Voltaire considerava que Shakespeare era “selvagem’”, imaginem que pessoas tio inteligentes quanto os escritores ingleses da mesma época, diziam que Racine eta urna mulherzinha, porque eta impossivel conceber-se We fl NX Vide oe Shakespeare dentro da poética da lingua francesa ¢ porque era impossivel, para um inglés, conccber Racine: os escti- tores magavam scu caminho monolinguistico. Nos dias atu- ‘ais, os problemas deslocaram-se. O problema é o enraizamento das comunidades, porque estas, dissemina- das pclo mundo, foram dominadas através do ato da colo- nizagao; mas trata-se também do problema da Relagao. Percebemos isso em todos os campos: politico, econdémi- co, etc. Quando uma borboleta bate as.asas na Bolsa de Téquio, acontecem catastrofes “ecolégicas” na Bolsa de, Londres ou de Paris. Vermos muito Bem que as s relacée existem, mas nao percebemos a Relagao, no que concern Aexpressio cultural das comunidades. Entretanto a Rela- Gao esta ai, ela existe. Quer eu queira, quer nio; aceite ou n&o — ha pessoas que aceitam e pessoas que nio aceitam -, sou determinado por um certo numero de relagdes que ocortem no mundo. Toda vez que estive na California, tive medo dos terremotos. Ora, hd terremoios em meu pais e quando estou em mcu pais nao sinto medo. Mas quando estou na Califérnia tenho medo dos terremotos, porque vi terremotos na Califérnia mostrados na televisio, mas nun- ca vi terremotos em /ex pais na televisio. E nao tenho medo dos terremotos em meu pais. Quando estou na Martinica, nao penso wunca nos terremotos. F quando acontece 0 ter- remoto, nao entro em panico: tento ficar ao ar livre, tento nao ficat debaixo de uma viga; sei mais ou menos o que é preciso fazer. Da mesma forma que sabemos lutar, uma noite inteira se preciso for, contra um ciclone, e sabemos 0 que é necessario fazer. Mas quando estou na California, em 59 um hotel, ¢ que sinto o esttondo do terremoto, entro cm panico, porque existe esse problema da rclagao na sensibi- lidade, da relagio na cultura. Nao se trata mais da relagio politica, econémica ou militar, mas ha essa coisa que acon- tece, que me impregna, quer cu queira, quer nao, Ss & escrever um texto na Calif6rnia, sem davida alguma ele sera difcrente de um texto que cu venha a escrever na Martinica. O primeiro ficara sempre ameagado pela eventualidade de um terremoto, Ele tera uma outra conotagio; nao escrevo mais de maneira monolinguistica. E:screvo com esse nd de telagécs, tepito que nao se trata de uma questao de co- nhecimento das linguas nem de pratica das linguas. A liny gua que mais gosto de falar é a lingua italiana, porque quan- do falo italiano, o fato de cometer erros naio me deixa cons- ternado. Comcter erros em italiano, me ¢ completamente indiferente; falar italiano para mim é um ptazer imenso, ¢ cometet erros ou nao, deixa-me indiferente. Mas quando falo em inglés, digo a mim mesmo Oh! Ohi, talvez eu tenha feito um erro aqui. Ha algo que de repente me inibe. Esse é ° "problema da Relagao (acrescida talvez da carga de pre- vengées que trago em mim), que nfo tem nadaa ver com o fato de falar ou nao uma lingua, de conhecer ou nao, de ser obrigado ou nao a falar uma lingua, mas que corresponde 4 situagio atual do mundo, a situagao atual da relagao cul- tural e a relacao de sensibilidade, de estética (c de linguas) no mundo atual. E € por isso que eu digo que escrevo na presenga de todas as linguas do mundo. Uma vez, em Estrasburgo, durante uma das sessdes do Parlamento In- 7 ST 60 ternacional dos esctitores, fizemos uma leitura de poesia que foi belissima ¢ nessa leitura, li na tradugio francesa tex- tos de Beidao, que é um poeta chinés, c este leu seu texto em chinés; ¢ Adonis leu uma tradugdo cm arabe que cle havia feito de um de meus textos, e li meus textos das obras poéticas Indes ou Se/ noir, nio me lembro mais quais das duas, em francés. I) Adonis leu seus textos em atabe, ¢ uma outra pessoa leu a traducio pata o francés desses textos. Estavam também presentes um pocta de lingua francesa, Andké Velter, c um poeta de lingua hebraica, Narhan Zach, que trocaram scus textos e suas tradugdes com os outros. Estivamos dentro de uma igreja e era incrivel. Havia uma espécie de siléncio e de aura ¢ todos sintonizavam com to- dos. E claro que precisamos da tradugio para conseguir isso. Mas ouviamos as palavras e compreendiamos sem compreender. Ali, naquele momento, cresceu algo de novo na cena do mundo, algo que precisamos considerar quan- do refletimos sobre a poética atual. Q.—O senhor falou de crioulizagao e falou também de barroco. Nai sei se essas duas nogbes sao co-extensiveis para o senhor, ou se 0 senhor estabelece uma demarcagao. Penso que existe uma especificidade da crioulizagao que viria, em primeiro lugar, da natureza das culty ras queseencontran, se entrelacam; em segundo lugar, que viria tam- bande contexto ) fisico, e, en terceiro lugar, da forca que realizon essa mestigagem. O que quero dizer é que na pottica antilbana, por exem- plo, existe o fato da violencia da colonizagao que fax com que essa pottica tenha a sua especificidade. Ha violéncia por toda parte, qual- quer que seja a forma do encontro, mas penso que a violencia que Ct bhasw FO- 61 realizon a mesicagem nas Antilbas dé a poética antilhana um caré- ter especifieo. Sera que estou equivocado? ~ E.G.— As duas afirmativas sio verdadeiras. A relacio que 0 senhor estabelece € que talvez nfo o seja. A ctioulizacao é sempre uma manifestagao do barroco por- sc opdc, digamos, ao classico. Eo ita qualquer literatura, qualqticr cul- tura? Eo momento em que essa cultura, cm que essa litera- tura propde seus valores particulares como valores ur univer- sais. O barroco € 0 anticlassicismo, ou seja, o pensamiéfito barroco diz que ni nao existem valores universa que toda ce miénte, nao ea possibilidade de que qualquer ‘valor particular ossa legitimamente se considerar Gu se apre- sentar e se import como valor universal. Esse pode imp sé Como valor universal pela forga; mas nao pode impor- se como valor universal Latravés-dalegitimidade. Tisso que o pénsamento barroco diz e, nesse sentido, todo processo de crioulizagao é uma forma de barroco em pleno proces- so de elaborac’o, etii ato: Alids, o barroco, que é primeira- mente uma reagao 4 Contra-Reforma na Europa, naturali- zou-se no mundo. Quando. 2. barroco atravessou os ocea- nos e chegou a Ameri fam-se Se ne gids, Jesus | 1 rOmipeu o processo de legitimidade. O barroco naturali- zou-se. A crioulizagao € sempre batroca. Mas a crioulizagao pode realizar-se a partir de Terma. violentas, ou nio. Nio a CAAA ane Yi Our sei se existe um privilégio da violéncia na crioulizagio. Nio acredito que haja. A crioulizagao compreende a violéncia no sentido total da palavra compreender, ou seja, ela inte gra.a violéncia. O fato de que tenha havido violéncia no istema de plantagées nao significa que nio houve crioulizagao. Ao conrratio. F nesse ponto concordo com © que disse. Agora, sera que isso traz um privilégio? E ver- dade que isso determina uma caractetistica, mas nao acte- dito que essa caracteristica seja um privilégio. Ou seja, pode haver ctioulizagdcs scm violéncia, parece-me que pode ha- ver crioulizagdes sem violéncia. Entretanto, cstou procu- tando exemplos ¢ nao encontro! Q.— Gostaria de que o senhor nos falasse um pouco mais sabre a sua escotha da lingua francesa em relagao a lingua crioula. E gostaria de saber se suas obras foram tradugidas em lingua crioula. E. G.-Certos poemas sim, foram traduzidos por poc- tas crioulos. Vou responder-lhe servindo-me de algo que se passou comigo. Depois, talvez faga algumas considera- g6es. As vezes acontece que poctas criouléfonos, por exem- plo em Guadalupe, me dizem 0 seguinte: se vocé nao tives- se, iuotamente com ot S poctas,. desarrumado, pertur- nao tivéssemos ousado escrever em ctioulo j porque ficaria- mos perplexos diante da idéia de “destespeitar”, como se diz nas Antilhas, essa lingua francesa. Ou seja, a “ctioulizacao” da lingua francesa caminha junto com a li- beragio da lingua crioula. ! ! 63 Penso que na Martinica ¢ em Guadalupe somos real- mente — talvez menos no Haiti, atualmente, — uma socieda- de bilingiic, ou seja, existe realmente uma presenga da lin- gua crioula que ¢ falada por 100% da populagao, ¢ existe realmente uma prescnga da lingua francesa que ¢ falada por 95% da populacio. F isso que faz com que a lingua crioula scja, ao mesmo tempo, tangente ao francés (ja abordamos essa questao em outta ocasiao: trata-se de um vocabulario que era falado por marinheiros da Bretanha ¢ da Normandia no século XVII, combinado com uma sintaxe que nio ti- nha nada a ver com esse vocabulatio; provayclmente uma sintese das sintaxcs da costa oeste da Africa Negra), ¢ cssa tangéncia do crioulo ao francés constitui a originalidade das culturas antilhanas francofonas: precisamos opacificar a lingua crioula em relagio ao francés ou desestruturar o francés cm relagao 4 lingua crioula para conseguirmos ter o dominio sobre as duas linguas, para conseguirmos esca- par ao que chamamos de “petit négre”, ou scja, um falar rudimentar. Precisamos, portanto, constituir muito bem a originalidade do ctioulo em relagao-ao francés € a origina- lidade do francés em relagao ao crioulo (a crioulizacio nio é, de modo algum, uma mistura indefinida). Foi isso que tentei empreender em meu trabalho literatio.Tenho a im- presso de que se trata de uma questio de geracao: talvez se cu tivesse vinte anos hoje comegaria escrevendo em cti- oulo. Mas uma parte do trabalho de literatura que realizei tinha a ver com o fato de praticar essa poética de “des — tangéncia” da lingua crioula e da lingua francesa. < veep brs QO. — O senhor falou sobre a concordancia entre a oralidade ¢ a escrita, ¢, dando continuidade ao que disse ainda hd pouco, pereunta- ria 0 seguinte: as obras de Confiant, de Chamoisean se inscrevem dentro dessa esfera de influéncia? Como, por exemplo, o romance ‘Texaco, de Chamoisean, etc. E.G. — Provavelmente, mas nao tenho certeza. Precisa- riamos de uma longa discussio. Leio E/uges, de Saint-John Perse, ¢ vejo como o texto é em parte “crioulizante”, mas a crioulizagio estd escondida no texto. O poeta pratica a ctioulizagéo mas a oculta. Diz, por exemplo, a propdésito de um espetaculo do mar: “Ces cayes, nos maisons”, (“Es- tas “cayes”, nossas casas”), etc. Uma “caye”, 6 um afloramento de rochédosa superficie do mar, oua espuma que se esbarronda contra esse afloramento de rochedos. Os pescadores vio até lé porque ha peixes nas rochas mais ou menos a um quilometro das praias...”Estas cayes, nos- sas casas...” Ninguém se da conta. Mas “caye” no ctioulo da Martinica significa “choupana”’, ou seja, “casa”. E nin- guém percebe que ele esta dizendo: “Estas choupanas, nos- sas casas...” € © texto continua. Isso significa que o autor propde uma crioulizagao e a camufla! ‘Trata-se de uma aposicio que o leitor, se quiscr; considera, mas que niio considera se assim o desejar; cle a vé, caso queira, ou nao a vé, se assim o desejar. E assim, ha dezenas de exemplos em Saint-John Perse. Existem as crioulizagdes evidentes: quan- do diz, por exemplo: “pour moi, j’ai retiré mes pieds” (“quanto a mim, retirei meus pés”) que ¢ a traducio literal da expresso crioula “man tiré pyé moin’”. A crioulizagio . : = f “1 . SN / : - 6y é evidente. Mas existe outras crioulizagdes, como quan- do © autor diz por exemplo: “Ces filles, la,...” (‘Essas mo- cas, l4...”) e que continua. “Tifitala” em lingua crioula, e o “la” da lingua francesa esta insetido como uma ctioulizacgio do texto, mas camuflada, ao passo que a crioulizagao em Chamoiscau.c em Confiant é proclamada. Ou seja, trata-se de uma operagao diferente; ela ¢ proclamada € passa por todo um sistema cvidente ¢ toda uma inten¢ao manifesta. Penso que eu preferiria a poética de Saint-Johon Perse, de camuflagem da crioulizagao, acssa pratica de proclamacio da crioulizagio do “texto”. Mas a abertura da crioulizacio é infinita; esses escritores dos quais o senhor falou sao fe- cundamente imprevisiveis, ¢ ainda nem comegamos, ver- dadeiramente, a apreciar os méritos de tais praticas. P.N. — O senhor diz que tudo é “Relagao” e que existe um desequilibrio lingiiistico crioulo-francés, francés-criou- lo etc., que € vivenciado de uma maneira dificil, e o senhor citou Shakespeare. Pergunto-me entao, em sua descric¢ao desta criagio lingiiistica que se da ao nivel das linguas, se nao poderiamos citar autores mais populares, , por exem- plo, os crladares. de “RP Nao temos ai um fendmeno muito préximo da crioulizagao, através da criacdo de so- brevivéncia, da antropofagia lingiiistica? Matamos a lingua mias.. eu te amo, ¢ eu te como. £ eu te compreendy, E.G. — Sim, com a diferenca de que na linguagem do rap, assit assim como na linguagem da dub poetry jamaicana, de hael Smith ou de Linton 1 Kwesi Johnson, eem algumas aparecem em microclimas 66 lingiisticos e culturais, como por exemplo em Miami, ha «eformagao voluntaria e agressiva de uma lingua no interi- or de uma lingua. Michael Smith ou Linton Kwesi Johnson dy Kamau Braith ite (0 pocta jamaicand) usin - Michael Smith me enviou poemas magnificos ~ essa lin- sua que é...como podemos chama-la? Eu dizia um pidgin, mas abandonci rapidamente esse termo, porque quando o propus uma vez em um coléquio na Jamaica, meus amigos jamaicanos protestaram veementemente. E disseram-me que nao, que nfo era possivel, que nao poderiamos chamar essa lingua de um pidgin. Com efeito, nao podemos cha- iar essa lingua de um pidgin. Mas trata-se de uma defor- macao agressiva, cultural, militante, voluntatia, no interior de uma lingua, bem como de um questionamento da unicidade normativa dessa lingua, que sio praticados por um gtupo de pessoas que conhecemos, e sabemos em que momento comegaram essa pratica e talvez saibamos em que momento vio termina-la. Ao passo que a crioulizacio, tepito, intervém quando ha duas ou varias areas lingtifsti- cas heterogéneas que sao colocadas em contato, com um resultado que é imprevisivel. Ninguém sabe quem pratica a crioulizagao, nao aquela praticada no “texto”, mas a ctioulizagao da lingua em geral, nao se sabe quando a] alin- gua crioula nasceu, nem através de quem, nem como. Sabe- se quando o rap nasceu, ou a dub poetry, Cattavés de quem e como. Em outras palavras, no que concerne aos fenéme- nos de destrui¢ao (no bom sentido do tetmo) produzidos No rap ou na dub poetry ou nas outras formas de expres- sdo dessa natureza, pergunto-me se nao poderiamos, por 67 exemplo, estabelecer uma relacio com o joual* tal como cra falado agressivamente, culturalmente, politicamente no Quebec. Qualquer que sejaa interpretagio, no que concerne ao rap ou 4 dub poctry ou ao joual, trata-se da elaboragio do mesmo fendmeno de questionamento da unicidade da lingua. E é através desse fendmeno que tais praticas final- mente reencontram as duplicagées (as felizes duplicagées) das linguas crioulas. Gaston Miron. — Nao ¢ apenas 0 poeta que pode salvar uma 4ingua, Coneretamente, 0 que podemos fazer? Nestes siltimos tempos fina publicacdo Le Devoir que cerca de doze mitl linguas séo faladas no mundo, mas que dentro de un prago de trinta a cingtienta anos nao haveré mais que seis mil Kinguas; a metade dessas linguas vio desaparecer, isso é uma certeza. O que podemos fazer? Tratu-se de um empobrecimento do imaginario que é assustador! E. G. - Penso tratar-se de duas questées diferentes. Temos, por um lado, a questiio do que poderiamos cha- mar de combates cotidianos, ou-seja, quando .estamos em um dado lugar, é preciso que adaptem ana as conidigdes desse lugar. E se a vida cotidiana significa” ‘tatar por isso ou por aquilo, se a vida cotidiana de um habi- tante do Quebec se expressa através da luta pela preserva- Gao da lingua falada no Quebec, e se a vida cotidiana de um habitante da Martinica se expressa através da luta pela pre- servacio de uma lingua crioula, entio esse habitante pode * Joual : Palavra utilizada no Quebec para designar globalmente as diferengas (lonéticas, lexicais, sinvixicas, e anglicismos) do francés popular canadense. (Dicionario Petit Robert(N.T.). 68 langar mao de todas as formas de estratégia: culturais, po- liticas, militantes, etc. Mas também penso que esses com- hates cultutais ou politicos que todos ja travamos ¢ que continuamos a travar insercm-se dentro de um contexto mundial no qual se torna necessario, ao mesmo tempo em que travamos esse tipo de combate, verter o vapor poéti- co, contribuir para mudar a mentalidade das humanidades, abandonar coisas do tipo “se vocé nao é como cu, vocé ¢ meu inimigo; se vocé nao é como eu, eu estou Autorizado a combaté-lo”: parece-mme ser uma das fungdes do poeta, e nao apenas do poeta, mas do artista, Contribuir pa ra trans- formar esse estado de coisas. Nag mais se remeter apenas ao humanismo, a bondade, 4 tolerincia, que sdo Mo fugiti- YOS, mas entrar. aS mutagoes decisivas da pluralidade consentida como.tal. Isso vai evar muito tempo, mas den- tro da relagio mundial, nos dias de hoje, essa é uma das tarefas mais evidentes da literatura, da poesia, da arte, ou seja, a de contribuir, pouco a pouco, para levar as humani- dades a admitirem “inconscientemente” que 0 outro nao € © inimigo, que o diferente niio me cortéi, que sc’ eu me transforma em contato,com ele, isso nao significa que me diluo nele, etc. “No mai jentendimento, , tratase d deonaoe ou-, tta Forma de combate, diferente dos combates cotidianos, € 0 artista, penso eu, me parece ser um dos mais indicados para essa forma de combate. Porque o artista é aquele BS e aproxima o imaginario do mundo; ora, as ideologias dt indo, as previsdes, os castclos “os castelos we é pteciso, é preciso, PorTaLG, comegar a fazer emetgir es esse se imaginati io. F. ai nao se trata’ mais de sonhar o mundo, mas sim.de penetiat tele. niele. : if mundo as visOes do mu: VW Cultura e Identidade Precisamos voltar ao que propus quando abordei a ques- tao das crioulizagdcs no Caribe e nas Américas e, mais es- pecificamente, ao que ja sabemos sobre os problemas de identidade. Quando abordci essa questio, cu me baseci na distingo, feita por Deleuze, c Guattari, entre a a nogho de de raiz tinica ea nogao de tizoma. Deléuze ¢ Guattari, enruim dos capitulos de Mi] Platés (que foi publicado primeiramente em formato de balso, intitulada Rigomas), assinalam essa diferenga. Estes autotes propdem, do ponto de vista do funcionamento do pensamento, pens pensamento do rizoma. A taiz unica € aquela’g sua volta, enquanto o rizoma éa raiz que vai ao encontro de outras raizes. Apliquei essa imagem ao principio de iden- tidade, e o fiz também em fungado de uma “categorizagao das culturas”” que me é propria, uma divisao das culturas em culturas atdvicase culturas compdsitas. Creio que ja abor- dei esse assunto em duas ocasides diferentes. A nocgio de identidade raiz unica, que nem sempte foi tal - produziu obras magnificas da histéria da humanidade - Ginseparavel da propria natuteza daquilo que chamo de nto da raiz eo ma no¢do.mat-. Tt culturas atavicas. E quando abordei esse assunto, expliquei que, no meu entendimento, a cultura atavica é aquela que parte do principio de uma Génese ¢ do principio de uma filiagao, com o objetivo de buscar uma legitimidade sobre uma terra que a partir desse momento sc torna territétio. Proponho a equacio “terra cleita = territério”. Temos co- nhecimento das destruigdes étnicas dessa concepgaio mag- nifica e mortal. Associci o principio de uma identidade sizoma 4 existéncia de culturas compédsitas, ou seja, ,cultu- ras nas quais se pratica uma crioulizacio. Mas nessas “cultu- tas, muito frequentemente, nds nos encontramos diante de uma oposicao entre o atavico e o compésito. Analisei essa questdo, por exemplo, a propdsito da composigao e do povoamento das Américas. Se considerarmos um pais como o México, perceberemos imediatamente que existe ali uma cultura atavica, que cotresponde A cultura dos amerindios do México — a cultura. dos.Chiapas ~ ¢ uma cultura compésita, que é a cultura geral do pais mexicano atual. E percebemos que existe uma oposigao entre as duas culturas. No Canada e no Quebec, podemos nos perguntar se nao houve oposigao entre culturas atavicas amerindias e uma formacao social que, sem ser crioulizada ou compésita, nao deixa, entretanto, de ser diferente dessas culturas atavicas. F. nos paises mais recentes ou nos paises que vivenciaram a crioulizagio esté sempre presente a questao da oposigao entre restos, remanescentes de cultura atavica, e€ esse processo novo de crioulizagio. Geralmente, no Catibe, o problema nao se aprescnta, porque os amerindios 72 foram todos exterminados, com excegao de um reduzido numero que se encontra em uma reserva da ilha de Sio Domingos. O remanescente atavico do Caribe passa por uma espécie de rastro/ residuo inconsciente. Tenho a im- ptessio de que, para nds, crioulos do Caribe, ha uma espé- cic de rastro/ residuo inconsciente dessa existéncia amerindia. Mas, em todo caso, nao ha conflito.étnico por- que a propria realidade do atavismo amerindio desapare- ccu, Em um de meus livros, Le Déscours antillais, analisei o caso de um jovem que sofria de uma doenga mental ¢ que estava sob cuidados médicos, exercidos de mancira um tan- to quanto cega, em Paris. Uma de suas obsessdes era su- por-se descendente de um grande chefe caraiba. FE lembro- me de que, ha quarenta ou cinqienta anos, os antlhanos que estavam na Franga afirmavam de bom grado que eram descendentes dos caraibas para poder escapat a sua parte africana, e da qual, sem duvida, sentiam vergonha, sob a pressao cultural do colonizador. De toda maneita, nos dias atuais, vernos que nos paises de cultura ativica, a oposicio étnica conduz freqiientemente ao massacre e a0 genocidio, F peréebéitios também que nas Atnéricas a constituigaode: novos paises, ou seja 0 processo de crioulizacio, geralmente desestabilizou as culturas atavicas amerindias. Nao sei se esse € 0 caso do Quebec e do Canada, mas ¢ 0 caso do México, do Peru, da Colémbia. No Caribe, temos tam- bém 0 exemplo de populagées de cultura atavica que para 1é foram deportadas. os hindus, contratados a partir de 1830 como trabalhadores voluntarios. Estes resistiram cultural- mente, mas também se adaptaram ao seu novo pais. Criou- 73 los e hindus. O problema que temos de enfrentar é como mudar 0 imaginario, a mentalidade ¢ 0 intelecto das huma- nidades de hoje, de tal forma que no interior das culturas atavicas os conflitos étnicos cessem de ser considerados como se fossem i inexoraveis, eque nos paises crioulizados os conflitos étnicos e nacionalistas cessem de scr vistos como necessidades impossiveis de serem evitadas. Entre os mitos que tragaram o caminho da conscién- cia da Historia com H maitisculo - estou me referindo ao ptincipio mesmo das culturas atavicas (uma Génese e uma filiagdo) - precisamos distinguir aqucles que podertamos chamar de mitos fundadores, ¢ os demais - mitos de clucidagao, de exp licagocs subterraneas, de este to de relagao, de estabelecimento de ‘perspectiva — que correspondem aos diversos elementos da estrutura social em uma dada cultura. O principal papel dos mites funda- dores é consagyar a presenga de uma comunid territdrio, entaizando essa presenga, essé presente a uma Géncse, a uma criagaéo do mundo, através da filiagao legiti- ma. O mito fundadotr tranqiiiliza obscuramente a. cgmuni- dade sobre a continnidade sem falhas. dessa filiagao e a par- tir dai autoriza essa comunidade a considerat como abso- hutamente sua essa terra tornada territério. Ampliando essa legitimidade — ja falamos sobre isso — pode acontecer que, .passando do mito & consciéncia histética, a comunidade considére que adquitl 6 dirétto de aumentar os littiites de seu territorio. Esse é um dos fundamentos da expansao colonial que surge estreitamente atada a idéia de universal, ou seja, associada antes de tudo 4 legitimagao generalizada 74 uo de um absoluto que, primeiramente, fundamentava-se so- bre um particular eleito, em um particular eleito. Assim, compreendemos por que é importante } que o mito funda- dor se fundamente em uma Génese ¢ contenha dois moto- tes, a filiagao ea legitimidade, que garantem a forga ¢ su- pdem o objetivo do mito: a legitiitia¢a6 universal da pre- senga da comunidade. Nio é esse 0 modelo de funciona- mento do que chamamos Histéria, qualquer que seja, alias, a filosofia sobre a qual esta se baseic? . Portanto, a Histdria é.sealmente filha do. funda-, dor. No caminho que leva 4 Historia, o mito fundador sera acompanhado, depois ocultado, c, em seguida, substitui- do, Primeiramente, pelos mitos de clucidagao, de explica- ao ou de estabclecimento de perspectiva dos processos sociais e das condigées citcunvizinhas de uma comunida- de; em seguida, pelos contose natiativas que prefigueam a Historia; e, enfim, pelos romances, poemas € textos de te- flexio que dizem, cantam ou meditam sobre a comunida- de. Assim, por toda parte onde aparecem mitos fundado- tes, no seio dessas culturas que chamo de culturas atavicas, a nogao de identidade se desenvolvera cm torno do cixo da filiagio ¢ da legitimidade; profundamente, trata-sc da taiz unica que exclui o outto como participante. Pode-se inferir que seré mantida uma concepgio (por exemplo da oralidade como prefiguracio da abordagem ontoldgica) que encontrara naturalmente seu término nesta realizagao do absoluto que as escritas, as esctituras represcntarao. O que scrd a consciéncia histérica, sendo o sentimento gene- ralizado de uma missao a ser realizada, uma filiacao a ser 75 mantida, uma legitimidade a ser preservada, um territétio a ser ampliado? No caso das sociedades nas quais o mito fundador nao funciona, senao através de um empréstimo— estou me referindo as sociedades compésitas, ds socicda- “des de crioulizagio — a nogao de identidade se realiza em torno das tramas da Relagio que compreende o outro como inferéncia. Essas culturas comegam ditctamente pelo conto que, paradoxalmente, j4 é uma pratica do desvio. Assim, 0 que é desviado pelo conto é a propensao a asso- ciar-se a uma Génese, é2 inflexibilidade da filiagao, éa som- bra projetada das legitimidades fundadoras. Quando a oralidade do conto tiver sua continuidade na fixacio da escrita, como acontece com os escritores do Caribe e da América Latina, ela mantera este desvio irradiado que de- terminara uma outra configuracao da escrita, da qual o absoluto ontoldgico sera eliminado. O que sera entdo a consciéncia histérica, sendo a pulsio cadtica em diregio a essas conjungécs de todas as histérias, das quais nenhuma - ¢ esta é uma das maiores qualiclades do caos - pode mais prevalecer-se de uma legitimidade de absoluto? Cultaras atavicas e culturas compdsitas confrontam a mesma situa- cao, ¢ de nada adianta referir-se as primeiras, ou cxaltar estas ultimas, quando nao se tem aintengao de ultrapassar essa polémica. Em nossos ; dias temos que conciliar a escri- ta do mito’ € a escrita do conto, a memoria da Génese ea pré-ciéncia da Relagao, e essa é uma tarefa dificil. Mas que outra poderia ser mais bela? Gostaria de citar-lhes um exemplo concreto. O dos roms, ou romas, ou romanis da Europa, ou seja, os ciganos 76 originarios da Roménia. Os roms, digamos ciganos para encurtat o assunto, vao organizar, dentro de dois ou trés meses, em Sarajevo uma conferéncia pela paz. Estou abor- dando esse assunto porque nos textos que recebi ha uma espécie de grandeza de principio que me pateceu muito pertinente para ilustrar o ponto de vista que acabci de ex- por-thes tao resumidamente. Gostaria de ler-lhes algumas passagens, bastante breves mas significativas, desta decla- ragao dos ciganos da Europa ao escreverem para o prefci- to de Sarajevo: “Neste milésimo dia de ocupag&o, quere- mos reafirmar toda a nossa solidariedade e esperanga. E porque acreditamos em uma Satajevo livre e pluriétnica que lhe pedimos que acolha o Congxcsso pela paz, cuja iniciativa deve-se 4 Unio Internacional dos Ciganos. An- (cs da guerra, os ciganos de Sarajevo desfrutavam de direi- tos que nao lhes eram concedidos em outras terras, como por cxemplo, o dircito a sua lingua, o acesso ao radio ¢ a tclevisio.” Em outra passagem, definem os roms da seguin- te forma: “todos aqueles que lutam 1 por uma democracia pluriétnica”. .E dizem ainda: “Os Roms sio invisiveis nesta guerta assim como em todas as guetras, entretanto, cles ¢ram um milhéo na ex-lugoslavia. O que aconteceu com os roms tagoslavos? Que ajuda internacional receberam quan- do os bombardeios atingiram Sarajevo ¢ tantos outros lu- gares? Como se alimentam em época de forme generalizada c de inflacio galopante nos paises em guerra? Quem pen- sou em um comboio humanitario destinado aos roms da Bosnia? Que outta cultura se propés a proporcionar-lhes uma pausa de alguns dias na Europa do oeste entre duas x a rajadas de granadas? O que lhes acontecera no conselho de pacificagao da ex-lugoslavia? Continuarao privados de sua cidadania como os 25% de ciganos da Macedénia atual- mente? Como sao acolhidos nos locais onde se refugiam? Suas casas continuarao a ser destruidas pelos tratores mc nicipais durante sua auséncia, tal como aconteccu no dia 15 de julho de 1994 na cidade de Zrenjanin na Voivodina? Gostariamos de lembrar que diversas casas pertencentes aos ciganos habitantes da pequena cidade de Baku, situada a 23 quilémetros de Bucareste foram incendiadas c destruidas na noite de 7 a 8 de janciro de 1995, dia da festa tcligiosa ortodoxa, apds um confronto entre habitantes romenos ¢ ciganos sedentirios dessa cidadezinha. O con- flito de Baku se inscreve em uma série de pelo menos trin- taincidentes similares que aconteccram na Roménia desde janeiro de 1990. Em diversos eventos desse tipo, a multi- dao excitadissima se ditige as casas das familias ciganas, ao som de sinos. Esses cenatios nao sao mais que transforma- ¢6es contemporaneas dos pogroms, fendmenos antigamente tradicionais na Europa central e oriental. Eles prefiguram a situacao geral imposta aos ciganos, que desde sempre acu- mulam todas as discriminagées ¢, presentemente, todas as “impurezas étnicas”. A Uniio dos Ciganos da Roménia convoca esse congresso nao para reproduzir uma histérica distingZo entre os ciganos ¢ os outros. Muito pelo contra- tio: ela o faz porque somente a paz devolvera a todos uma cidadania pluriétnica dentro da diversidade de culturas ¢ da igualdade dos dircitos. O congtesso da paz langara as premissas desta cidadania pluricultural futura, construida 78 segundo a imagem da cultura cigana romena: tolerant, mes- tiga, aberta ao mundo ¢ singular ao mesmo tempo. Utopia a qual os ciganos da Roménia os convidam.” Enfatizo “mestiga”, “aberta ao mundo” e “singular ao mesmo tem- po”. Lerei apenas uma das tltimas passagens dessa convo- Gio: “Afim de que o congresso nao se resuma a um con- yresso de ciganos da Roménia, nem a um congresso de iugoslavos, convém articular a plurietnicidade ¢ o futuro deuma politica possivel; ¢ pata isso os senhores so convi- dados pelos ciganos da Roménia. Cocxisténcia nio territorial para além dos espagos insdlitos de uma uropa cm plena mutagio, o Congresso é decididamente politico porque rcafirma a civilizagio contra a barbaric, uma civili- zacao - que os ciganos da Roménia vém lembrar ao mundo -composta de movimento, arte, vida, tolerancia, hospitali- dade, acolhimento, mestigagem, crioulizacio, o que nio impede a singularidade e a identidade. Os ciganos da Rotménia sao uma cultura singular no mundo, diferente de qualquer outta, e entrctanto dividem com aqueles que os acolhem um grande numero de seus aspectos culturais: a religiao, a lingua, os habitos, os destinos locais.” Li essas passagens porque quando cxpus aos senho- res Crioulizagies no Caribe ¢ nas Américas, nos nos interroga- mos sobre a pertinéncia do termo “crioulizagio”, em se tratando da totalidade-mundo. E reencontro esse termo no texto de convocagao solenc feito pelos ciganos da Roménia da Europa central — convocagaio que fazem ao mundo - € reencontro nao apenas a idéia de mestigagem, e na verdade a idéia da identidade rizoma, mas também a ca 79. idéia da abertura ao mundo, e enfim a idéia de que tudo isso nao é contraditério em telac4o a singularidade ¢ a iden- tidade. Estou feliz, por um lado, de poder thes assinalar essa convocagio feita pelos ciganos da Roménia, e, por outro, de mostrar-lhes que se trata de um exemplo concre- to da necessidade - é dbvio - de darmos respaldo as hutas politicas ¢ sociais nos lugares onde nos encontramos. Mas trata-se também de apontar a necessidade de abrirmos o imaginario de cada um de nds pata algo novo: niaio muda- remos nada da situagao dos povos do mundo se nao trans- formarmos esse imaginario, ea idéia de que a identidade deva ser uma raiz tinica, fixa e intolerante. Viver a totalidade-mundo a paitir do lugar que € 0 no8s6, € éstabélecer relagio ¢ nite consagrar exclusio. Pen- so “que a Tireritarae ém torno dessa questao da identidade inicia uma epoca em que ela prod uzird épico, um €épico novo e contemporaneo. Todas as culturas atavicas vivenciaram um inicio literatio épico, Ja citamos os grandes livros fun- dadores da humanidade. Do Antigo Testamento a Iéada, do Livro dos Mortos egipcio ao livro indiano Bhagavad Giti, etc., das Sagas islandesas & Cangao de Rolando, da Eneidaao Popol Vuh ou a0 Chilam Balam dos amerindios, ¢ a0 Kalevela dos finlandeses. Os. grandeslivras épicos fundadores da humanidade sao livros que.dio seguranga 4 comunidade quanto ag seu prdprio. destino e-que, conseqiientemente, tendem, nao em si mesmos, mas. através do uso que deles sera feito, a excluir o outro dessa comunidade. Repito “nao em si mesmos”, porque esses gtandes livros fundadores de comunidades, que enraizam as comunidades, si, na ver- 80 dade, livros ¢ de errancia, ec examinarmos ° Antigo 7 Tes- livtos sio “completes” ; isso ) porque “dentro mesmo” > da voca¢io para o enraizamento, propoem também, imedia- tamente, a vocagao paraa a errancia. Tenho ai a impressio de que uma literatura épica nova, contemporanea, comegata a despontara partir do momento em que a totalidade-mun- do comegat a set concebida como comunidade nova. Mas temos de considerar que esse épico de umia literatura con- temporanea sera transmitido, ao contrario dos g : grandes li- vros fundadores das humanidades atavicas, através de uma fala multilingiie “dentro mesmo” da lingua na qual for ela-» borado. Essa literatura épica excluird também a necessida- de de uma vitima expiatéria, tal como esta aparece nos li- vros fundadores da humanidade aravica. A vitima e a expi- agaio permitem excluir aquilo que nao é resgatado, ou cn- tio “universalizar” de mancira abusiva. A nova literatura Epica « estabelecera i relagio € nao | exclusio. oe . — Tinalmente, c ‘atura : épica talvez fi mia da nogao de ser, para surpreender- se com o imagini- tio do senda, de todos os sendos possiveis do mundo, de to- dos os existentes possiveis do mundo. "questo do, ser no se apresenta mais a partit da visio dessa soliddo vanta- josaa qual havia se reduzido o pensamento do universal. O universal trans fc emou-seemn_diversidade, € esta 0 desordena. O que significa que a questao do ser, por TAO supe mais a legitimidade, desviada que € pelos as assal- tos das diversidades concortentes do nosso mundo. Em outtas palavras, o que dita as “regras’” MAG € mais o antigo direito universal, mas 0 actimulo das relagdes. Hoje vemos isto claramente no jogo das politicas internacionais, nas quais o direito, uma vez mai deve ser t dificilmente ea0s Poucos forcas atmadas dk de caciter monoliticn, que se opoem a das forgas subversivas da diversidade, pouco a pouco.t¢- duzidas. A constitui¢io desses direitos ou desse novo di- teito 6 o proprio indicio da caducidade do antigo dircito universal que nao necessitava justificar o seu alcance “qua- se ontolégico”. O novo direito é apenas institucional, ar- mado, c deve levar em conta esse actimulo das relagées. Ou seja, cle nfo se serve mais da astucia, nado oculta mais, e sublima muito pouco, contrariamente ao que a opressio colonial havia feito. Em todo caso, a questio do ser foi evacuada desse novo direito. O que emerge, sob o espeta- culo das hegemonias, é, sem sombra de duvida, a fratura do universal generalizante e, a priori, a surpresa do sendo, do surgimento do existente, em contraposi¢ao 4 perma- néncia do ser. Tudo isso se sustenta, na minha opiniao, no que chamo de pensamento do rastto/ residuo, O. rastto/¢ residuo ap6e e traz cm sia divagacio do existente, € fiao” ensaniénto do set. O advento da histétia esta hoje catinchelndo ports de obscuros retornos, de aparentes reinicios através dos quais os povos ¢ as comunidades que deram vida 4 idéia de Histéria agitam suas incertczas. Isso porque confrontaram nao apenas 0 outto, o diferente, mas gambém — algo ainda mais arduo - as turbuléncias da ex- tensio. E preciso lembrar que a raiz unica tema pr de aleangar 3 a profundidade, , 20 passo que a taiz tizoma sc 82 expande na extensio., Os espagos brancos dos mapas pla- netarios estao agora entremeados de opacidade, e isso rom- peu, para sempre, com o absoluto da Historia, que signifi- cava, primeiramente, projeto ¢ projecio. A partir de en- tdo, em seu conceito mesmo, a Histdéria se desfaz; e, ao mesmo tempo, ela rumina esscs tetotnos da questio identitaria, do nacional, do fundamental, ainda mais secta- trios porque tornados caducos. Contra as reviravoltas des- sas velhas estradas ja trilhadas, o rastro/ residuo é a mani- festagio fremente do sempre novo. Porque.o.que ele entre- abre nao é a terra vitgem, a floresta virgem, essa paixao feroz dos descobridores. Na _verdade, o rastro/ _residuo nao contribui para.completar a total le, Mas permite- nos conceber 0 indizivel dessa totalidade. O sempre novo nao é mais o que falta déscobrir para completar a totalida- de, o que falta descobrir Nos espagos brancos d do maps verdadeiramente, a totalidade, ou seja, realiza-la elmer, te. ™ . . O rastro/ residuo esta para a estrada assim como a revolta para a injungao, e a jubilagio para o gartote. Ele nao é uma mancha de terra, um balbucio de floresta, mas a inclinagéo completamente organica para uma outra manci- ta de ser e de conhecer; é a forma que é passagem para esse conhecimento. Nao seguimos o tastro/ residuo para de- sembocar em confortaveis caminhos; ele devota-se 4 sua verdade que é a de explodir, de desagregar em tudo a se- dutora norma. Os africanos, vitimas do trafico para as Américas, transportaram consigo para além da Imensidio ‘ © 83 das Aguas o rastro/ residuo de seus deuses, de seus costu- mes, de suas linguagens. Confrontados a implacavel desor- deni‘do colono, cles conheceram essa genialidade, atada aos sofrimentos que suportaram, de fertilizar esses rastros/ residuos, criando, melhor do que sintescs, resultantes das quais adquititam o segredo. As linguas ctioulas sao rastros/ residuos singrados na grande bacia do Caribe ¢ do oceano indico. Quando fugiram para as matas, 08 rastros/ tesidu- os que scguiram nao supunham nem 0 abandono nem 0 desespero, e nem tampouco o orgulho ou a vaidade de si mesmo. Os orgulhosos Longoué, personagens de um de meus romances, Le Ouatri¢me Siécl (O Quarto século), nao conseguiam triunfar sobre os tenazes Béluse. A “graine-en- bas-feuillé’ (semente-em-folha-baixa), humilde planta per- dida na vegetagao de meu pais, crescia tanto quanto a or- gulhosa “fleur de porcelaine? (flor de porcclana), ¢ esse ras- tro/ residuo nao pesava sobre a terra como um estigma itreparavel. Todos precipitamos em nds mesmos os ras- tros/ residuo de nossas histérias, cadas; nao para pro- por, em breve, através de desvios um modelo de humani- dade que contraporiamos - mas de maneira completamen- ,te rastreada - a tantos outros padrdes que se esforcam em nos impor. Esse ¢ 0 desvio. que nae-¢ nem fuga nem-tenun- cia, mas a arte nova do des: itamento do mundo. - OQ sastro/residuo nao reproduz a vereda inacabada fa qual tropecamos, nem a alameda lavrada que se fecha sobre um territétio, sobre o grande dominio. FE uma ma- neita opaca de aprender « 9 galho € 0 vento, set um si que deriva para o outro, a arcia na verdadcira desordem da 84 utopia, aquilo que nao foi sondado, o obscuro da corrente no rio liberado. As paisagens antilhanias determinam as outras ao longe, e, nelas, todo conto cria a sinuosidade de seu rastro/ rcsiduo singular, de afluentes a rios, éstabele- cendo correlacio; correm, frigeis, c obstinam-se essas ra- mificagdes de linguagens interpelando-se. Morros e pro- fundidades resvalam em narrativa, tritaram o inexplicado do mundo. Nao se subtraiam a esse tema novo que se es- forga, nao se ofendam com os vocabulos insolentes, nem tampouco com os vocibulos gritados, cobertos de terras demasiadas, de espagos demasiados. Eles soam o impro- vavel eo risco que dividimos juntos. Assim, o pensamento do rastro/ residuo promete a alianga longe dos sistemas, refuta a possessio, desemboca nestes tempos difratados que as humanidades de hoje multiplicam entre si, em cho- ques e maravilhas. _ Essa é a errincia violenta do poema — * Tssas literaturas das quais pressinto a aparigio, essas literaturas do mundo, penso que s6 serao possiveis se rea- firmarmos onde elas se iniciam — no lugar onde estamos e de onde podemos adivinhar o seu aparecimento — 0 que penso ser e 0 que chamo, em sc tratando de problemas de identidade, de ditcito de cada um 4 opacidade. No encontro planetatio das culturas que vivenciamos como se fosse um caos, temos a impressio de ter ficado sem referéncias. Por toda a parte, para onde voltamos os ‘olhos vemos catastrofe e agonia. Deixamos de ter esperan- relagAo ao cags-mundo. Mas é porque ainda tenta- mos encontrar nesse caos-mundo uma ordem soberana que I fen, fos 85 reconduziria uma vez mais a totalidade-mundo a uma uni- dade redutora. Tenhamos a forca imaginaria ¢ utdpica de conceber que ele nao significa o caos apocaliptico dos fins ‘de mundo. O caos € belo quando concebemos todos os seus elementos como igualmente necessatios. No encon- tro das culturas do mundo, precisamos ter a forca itnapina- tia de conceber todas as culturas como agentes de uiiidade e diversidade libertadoras, a0_ mesmo tempo. FE par issc que reclamo para todos 0 direito a ao de. Nao neces- sito mais “compreender” © Outro, ou scja, reduzi-lo ao modelo de minha propria transparéncia, para viver com esse outro ou construir com ele. Nos dias de hajé, O ditei- to 4 opacidade seria 0 indicio mais evidente da nia L_nso- barbarie. E eu diria que as literaturas que se per rfilam diante de nossos olhos ¢ que j4 podemos pressentir, serio ador- nadas com todas as luzes e com todas as opacidades da nossa totalidade-mundo. . PERGUNTAS Robert Melanjon. — Gostaria de retomar a expressao “democra- cia pluriétnica”’ que 0 senhor citou ao ler certas passagens dese belissino texto, essa bela convocagéo y feita ‘pelos aganos da Roménia para queo senbor fosse a Sarajevo. E. essa palavra democracia que me incita a propor-lhe ampliar a sua fala para abordar um campo que, sen dii- vida, nao fax parte desta sua abordagem, on seja, 0 campo juridico ou politico. Parece-me que a idtia desidadania no mundo, a idéia de ddadania tal como havia sido formulada por Locke, por exemple, ¢ emt seguida tal como ela foi parcialmente concretizada pela revolugdo Jrancesa, essa idéia de que nao existe 0 direito do sangue, meas sim 86 um direito ao pertencimento ¢ a submissdo a un conjunto de leis, parece-me que essa iddia de cidadania esta sendo corraida em muitos Jugares do mundo, minada por toda espécie Vemos muito bem, em nmsitos lugares, o direito do solo, que nao pode ser considerado como perfeito, sendo atacado mesmo na Franga, em nome do direito do sangue. Sera que poderiamos imaginar para essa aidadania pluricultural aberta, para essa totalidade disseminada que o senhor evocou, um sistema juridico ou politico fraco, ou seja, reen- contrar em unt sentido diferente, 0 que o marxismo chamava de enfra- quecimento do Estado? Reclamar nao o enfraquecimento do Fistado, mas o enfraquecimento dos Fstados? Sonbar com Estados fracos, com renincias voluntérias de soberanias estatais...Talvex nao haja outros meios para se chegar a essa totalidade disseminada no plano juridico e politico (estou lhe fazendo esta pergunta enbora saiba que este nao ¢ 0 seu campo de atuagao)? Edouard Glissant. ~ Gostaria primeiramente de fazer uma observagao. Penso que para combater a expressio “direito do sangue”, a expresso “direito do solo” foi muito mal escolhida. Porque ela ven também da idéia de territé- rio que uma comunidade constitui para si, com suas fron- teiras, € penso que cssa idéia é tio “maléfica” quanto aque- ta do direito do sangue. Penso que seria preciso encontrar uma outta formula juridica, de direito comum ou de dirci- to civil, para substituir a formula “direito do solo”, pois esta ultima é tio limitativa, paradoxalmente, quanto a for- mula “direito do sangue”. Em seguida, parece-me que nio podemos refletir no plano politico sobre a nogio de Estado, sem termos apren- 87 dido a conhecet aquilo que nas culturas do mundo consti- tuiu as transformagées desse Estado. Por exemplo, em his- tétias como a da China ou a da India, ha experiéncias do Estado — é claro que nao estou me referindo ao império chinés que é bastante monolitico ~ e relagdes da sociedade civil com o Estado que ainda nao integramos. Parece-me que, quando refletimos sobre a relagio da sociedade civil com o Listado, nds o fazemos sempre dentro da perspecti- va do dircito civil, legislativo ou internacional ocidental. Tenho a impressio de que nos falta algo. Falta diver: ou abertura quanto acssa nogao. B por isso que “hesitaria em responder a sua petgunta neste momento, ainda mais porque muitos daqueles que defendem uma sociedade fe- chada sobre si mesma sao também defensores de um en- fraquecimento do Estado. Isto acontece em muitos paises do mundo. Primeiramente, trata-se de que Estado? Seria necessario aprender com outros lugares, nio considerar apenas a filiacio ocidental. E, por outro lado, sera que o enfraquecimento do Estado constitui um fim em si mes- mo? Ou seja, uma sociedade coercitiva nao necessitaria de um Estado enfraquecido? E muito provavel. Portanto, por essas raz6es, hesitatia em responder 4 pergunta. Hesitaria também em definir o que poderia ser uma sociedade pluriétnica. Essa é a posicao dos ciganos da Roménia, mas eles sio ocidentais. Eles sofreram mas viveram as transfor- magées da historia ocidental. E para eles a democracia, mais aquilo que a ela acrescentam (pluriétnica, mesti¢a, crioulizada, etc.) pode ser — e na minha opiniado deve ser — um ideal, um objetivo, dentro da perspectiva das socieda- 88 des cutopéias. Nao sei se isso seria valido para outras for- mas de sociedades. Jot! Desrosiers. - Gostaria de fager-the duas perguntas. Vou ser breve. Esta manha, eu 0 ouvi falar no radio sobre estes dois escri- tores: Saint-Jobn Perse e Faulkner. Feco sempre impressionado com a presenca de dois paradigmas em sen pensamento, O primeiro, é 0 paradigma vegetal: 0 rizoma, a raiz, O segundo, é 0 paradigma-sien- lifico: a Leorta-da.cuos, a sotalidade-m -mundo, Minha pergunta tem a verjustamente com a fascinapao que 0 proprio Saint-Jobn Perse tinha pela ciéncia: para o senhor a ciéncia é imagindrio? Quando o senbor fala do imagindrio do mundo, isto corresponderia no fundo a uma espécie de segundo plano do imagindrio cientifico? Que relagao 0 se- nhor fax entre as figuras da abstracao (caos, invariantes, ett) ¢ esse novo imagindrio? E. G. — Penso que ha um trajeto da “ciéncia”, de maneira geral, que nos interessa, do ponto de vista da pré- pria questao da identidade. A ciéncia ocidental, no seu momento de triunfo, ou seja, quando nao duvidava — nem de seu devit, nem de seus métodos - tinha a pretensao de penetrar em profundidade, continuamente - mesmo a pre- go de dramaticas revolugdes do pensamento - em ditegio, a uma verdade que seria a verdade da matétia. Eo resulta-" do dessa busca seria, mais dia menos dis, a explicacio ¢ do universo, do mundo. Era essa a ptetensiio da ciéncia oci- dental, até o dia em que as revolugées da prépria ciéncia mosttaram, a partir da relacao de incerteza de Heisenberg, que talvez nao pudéssemos chegar “ “20 fando ‘da mat ~ porque Heisenberg explica que as particulas s6 sao v: veis quando iluminadas. Entretanto, quando as iluminamos, alteramos certamente a sua velocidade ea sua ofientagao e talvez até a sua natureza. [ssa relacao de incerteza tornou- se um dos lugares-comuns do pensamento contempora- neo, pois existe uma opacidade da matéria que ¢ incontornavel, intransponivel. Fi foi a partic dessa constatagao que a ciéncia ocidental fez sua propria revolu- Gao e produziu a parte da ciéncia que deu origem As ciénci- as do caos, na qual os cientistas renunciam 4 linearidade equacional, isto é, a pretensao de descer 4s profundezas da matéria (ou seja, a raiz nica...) em busca de uma verdade que corresponderia 4 verdade da matéria. Comega-se en- tio a pensar que é preciso descrever Oo que esta na cxtensao e que é indescritivel. 5 preciso tentar desctcvé-lo, sem, en- tretanto, pretender alcangar um conhecimento absoluto. Essa evolucao da ciéncia me parece estar telacionada 4 con- cepgio do sere do sendo, Em outras palayras, a ciéncia tetun- ‘fante teria a ver com.a filosofia do. que duvi- (da, que teduz suas certezas e afirma_que circularemos 'pesquisando 9 na extensio, ou: seja, que no nos n movimenta- {remos mais na linearidade, essa ciéncia teria a- ver com os “ampsevistos do sendo. E é por isso que me interesso por esse ptocesso. Interesso-me por ele como poeta, nao te- nho nada de cientista. Nao tenho nenhuma pretensio quanto a isto. Mas tenho a impressao de que um poeta pode com- preender esse processo, essa subversao da ciéncia ociden- tal, que na verdade corresponde 4 Ciéncia porque ¢ apenas no Ocidente (ao passo que os chineses, por exemplo, in- ea cié 90 ventaram tudo ou quase tudo) que a nogio de ciéncia surge ¢ se fortifica.., Mas os senhorcs também sabem que as cién- cias do caos confinam: coma estética, Ey perféitamente nc nor- mal que haja uma espécie de attacio-e alids me censuram por isso. Em um artigo publicado na Franga disseram o seguinte: “Ah sim, Glissant e seu caos, a teoria do caos, os senhores conhecem?...” Seria lindo se a teoria fosse minha. Podemos escolher ignorar 0 caos-mundo, e nesse caso so- mos propensos (e predispostos) a reproduzir, literalmen- te, a desordem desse caos-mundo, e tentamos nos fundir em sua forga adotando condutas ilusérias de arrebatamen- to. Podemos, ao contratio, aborda-lo através do imagina- tio, decifrar sua opacidade - talvez numa tentativa de esca- par deste caos-mundo - ou de qualquer forma para nele fazer avangar um rastro fragil mas persistente. J.D. — Edouard Said, em seu livro Culturas: cimperialismos — nao sei se foi traduxido para o francés — afirma que a literatura ocidental, os cdnones ocidentats, precederam e permitiram através de sua estitica a exploragao ea subruissao do mundo. Ele afirma que as identidades nao excistem, que estas ni sio mais do que ¢ econstrugies imagindrias. Qual seria a sua reagéo a esta sta afi rmvagao, considerani- do-se a estética git propist™ ~ —— nte de acordo. Introduzo algumas : nanan cans nuances. E bem ver ue para conquistar la Fai preciso, ptimeitamente, sonha-lo. E conseqiientemente, os escritores € os poctas ocidentais puderam ser os precurso- res da colonizagiio. Podemos cita-los todos: Chateaubriand, 91 Conrad, etc. Mas existiram também — porque o ocidente nao é monolitico — existiram também nas literaturas oci- dentais poetas que, sonhando o mundo, protestaram con- traa sua colonizacao: “Os brancos estio chegando....” es- crevia Rimbaud. E Aimé Césaire retoma csse tema erm “Er tes chiens se taisaient” (“I os cics se calavam’). Um pocta como Victor Segalen, que cra um médico militar, que tra- balhava em uma embatcagio militar, produz, inventa, ima- gina e constrdi um sistema de pensamento do exotismo no qual combate, simultaneamente, toda c qualquer forma de exotismo e de colonizacgéo, Como podemos perceber, as coisas nio sao claras porque na minha opinido, Segalen ¢ é um poeta revolucionirio. Honr: ° primeiro que abordou a questa do, e que combateu °. exotismo como uma forma ¢ ‘Ondes- cendente da calonizagio’ ¢ era médico da admin’ Sttacio militar. Isso significa, entio, que nao existe maniqueismo em se tratando desse assunto. Mas cabe ressaltar que é bem verdade que a literatura tradicional no ocidente é¢ uma lite- ratura do ser e do absoluto, e isto pressagia a generaliza- “40. As formas de colonizacio inglesa e francesa, que cram Sprincipais no.século XTX, eram as tnicas que tinham absoluta certeza de sua legitimidade. Em nossos dias, qual- quer pais que colonize ou oprima outro pais nao se sentira seguro quanto 4 legitimidade de seu ato. Suponhamos que nos dias de hoje, uma grande poténcia como a China, a Russia, os Estados-Unidos, ou 0 Japao invada outro pais. Essa poténcia nao estara segura quanto 4 sua legitimidade 92 tA inet ' e tera que explica-la. A colonizacao francesa ¢ a coloniza- cao inglesa no século XIX’ sentiam seguranga quanto a sua legitimidade potque era’ sistéffia inteiro (o pensamento do territdrio elcito) que s¢ ainpliava até a dimensio do mundo. E quando o mundo foi realizado pela colonizagio (os colonizadores foram os desbravadores; foram eles que descobrira as costas maritimas, que claboraram os ma- pas, ctc.), quando tudo isto foi “realizado”, a legitimidade desmoronou-se, porque ela nao podia mais se estender. [3 como se diz de certos pioneiros americanos, que partiram em diregio ao veste, chegaram 4 costa californiana, nao puderam mais avangar e pensaram em suicidio. Houve uma espécie de depressao genctalizada. A ampliagao, o avanso impetuoso direcionado como uma flecha nao cra mais pos- sivel. Acho que isto aconteceu com as colonizagées oci- dentais, especialmente com a francesa e a inglesa. Foram combatidas pelos povos, mas também se deprimitam de- vido a uma perda de legitimidade. Essa é a nuance que eu actescentatia em relagio a posigao de Edward Said. Gaston Miron. —Quase no final, 0 senbor diz: “Conceber todas as culturas”... “a opacidade”...NGo captei toda a frase. Serd que poderia reler essa passagem? E.G. — Ah! Sim... “No encontro das culturas do mundo, prtecisamos ter a forca imaginaria para conceber todas as cultutas como agentes de unidade_ e_diversidade libertadoras, ao me: empo.” Mas nao temos a forga imaginaria para conceber isto. E precisamos dessa forca. Temos que té-la... 93 Pierre Nepvew. — Gostaria de fazer-lhe uma pergunta sobre a epoptia. Quando sonha com essa literatura que esta comegando a acontecer, cujo advento capta, o senhor fala de nova epopéia. Admiro- me um pouco com essa catacterixacao, por duas raxées. Por um lado, serd que nao podentos dizer que essa nova epopétia ja exzste na lifera- tura ocidental~ evidentemente a partir de Joyce, mas também ¢ mutto na literatura latino-americana, como por exeinplo em Fuentes, em Garcia Marquez, em Guimaraes Rosa no Brasil -, onde vemos a forma (pica ser retomada, mas ao mesmo tenpo ser desfeita, meuito freqientemente numa forma de crioulizagao da linguagem, ou entao observamos referéncias ao cotidiano (a parodia, etc.)? Por outro lado, serd que nao podertamos também diger que o fim de todo modelo epico caracterizaria 0 que vers acontecendo na literatura atual? Se observarmos 0 romance por exemple, ent certos escritores europeus, 0 que acontece verdadeiramente é a recusa da forma épica, com 0 objeti- 20 ae abrir a forma romanesca a algo diferente, relacionado com a cont 0 co idiano, com a intimidade, etc. Fd todos os tipos ‘de a rdagens. Temos entdo quase que dois movimentos distintos...m outros termos, qual é a raxao dessa reivindicagdo tao forte da epopéia, mesmo que seja na sua nova forma? E.G.—Nio se trata da epopéia, mas sim da forma épica e esta pode passar por outra coisa que nao seja uma epo- péia. A sua primeira objegio, ditia que é claro que ja exis- tem aparigdes, teaparig¢des de forma épica nas literaturas caribenhas e latino-americanas, Mas sao formas épicas que, na minha opiniao, pteservam ainda a estrutura tradicional do épico. Ou seja, uma comunidade que reafirma sua con- fianga em si mesma através da producio de um épico que 94 concerne apenas aos membros da comunidade. Ora, o que acontece, é que todos os povos que vivenciam a descolonizacio — e os latino-americanos e os caribenhos fazem parte desses povos — contrapdem ao épico ociden- tal 0 seu épico, que é belissimo. Mas para mim nao sc trata ainda do verdadeiro épico, porque este tem como objeto a comunidade mais ameacada neste momento no mundo, que éacomunidade-mundo. F é a relagao de minha comunida- de com a comunidade-mundo que poderia fundar o épico. Tenho a impressao de que as outras literaturas das quais o senhor falou, que se situam fora desse problema, nio co- nhecem 0 mundo e nao se interessam pelo mundo, scnio talvez para tentar ainda regé-lo através da Narrativa. I isto que constitui a sua “legitimidade”. Nao me surpreende que elas renunciem 4 voz épica, que em nossos dias pronuncia a comunhio, a disperséo da Narrativa e, contra a Historia, reivindica, finalmente, o encontro das histérias dos povos. O caos-mundo: por uma estética da Relacado Escolhi como tema o que chamo de “as poéticas do caos”’, porque penso tratar-se de um tema que pode reunir “¢ talvez concluir de maneira provisdria aquilo que disse a propdsito da crioulizacio ¢ da lingua. O que chamo de poéticas do caos nfo pode ser pensado em termos de finitudes formais, ou seja, através de uma conferéncia es- crita, radical, sem possibilidade de repetigGes ou de con- lradigécs. Essas poéticas do caos também nio, podem ser pensadas em termos de finitudes reais, ou seja, como um todo que ndo supotria acréscimos, retiradas, ou mesmo fe- motsos, ou renegagées. I: por isso que escolhi fazer esta conferéncia praticamente com os senhores, sonhando 0 meu ussunto, porque pode-se sonhar, construir, claborar, conceituar e também poetizar sobre este assunto. O livto em que me baseei para desenvolver 0 que chamo de poéti- ca do caos é um livro de divulgagio intitulado Des rythmes ww chaos (Dos ritmos aos caos), escrito pot Pierre Bergé, Yves Pomeau e Monique Dubois-Gance, e publicado pelas edigdes de divulgacao perfeita- mente accessivel, mas tem _o métito de ter sido realizado por trés cientistas. Ou seja, nao se trata de divulgadores da ciéncia, mas sim de cientistas que escreveram um livro de divulgagao cientifica. Vou poupat-lhes a lista das obras que tratam do caos no sentido cientifico do termo, pois nao é esse 0 assunto de nossa discussio. Alias, os autores, em um dado momento do texto, lamentam a utilizagio de “caos”, no sentido cientifico do termo, a propdsito de qual- quer assunto, ¢ igualmente a pratica de uma parafilosofia em torno do termo. Ora, isso eu fago tranqiiilamente. Fe- lizmente, em outro fragmento da obra, os autores assina- lam que as.teorias do caos sao teorias de filosofia da cién- cia c bastante ambiguas. Veremos 0 valor dessa ambigii- dade. Sinto-me totalmente autorizado a parafilosofar em torno da ciéncia do caos. Desde 0 meu primeiro livro de prosa, Solel de la conscience (Sol da consciéncia), até Poétique de la Relation (Poética da Relagao) apresentei quanto a mim € ao que me concetne, a problematica do caos-mundo. Chamo de caos-mundo — ja disse outras vezes durante estas conferéncias — 0 choque,.o entrelagamento, as repulsées, as atracdes, as conivéncias, as oposigécs, o8 con- flitos entré as Cul ¥8 na totalidad mundo con- tempotanea. Portanto, a definicdo ou a abordagem que ‘proponho dessa nogio de caos-mundo é bem 1m precisa: tra- ta-se da mistura cultural, que nio se reduzs simplesmente a um melting-pot, gracas 4 qual a totalidadé-rmundo hoje esta realizada, Minha primeira apreciacio sobre o caos-mundo sera sobte o que poderiamos chamar de uma condicao tem- poral da culcura, da telagdo entre as culturas, O que pode- 98. mos dizer de mais geral a esse respeito é que as relacdes, os contatos entte culturas - ja disse em outras circunstancias mas é preciso repeti-lo — perpetuavam-se antigarnente ao longo de imensas continuidades tempotais. Por causa dis- so, embora muito eficientes ¢ muito eficazes, esses conta- tos nao eram reconhecidos como tal. Isso se deve ao fato de que a continuidade temporal era tio longa, que antes yue a transformacio — freqiientemente bastante brutal, bastante imediata — fossc percebida como tal, era substitu- ida por uma outra transformagio. Assim, por exemplo, foi preciso muito tempo pat lotnatia a Franca se conceb: continuidades temporais imensas que condicionam ¢ con- icm as relagdes entre culturas, ¢ nds as estudamos sobretu- do no mundo europeu, porque este foi o mundo que mais nos ensinaram e, infelizmente, somos nao. apenas deficien- tes, mas ignorantes no que concerne ao conhecimento das rclagGes culturais em continentes como a Asia oua Africa, Isso nado impede que saibamos que nessas imensas conti- nuidades temporais as culturas se influenciam umas as ou- (ras, de forma insensivel e imperceptivel, mas, em dados momentos, elas passam por transformagées fulgurantes. A novidade que os tempos contemporineos apresentam é a seguinte: as continuidades temporais nao sio mais imen- sas, mas sim imediatas, ¢ a repercussao ¢ imediata. As influ- éncias ou as repercuss6es das culturas umas sobre as ou- (ras sao imediatamente sentidas como tal. E ao mesmo tem- po em que existe esse imediatismo da repercussio das rela- goes culturais, das culturas umas sobre as outras, ha algo 99 pot trés cientistas. Ou seja, nao se trata de divulgadotes da ciéncia, mas sim de cientistas que escreveram um livro de divulgagao cientifica. Vou poupat-lhes a lista das obras que trata do caos no sentido cientifico do termo, pois nao é esse 0 assunto de nossa discussao. Alias, os autores, em um dado momento do texto, lamentam a utilizagdo de “caos”, no sentido cientifico do termo, a propdsito de qual- quer assunto, ¢ igualmente a pratica de uma parafilosofia em torno do termo. Ora, isso eu fago tranqiiilamente. Fe- lizmente, em outro fragmento da obra, os autores assina- lam que as.teorias do caos sao teorias de filosofia da cién- cia e bastante ambiguas. Veremos o valor dessa ambigtii- dade. Sinto-me totalmente autorizado a parafilosofar em torno da ciéncia do caos. Desde 0 meu primciro livro de prosa, So/ei/ de la conscience (Sol da consciéncia), até Poétique de la Relation (Poética da Relaciio) apresentei quanto a mim © ao que me concerne, a problematica do caos-mundo. Chamo de caos-mundo — ja disse outras vezes durante estas conferéncias — 0 choque,.o entrelagamento, as repulsGes, as atragGes, as conivéncias, : as oposig6es, os con- flitos entre as ‘cu 3 dos povos na totalidade-mundo con- temporanea. Portanto, a definigio ou a abordagem que proponho dessa nogiio de caos-mundo € bem precisa: tra- ta-se da mistura cultural, que nao se reduz simples nte a um selting pot, gragas a qual a totalidadé-mundo hoje esta realizada. Minha primeira apreciagao sobre o caos-mundo sera sobre 0 que poderiamos chamar de uma condicao tem- poral da cultura, da relacdo entre as culturas. O que pode- 98 mos dizer de mais geral a esse respeito é que as relagdes, os yeontatos entre culturas - ja disse em outras circunstincias mas é preciso repeti-lo — perpetuavam-se antigamente ao longo de imensas continuidades temporais. Por causa dis- &o, embora muito eficientes ¢ muito eficazes, esses conta- fos nao eram reconhecidos como tal. Isso se deve ao fato tle que a continuidade temporal era tio longa, que antes yuc a transformagao — freqiientemente bastante brutal, bastante imediata — fosse pereebida como tal, era substitu- {la pot uma outra transformagao. Assim, por exemplo, foi preciso muito tempo para que os habitantes-daquilo que se lornaria a Franga se conccbessem como franceses. Ha continuidades temporais imensas que condicionam ¢ con- tem as relagées entre cultutas, e nds as estudamos sobretu- de no mundo europeu, porque este foi o mundo que mais nos ensinaram e, infelizmente, somos nao apenas deficien- ics, mas ignorantes no que concerne a0 ‘conhecimento das relagSes culturais em continentes como a Asia oua Africa. Isso nado impede que saibamos que nessas imensas conti- nuidades temporais as culturas se influenciam umas as ou- tras, de forma insensivel e impetceptivel, mas, em dados momentos, elas passam por transformacoes fulgurantes. A novidade que os tempos contemporineos apresentam é a seguinte: as continuidades temporais nao sao mais imen- sas, mas sim imediatas, ¢ a repercussao é imediata. As influ- éncias ou as repercussdes das culturas umas sobre as ou- tras so imediatamente sentidas como tal. E ao mesmo tem- po em que existe esse imediatismo da repetcussao das rela- g6es culturais, das culturas umas sobre as outras, ha algo 99, que nao podemos deixar de observar: aumanidades que se influenciam dessa forma, negativa oypsiuvamente, vie vem vatios tempos diferentes. [im relag’* dimensio que possuimos, que éa dimensio histérica pitifestada atraves da linearidade do tempo ocidental antes’ depois de Jesus Cristo, podemos afirmar que * culturas da contemporaneidade vivern varios temp® diferentes mas sofrem as mesmas trans formagoes, ou amesmas influén- cias. Ou seja, existe uma espécie de contigao, de fratura, de forte contradi¢io no fato de que culrus (ue Vive tem pos diferentes sofram as mesmas influéi* Um campo- nés chinés que vive ha milénios em um egG0-tempo mur to vasto, sofre ou vive de maneira brutsl* revolugio chi- nesa, por exemplo, e, ao mesmo tempo! envolvido pela influéncia, o desejo da Coca-Cola; a mest Coca-Cola que é vivenciada de mancira completamente gierente em Nova York ou Miami, ou Londres. Nesse scrido, ha fraturas, ‘contradigdes que nos introduzem imedit¢mente ena um dos elementos essenciais da ciéncia do WS 4 NOGAO de sistema determinista erratico. Eu nao sab’ “falar de ci- éncia” com os senhores, nao tenho, defiitivamente, esse don. Mas’a nocio de sistema determinis® ¢ffAUC0, que ¢ uma das nogdes basicas.das ciéncias do™°S na fisica, € aplicavel a > que chamo de caos-mundo, dink A ciénckrdé caos afirma que existe™ Sistemas cina- micos determinados que se tornam erraticos. Em princi- pio, um sistema determinista tem ust” fixides, uma “mecanicidade” e uma regularidade de fyacionamento; O que a ciéncia do caos descobriu é que existé UM infinidade 4 MS 100 ps- 3 ile sistemas dinamicos determinados que se tornam erraticos; ou seja — é esta a minha interpretagéo — a um dado momento seu sistema de valores flutua, sem que, a primeira vista, saibamos porqué. Essa é a minha interpre- taco. Os cientistas do caos testam essa nogao de sistema determinista erritico e a verificam em toda uma série de aspectos e de representagdes do real. Assim, por exemplo, na imprevisibilidade do movimento das folhas que caem sob a acao do vento, da chuva (na estagao das chuvas), ou na impossibilidade fundamental de determinar o tamanho exato do litoral da Bretanha. A ciéncia do caos afirma que nao se pode de mancira alguma determinar o tarnanho exa- to do litoral da Bretanha porque nao é possivel controlar a flutuacao da costa na fronteira entre a gua ¢ a terra, € as alteragdes da costa introduzem uma singularidade que nio podemos fixar uma vez por todas. Nao transformo isto em dogma, mas algo me interessa nessa historia, cm se tra- tando das culturas das humanidades de hoje. O queme in- tcressa € 0 comportamento imprevisivel dessa relacio das culturas, imprevisibilidade que constitui uma das bases da ciéncia do caos. O comportamento imprevisivel esta asso- ciado A nagao de sistema detetminista erratico. Os fisicos do caos afirmam que todo sistema que possui apenas dois é quando as variaveis se multiplicam e sobretudo quando se introduz a variavel tempo — é por isso que comegamos esta confcréncia abordando a questio do tempo — a imprevisibilidade se confirma. Afirmo que as relagdes en- LOL tre as culturas do mundo em nossos dias sio imprevisiveis. Durante muito tempo, vivemnos sob a pressao € 0 precioso ensinamento do Ocidente, no pensamento de sistema cuja maior ambicao era a previséo. Todos os pensamentos de sistema visam 4 previsio. E percebemos que em matéria de rclagdes de culturas, ou seja, desses espagos-tempos que as comunidades segregam em torno de sie enchem de pro- jetos, de conceitos e freqiientemente de inibi¢6es, a regra ¢ a impossibilidade de ptevisio. Penso ser necessario per- guntarmos © seguinte: se a impossibilidade de previsio constitui a regra em matéria de relagdes de culturas huma- nas entfe si, sera que nio corremos 0 risco de cair em um pessimismo ou em um niilismo totalmente devastadores? E sem divida alguma o quc 0 pensamento de sistema quis evitar: que a densidade dessa impossibilidade de previsao levasse as culturas humanas a renunciar, a estagnat — por- que e para que agir se ¢ imprevisivel? Responderemos ulte- riormente a essa pergunta. Uma outra idéia que gostaria de abordat é que um dos principios do erratico de certos sistemas deterministas provém do fato de que nesses siste- mas existe uma sensibilidade as condig6es iniciais. Essa sen- sibilidade as condigées iniciais faz com que, a um dado momento, um erro de majoragao ou de minoragao na apre- ciacio dessas condi¢ées iniciais possa multiplicar-se infini- tamente e de maneira erratica no interior do sistema. Inte- ressei-me muito por essa idéia porque nela reencontrei uma outta idéia que eu havia formulado - a wisao profttica do passa- do. O passado niio deve somente ser tecomposto de ma- neira objetiva (ou mesmo subjetiva) pelo historiador. Deve 102 também ser sonhado de maneira profética, para as pesso- as, comunidades e culturas cujo passado, justamente, foi ocultado, Lembro-me, por exemplo — ¢ esta historia sem- pte me divertiu— que em um de meus romances intitulado Le Quatritme Siecle (O Quarto Século), havia imaginado a attibuicdo de nomes aos escravos sem nome na Martinica no momento da libertagio da escravidao, cm 1848. Eu ha- via imaginado a cena na qual dois funcionarios franceses, perdidos numa mare de negros, atribuiam nomes as pesso- as, as familias; atribuiam, com autoridade, patronimicos, e para tanto dispunham de livros, de espécies de enciclopé- dias ou de coletaneas de textos, etc. Eas familias recebiam nomes como Cicéron, Caton, César, etc., e em seguida Avoine (Aveia), Gerblé (Molho de palha de trigo), cte., ¢ ainda Alizé (Vento alisio), Elysée, etc. Para atribuir nomes a cscravos reccntemente libertados, esses funciondarios es- gotavam todo o saber ocidental. Algun tempo depois, re- encontrei em uma revista especializada no estudo dos no- mes prdprios, na onomiastica - revista confiavel, muito con- ceituada, e considerada muito cientifica - um texto escrito por um especialista do assunto e que citava como referén- cia, ao abordar essa questio, esse capitulo de meu romance Le Quatnitme Siécle (O Quarto Século) que eu havia imagina- do e inventado completamente. E assim, esse capitulo tor- nou-se um elemento de ilustragdo para a ciéncia, Tratava- se de uma visio profética do passado. Ou seja, existem fe- némenos ocultados nas culturas humanas que podem tra- zer a tona variantes essenciais que as vezes escapam aanali- se. Se quisermos verdadeiramente estudar a miséria da A fri- 103 ca — tetiro “estudar”, pois setia realmente o cumulo se “estudassemos” a miséria da Africa - se quisermos com- pteender o que acontece de tio miseravel c de tio angusti- ante na Africa de hoje (c mesmo sem sucumbit a nenhum “afro-pessimismo”), como podcriamos fazé-lo sem essa sensibilidade 4s condig6es iniciais, ou seja, sem evocar o horrivel holocausto do Trafico dos negros, o despovoa- mento ¢ a devastacio da Aftica durante séculos?Como poderiamos fazé-lo? O sistema erratico em que 0 conti- nente afticano se transformou nao pode ser abordado sem que voltemos a essa sensibilidade, a essa condigio inicial que foi o horrivel holocausto do Trafico dos negtos duran- te séculos. A miséria atual do Haiti ¢ a espécie de ambigitidade aco- modada presente na Martinica, dois pdlos completamente opostos, tém suas raizes nessa mesma condigio inicial: 0 Trafico ¢ o desarraigamento das populacées da Africa. Minha convicgao é a de que os sistemas de pensamento ou os pensamentos de sistema nao mais possibilitam o conta- to com o geal, nfio mais fornccem a compreensio nem a dimensio do que acontece realmente nos contatos e nos conflitos de cultura. Porque a dimensio erratica - que se- gundo a ciéncia do caos é a dimensdo dos sistemas deterministas de miultiplas variaveis - tornou-se a dimen- sio do “Todo-o- mundo”. As errancias atuais nao visam. mais a fundagdo de um territorio. Um territério é variavel em suas dimensdées, mas nao é erratico. A fixidez do terri- torio éterrificante. ——~ 104 Durante muito tempo — é preciso sempre repetit — a errincia ocidental, que foi uma errancia de conquistas, uma errancia de fundagio de territérios, contribuiu para reali- zar o que hoje chamamos de “totalidade-mundo”. Mas em um mesmo espago onde temos hoje cada vez mais errfincias internas - ou seja, cada vez mais projegdes em diregio a totalidade-mundo e retornos sobre si mesmo quando se esti imovel, sem sair de seu lugar - essas formas de errancia desencadciam freqiientemente o que chamamos de exilios interiores, momentos em que o imaginiario, a imaginacao, oua sensibilidade estio completamente alheios aquilo que se passa 4 sua volta. O erratico do “Todo-o- mundo”, o carater absolutamente imprevisivel da relagéo entre as cul- turas das humanidades de hoje, repercute, saibamos ou nao, sobre a mentalidade ou a capacidade de reflexos de uma ou de varias partes de uma comunidade. O que mantém as errdncias é uma espécie de entulho geral em um lugar cul- tural, vivenciado como anuéncia, ou como sofrimento. Esse éum dos dados do caos-mundo, isto é, a anuéncia ao seu “entorno” ou o sofrimento em seu “entorno” sao igual- mente operantes como via e meio de conhecimento desse “entorno”. E, conseqientemente, o negativo do softimen- to é constitutivo de identidade tanto quanto a anuéncia na- tural, alegre ou conquistadora. Estamos na presenga de sis- temas de relagao que sao completamente erraticos. O que constitui o “Todo-o-mundo” nao é 0 cosmopolitismo, que é uma transformacio negativa da Relagao. O que constitui 0 “Todo-o-mundo”, é a propria poética dessa Relacao, que permite sublimar, em pleno conhécimento de si e do todo, 105, g ‘sofrimento e a anuéncia, o negativo e 0 positivo, ao mes- mo tempo. Essas consideragSes me permitem retomar as nogdes de crioulizagao e de mesticagem. | Esquematizando ao ma- ximo, diria que a mes igagem é determinismo, eem contraposicio, a crioulizagio é produtora de imprevisibilidade. A crioulizagao é a impossibilidade de previsio. Podemos prever ou determinar a mesticagem, mias nio podemos prever ou determinar a crioulizacio. O mesmo pensamento da ambigiidade, que os especial das ciéncias do caos assinalam na propria base da discipli- na, doravante rege o imagit do caos-mundo € o imagi- nario da Relagio. Podemos resumir explicando a oposigao entre um pensamento arquipélago e um pensamento conti- nental: este ultimo é pensamento de sisterna c aquele é 0 pensamento daquilo que é ambiguo. Neste momento de nossa rcflexfio devemos fazer a se- guinte pergunta: a imprevisibilidade constitui uma carén- cia? Todos nds concordamos em que a previsio dos siste- mas de pensamento nao foi nem muito eficaz nem muito positiva para o devir das humanidades. Mas sera que a imprevisibilidade no seria uma caréncia, ou em todo caso, ela nao criaria esy rer, da von- tade, ou para aquilo que Schopenhauer denominou de que- rer-viver? Considerando-se que os sistemas as dercrministas simples nao podem ser cadticos com efeitos negativos, se considerarmos o mundo como um sistema determinista, sera que esse sistema manifestamente crratico nao poderia ocasionar uma degenerescéncia do ser? Minha resposta é 106 que conhecer o imprevisivel é sincronizar-se com 0 pre- sente, com o presente cm que vivemos, mas de uma outa maneira, ndo mais cmpirica nem sistematica, mas sim poé-; tica. Dizem na Franga que a poesia esta morta. Penso que a, poesia, ¢ em todo Caso 0 exercicio do imaginario, a vis profética do passado juntamente com a visio profética dos. espacos longinquos, ¢, em toda parte, a unica forma que temos de nos inserit na imprevisibilidade da telagéo mun-- dial. “Nenhuma opetagaio global politica, econémica ou de intervencao militar é capaz de comegar a distinguir, mini- mamente, a menor solugao para as contradicocs desse sis- tema erratico que é 0 caos-mundo, se o imaginario da Re- lagao nao repercutir sobre as mentalidades ¢ as sensibilida- des das humanidades de hoje, para leva-las a verter 0 va- por poético, isto ¢, para considcrar-se, humanidades ¢ nao mais Humanidade, de uma maneira nova: como rizoma ¢ nao mais como raiz nica. Penso que nenhuma interven¢aio no Burundi, nem em Ruanda, nem na ex-lugoslavia, nem em nenhum lugar do mundo conseguira “resolver” situa- ¢6es precisas antes que as mentalidades das humanidades tenham se transformado quanto a este aspecto: que existe imprevisibilidade de nossas existéncias e de nossas influén- cias uns sobre os outros. Enquanto vivermos com i de uma identidade raiz unica, havera Bésnias, Ruandas, Burundis, e toda vez seremos confrontados com a mesma impossibilidade. Conversei com amigos tutsis de Ruanda ¢ fiquei completamente convencido de que cles eram viti- mas de um complé hutu; mas também estou persuadido 107 de que sc houver quinhentos tutsis ¢ dez hutus, os dez hutus serio assassinados. IZ, da mesma mancira, sc houver qui- nhentos hutus, os dez tutsis serio massacrados. Ou seja, nao existe solugio. Nio existe solugao dentro do quadro identitario do pensamento de sistema. Nem no apelo 4 to- leriincia (ou 4 piedade), que é um luxo dos pensamentos de sistema, nem através do recurso a forga. E quando se diz que na ex—Tugoslavia sio os bésnios, ou os sérvios, ou os mugulmanos croatas, estes ou aqueles que nao tém razio, retoma-se a velha intransigéncia c escolhem-se as vitimas ¢ os algozes, segundo o seu campo, e recomeg¢a-se a mesma divagaco. E preciso nunca hesitar em defender o 9 optimi- do co ofendido; entittanto, o problamia tojet Conseguir- mos mudar a propria nogio de identidade, a propria pro- fundidade da vivéncia que temos de nossa identidade, ¢ concebermos que somente 0 imaginirio do Todo-o-mun- do (isto é, o fato de que eu possa viver cm meu lugar estan- do em relagio com a totalidade-mundo), somente esse ima- ginario pode nos fazer ultrapassat essas espécies de limites fundamentais que ninguém quer ultrapassar. O Todo-o- mundo é uma desmedida e se nao captarmos a dimensio, dessa desmedida, corremos 0 tisco, na minha opiniao — esta é uma das bases da minha postica, do que poderiamés chamar de minha poética - de arrastar eternamente as ve- Thas impossibilidades que sempre determinam as intoleran- cias, os massacres e os genocidios. _ Faz-se necessario captar a medida-desmedida da visio profética do passado ¢ do imaginario da Relagao acrescida do tratamento dos rastros/ residuos das condigées inici- ais, da imprevisibilidade ¢ deste novo tecido que precisa ser ctiado, que nao corresponde mais ao teflexo da essén- cia mas 4 rede das tclagées, da relacio com 0 outro e das relagées com as outras culturas. O Todo-o-mundo é uma desmedida. ee Finalizando, 0 que gostaria de sugerir-lhes, nao é nem um manual , nem uma espécie de catalogo. Entretanto, so- nho com uma nova abotdagem, uma nova apreciacao da literatura como descoberta do mundo, como descoberta do Todo-o-mundo: Peso que todos os povos dos 110886 terhpos tém uma presenca importante a assumir no nao- sistema de relagdes do Todo-o-munda, e que um povo que nao possui os meios necessarios para refletir sobre essa funcio é, com efeito, um povo oprimido, um povo manti- do em estado de incapacidade. E. entio, como sou um es- critor, sonho com uma nova abordagem da literatura nes- sa desmedida que é 0 Todo-o-mundo. (Os progressos tecnolégicos, liderados pelos paises in- dustrializados - e que garantem seus privilégios no mundo - ptecipitam e retardam, ao mesmo tempo, a Diversidade do Todo-o-mundo. A Internet, por exemplo, e as demais “guto-cstradas da informagao” realizam uma multirrelacio que abre ao infinito a diversidade. Mas os progressos tecnologicos levam também a uma espécie de naio-realida- de, como por exemplo 4s “realidade virtuais” no campo da informatica. Trata-se talvez de um reflexo de fuga dian- te da complexidade por demais angustiante do Todo-o- mundo. Qualquer que seja o seu mérito, o “mundo virtu- al”, no que se refere ao imagindrio humano, nao é mais 109. operante do que seria um esperanto universal em matéria de lingua e de expressao.) Sonhar a literatura contemporinea. Baseio-me na litcra- tua francesa, mas penso quc podemos tomar como exem- plo qualquer outta literatura. Comecarei analisando 0 que chamo de uma medida da medida. Por que? Porque a me- dida da medida é sempre um classicismo, Medida da medi- da: a primeira, obviamente, corresponde 4 medida metrificada. Qualquer que seja a medida classica - latina ou grtega, ou francesa, ou italiana — essa corresponde 4 medi- da metrificada. Medida da medida. E esta medida corresponde ao sopto original, ou seja, a medida que cxis- te em nossa voz, em nosso sopro e em nossa capacidade de falar num sé impulso sem nos sufocarmos. Veremos, ulteriormente, que esta é, por exemplo, a medida do versiculo. O versiculo, o sopro que cmite sem sufocar, com um s6 “proferimento”. Eintéo por que a medida da medi- da? Porque todo classicismo é enderegado ao mundo. E por que todo classicismo enderega-se ao mundo? Porque, através dessa medida da medida, a pretensao de todo classicismo é fazer com que o mundo adote seus valores particularés como valores universais. O classicismo, para uma cultura, corresponde ao momento em que, estando suficientemente cetta de seus prdprios valores, cla pode inscrevé-los nessa medida da medida e propé-los ao mun- do como valores universais. Antes da medida da medida, é claro que todos os actimulos culturais da comunidade es- to presentes - como por exemplo a criacaio de palavras tealizada pot Ronsard ¢ a Pléiade, a definicao do relativismo 110 cultural por Montaigne, os processos contra os sistemas educativos ¢ a introdugao dos procedimentos heréticos de subversio por Rabelais. Todos esses acimulos — e 0 uso desse termo nao significa que se trata de algo “inferior”, mas assinala que a literatura passa a exercer uma outra fun- gio, que éa de escavacio das culturas, de amontoamento de terra, de acumulagio do humo, de agrupamento das obras fecundas, etc. — tendem em dado momento a ser re- duzidos a essa medida da medida que é um classicismo, que propdéc ao mundo seus valores particulares como va- lores universais. Sabemos que, em todas as culturas do mundo, aos classicismos seguem-se periodos barrocos, e que nesses periodos barrocos desenvolve-se uma desmedida da me- dida. O barroco nas ’culturas ocidentais (os libertinos do ‘século XVIII na Franga - Cyrano de Bergerac, Saint-Amant, etc.) - € isso acontece no Momento mesmo em que a arabi- Gio classica se perfaz - ja introduz essh desmedida Namecte que vem na contramao da ambigao classica. Uma negagio. Essa desmedida é uma negacio dam ida mettificada. Qu seja, a Fangio Go Warroco éa dé as da ambigio e da pretensio classica. Oxa, a pretensio classica, obvidinenfe, Ea profinididade. Se proponho meus_valores particulares como valores universais ao mundo, é porque actedito ter alcancado uma profundidade. E © barroco, evidentemente, é a exteasao. O battoco éa extensio, ou seja, a rentincia 4 prctensiio A profundidade. Sabemos que todas as artes barrocas na arquitetura, na pintura ou na literacuta sio artes da extensio, da proliferagao, da redundancia ¢ da of A esse periodo sucede um outro, que chamatei de medida da desmedida. E essa medida é novamente 0 sopro original, mas a desmedida nio coxresponde Aquela da medida metrificada: essa desmedida € 0 mundo - trata- se da desmedida do mundo. E a pretensao é a de restituir, através do sopro original, a desmedida do mundo — como Claudel, Saint-John Perse, e, evidentemente, antes deles, Segalen. Temos ai uma aprendizagem do mundo, da des- medida do mundo. Uma aprendizagem mas de mancira, centrada, isto é, o sap Lo FO, Origa TET ‘dé mm centrore ca! tendese 3 para. as perifcrias. Dafa importincia do Versiculo, mem mec mem medindo a a Semediie Ton mi . E aisso se sucede o que chamo de desmedida da desme! dida que me patece corresponder 4 vocagao da literatura nos dias de hoje. Desmedida nao porque scja anarquico, mas porque nao existe mais a pretensio 4 profundidade, a pretensao ao universal, mas_apenas a pretensio A diversi- dad penciled da. | desmedidal A primera éa ‘abertura to- tal, e eseGunda €o fodo-o-mundo. A literatura tomou esse caminho. FE evidente que as hiteraturas franco fonas inscre- vem-se na desmedida da desmedida, e nao tém que reivin- dicar a negagao realizada pelo barroco, nem a profundida- de do classicismo, porque elas vivem a diversidade e a des- medida do Todo-o- mundo. Se eu fosse um cientista, diria que passei da medida da medida a desmedida da medida; 4 medida da desmedida; a desmedida da desmedida e que realizei um quiasmo: MM, DM, MD, DD. Construi um quiasmo. Nio é todo mundo que pode construir um 112

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