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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Conger, John P.
Jung e Reich: o corpo como sombra / John P. Conger; [tra-
dução de Maria Silvia Mourão Netto). - São Paulo: Summus,
1993.

Bibliografia.
ISBN 85-323-0232-7

1. Espírito e corpo 2. Jung, Carl Gustav, 1875-19613. Psi-


canálise 4. Reich, Wilhelm, 1897-1957 I. Título.

93-1824 CDD-150.195092

índices para catálogo sistemático:

1. Psicanalistas : Biografia e obra 150.195092

'; .
Do original em lfngua inglesa
JUNG AND REICH - The body as shadow
Copyright © 1988 by John B. Conger
Esta edição não poderá ser exportada para Portugal.

Tradução de:
Maria Silvia Mourão Netto

Revisão técnica de:


Denise Gimenez Ramos

Capa de:
Cario Zuffe/lato/ Paulo Humberto Almeida

Para Jane, gêmea divina, que lutou comigo,


buscando a integridade de corpo e alma.

Proibida a reprodução total ou parcial


deste livro, por qualquer meio e sistema,
sem o' prévio consentimento da Editora

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que se reserva a propriedade
desta tradução

Impresso no Brasil
Sumário

Prefácio .................................................................... 11
1. Os fundamentos da natureza humana ........................ 13
2. Jung e Reich: visão geral das semelhanças e diferenças. 19
3. Genitalidade ............ ,............................................. 38
4. Caráter e resistência ............................................... S3
5. Jung, psico patologia e processo de individuação .......... 64
6. A sombra .. :.......................................................... 84
7. O duplo como Self imortal...................................... 93
8. Jung e Reich: o corpo como sombra.......................... 103
9. O cerne, o inconsciente coletivo e mais além ............... 109
10. Ciência e misticismo .. ...... ..... .... ... ... ........ ................ 121
11. Alquimia e orgônio ... ....... ............................... ....... 136
12. Três mitos............................................................ 148
13. O que Reicli e Jung poderiam ter aprendido um com o outro lSS
14. O corpo é mais do que a sombra .............................. 16S
15. Imagem e energia................................................... 174
Bibliografia. ..... .......................................................... 185

7
Agradecimentos

Quero agradecer o grande incentivo e as críticas de meus ami-


gos Bill Schlansky, Nancy Laleau e Craig Comstock, além da habili-
dosa e extenuante colaboração de meu editor, Paul Weisser.
A Wendy Davis Larkin, meus mais calorosos agradecimentos
pelas muitas horas que passou na datilografia deste manuscrito e pe-
lo apoio durante as fases sombrias deste trabalho.
Além de grato, sinto-me profundamente honrado pelo treina-
mento bioenergético que fiz com Alexander Lowen e por suas cuida-
dosas e inestimáveis críticas ao texto, que tanto me influenciaram.
Por fim, sou imensamente grato a David Boadella por sua pers-
picaz leitura do manuscrito e a Myron Sharaf por seu discernimen-
to, seu imenso conhecimento, sua postura humanitária e sua sólida
amizade.

9
Prefácio

Certo dia tive uma fantasia com Wilhelm Reich e Carl Jung.
Nela eu me perguntava o que esses dois homens, que na realidade
nunca se encontraram ou se comunicaram, teriam podido dar um
ao outro, caso tivessem tido uma relação longa e profunda. Pensei
em terapia. O que teria acontecido se um tivesse feito terapia com
o outro? O que teriam aprendido? Das idéias que se seguiram veio
a inspiração para este livro.

11
Capítulo 1

Os fundamentos da natureza humana

Certo autor anglo-saxão comentou que a vida é como uma ave


que esvoaça para dentro de um salão e, por alguns instantes, se aquece
ao calor da lareira, voando em seguida de volta à escuridão. Em tempo
tão breve é difícil para qualquer pensador desincumbir-se da formi-
dável tarefa que se atribui. Nossa vida é-regida por uma austera eco-
nomia interna, que nos faz atravessar o t~p1po impelidos por nosso
daimon, e nem sempre com tempo para refletir.
Seria tolice os psicólogo's acharem que descobriram a psique hu-
mana. As disciplinas espirituais e a literatura mundial vêm estudan-
do a psique há milhares de anos. Thlvez seja nossa inequívoca imper-
feição estarmos sempre redescobrindo a roda. _Aj)stçolo~ia fornece
Um_ponto de encontro consciente -" ou, como diz Heidegger, uma
clareira na selva do ser - para observarmos o relacionamento do ho-
mem com seu meio ambiente e com a legião que chama de si mesmQ.
A psicologia moderna tem uma carreira relativamente breve,
construída por uma sucessão de grandes pensadores, desde Freud e
seus resolutos seguidores, que ele tanto se esforçou para impedir que
partissem. "Sou o professor de atletas", escreveu Walt Whitman.
"Quem oferecer ao meu redor regaço ainda maior do que o meu,
comprova a amplidão que tive. Quem mais honra o meu estilo é aquele
que, sob sua tutela, aprende a destruir o mestre."l Infelizmente, ao
contrário de Whitman, Freud não conseguiu deixar que seus colegas
ou seguidores se afastassem. Um a um, os grandes foram-no deixan-
do, atormentados, zangados, vivendo o conflito da terrível perda de
sua amizade e aprovação; restou-lhes o legado do isolamento, dos
litígios, da superioridade. Mas já se passaram mais de oitenta anos
desde A interpretação dos sonhos e podemos nos voltar para ver se
esses homens estavam, de fato, descrevendo realidades separadas ou
se haviam alcançado uma experiência da natureza humana comum
a todos nós.

13
Há na psicologia uma tendência à adoção de um único sistema Reich era um membro ativo do Partido Socialista Austríaco e,
e a isolá-lo da riqueza do saber, dividi-lo como se a cada teórico cou- depois, do Partido Comunista. Sua atividade politica, de par com
besse uma de suas diferentes partes. Mas, após todos esses anos, tal- sua recusa em acatar a ortodoxia psicanalítica no tocante à sexuali-
vez estejamos diante de uma visão abrangente, capaz de englobar mais dade, causaram seu rompimento com Freud. Essa combinação de es-
do que o conhecimento adquirido por meio do conhecimento de qual- tigmas, somada mais tarde à pesquisa científica duvidosa sobre a ener-
quer uma das partes. Dois teóricos que parecem telr encontrado dois gia orgônica, foi responsável pela dissolução de sua viela familiar e
elefantes completamente diferentes foram Carl Jung j! Wilhelm Reich. pelas reações hostis ao seu trabalho na Europa e nos Estado Unidos.
Carl Gustav Jung nasceu no dia 26 de julho de 1875, em Kess- Reich emigrou para a América em 1939, casou-se outra vez e
wil, na Suíça. Quando jovem, interessou-se por tt:ologia, arqueolo- instalou-se em Rangely, no Maine, onde continuou estudando a ener-
gia, contos folclóricos e fenômenos ocultos. Estudou medicina na gia orgônica. Como não tinha autorização para praticar medicina
Universidade da Basiléia e decidiu especializar-se em psiquiatria, de- nos Estados Unidos, sua tefapia.orgônica foi objeto de investigação
pois de ter lido Krafft-Ebing. Começou a trabalhar sob a supervisão pe~a Food and Drug Administration e, depois de alguns processos,
de Eugen Bleuler, na clínica psiquiátrica do Hospital Burghõlzli, em fOI sentenciado a dois anos de prisão. Morreu na Penitenciária de
Zurique, em 1900. Estudou também com Pierre Janet, no Salpêtrie- Lewisburg, em 3 de novembro de 1957.
re, em Paris, em 1902. Em 1903, casou-se com Emma Rauschenbach, Algumas pessoas não gostam de Reich e outras não gostam de
com quem também colaborou até o falecimento desta, em 1955. Jung. As primeiras se incomodam com a ênfase na genitalidade e
Jung conheceu Freud em 1906, mas embora tivessem ficado pro- clOm as afirmações concernentes ao orgônio. Há pessoas que não gos-
fundamente impressionados um com o'. outro, seus grandes desen- tam de Jung por causa de seu "misticismo", de suas pesquisas psi-
tendimentos impediram que mantivessem um vínculo mais prolon- cológicas sobre as disciplinas e experiências espirituais.
gado. Sua amizade foi interrompida em 1913, após Jung ter publi- Em geral, as pessoas se aborrecem com o conhecimento daqui-
cado Símbolos da transformação. 2 Durante esse período, Jung foi lo que mais precisam. Resistimos àquilo que nos educa mais profun-
ficando cada vez mais interessado pelas imagens inconscientes que damente. A maior~a dos junguianos muito se beneficiaria de um ba-
apareciam na mitologia e, afastando-se da clínica em 1909, passou . nho de Reich e a maioria dos reichianos aproveitaria bastante uma
às suas pesquisas e ao atendimento de clientes particulares. imersão em Jung. Embora queiramos acordos, proteç~io, seguran-
Na década de 1920, viajou bastante, mas, em 1922, comprou ça, talvez nosso melhor caminho seja o do desconforto.
uma propriedade em Bollingen, à margem do lago Zurique, onde co- Uma cliente me informou não ter se beneficiado do aconselha-
meçou a construir e modificar continuamente um castelo de pedra, mento e que precisava de bioenergética. Quando mencionei Jung, no
que batizou de Torre. Até meados dos anos 40, seu consultório, suas
pesquisas e suas publicações mantiveram-se prolíficas.
.
entanto, ela se aborreceu. Era uma antijunguiana militante e , entre-
tanto, precisamente a área da qual mais estava distanciada era a da
Em 1944 sofreu um ataque do coração e, em 1947, retirou-se consciência, a da percepção verbalizada do significado em suas ex-
para a Torre de Bollingen. Seu estudo do inconsciente, porém, não periências e sua vida, e seus fundal.nentos inconscientes. Ela deixou
foi interrompido e, em 1958, publicou sua autobiografia, Mem6rias, muito claro que seu caminho para um senso de vínculo e significa-
sonhos e reflexões. 3 Faleceu no dia 6 de junho de 1961, após breve do, se um dia viesse a ser trilhado, deveria ser mais inconscientemente
enfermidade. enfrentado através da metáfora do corpo e da experiência corporal.
Wilhelm Reich nasceu em Dobrzcynica, na Galícia (Áustria), no Para essa cliente, e para outras como ela, a insistência na forma de
dia 24 de março de 1897. Passou a infância na fazenda dos pais. De- t~atam.en~o escolhida reforçava a maioria de suas defesas problemá-
pois de servir no exército austríaco durante a I Guerra Mundial, es- tIcas, hmltando seu acesso a planos mais profundos de cura e totali-
tudou medicina em Viena, casou-se com uma colega de faculdade dade. Jung e Reich foram teóricos brilhantes, e seus modelos de cu-
e começou a trabalhar na clínica psiquiátrica de Julius Wagner- ra combinados têm muito a nos oferecer.
J auregg. Mais tarde, como assistente da Policlínica Psicanalítica de Jung era fascinado por questões de religião e arqueologia. Em-
Freud, foi acolhido no círculo mais imediato de seus colaboradores. bor~ rigoroso na tradição científica européia, era guiado pela Ursa
Em 1927, foi publicado A função do orgasmo, seguido, em 1933, Mal~r de seus s~nhos alquí.micos. Escudado pelo empirismo e pela
por Análise do caráter e A psicologia de massa do fascismo. 4 teona do conheCimento denvada de Immanuel Kant, ingressou num

14 15
mundo inconsciente maior do que o seu, mundo inconsciente repre- tência com um contador Geiger. 6 Jung traduzia a jornada espiritual
sentado pelo mito, pela alegoria e pelo conto de fadas. Sentiu-se atraí- na terminologia mais neutra da psicologia. Reich explorava anatu-
do em particular pelo estudo dos gnósticos e, mais tarde, dos alqui- reza do contato genuíno do prazer e da afirmação da vida sem ter
mistas. que colocá-la num sistema de crenças.
O grande legado de Jung foi sua capacidade de traduzir a expe- Tanto Jung como Reich devolveram o homem a si mesmo e a
riência espiritual, até então confinada aos sistemas religiosos, em ter- seu processo interior. Ambos compreenderam que o rdno está den-
mos de psicologia, mediante a qual aquela poderia ser questionada tro do homem e que este homem desiste de si mesmo fácil demais.
e examinada. Ele foi capaz de traduzir os mitos de outras épocas e Ambos foram considerados "loucos" ou "místicos" por terem fa-
culturas no nosso mito da ciência do século XX, e nos ensinou técni- lado da abundância inesgotável que sustenta esse frágil, tenaz expe-
cas para integrar o inconsciente em nosso cotidiano. rimento humano, desde o início dos tempos.
Há dois aspectos relevantes quanto a Wilhelrn Reich. No jovem Procedendo de direções diferentes e usando estilos diferentes,
. Reich, mais se destacava a extraordinária concretude de seu pensa- Jung e Reich percorreram as camadas da personalidade, a sombra
mento e uma natureza até certo ponto carente dc~ humor. Era tam- e a defesa do cardter, a camada secunddria e o inconsciente pessoal,
bém obsessivo, brilhante, imensamente vigoroso, extrovertido, or- para vivenciar o amplo mundo coletivo da natureza, qut: tem sua pró-
ganizador, combativo, competitivo e aparentemente seguidor da tra- pria lógica funcional. A partir de suas rígidas particulnridades, am-
dição científica, que ele apresentava como algo (;oncreto, objetivo, bos passaram pela experiência em que, como disse Jung, "O homem
racional e tangível. No início de sua carreira era um ateísta militan- não é mais um indivíduo distinto, mas sua mente se amplia e estende
te, para quem a religião havia contribuído para o desenvolvimento até tornar-se a mente da humanidade, não a mente consciente, mas
do caráter massificado no homem, terreno fértil para o fascismo. a mente inconsciente da humanidade, em cujo seio somos todos os
Em toda sua vida, embora mais claramente em seus últimos anos, mesmos" .7
manifestou uma natureza fluida e intuitiva. Com a descoberta da ener- Os sistemas psicológico~ de Reich e de Jung levaram os dois "aos
gia orgônica, passou do cenário da vida urbana ao "campo", à na- verdadeiros fundamentos da vida", tão belamente expn:~ssos pelo He-
tureza, onde, mais isolado, embora ainda envergando o manto cien- xagrama 48 do I Ching, O Poço:
tífico, tornou-se mais um visionário, um profeta. Chegou a ver e com-
preender profundamente aquilo que muitos grandes artistas, poetas É preciso ir a~s fundamentos da vida. A mera ordenação superficial
e mestres espirituais tinham visto e percebeu-se enfim intimamente da vida, que deixa insatisfeitas as necessidades mais profundas e vi-
relacionado com o mundo da natureza. Disse: "Nenhum grande poeta tais, é, na verdade, inútil. É o mesmo que não realizar qualquer esfor-
ço de organização.[ ... 1 Apesar das diferenças de tendências e educa-
ou escritor, nenhum grande pensador ou artista conseguiu evitar es- ção, os fundamentos da natureza humana são idênticos em todos os
ta constatação íntima e final de estar, de alguma maneira, em algum seres. E cada indivíduo, em sua formação, pode usufruir dessa fonte
lugar, enraizado na natureza como um todo".s inesgotável, que é a centelha divina presente no interior da natureza
Reich tentou ligar-se a alguma coisa fundamental na natureza, humana. 8
tentou fundamentar-se na natureza. Buscou aquilo que chamava de
princípio comum de funcionamento, a similaridade essencial subja- Como a vida do homem, o poço inesgotável continua o mesmo,
cente às diferenças. Valendo-se da ampla consciência alcançada nos abundante para todos, enquanto isso, as nações se transformam e
últimos dez anos de vida, equilibrando-se na corda-bamba de sua pró- as gerações nascem e morrem.
pria sanidade mental, vendo às vezes o que os outros não viam, acu-
sado de loucura e sofrendo ataques malévolos, Reich enfim pôde ad-
mitir ver o que Jung via. Notas
Claro, o amplo oceano atravessado por Jung, tantos anos an-
tes, e que chamou de inconsciente coletivo, tinha sido descoberto mis- 1. Walt Whitman, "Song of MyselP', n~ 47, in Leaves of Grass (Nova York:
ticamente - e, assim, Reich pôde concluir que Freud estava certo New American Library, 1958), p. 92.
2. C. G. Jung, Symbols of Transformation: An Ana/ysis of the Pre/ude to a
ao preteri-lo. Mas Reich havia chegado ao oceano da energia orgô- Case of Schizophrenia, 2~ ed., trad. por R. F. C. Hull, Bollingen Series XX, voI.
nica cósmica como cientista e podia, cientificamente, provar sua exis- 5 (Princeton: Princeton University Press, 1956).

16 17
3. C. G. Jung, Memories, Dreams, Rejlections, ed. revista, trad. por Richard Capítulo 2
e Clara Winston, ed. Aniela Jaffé (Nova York: Pantheon, 1973).
4. Wilhelm Reich, The Function of Orgasm, trad. por Theodore P. Wolfe (Nova
York: Meridian, 1970); idem, Character Ana/ysis, 3~ ed., trad. por Theodore P. Wolfe
(Nova York: Farrar, Straus & Giroux, 1949); idem, The Mass Psych%gy of Fas-
cism, trad. por Vincent R. Carfagno (Nova York: Farrar, Straus & Giroux, 1970).
[Em português, A função do orgasmo, A/lálise do Cará/er, A psicologia de massas
do fascismo, respectivamente.]
5. Wilhelm Reich, Cosmic Superimposition, trad. por Mary Boyd Higgins e
Jung e Reich visão geral das
e

Therese Pol (Nova York: Farrar, Straus & Giroux, 1973), p. 280.
6. Wilhelm Reich, Reich Speaks of Freud (Nova York: Farrar, Straus & Gi-
semelhanças e diferenças
roux, 1967), pp. 88-89. .
7. C. G. Jung, Analytical Psychology: Its Theory and Practice (Nova York:
Vintage, 1968), p. 46.
8. The I Ching or Book of Changes, trad. por Richard Wilhelm e Cary F. Bay-
nes, Bollingen Series XIX (Princeton: Princeton University Press, 1967), p. 48. [Em
português, I Ching, o livro das mutações.} o estudo de Jung e Reich, de suas teorias e jornadas pessoais,
suas semelhanças e diferenças, nos mostra um caminho para explo-
rar a nós mesmos e é uma oportunidade para compreendermos nos-
sa corporificação, o âmbito mais pleno de nossas vidas espiritual e
sexual. Este capítulo delineia algumas semelhanças e diferenças an-
tes de mergulhar numa análise mais detalhada. Na primeira metade
deste livro, discutimos as vidas e os conceitos significativos de Reich
e Jung como preparo para as comparações dos capítulos finais.
Em alguns sentidos, Jung e Reich foram muito diferentes. Reich
era extrovertido, um tipo sensação, de acordo com a tipologia de Jung,
oscilando na polaridade sensação-intuição. Jung era introvertido, pre-
dominantemente mental, e sua natureza sentimento formava a pola-
ridade. Reich era idealista, romântico, intelectualmente concreto, com-
plexo e brilhante, concentrado, com pouco senso de humor, bastan-
te apegado à sua seriedade e a um certo otimismo social que C. P.
Snow detectou em alguns cientistas. l Jung era abstrato, alegórico,
multifacetado, direto, mítico, dotado de grande senso de humor. Reich
afastou seus seguidores. Jung manteve uma comuruda~e leal e per...
manente. Reich era um homem Sem raizes, um cidadão do mundo;
Jung estava profundamente enraizado na Suíça. ·Em sua velhice, Reich
ficou fascinado com Jesus, que considerou o protótipo do homem
natural sem couraça. Jung, criado segundo um cristianismo restriti-
vo e mecânico, aprendeu estudando Hermes. Reich acreditava que
o mal era um resu,ltado secundário da energia bloqueada e que o cer-
ne do homem era simples, direto e amoroso. Jung pensava que o mal
existia nas camadas mais profundas da psique e que estava presente
na imagem de Deus. Reich considerava a libido uma energia sexual
mensurável; posteriormente, ampliou o conceito e chamou-a de oceano
orgõnico, a energia do universo. Jung pensava que a energia sexual
era apenas um aspecto da libido.

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Superficialmente, Jung e Reich parecem ter sido inteiramente di- lher que pareceu ter morrido em seu leito hospitalar, mas depois
ferentes, tanto em suas naturezas como em seus campos de interesse. recuperou-se e pôde relatar com lucidez uma experiência vivida fora
Em geral, Reich é visto como aquele teórico que buscou superar a ci- do corpo, que lhe dera acesso consciente a todos os acontecimentos
são mente/corpo dando mais atenção ao corpo e, em particular, à fun- relativos à sua morte aparente, e que ela "via" e "ouvia" de um certo
ção bioenergética da sexualidade. Jung é reconhecido como aquele que ponto no teto. Jung pergunta-se se há "algum outro substrato ner-
buscou sanar a cisão na psique do homem moderno, que o divorcia voso em nós, afora o do cérebro, que possa pensar e perceber, ou
de suas raízes, dos arquétipos, de sua alma, criando uma abrangente se os processos psíquicos que se desenrolam em nós durante episó-
integração psicológica que envolve um processo simbólico. dios de perda da consciência são fenômenos sincronísticos, isto é,
/ Mas, ao estudarmos Jung e Reich mais a fundo, descobrimos sem uma conexão causal com os processos orgânicos" .;!
i que Jung também se dedicou extensamente à questlio da relação en- Reich estava convencido de que a energia sexual, a libido, ga-
i
tre matéria e psique, entre energia e corpo; e Reich, ao chegar à ida- rantia a psique e era mensurável. .
de madura, ocupou-se cada vez mais das questões c~spirituais e do O estudo de Reich e Jung levanta também outras questões so-
sentimento de radicação na natureza. Um parecia trilhar a estrada brt: nossas naturezas sexual e espiritual. Nosso funcionamento se-
superior do espírito, e o outro, a estrada inferior do corpo; mas en- ,x!lal é \Im Q~!:.~~etro sensível de nossoes1aãó emocional. Reich es~
fim acabaram se encontrando em alguns pontos inesperados. Suas tava certo quando concluiu que o ajustamento neurótico é sustenta-
aventuras, suas apaixonadas e fascinantes expediçôes à natureza de do por uma energia sexual contida? Ainda não foram resolvidas al-
nossa vida no corpo e na psique suscitam questões que interessam gumas questões básicas e cruciais concernentes a aspectos elementa-
a todos. res de nossa natureza. Embora o espiritual tenha sido, às vezes, des-
É difícil para nós saber o que pensar sobre nosso ser incorpora- cartado por explicações forjadas por um pensamento biológico re-
do. Estamos nós simplesmente em nossos corpos ou estamos incor- dudonista, Jung argumentava que imagens de Deus certamente es-
porados e apenas imaginamos estar ém nossos corpos'? Somos cor-
tão na mente inconsciente de cada um de nós. Em sua prática, não
pos que imaginam todo tipo de fantasias irreais'? Sabemos o que é
buscou determinar se Deus existia ou não fora das imagens do in-
dirigir absortos, aparentemente mergulhados em alguma profunda
consciente., Inc()fiscientemente, deificamos alguma coisa: nós mes-
cogitação. De repente, uma momentânea deslizada fora da pista cha-
, mos, a razão, a ciência, a sexualidade, nossos ancestrais talvez. E
ma nossa atenção de volta. Aterrissamos outra vez em nosso corpo,
com um nítido sobressalto. Estivemos de fato fora de nossos cor- aquelas pessoas cuja mente é espiritualmente orientada, que igno-
pos'? Quando nos envolvemos profundamente numa conversa ao te- ram o corpo e o consideram tão insignificante quanto uma peça de
lefone, o que nos cerca se dissolve. Onde estamos? Num ponto eqüi- roupa, devem levar Reich em consideração. O corpo não mente pa-
distante? Mesmo familiarizados com essas experiências, ficamos le- ra.aqueles que souberem ler suas mensagens. A fúria e a dor , as lá-
gitimamente boquiabertos quando nos pedem que expliquemos o que gnmas e as agonias são a história calada na musculatura contraída
está realmente acontecendo, porque nossa consciência, assim como que inconscientemente condiciona nossa vida e nosso sentimento. Ten~
nossa vida corporal, são um mistério para nós. E vamos supor que tamos, às vezes com desespero, transcender o corpo porque não con-
estejamos/ora de nosso corpo. Como se comporta a energia psíqui- seguimos liberar a carga aprisionada na couraça muscular.
ca? É uma energia bioelétrica mensurável? Jung tratou de decifrar Na verdade, as semelhanças entre Jung e Reich são em maior
a natureza da energia psíquica, que chamou de libido, de acordo com número do que a breve lista de suas diferenças, já discutidas. No res-
a terminologia de Freud. Para ele, o sistema psicológico de Freud tante deste capítulo, serão apontadas e examinadas algumas seme-
era um sistema energético fechado, no qual os pensamentos reprimi- lhanças. Algumas delas têm implicações mais profundas e outras
,
·~, dos no inconsciente reapareceriam de alguma outra forma. Viu que n,tai~ ~essoais, talvez c~n~titua~ meras curiosidades. Q~e possívei
os símbolos continham e liberavam energia, mas não encontrou um SI~~lfIcado se pode ~tnbUlr às Iras de Reich e de Jung? Para mim,
meio científico para validar a natureza física da energia psíquica. Em fOI lmportante exammar suas naturezas pessoais, estabelecer o chão
1952, num ensaio sobre sincronicidade, Jung citou os fenômenos pa- donde brotaram suas raízes teóricas.
rapsicológicos investigados na Inglaterra por J. B. Rhine. Em sua Semelhanças
conclusão, ele descreve as vivências "extracorporais" de uma mu- • Ambos foram aos fundamentos da vida.

21
• Ambos consideraram que a mente e o corpo são aspectos diferen- • Ambos sofreram de taquicardia (batimentos cardíacos acelerados)
tes de uma mesma coisa. . . no fim da vida e tiveram ataques do coração.
• Ambos acharam que a natureza usa o homem para conhecer a Sl • Ambos tinham acessos inesperados de ira, no final da vida.
mesma.
• Ambos foram alquimistas. Consideremos agora cada um desses aspectos com mais detalhes.
• Ambos acrescentaram dados à investigação do masculino e do fe-
minino no relacionamento. . . Ambosforam aos fundamentos da vida. Tanto Jung como Reich
• Ambos teorizaram sobre o mal e sobre o papel. do d1abo. akançaram aquele nível em que as diferenças de tempo, culturais e
• Ambos se opuseram à religião tradicional. I .' _ individuais não desviam mais da vasta e inesgotável vida que é nosso
• Ambos consideraram a cultura patológica eque a normal1dade ~a~ pa.trimônio comum. Jung encontrou no conceito do inconsciente co-
é sanidade. Como Nietzsche, ambos criticavam o homem mass1f1- letivo a expressão verbal para essa experiência permanente. Reich,
cado. 'A' d" al por seu compromisso com o estudo da natureza, concentrando sua
• Ambos foram criticados por conturbarem a C1enCla tra 1C1on com atenção nas funções naturais e desinibidas do corpo, via o corpo do
seus métodos inclusivos. Ambos tentaram traduzir experiências mís- ' homem reconectado à expansão e à contração de todas as coisas vi-
ticas para a linguagem científica. . vas. Reich sentia-se enraizado na natureza, como parte do oceano
• Ambos desenvolveram meios não-verbais de trabalhar com a PS1- de orgônio cósmico.
que, que a seu ver evocavam as mais profundas expressões .do Self.
Reich trabalhou com a energia e o corpo, e Jung, com 1magens Ambos consideraram que a mente e o corpo são aspectos dife-
e símbolos. rentes de uma mesma coisa. Reich, é claro, proclamava com audá-
• Ambos acreditavam que os pacientes precisam ficar de frente para cia a identidade funcional entre a psique e o corpo. "A psique e so-
o terapeuta e falar diretamente com ele, em vez de empregarem ma" , escreveu ele, "são dois processos paralelos, em mútua intera-
o método freudiano do divã. 'A • •
ção: paralelismo psicoflsico". 3
• Ambos pintaram quadros, a fim de apreender suas expenenc1as ln- Enquanto Reich trabalhava com o corpo para reintegrá-lo na
teriores de forma mais direta. psique do homem, Jung via o corpo e o espírito como meros aspec-
• Ambos construíram casas para realizar suas visões externamente. tos da única realidade que podemos verdadeiramente constatar: a psi-
• Ambos escreveram uma prosa de grande impacto. que:
• Ambos eram não apenas teóricos mas também terapeutas e pro-
fessores talentosos. Corpo e espírito são para mim meros aspectos da realidade da psique.
• Ambos passaram por um período de crise psicológica após o rom- A experiência psíquica é a única experiência imediata. O corpo é tão
pimento com Freud. ., . . . metafísico como o espírito. Pergunte ao físico moderno o que é o cor-
• Ambos se interessavam. por OVNIs. Re1ch cons1derava-os obJeti- po, ele se encaminha rapidamente para o reconhecimento da realidade
vamente reais, ao passo que Jung tinha-os na conta de símbolos da psique. 4
projetados do Self. . .,
• Ambos escreveram livros controvert1dos, textos ma1S pessoa1s, que Ambos acharam que a natureza usa o homem para conhecer a
originalmente não se destinavam à publicação: Escuta, Zé Ninguém! si mesma. O homem é uma extensão da própria natureza, para que
de Reich e Resposta a Jó, de Jung. ela se conheça; e Reich, em seus últimos anos, refletia sobre o ocea-
• Ambos acreditavam que o trabalho deveria determinar a autori- no de orgônio cósmico e sobre a função e o lugar do homem lia na-
dade da pessoa perante sua comunidade. . tureza. Em Sobreposição cósmica ele escreveu: "Assim, em última
• Ambos tiveram interesse pela condutibilidade da pele e pelo efe1to análise, na consciência de si mesma e no empenho pela perfeição do
das emoções sobre essa condutibilidade. conhecimento e pela plena integração das biofunções pessoais, a ener-
• Ambos orgulharam-se de sua carreira militar. . . gia cósmica org6nica torna-se consciente' de si mesma". S
• Ambos tiveram pais infelizes no c~samento e ambos tiveram ma1S Jung descreveu uma experiência vivida na África e que o encheu
um irmão. de fé na evolução do homem a um plano superior de .consciência,
• Ambos tiveram eczema quando crianças. confirmando para ele o propósito da natureza de conhecer a si mesma:

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"Mas por que motivo", vocês talvez perguntem, "deve ser necessário Ambos teorizaram sobre o mal e sobre o papel do diabo. Reich
que o homem alcance, por bem ou por mal, um nível superior de cons- acreditava que o homem, em seu cerne, busca uma vida saudável,
ciência?" Essa é de fato a questão crucial e não penso que a resposta auto-regulada, direta e objetiva, bem-humorada. Ele pode manifes-
seja fácil. J~m vez de uma resposta real, posso apena.s ~presentar miIlll,a tar raiva e interesses pessoais sem que sejam maus. Ele não acredita-
_~onfissão de fé. Eu creio que, após milhares e milhôes de anos, alguém va, como Freud, que no cerne do homem prevalece o instinto de morte.
teve que se dar conta de que este mundo maravilhoso, com montanhas, O mal, o diabo, o instinto de morte, aparecem como reação secun-
oceanos, sóis e luas, galáxias e nebulosas, plantas e animais, existe. 6 dária, quando o amor natural e expansivo é distorcido. Somente en-
tão começa um processo de encouraçamento muscular, que deflete
Ambos foram alquimistas. Após anos e anos dedicados ao es- o contato genital com o outro:
tudo da alquimia, Jung considerou-a um processo paralelo ao seu
próprio processo de individuação. Sua torre em Bo1lingen, para on- o "diabo" significava o "mal" absoluto, personificado na bem co-
de freqüentemente se retirava, fora projetada de tal modo que al- nhecida criação do inferno pelo pensamento cristão e tão esplendida-
guém, de um século anterior, não a consideraria tão estranha. Sua mente incorporado no Mefistófeles de Goethe. O homem tem conside-
ligação com a alquimia era imediata e física, como se vê nos símbo- rado o "diabo" tentador. Por que, devemos então indagar, ele não
los que ele gravou na pedra. Como Reich, ele utilizou o poder de pensou que Deus é "tentador"? Se o diabo representa a natureza dis-
um processo não-verbal. torcida e Deus é a natureza primitiva, verdadeira, por que o homem
Reich foi um alquimista de modo inconsciente. Fervendo terra se sente tão mais atraído pelo diabo do que por Deus? ..
em retortas, ele mostrava seu fascínio pelos fenômenos físicos; e, nesse A resposta, mais uma vez, é que o diabo é tentador e tão fácil de se-
sentido, era notoriamente similar aos primeiros alquimistas. Para es- guir porque representa os impu/sos secundários, que são tão acessíveis.
tes, a matéria era um grande mistério e, por isso, eram capazes de Deus é tão aborrecido e distante porque representa o cerne da vida,
nela projetar inadvertidamente o inconsciente. Com o passar dos anos, que foi tornado inacess(vel pelo encouraçamento. 7
o avanço científico de Reich foi para\elo ao intenso desenvolvimen-
to de sua consciência espiritual. Ele enfim pôde compreender aquilo Jung achava que o homem é um microcosmo representativo e
que as pessoas religiosas buscavam e sentiam; e ele, finalmente, pô- que, em nossas raízes, há uma inseparável mistura de bem e mal.
de sentir-se vinculado à natureza porque viu que toda a vida era sus- Criada pelo jogo dos opostos, a espécie humana tem predisposição
tentada pelo oceano de orgônio cósmico. para negar a sombra e projetá-la nos outros. Infelizmente, o cristia-
nismo cindiu de modo radical Jesus e o Diabo. Por essa razão, Jung
Ambos contribuíram para a investigação do masculino e do fe- preferiu figuras como a de Hermes (Mercúrio) como mediadoras, por-
minino no relacionamento. Ao investigar o intercurso genital, Reich que representam símbolos que estão igualmente à vontade nas tre-
desmascarou a falsa masculinidade baseada no medo, nas imagens vas e na luz. Para Jung, a figura do Mefistófeles no Fausto, de Goe-
sádicas e no desempenho. Ele. considerava que toda neurose s~refle­ the, era mais fascinante do que o próprio Fausto.
tiana qualidade do ato amoroso. Os homens que parecem grandes
amantes porque conseguem fazer amor uma noite inteira, talvez não Ambos se opuseram à religião tradicional. Em A psicologia de
consigam, de fato, chegar à descarga e à satisfação. Alguns homens massa do fascismo, Reich analisou o fervor religioso como sensações
não conseguem se entregar, render-se às sensações genitais, aceitar sexuais distorcidas e repudiadas, e culpou a Igreja por criar pessoas
uma suavidade mais "feminina" e permitir-se "derreter" no inter- submissas, ao atacar e reprimir a expressão sexual. Na década de 50,
curso. Reich demoliu a fachada e a couraça que impedem um conta- ele finalmente tomou consciência do que constituía a experjência das
to genuíno. Tem também sido dito que, como muitos outros de sua pessoas religiosas e, embora continuasse se opondo ao misticismo que
época, tinha um preconceito contra os homossexuais, que pode re- prega a renúncia à vida em nome de um mundo imaginário de futuras
fletir alguma confusão e medo em relação ao masculino e feminino. recompensas, reconciliou-se com a mente religiosa, que percebe Deus
Jung, por sua disponibilidade para o encontro com o elemento como uma realidade presente. Reich havia determinado cientificamente
contrassexual em si mesmo, o animus ou anima, ajudou a estabelecer essa mesma presença espiritual como o oceano de energia orgônica.
a consciência de nossa natureza bissexual e de nossa tendência a pro- Jung tinha sido criado sob dogmas rígidos e sectários pelo pai,
jetar a anima ou o animus no parceiro. Ao recuperar suas projeções, pastor protestante que perdera sua fé. Jung via o maior perigo na
a pessoa pode começar a relacionar-se independente dessas projeções. religião tradicional, que nega a sombra e promete a salvação, graças

24 25
à adesão apenas. Assolado também por sonhos e visões que cobra- Ambos foram criticados por conturbarem a ciência tradicional
vam dele profunda compreensão dos processos espirituais, Jung foi com seus métodos inclusivos. que esbarravam em outros campos do
atraído pelo estudo dos gnósticos (heréticos perseguidos pelos pri- saber e com eles se misturavam. Ambos se sentiam desconfortáveis
meiros padres da Igreja devido a diferenças doutrinárias), porque com o processo. Reich escreveu sobre sua experiência:
estes pareciam ter alguma compreensão dos problemas de integra-
ção do lado escuro. Mais tarde, em seu estudo da alquimia, Jung Sempre havia muita coisa acontecendo nos seminários: muitos fatos,
encontrou a fundamentação para seu processo de individuação. novas conexões causais, correções de pontos de vista ultrapassados e
imprecisos, ligações com vários ramos das pesquisas especializadas em
Comunicou-se com muitos representantes do clero. alguns dos quais
ciências naturais. Por isso, eu estava sempre precisando me defender
ficaram aborrecidos com seus escritos. Poucos deles, como o padre da crítica de ter ultrapassado os limites do científico, de! ter empreen-
jesuíta Victor White, tornaram-se seus amigos pessoais. Em Respos- dido "coisas demais de uma vez só". Eu não empreendi coisas demais
ta a J6, Jung expõe alguns pontos de vista gnósticos. de uma vez só e não desconsiderei os parâmetros da ciência. Ninguém
mais do que eu sentiu o peso desse "demais" de forma tão aguda e
Ambos consideraram a cultura patol6gica e qUI! normalidade não dolorosa. Eu não me predispus a rastrear fatos; os fatos e as inter-
é sanidade. No início de seu trabalho, Reich ficou admirado com o relações fluíam superabundantes para mim. Tive dificuldade em lidar
amplo número de pessoas com estruturas neuróticas. Suas observa- com eles, com a atenção devida e colocá-los em boa ordem. Muitos,
ções foram com o tempo sendo codificadas em sua condenação do muitos fatos de grande significado perderam-se por causa disso, en-
homem massificado, a quem fora ensinada a submissão e a fraqueza q\ianto outros permaneceram incompreendidos. 1o
genital pela família autoritária e pela Igreja, e que:, portanto, podia
ser facilmente conduzido por um líder fascista. Reich publicou suas Jung também manifestou seu desconforto e percepção do quão
idéias no volume A psicologia de massa do fascismo: inadvertidamente fora arremessado numa profusão de campos para
os quais estava mal equipado:
o homem criado pela autoridade e por ela tolhido não tem conheci-
mento da lei natural da auto-regulação; não tem confiança em si. Te- Os problemas da psicologia analítica, conforme venho tentando deli-
me sua sexualidade porque nunca aprendeu a viver de modo natural. near aqui, levaram-me a conclusões espantosas. A meu ver, estava tra-
Sendo assim, declina de toda responsabilidade por seus atos e decisões balhando dentro dos melhores padrões científicos, estabelecendo fa-
e exige ser dirigido e manobrado. 8 tos, observando, classificando, descrevendo relações causais e funcio-
nais, apenas para constatar no fim que estava me envolvendo numa
o homem cujo comportamento natural, saudável, foi suprimi- rede de reflexões que se estendia muito mais além da ciência natural
do e trucidado deve claudicar emocionalmente da melhor forma que e se ramificava pelos campos da filosofia, da teologia, da religião com-
parada, das ciências humanas em geral. Essa transgressão, tão inevi-
puder, sofrendo da "praga emocional". Reich escreveu que "a energia
tável quanto suspeita, causou-me uma preocupação considerável. Afora
que nutre a praga emocional e suas reações provém regularmente da a minha incompetência pessoal nesses campos, parecia-me que minhas
frustração genital".9 A única esperança, então, é submeter-se à te- reflexões eram ainda suspeitas em princípio, porque estou profunda-
rapia reichiana, que pode romper o caráter neurótico e recuperar a mente convencido de que a "equação pessoal" tem um efeito podero-
pessoa natural, auto-reguladora, cuja função sexual foi restaurada. so sobre os resultados da observação psicológica. O trágico é que a
Jung foi profundamente influenciado por Nietzsche e achava que psicologia não conta com uma matemática auto consistente à sua dis-
qualquer grupo desperta naturalmente uma energia coletiva que en- posição, mas apenas com um cálculo dos preconceitos subjetivos. l1
volve as pessoas inconscientemente. Só através de um processo de
individuação, em que a pessoa toma consciência dos mitos ou dos Ambos desenvolveram meios não-verbais de trabalhar com a
arquétipos que se expressam através dela é que pode atingir um nfvel psique que a seu ver evocavam as mais profundas expressô.es do Self.
de verdadeira sanidade. Para nos diferenciarmos de todos os fatores Reich trabalhou com o corpo e Jung com as imagens e símbolos da
coletivos com os quais nos identificamos não devemos descartá-los, psique. Em sua velhice, Reich preferiu observar o fluxo energético
mas nos tornarmos neutros e deixar de ser dirigidos por forças in- do corpo, utilizando ocasionalmente pressão mecânica. Ficou cada
conscientes. vez mais desconfiado do mero falar que, para ele, muitas vezes afas-
tava a terapia das principais questões expressas no movimento do

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corpo. Jung, em sua meia-idade, passando por sua própria crise in- Ambos escreveram prosas de grande impacto. Tanto Ju.ng co-
terna, confiou no processo simbólico e esculpia em pedra ou pintava mo Reich escreveram e publicaram ao longo de suas extensas carrei-
as figuras oníricas e outras imagens decorrentes da imaginação ati- ras profissionais. Jung, que recebera O título de doutor honoris cau-
va. Ele descobriu que a atenção dada aos símbolos continha e libe- sa de Harvard, ficou especialmente lisonjeado quando foi premiado
rava energia. num concurso literário em Zurique. 12 Reich escreveu em alemão até
1948. Foi um alívio quando conseguiu um domínio suficiente do in-
Ambos acreditavam que os pacientes precisam ficar de frente glês para ficar livre dos tradutores e queixava-se de que Theodore
para o terapeuta efalar diretamente com ele, em vez de empregarem Wolfe, seu dedicado tradutor, "amenizava os pontos de 'clímax' de
o método freudiano do divã. No começo de sua carreira, tratando que [Reich] tanto gostava quando escrevia" .13 Reich tinha hábitos
os pobres na clínica de Freud, Reich trabalhava com uma clientela disciplinados para escrever e trabalhava nisso todos os dias algumas
de operários, para os quais deitar-se num divã, c·:>m o analista fora horas, exceto aos domingos.1 4
do alcance da visão, era contraproducente. Reich desenvolveu um
estilo direto, espontâneo e envolvente de trabalho terapêutico que Ambos eram não apenas te6ricos mas também terapeutas e pro-
servia bem para desafiar a resistência e estimular no paciente sua ca- fessores talentosos. Tanto Reich como Jung foram pessoas carismá-
pacidade para o contato genuíno. Jung também eltlvolvia diretamen- ticas, vigorosas, e isso se refletia em sua atuação no consultório e
te o cliente, sentindo que o contato direto evita uma transferência nas aulas. Aos 2S anos, Reich ministrava um seminário técnico que
desnecessária. Ao ficar de frente para o terapeuta, o cliente é capaz abordava com brilhantismo temas essenciais do trabalho psicanalíti-
de distinguir melhor uma resposta terapêutica glmuína daquela in- co, até então inexplorados. Richard Sterba, um dos alunos de Reich
conscientemente adotada. Jung também acreditava que o cliente e e seu amigo, lembra desses seminários:
terapeuta estão juntos "no mesmo caldo" e que: ambos se modifi-
cam numa terapia bem-sucedida. Desde o começo" Jung já havia per- Ao mesmo tempo em que comecei a atender meu primeiro paciente,
cebido que a contratransferência não pode ser simplesmente descar- no outono de 1924, participava dos encontros na sociedade e dos se-
tada, mas precisa ser plenamente enfrentada na terapia. minários técnicos que Wilhelm Reich iniciara em 1922. Reich foi a maior
influência no meu desenvolvimento como terapeuta psicanalítico. Foi
Ambos pintaram quadros, a fim de apreender suas experiências uma personalidade impressionante, cheio de intensidade juvenil. Sua
argúcia clínica e sua habilidade técnica fizeram dele um excelente pro-
interiores deforma mais direta. As pinturas de Jung foram uma parte fessor e seu seminário técnico era tão instrutivo que muitos dos velhos
integral de seu próprio auto-exame. Reich, no final de sua vida, no membros da sociedade freqüentavam-no com regularidade. 15
Maine, pintou para captar as imagens da energia que tinha começa-
do a ver. Nos anos 30, na Escandinávia, tinha ficado muito impres- Ao longo de sua carreira, Rdch continuou lecionando para pe-
sionado com o poderoso trabalho de Edvard Munch. quenos grupos de associados e fazendo terapia. Myron Sharaf, bió-
grafo de Reich, lembra de sua terapia com Reich, em meados de 1940:
Ambos construíram casas para manifestar externamente suas vi-
sões. Reich ergueu laboratórios em Rangely, no Maine, para con- Fiquei extremamente impressionado com o modo como Reich traba-
cretizar o sonho de alguém que tinha perambulado sem casa, de con- lhou meu corpo. Ele me fazia respirar e depois ficava indicando o mo-
tinente em continente. Rangely talvez tenha lembrado a Reich a fa- do como eu me impedia de soltar o ar com naturalidade. Às vezes ele
zenda de sua familia, perdida na Áustria há tantos anos, e simboli- pressionava certas partes do meu corpo, particularmente meu peito;
camente reconciliava sua curiosidade científica com uma infância re- Algumas vezes isso era seguido por um choro muito intenso, por solu-
lativamente serena. Sua casa em Rangely dava-lhe uma sensação de ços profundos que eu não me lembrava de ter sentido antes do mesmo
jeito. Ele então me encorajava com simpatia: "Não se envergonhe. Eu
totalidade e proteção, de refúgio do mundo. já ouvi choro assim milhares de vezes. Esse sofrimento é sua melhor
Jung levou anos criando sua casa em Bollingen, que representa- coisa". 16
va para ele um poderoso símbolo psíquico. Cada mudança na cons-
trução significava um avanço psicológico e espiritual, possibilitando- Jung também ensinava seus seguidores em pequenos seminários
lhe um escape para um estilo de vida mais primitivo. que duraram toda a sua carreira. São abundantes os episódios sobre

28 29
di~a que fosse s~rgindo. Essa reunião foi um golpe esmagador para
sua vida como terapeuta. Joseph Henderson, aluno, colega e amigo Relch e .0 conflito tornou-se ainda mais sério no início de 1927.
de Jung, lembra dele como pessoa vigorosa e ambiciosa aos cinqüenta MUltos outros fatores são atribuídos ao conflito inclusive o cres-
e poucos anos, não tanto como cientista rigoroso, mais filósofo, ho- cente interesse de Reich pela teoria marxista e pela a~ão social. Além
mem rico em conhecimentos.17 Segundo Henderson, ele era "uma disso, Reich, que fora o filho favorito de Freud, pedira-lhe que o ana-
espécie de humanista, dentro da Wltiga tradição renascentista, na qual lis~sse. Este, embora tivesse estipulado a regra de nã.o mais analisar
um autêntico cientista e artista fundem-se num homem de tempera- os que trabalhavam com ele, tinha considerado a possibilidade de não
mento e treinamento filosóficos. Acima de tudo, era um humanista observá-la; para Reich, foi um momento arrasador quando enfim
em ação, não na teoria" .18 Assim como muitos outros, Henderson Freud se decidiu por mantê-la. Outra causa de conflito era~ os ciú~
se admirava com o extraordinário poder e intuição de Jung: mes e o antagonismo de outros analistas, entre eles o dr. Paul Fedem
que abalou a posição de favorito que Reich tinha junto a Freud. '
Havia, no entanto, um outro aspecto do caráter de Jung que se recu- . Nessa época, ~eich teve turberculose pulmonar, doença que já
sava a se enquadrar nos padrões culturais euro:\leus porque parecia to- t~nha matado seu l~mão e seu pai e representava o e:.ltresse que sen-
talmente estranho a qualquer cultura. Parecia invadi-lo, procedente de tia. Seu colapso fíSiCO o fez retirar-se para um sanatói"Ío em Davos
um nível primitivo absolutamente desconhecido, porém absolutamen- na Suíça, onde ficou alguns meses. '
te irresistível, em seu ser. Hoje penso (graças a algumas de suas pró-
prias formulações) que era o xamã que às vezes fazia Jung tornar-se
um homem assombrosamente perceptivo e assustadoramente imprevi- Am~os se inte,!essavam p'0r OVNIs. Já em 1946, Jung tinha acu-
sível em seus comportamentos. Era este o seu lado que jamais supor- mulado lllformaçoes a respeito de OVNIs. Ele se interessava mais
tava o tédio e conseguia mantê~lo sempre em apuros com alguém.
19 pelo fato de tantas pessoas estarem vendo objetos circulares no céu
do q~e por sua existência em si. Considerava a possibilidade de a
Ambos passaram por um período de crise psicológica após a rup- espéCie humana estar projetando no céu a imagem da totalidade co-
iura com Freud. Como ele mesmo admitiu, após sua ruptura com rno um meio de sanar as feridas psíquicas de nossa era:
Freud, em 1913, começou para Jung um longo período de incerte-
zas, de confronto com o inconsciente que terminou por volta de 1919. Eles (OyNIs) são .manifestações impressionantes da totalidade, cuja
f~rm~ Simples e circular retrata o arquétipo do Self; que, por expe-
O que ele aprendeu durante esses anos tornou-se a base de seu traba-
nenCla, sabem~s dese~~en~ar o pa~el principal na união de opostos
lho posterior e de sua autobiografia,· Memórias.. sonhos e reflexões, aparentemente ureconclliávels e, por ISSO, é o mais adequado para com-
que descreve em detalhes esse período. 2o pensar a fragmentação psíquica de nossa era. 23
Reich recebeu uma série de objeçõe.s de Freud, em 1926. Ao lhe
apresentar seu manuscrito de A função do orgasmo, em 6 de maio, Reich leu um livro sobre discos voadores em novembro de 1953
quando Freud comemorava seu septuagésimo aniversário, o único o Objetos voado~es vindos ~o espaço exterior24 de Donald Keyhoe:
comentário de Freud foi: "Grosso, não?". Freud, que geralmente e esse texto conflfm~va aqUllo em que vinha acreditando já há al-
lia manuscritos e logo os devolvia, levou vários meses para devolvê- gum tempo: que a Vida se estende para muito mais além de nosso
lo a Reich. No outono de 1926, fOI publicado o livro de Freud Inibi- planeta. Myron Sharaf escreve a esse respeito: .
ções, sintomas e ansiedade e, nesse trabalho, ele retira suas coloca-
ções anteriores relativas à ansiedade de estase. 21 Uma vez que o pro- Ele fic~u conve~cido de que os OVNIs eram "espaçonaves" movidas
cedimento implicíto era sempre trabalhar com uma idéia dentro da a ene!gla orgôn!ca. Baseou esta interpretação em certas observações
estrutura do pensamento freudiano, o embasamentó somático de que flzer~ dos diSCOS voadores: a luz azulada que emanava das abertu-
Reich passou a ser um afastamento radical. "Uma relação entre a ras do diSCO, sua movimentação relativamente silenciosa e as mano-
bras iilcomuns que podia executar. 2S
.......... ansiedade verdadeira e a ansiedade neurótica", Freud disse então,
"não pode ser estabelecida."22 Em dezembro de 1926, no círculo ín- . ~mbos escreveram livros controvertidos, fruto de profundas re-
timo de Freud, Reich apresentou a técnica de análise do caráter. Freud f1exoes, "las que ta.mbém eram textos mais pessoais e que, original-
contradisse-o sem rodeios e insistiu que, em vez de primeiro inter- mente, nao se destmavam a ser publicados. Reich escreveu Escuta,
pretar a resistência, o terapeuta deveria interpretar o material à me-
31
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Zé Ninguém! em 1946. O livro representava a enorme frustração que ma, evitava diminuir a autoridade que se tivesse desenvolvido a par-
sentia diante da estreiteza de horizontes e de mentalidade das pes- tir de um trabalho árduo. Ao criar o C. G. Jung Institute, em 1948,
soas que sofriam da praga emocional. Embora o livro tenha seu en- Jung redigiu os estatutos que estabeleciam um corpo executivo, cha-
canto, seu tom é muito estridente e auto-revelador, e nele ficam ex- mado curatorium, que dirigia a instituição. Essa concentração de po-
postas toda sua mágoa e cansaço: der nas mãos do curatorium sofreu objeção de muitos seguidores de
Jung, mas ele permaneceu inabalável a esse respeito, pois, como es-
Quando ouvem falar do meu orgônio não perguntam "O que pode fa- creve sua biógrafa e amiga íntima, Barbara Hannah, "as pessoas que
zer para curar os doentes?". Não. Perguntam: "Ele tem licença para fazem o trabalho devem deter o poder, e qualquer outra coisa leva-
praticar medicina no Estado do Maine?". Você não percebem que, em- ria a um abuso do mesmo, e esse era o grande perigo que ele temia
bora possam atrapalhar um pouco o meu trabalho com suas malditas ao permitir que sua psicologia fosse dotada de uma forma social,
licenças, não conseguem detê-lo. Tenho reputação internacional como como a de um instituto" .29
descobridor de sua praga emocional e como investigador de sua ener-
gia vital. Portanto, ninguém está mais qualificado do que eu para me
examinar, a menos que saiba mais do que eu. 26
Ambos tiveram interesse pela condutibilidade e/étrica da pele e
pelo efeito das emoções sobre essa condutibilidade. Enquanto tra-
Em seu Resposta a J6, publicado em 1951, Jung desencadeou balhava no hospital Burghõlzli, em 1904, Jung começou a usar o teste
uma tempestuosa reação. Descreveu Jeová, em sua interação com de associações de palavras, de Wundt, de um novo jeito. Para esta-
Jó, como um ser moralmente inferior, menos que humano, apenas belecer a presença dos complexos, e assim determinar a realidade do
mais poderoso: inconsciente, os pacientes deveriam fazer associações com as pala-
vras apresentadas. Suas respostas eram cronometradas e desvios sig-
I
Na verdade, leová tudo pode e se permite, sem pestanejar um momento. nificativos em relação ao tempo médio serviam como chaves para
Com total impassibilidade, pode projetar sua sombra e continuar in- a interferência do inconsciente. Num nível maior de sofisticação, ele
consciente disto à custa do homem ( ... ) Assassínios e morticínios são empregou equipamento elétrico para medir a condutibilidade elétri-
meras bagatelas, e, se lhe dá vontade, pode bancar o grande senhor ca da pele e os desvios nessa condutibilidade mostraram uma corre-
feudal e generosamente ressarcir seus escravos pela destruição ocorri- lação significativa com os desvios nos tempos de resposta. Em virtu-
da nas plantações de trigo. "Então perderam seus filhos e filhas? Não de de seu trabalho com o teste de associações, Jung foi convidado
tem importância, eu lhes darei outros, melhores. ,,27 a dar palestras nos Estados Unidos, e viajou então com Freud, em
1909, para a Universidade Clark, onde ambos deram conferências.
Jung dizia que Jó era moralmwte superior a Deus e que, por isso:
Reich tinha desejado estabelecer a natureza bioelétrica da res-
Jeová precisa tornar-se homem justamente por ter causado mal ao ho-
posta sexual e estudar o prazer sexual. No laboratório do Instituto
mem. Ele, o guardião da Justiça, sabe que todo erro deve ser reparado de Psicologia da Universidade de Oslo, em 1935, Reich fez experiên-
e a Sabedoria não desconhece que Ele também está submetido à lei mo- cias utilizando o fenômeno psicogalvânico. Pôde então determinar
ral. Por ter sido superado por sua criatura, ele deve se regenerar. 28 que numa zona erógena do corpo a mera intumescência não aumen-
tava o potencial elétrico. Somente quando havia resposta subjetiva
Ambos acreditavam que o trabalho é que deve determinar a au- de excitação e prazer sexual é que aumentava o potencial elétrico.
toridade da pessoa diante de sua comunidade. Nos anos 30, Reich Reich pôde medir aquilo que até então tinham sido respostas subje-
estava morando na Escandinávia, ainda com a noção marxista de tivas (prazer e ansiedade) e mostrar que há uma carga bioelétrica no
igualdade entre patrões e empregados. Em sua própria organização, movimento da libido pelo corpo.
porém, Reich não estava disposto a abrir mão do poder e argumen-
.... l. tava que as pessoas podiam se manifestar apenas nas áreas para as Ambos se orgulharam de sua carreira militar. Evidentemente,
quais contribuíssem com um trabalho genuíno. Ao ficar mais velho, Reich perdeu sua fazenda austríaca na Primeira Guerra Mundial e
Jung percebeu que a organização junguiana nem sempre representa- foi recrutado já na adolescência. A experiência para ele foi positiva,
va seus desejos pessoais.· Recusava~se porém a interferir nas áreas apesar das perdas pessoais. Ilse Ollendorf Reich, sua terceira espo-
em que não estivesse contribuindo com trabalho efetivo. Dessa for- sa, escreveu a esse respeito:

32 33
Acho que, no geral, ele gostou de sua vida militar. Não era pacifista jugal de sua casa na infância. Seu pai, homem ciumento, tirânico,
por natureza e a responsabilidade por um grupo de pessoas lhe agra- tinha acessos constantes de fúria que intimidavam a mulher. O sui-
dava. Serviu ativamente no front italiano e às vezes, contava como eram
bombardeados dias seguidos ... Recordava-se das moças italianas mui- cídio da mãe de Reich pode ter tornado o eczema do fIlho permanente.
to cooperativas ... Ele deve ter gostado de envergar o uniforme mili- Em Mem6rias, sonhos e reflexões, Jung se recorda de um pe-
tar. Dizia-nos que embora estivesse na infantaria sempre usava espo- ríodo de eczema na infância, após a separação temporária da'mãe,
ras ... Tenho a impressão de que, naquele tempo, sua consciência so- hospitalizada quando ele estava com três anos. Ele também tinha uma
cial ainda não estava muito desenvolvida e que entrou na guerra sem dolorosa percepção do casamento infeliz dos pais:
se importar muito com os seus prós e contras. 30
Eu sofria de um eczema generalizado, como minha mãe mais tarde me
Como cidadão suíço, durante anos, Jung foi Àntegrante do exér- contou. Tênues insinuações de dificuldades no casamento de meus pais
cito. Barbara Hannah conta em sua biografia: pairavam ameaçadoras sobre minha cabeça. Minha doença, em 1878,
deve ter tido ligação com a separação temporária de meus pais. 3s
Durante a guerra, Jung prestou repetidos períodos de serviço militar,
com grande entusiasmo. Para ele, uma das perdas da velhice era ter Ambos sofreram de taquicardia. Reich sofreu disso no final da
mais idade do que o permitido para lutar na Segunda Guerra, embora década de 40. Fumou sem cessar até ter um ataque cardía.co, em 1951,
ainda estivesse muito bem e bastante ativo, até sua grave enfermida-
de, em 1944. 31 quando enfim deixou o hábito. Ilse Ollendorf Reich fala de um ata-
que em 1949:
Ambos tiveram pais infelizes no casamento e ambos tiveram mais
um irmão. A irmã de Jung, Gertrud, nasceu quando ele estava com Em fevereiro, ele teve vários ataques sérios de taquicardia e vários epi-
nove anos. Passou o início de sua infância como filho único. Os pais sódios de vertigem, decqrrentes de paroxismos de tosse. Decidiu dimi-
dormiam em quartos separados e Jung dividia o seu com o pai. Quan- nuir o excesso de cigarro mas não se saiu muito bem com essa resolu-
do este faleceu, em 1896, Jung in~umbiu-se não só de continuar es- ção. Não achava que seus sintomas físicos fossem o resultado de ex-
tudando, mas também de sustentar a mãe e a irmã de doze anos. "O cesso de trabalho. Pensava, ao contrário, que se deviam ao medo de
casamento de meus pais", escreveu,"não foi feliz, era cheio de pro- seus esforços se perderem pelo uso indevido, interpretação equivoca-
blemas e dificuldades, e de testes de paciência. Ambos cometeram da ou degeneração. 36
os erros típicos de muitos casais".32 O pai de Jung tinha estudado
línguas orientais em. Gõttingen e completara uma dissertação em árabe Jung também sofreu de taquicardia no final da vida. Em feve-
sobre o "Cântico dos Cânticos". Sua felicidade parece ter termina- reiro de 1944, escorregou na neve e foi hospitalizado com fratura
do com o final de seu tempo de estudante. Seu casamento foi uma na fíbula. Onze dias depois, teve uma forte trombose do coração e
grande decepção. Tanto o pai como a mãe de Jung esforçaram-se algumas outras, que atingiram os pulmões. Em novembro de 1946,
ao máximo para serem devotos, "com o resultado", escreveu seu fi- teve um segundo ataque do coração, seguido por outros, de taqui-
lho, "de terem criado entre si cenas de raiva excessivamente freqüen- cardia. Barbara Hannah escreveu a respeito desse período:
tes" .33 '
Reich tinha três anos quando nasceu Robert, seu irmão. Sua re- Após sua doença, disse que estava em dúvida de ter tido mesmo um
lação parece ter sido competitiva, ~as amistosa. O pai era um ho- infarto do coração. No máximo, considerava que tinha havido uma
mem fascinante, vigoroso, dominador, dado a acessos de fúria. Seus perturbação do sistema nervoso vegetativo que lhe produzira a taqui-
abusos e cenas de ciúme infelizmente predominaram em seu casa- cardia (aceleração do pulso). Mais uma vez, como acontece com os mé-
mento infeliz. 34 ,
dicos do mundo inteiro, estava diante da incumbência de se curar. Os
Tanto o irmão de Reich como a irmã de Jung faleceram cedo: médicos insistiram que tinha havido um segundo ataque cardíaco e,
Robert aos 26 e Gertrud aos 41 anos. por isso, ele se viu forçado a descobrir pessoalmente o que tinha real-
mente acontecido e como devia ser tratado. Mais uma vez, disse que
sua enfermidade era decorrente do confronto com o misterioso pro-
Ambos tiveram eczema quando crianças. O incurável eczema de blema do hierosgamos (o mysterium coniunctionis).37
Reich durou toda a sua vida e talvez tivesse relação com a tensão con-

34 35
12. Ver Barbara Hannah, Jung: Bis Life and Work: A Biographical Memoir
Ambos tinham acessos inesperados de ira, no final da vida. IÍse (Nova York: Putnam's, 1976), p. 207: "Em 1932, a cidade de Zurique conferiu a
Ollendorf Reich relata que seu marido explodia de forma imprevis- Jung seu prêmio literário. Isso o agradou muito, mais do que honrarias bem mais
ta, em acessos de ciúme furioso durante o tempo (:m que estiveram consagradas como os titulos de doutor honoris causa que lhe eram freqüentemente
casados. Quando a imprensa escandinava o atacou, no final da dé- outorgados por instituições do exterior, pois se tratava da primeira mostra de reco-
nhecimento de seu próprio pais".
cada de 30, ele aparentemente despejou suas frustrações em Elsa Lin- 13. Myron Sharaf, Fury on Earth: A Biography of Wilhelm Reich (Nova York:
denberg, sua segunda esposa. Mais tarde, no final da década de 40 St. Martin's Press, 1983), p. 267.
e início da década de 50, perseguido na América,' explodia com Use. 14. Ibid.
Mais adiante, começou a beber bastante à noite, acusando-a raivo- 15. Richard F. Sterba, Reminiscences of a Viennese Psychoanalyst (Detroit:
samente de infidelidade, e esses dois fatores finalmente levaram-na Wayne State University Press, 1982), p. 34.
16. Sharaf, Fury on Earth, p. 24.
a partir, em 1953. 17. Joseph L. Henderson, "C. G. Jung: A Personal Evaluation", in Contact
Já idoso, Jung também explodia ocasionalmente em acessos de with Jung, ed. Michael Fordham (Filadélfia: Lippincott, 1963), p. 222.
raiva, pedindo depois o perdão de sua governanta pelo que ele con- 18. Ibid., p. 221.
siderava irrupções peculiares e descontroladas. Vincent Brome escre- 19. lbid., p. 222.
20. C. G. Jung, Memories, Dreams, Reflections, ed. revista, trad. por Richard
veu sobre isso: e Clara Winston, ed. Aniela Jaffé (Nova York: Pantheon, 1973). [Em português,
Mem6rias, Sonhos e Reflexões]
Ao contratá-la, Jung disse à srta. Bailey: "Bem, há uma coisa que a 21. Ver Sigmund Freud, The Problem ofAnxiety, trad. por Henry Alden Bun-
senhora deve entender: sou um homem que tem momentos de raiva ker (Nova York: W. W. Norton, 1936).
muito forte. Não lhes dê importância. Não significam nada. E logo 22. Reich, Function of Orgasm, p. 112.
passam". Seu "terrível temperamento" logo tornou-se evidente. 38 23. C. G. Jung, F/ying Saucers: A Myth ofThings Seen in the Skies, trad. por
R. F. C. Hull, BoJlingen Series XX, vol. 10 (Princeton: Princeton University Press,
1978), p. 21.
24. Donald Keyhoe, F/ying Saucersfrom Outer Space (Nova York: Henry Holt,
1953). .
Notas 25. Sharaf, Fury on Earth, p. 413.
26. Wilhelm Reich, Listen, Little Man/, trad. por Ralph Manheim (Nova York:
1. C. P. Snow, The Two Cultures: and A Second Look (Cambridge, Inglater- Farrar, Straus & Giroux, 1974), p. 53. [Em português, Escuta, Zé Ninguém.]
ra: Cambridge University Press, 1969), p. 7. 27. C. G. Jung, The Answer to Job, trad. por R. F. C. Hull, Bollingen Series
2. C. G. Jung, The Structure and Dynamics of the Psyche, 2~ edição, trad. XX, voi. 11 (Princeton: Princeton University Press, 1973), p. 20. [Em português,
por R. F. C. Hull, Bollingen Series XX, vol. 8 (princeton: Princeton University Press, Resposta a J6]
1969), p. 509. [Em Português, A dinamica do inconsciente.) 28. Ibid., p. 43.
3. Wilhelm Reich, The Function of Orgasm, trad. por Theodore P. Wolfe 29. Hannah, Jung, p. 298 (grifo no original).
(Nova York: Meridian, 1970), p. 51. IEm português, A função do orgasmo.) 30. Bse Ollendorf Reich, Wilhelm Reich: A Personal Biography (Nova York:
4. C. G. Jung, "Letter to Henry A. Murray, September 10, 1935", in C. G. St. Martin's Press, 1969), p. 5.
Jung Letters, vol. 1 (1906-1950), trad. por R. F. C. Hull, ed. Gerhard Adler e Aniela 31. Hannah, Jung, p. 216.
Jaffé, Bollingen Series XVC (Princeton: Princeton University Press, 1973), p. 200. 32. Jung, Memories, Dreams, Reflections, p. 315.
5. Wilhelm Reich, Cosmic Superimposition, trad. por Mary Boyd Higgins e 33. Ibid., p. 91.
Therese Pol (Nova York: Farrar, Straus & Giroux, 1973), p. 280. 34. Sharaf, Fury on Earth, p. 37.
6. C. G. Jung, The Archetypes and the Collective Unconscious, trad. por R. 35. Jung, Memories, Dreams, Reflections, p. 8.
F. C. Hull, ed. Sir Herbert Read, Michael Fordham e Gerhard Adler, Bollingen Se- 36. Bse Ollendorf Reich, Wilhelm Reich, p. 93.
ries XX, voi. 9 (Princeton: Princeton University Press, 1980), pp. 95-96. 37. Hannah, Jung, p. 294.
7. Wilhelm Reich, Ether, God and Devil, trad. por Mary Boyd Higgins e The- 38. Vincent Brome, Jung: Man and Myth (Nova York: Atheneum, 1978), p. 262.
rese Pol (Nova York: Farrar, Straus & Giroux, 1973), pp. 137-138 (grifo no original).
8. Wilhelm Reich, The Mass Psychology of Fascism, trad. por Vincent R.
Carfagrio (Nova York: Farrar, Straus & Giroux, 1970), p. 111. [Em português, A
psicologia de massas do fascismo.]
9. Wilhelm Reich, Character Analysis, 3 ~ ed., trad. por Theodore P. Wolfe (Nova
York: Farrar, Straus & Girou~, 1949), p. 251. [Em português, Análise do caráter.]
1O.Reich, Ether, God and Devil, p. 4.
11. Jung, Structure and Dynamics, p. 216.

37
Capítulo 3 A atenção dada por Reich à sexualidade e ao intercurso. genital
não era incentivada pela cultura, nem por seus colegas psicanalistas.
Para muitos deles, seu enfoque parecia restrito demais, sua aborda-
gem beligerante demais. Ele acreditava que todas as neuroses eram
causadas por uma ligação doentia entre um conflito psíquico e a ener-
Genitalidade _già sexual contida, que o bloqueio da força vital nos próprios teci-
dos do corpo era a causa da mis'sria psíquica do homem e do mim-
do. Podemos compreender melhor sua concentrada atenção sobré a
sexualidade se analisarmos sua infância.
Reich foi criado com seu irmão mais novo, Robert, numa fa-
zenda da parte ucraniana da Áustria. Parece que foram parcialmen-
te isolados do convívio com outras crianças de sua idade. Como muitas
outras famílias judias no final do século XIX no Império Austríaco,
Infelizmente, no desenrolar da cultura ocidental, a mente do ho- os Reich tinham-se "assimilado" à cultura alemã da época, afastando-
mem tornou-se divorciada de seu corpo. A sexualidade, em especial, se de suas próprias tradições religiosas. Uma vez que o pai aspirava
tem sido associada ao indesejável elemento animal, força demonía- a uma posição social mais elevada, os filhos eram dissuadidos de brin-
ca que corrompe a verdadeira natureza espiritual dos homens. As- car com camponeses e com outros judeus, e tinham professores par-
sim como a cultura ocidental negou o valor da sexualidade, a psica- ticulares.
nálise negou o valor da espiritualidade. Freud c Reich, impressiona- Reich foi um menino muito apegado à mãe, descrita como mu-
dos com a força do instinto sexual, rejeitaram a realidade espiritual lher atraente, mas fraca. O pai, por outro lado, parece ter sido um
como uma ilusão culturalmente induzida por meio da repressão sexual. homem rígido, tenso, violento, de competência e inteligência consi-
Jung, por outro lado, considerava espiritualidade e sexualidade deráveis. 2
polaridades na psique humana. Quer as aceitemos ou rejeitemos, há
No início da adolescência, movido por sua própria curiosidade
imagens de deuses na psique do homem. Saber se Deus existe fora
sexual involuntária, Reich precipitou alguns eventos brutais que o
da psique humana foi algo que ele preferiu deixar para os teólogos,
mas incluiu a sexualidade em seu panteão como um deus ctônico som- dominaram inconscientemente por muitos anos. Ele descobriu que
brio. Quando criança, sonhou que descia uma velha escada de pedra a sua mãe estava tendo um romance com seu professor. Myron Sha-
localizada no campo, encontrando no fundo uma imensa forma ere- raf, em sua biografia de Reich, deduziu com exatidão a trágica his-
ta, de carne, com um só olho, um itífalo. Jung constatou a realidade tória do en~olvimento de Reich na morte de seus pais, como descri-
espiritual por intermédio de visões e confusos e dolorosos sonhos. to em Passlon of ",!,ou.th, autobiografia de Reich recém-publicada,
Como Reich, Jung dava vazão à sua natureza sexual. Ambos foram tratando de seus pnmerros anos de vida. 3 Sharaf também chama nos-
famosos por sua constituição saudável, vigorosa. sa atenção para \1m mal-disfarçado relato autobiográfico que Reich
As idéias de Reich sobre sexualidade foram centrais ao seu pen- apresentou como artigo em um seminário médico na Universidade,
samento ao long"o-dêfoda a sua multifacetada carreira profissional. sobre sexualidade e que foi publicado em 1920, com o título de "A
Pesde o início da década de 20 considerava a libido uma energia bio- Case of Pub~rtal Breaching of the Incest Taboo" . De forma velada,
tãgica,mensurável, e não apenas uma abstração útil. Nos anos 30, temos um VIslumbre do que era seu lar, no início da meninice:
estava em condições de medi-la como energia bioelétrica. E, na dé-
.cada de 40, ampliara a energia sexual para incluir o éter invisível do Ele era criado com muita severidade pelo pai, sempre tendo que ir mais
universo: a energia orgônica. Reich acreditava que, em sua abundân- long~ do ~\le os ~ompanheiros, para satisfazer a ambição paterna de
cia, a vida estava suspensa num oceano invisível de orgônio. O in- ter fllhos mdustnosos. Desde os primeiros anos de vida, uma profun-
tercurso genital - quer dizer, o intercurso sexual -, que fascinara d~ ternura ligava-o à mã~, e era ela quem muitas vezes protegia-o dos
Reich no inicio de sua carreira, nos anos 20, ainda dominava todo VIOlentos excessos do paI. O casamento dos pais não era feliz: a mãe
um capítulo de seu Assassinato de Cristo, escrito nos anos 50, já perto "sofria terrivelmente" por causa do ciúme do marido. 4
do final de sua vida. l

38
39
Conforme progredia o romance da mãe, de acordo com o rela- tendo experiências sexuais há vários anos, com um bom nível de pra-
to, o menino se atormentava ccm o terrível segredo. "Ou era o meu zer, mas que aquela mulher era diferente de todas as anteriores. Pela
ódio inconsciente do Pai ou a excitação erótica de estar envolvido primeira vez, vivera o pleno significado do amor. E também pela pri-
neste horrível segredo, que me impedia de contar qualquer coisa a meira vez passara pelo que mais tarde chamaria e descreveria com tan-
ele."5 Quando este se ausentou por três semanas, o menino espio- tos detalhes - e pelo que tanto lutaria -; de "potência orgástica".
Em 1916, porém, achava difícil pôr sua experiência em palavras. 9
nou os amantes:
Richard Sterba, seu aluno e amigo nos anos 20, sugere outra
Ouvi a porta do quarto dele abrir e fechar parcialmente. Depois, tudo
razão para Reich ter dado tanta importância à teoria do orgasmo:
ficou em silêncio. Saltei da cama e engatinhei atrás dela, gelado, com
os dentes batendo de medo e horror. Fui me aproximando devagar da
porta do quarto dele. Estava escancarada. Fiquei ali ouvindo ... Ouvi Penso que Reich formulou a tese da influência mental higiênica a par-
que se beijavam, falavam baixinho e depois aquele estalido horrível tir de suas experiências. Certa vez, ele me disse que se não tivesse um
da cama em que minha mãe se deitava ... orgasmo a cada dois dias, pelo menos, sentia-se fisicamente incomo-
O que lembro daquela noite catastrófica foi minha vontade de entrar dado e com "a vista escurecida", como quando se aproxima um des-
correndo no quarto, mas me segurava, pensando: Eles podem te ma- maio. Esses sintomas desapareciam imediatamente com uma experiência
tar! Eu lembrava de ter lido que um amante mata qualquer um que orgástica. lO
o incomode. Com a mente repleta das fantasias mais bizarras, rastejei
de volta para minha cama, sem nenhuma esperança de ser consolado Após a morte do pai, Reich dirigiu a fazenda até o começo da
e com o meu espírito infantil destroçado. guerra, mas perdeu as terras quando a Áustria foi derrotada. Como
Assim foi, noite após noite. Eu a seguia até a porta do quarto dele e estudante de medicina em Viena, depois da guerra, muitas vezes sem·
ali esperava até amanhecer. Fui aos poucos ficando acostumado (11). dinheiro para comer, usando seu uniforme do exército como traje
Meu horror cedeu lugar a sensações eróticas. Uma vez, até considerei civil, Reich obteve o privilégio, por ser soldado, de completar a fa-
invadir o aposento deles e exigir que ela tivesse relações comigo (ver- culdade de medicina em quatro anos, em vez de seis.
gonha!) sob pena de eu contar tudo para o Pat 6 Em janeiro de 1919, junto com outros alunos de medicina, Reich
Reich, rapazola, brutalmente interrogado pelo pai já desconfiado, montou um seminário de sexologia para compensar a ausência desse
confessou a infidelidade da mãe. De janeiro a outubro de 1910, a tema no currículo da faculdade. Naquele verão, apresentou um arti-
mãe suportou terríveis abusos físicos e verbais. "Nesse período", es- go intitulado "Conceitos sobre a libido, de Forel a Jung" e tornou-
creveu Reich mais tarde, "seu rosto, suas mãos e seu corpo mostra- se o líder do seminário. Em suas reuniões com os sexólogos, Reich
vam sinais dafúria (de meu pai)".7 Ela finalmente suicidou-se com sentiu-se enormemente impressionado com Freud, que "falou comi-
veneno, e o pai, de coração destroçado, morreu poucos anos depois, go como uma pessoa comum. Seus olhos mostravam uma inteligên-
de complicações pulmonares, subseqüentes a perdas financeiras de cia aguda e penetrante. Não tentavam causar a impressão de um sa-
vulto considerável. ber visionário; aqueles olhos apenas olhavam o mundo, de modo di-
Elsa Lindenbeig, em entrevista com Myron Sharaf em 1962, re- reto e honesto".1l
velou que "aos trinta e poucos anos, Reich ainda acordava no meio Em 1920, Reich foi premiado com uma bolsa da Sociedade Psi-
da noite, transtornado pela idéia de que tinha 'matado' a mãe". 8 canalítica. Essa honra considerável, para um rapaz de apenas 23 anos
Sharaf registrou um outro acontecimento marcante, em entre- e que ainda era aluno de medicina, sem recursos financeiros, signifi-
vista com Ottilie, esposa do irmão de Reich. Na época em que era cava sentar-se entre colegas vinte anos mais velhos. Ele dirigiu sua
soldado acantonado numa cidade italiana, Reich, pela primeira vez, atenção de modo concreto e literal para o estudo da sexualidade. Não
vivenciou um encontro sexual pleno, amoroso, que mais tarde des- est~ muito claro como, em meio a mentes tão ricas e especulativas,
creveu como "potência orgástica": Relc~ pôde ater-se a um rígido reducionismo biológico, ou por que
devena desenvolver um foco tão intenso sobre especificidades sexuais.
Reich relembrou para Ottilie a experiência de uma relação sexual com Descrevia-se como um mecanicista em seus estudos de medicina e
uma jovem da aldeia italiana em que estava sua guarnição militàr, em "muito sistemático em minha forma de pensar. Nos temas pré-clínicos
1916. Depois comentou que, antes daquele relacionamento, já vinha interessava-me mais por anatomia topográfica e sistemática ..• Ao mes~

40 41
mo tempo, contudo, fascinava-me a metafísica". 12 Tambémcomen- Reich endossou a conclusãQ de Freud, segundo.-U}uaJ Q minci-
tou que aborrecia alguns colegas com suas "digressões" e "pensa- pa\ conflito si uico é o relacioname!1~ual.entnLuriançª~
mentos ilógicos". 13 aIS, mas a expen!nciá o ensinara que não bastava apenas traba-
Como estudante de psicanálise, Reich recebia pacientes da clas- 'Thar cOm o conflito psíquico.
Por exemplo, Reich contou o caso de um garçom que sofria de
se trabalhadora, que não podiam pagar mUlfopeIõ'ãtêndimento. ~m
ausência completa de ereção. No terceiro ano de sua terapia recons-
t922trã'b'ã1líava numa clínica psicanalítica recém-criada, que fun-
êfõná~a em algumas salas de uma clínica de cardiologia para dar aten- truiu a "cena primordial". O trabalho de Reich foi comentado pe-
los colegas mais velhos e, apesar disso, o garçom continuou impo-
dimento analítico aos que não poderiam pagá-lo em outras circuns- tente e foi dispensado sem ter sido curado,l7 No entanto, houve um
tâncias. Naquelas salas médicas, antissépticas, tratando uma classe acontecimento fortuito com outro paciente, que chamou a atenção
trabalhadora empobrecida, Reich lidava com uma psicologia dife- de Reich. Ele havia analisado um jovem estudante cujas "rumina-
rente daquela que marcava o trabalho dos membros mais velhos e ç.;'\es compulsivas tornavam-se, imediatamente, associa~:ões compul-
experientes da profissão, que, no conforto de seus consultórios, ti- sivas. O caso parecia bastante desesperador. Depois de: algum tem-
nham começado a lidar com os ricos e famosos .. po, emergiu um fantasma incestuoso e, pela primeira vez, o paciente
O enfoque pragmático sobre a disfunção sexual era mais ade- masturbou-se com satisfação. Depois disso, todos os sintomas desa-
quado à austeridade do consultório de medicina. Além disso, Reich pareceram de repente" .18
enfrentava constantemente as dificuldades e problemas sociais dos ~ch foi aos poucos desenvolvendo uma teoria se~undo a qual
clientes, ao passo que Freud e os ~bros antigQª- ~__,,!~us_~~~~'~_.9.P a. patologia de um conflito psíquico depende da existê:ncia_.9.1;l,I1.ªO,
círculo psicanalítico iam progressivamente se i&9lançlo d,0~_é!..SP~Çt9..s dêümã'plêilã"êãdeqiúldade'scàrgàSéxüàl;- O cóiiflitõ· tlsíquico ape-
mais cruéis da vida-vienense. AssL~_ReiclttiIlhª. majs_opoW!.QJº-E!~te nas fião"cria-a'neurose, argumerttàvá: Arteüf-õSe depende de uIPa_Sm~
do que-seus colegas para ãespêriãr para ~est-º~!J..9._c!ol~~icas, tanto j~.§~~_ll:ALçqp.tida~ que provê a enérgla-blofógicâ-Íúic'eSsárla. Com
cõílloestuôãfilê pooré-em15iiscã-ae--um lugar no mundo quanto co- a. simples analogia de um sistema fluvial, Reich ilustrou o papel dra-
mo médico exposto dia após dia à dor e à pobreza de Viena. Não mático que a energTa sexual desempenha na neurose:
espanta que, anos mais tarde, ele dissesse que era "um tubarão num
lago de carpas" .14 A força, a forma e a largura de um sistema fluvial são determinadas
A pressão de sua pobreza inicial, de sua juventude, a estarre~e­ principalmente por suas fontes. Se as nascentes são abundantes e estão
dora1ransiçãô-i{iPiilieic!ªd~ p-~r_ã-ardãêfe adulta em virtude OoSui- no alto das montanhas, e se talvez forem geleiras, o fluxo será mais
e
ddi6-da mãe do suicídio indireto do pai,-seu estatlifõ-de-élhItio que_ cheio e forte, a corrente mais rápida e a energia acumulada será maior
fraba1li~l\'-a compolJiés:-e· siiapredisposiçãoagressiv~fparauiiiapos~ do que se as nascentes forem escassas e em terras planas. O importan-
tura mentalcoi1éreta~-nã(n:oritfibuúuri- para uma atitude bem.:.dispbsta te, a respeito de um rio, em termos de ciência natural, não é se pode
dã -iriêiitaiidade-V-fenense, mais frívola, benigna, abstrata; indireta e transportar cargueiros ou barcos pequenos, nem se faz cinco ou dez
diplomática. Mas, seja qual for o meio pelo qual tentemos explicar curvas, nem se sua foz se divide em duas ou oito bocas, nem se tem
a unilateralidade do enfoque de Reich sobre a sexualidade, parece dez ou cem milhas de extensão. Todas essas características dependem,
fundamentalmente, de apenas dois fatores: a abundância e a força das
que ela é uma decorrência inevitável da própria natureza de suas idéias nascentes e o tipo de terreno que o rio deve atravessar. Se a quantidade
ainda em desenvolvimento, e não um corolário de eventos externos. de água que escoa pelo sistema fluvial sempre corresponder à quanti-
O próprio Reich disse: dade que vem das nascentes, então a energia da queda sempre será equi-
valente. Não flui mais para dentro do rio do que pode fluir para fora. 19
Convenci-me de que o cerne duradouro e indestrutível da psicanálise
é sua teoria sexual, justamente por ter sido e ainda ser o aspecto da Reich dizia, que, até certo ponto, a descarga pode ser regulada:
doutrina mais ferozmente atacado. Cheguei a Freud partindo da sexo- e utilizada sem perigo. Mas se a_água for seriamente obstruída em
logia e da biologia, e, talvez por isso, sinta falta de uma teoria funda- ~~º escoamento natural, então o que biõtãSão-H-fõfçarj~~ºJ~9~­
mental sobre a base biológica da neurose, de forma mais intensa que veis-:---antináiürais;' destrutivas;' .20 - - . ._. -.__ . ---. . --- -
meus colegas, com formação em medicina clínica ou com conhecimentos
da filosofia materialista. iS -
- Reich não podia entender por que Freud afastava-se do concre-
to modelo biológico da sexualidade em favor de formulações teóri-

42 43
caso Freud já admitira a existência de substâncias sexuais químicas
"que; quando não são metabolizadas corretamente, causam irregu- ~ ~otência eretiva e ejaculatória não são mais do que pré-requisitos
laridades físicas como ansiedade e palpitações cardíacas". 21 Preo- mdlspensáveis à pot§ncia orgástica."p~~ência orgás!ica,.~ a .capacidade
d..~ .~!,~regar-se ao fluxo de energia biol6gica sem qualquer inibição;-ã
cupado em estabelecer a etiologia sexual de todas as neuroses, Reich capaCidade para uma descarga completa da excitação sexualiiCümufa- .
ficava frustrado a cada nova formulação freudiana: da, através de confrações prazerosas e involuntdrias do corpo.J'ienh,1J~,
ma pessoa neurótIca tem potência orgástica. O corolário deste fato é
Em 1923, foi publicado o livro de Freud, O Ego e o Id. Seu efeito ime- ·que·a ampla maioria dos seres humanos sofre de uma neurose de
diatósobre a prática, que tinha o tempo todo de lidâr com as dificul- caráter. 27
dades sexuais dos pacientes, foi confuso. Na prática, não se sabia o
que fazer com o "superego" ou com "sentimentos de culpa incons- Em~, .no ~~esso Psic~n~lítiçQ_g<::_Sªl?:.QlJrg9." ~eich ap!]-
cientes": eram formulações teóricas concernentes a fatos muito obs-
curos. Não havia procedimento técnico para aproveitá-las. Era prefe- se~.!o~ pela pn~~~~~,~~:z: .~e.l;!cºn.~~j!04epotência org~~tca,_qlJe§e­
gunão erefõilje_~ recebiQo.28 Ele considerava a neurose como um
rívellidar com o medo da masturbação ou com sentimentos sexuais
de culpa. 22 di!i~úrbio;-:n~o -só da sexualidade em geral, mas da função genital,
mais espeCIfIcamente. Sterba lembra o artigo que, "apresentado com
Reich também se preocupava com a psicologia, que deveria convicção, deixou-me com a impressão de que o orador era mais forte
firmar-se como ciência natural. Ele tinha a dolorosa consciênda de do que o conteúdo". 29 Embora Sterba não tivesse se impressiona-
I' . qUe"·psiCopatologísiáiemiiientes, como Jaspers, afirmavam que a do muito com o conceito reichiano de genitalidade, ficou intoxicado
, ) int~!pj~~~.ç~~_J~si~~ó$~~a.d.~ signífiêãdo -e-;_li<?rtcliiJo~- a p~.iªp.ãlise,·· pela atmosf~ra daquela conferência: "A atmosfera daquele congresso
não pertenciam de modo algúiriiioâiiibito da, ciência natural". 23 fez-me sentir que estava sendo testemunha e participando de uma
-Refcbdefeiidhi-quê ii -Ciência náfüI'à1-"só-1idava com quantidades e causa que teria conseqüências tremendas para toda a humanidade
e.n.ergias, e que a filos-ofia trabalhava com qualidades psíquicas; não assim que obtivesse um reconhecimento geral e se tornasse influentl
havia ponte entre elas" .24 Do ponto de vista de Reich, Freud esqui- em todos os campos do estudo humano".30
vava-se de participar dessas discussões filosóficas, ao passo que ele, Por volta de)~~5, Reichassistiu a uma divisão interna da Socie.
Reich, batia-se contra o "inimigo", que classificava a psicanálise como o
dade. ~e.pois de O Ego'e Id de Freud, começara uma mudança des
apenas mais uma escola filosófica. "~t: L9.~~R~!çJ),,_~_',~~P.íª~º_~ flll:r' moralIzadora. Eram poucas as discussões clínicas. Falavam pessoas
pela primeira vezna:história da psicologia, estávamos fazendo. ciêo- de fora "que nunca tinham feito uma análise e pronunciavam-se com
a
cranatiliáLQuefíamos ser lev'ãdos sério',' .25 Rdch buscou UIlijl ba- g~ande veemênc~a sobre ~ ego e o superego, ou sobre uma esquizofre-
'se biológica para a libido e para a questão da ansiedade. Em novem- ma que nunca tmham VistO. A sexualidade tornou-se uma casca va-
bro de 1923, apresentou um trabalho sobre "genitalidade", no qual zia, o ,conceito de 'libido' tornou-se desprovido de todo e qualquer
afirmavàque o distúrbio genital era o sintoma mais import~nte ,de conteudo sexual e passou a ser uma palavra vazia". 31 Reich reparava
neurose. Enquanto falava, foi percebendo que a "atmosfera" da sala no al!mento das intrigas pessoais e manobras políticas de bastidores.
iii ficando "cada vez mais fria": In~elIzmente, ele não percebeu as poderosas modificações que o pró-
pno Freud estava atravessando. Este submetera-se à primeira de uma
Disseram que eu estava errado em, afirmar que o distúrbio genital era dolorosa série de operações de câncer há alguns anos, e estava sofren-
um sintoma importante, talvez o mais importante, da neurose. Diziam do. com uma prótese oral que não se ajustava bem e inibia sua fala.
que era ainda pior minha alegação de que uma avaliação da genitali- R~lch parece que não estava ciente do medo que Freud sentia da pró-
dade funcionaria como critério prognóstico e terapêutico. Dois analis- pna morte, e também do quanto sofria com a perda de Rank seu mais
tas afirmaram sumariamente que conheciam algumas pacientes que ti-
nham uma vida sexual completamente saudáve1l 26 próximo colaborador. Essa perda foi em parte responsável ~ela intri-
ga desencadeada entre os membros da Sociedade, que disputavam corpo
Entre 1922 e 1926, Reich consolidou sua teoria do orgasmo, pe- a co~po o posto de Rank. Reich, que tinha acesso particular a Freud,
ça por peça, enquanto buscava uma formulação concreta para o con- admlfava-o e permaneceu-lhe grato, mas parece que não levou em conta
ceito freudiano de energia psíquica. Desafiado em público, Reich foi a perspectiva de Freud como um homem velho e doente.
levado a estabelecer os critérios de uma verdadeira potência orgástica: A visão que Sterba tem desse período é totalmente diferente
da de Reich. Em janeiro de 1925, foi aberto o instituto de treina-
44
45
mos zombeteiramente de seu "paraíso genital". Em minha opiJ;úão,
mento da Sociedade Psicanalítica de Viena, sob a direção de Helene ele defendia sua tese com tanto rigor porque seu caráter correspondia
Deutsch. "O programa de palestras e seminários apresentados no Ins- muito ao "narcisista genital" que ele descreveu tão bem em um de seus
tituto" escreve Sterba, "era muito rico e ministrado pelos melhores trabalhos. 36
profissionais do campo em Viena".32 Siegfried Bemfeld, Herman
Nunberg, Paul Fedem, Theodor Reik, Robert Waelder e Eduard O '~parafso genital" de Reich assumiu uma forma sociológica
Hitschmann deram palestras e Sterba ficou absolutamente ~ncanta­ quandó ele conheceu os escritos de Bronislaw M~linq~~..l~Lsobre a
do. Contudo, relata que os seminários de treinamento de Relc~ eram controvérsia natureza versus apr~_nqizagem. Relêh era um decidido
os mais valiosos: "A parte mais instrutiva do currículo _contm~ava defensor dãâprenaizãgem~ 'liA jjase"rjQ_p.IQQIgf!1ª~ªª pub.e.rda.çJJ#..l ~Q~.
sendo para mim, o seminário bissemanal de apresentaçao contmua {fg6gica, (Ião bio!!!GiEq", escreveu. "Tampouco enc~ntra-se n.o C'?!l-
,
de casos, . por W'lh
conduzIdo I R'
1 em eh" lc 33 . . . l!2~~t~e paii.~~~rJa.~çª, ~~~~_p'~e~~m.~~à~p'Sí~ã~·~HsfJ"37·1rm A
Ao mesmo tempo, Freud estava sendo cortejado pelos ncos e _yj(la..§....epl~."~e!y!!.g~'!~1_de Malinowski i!?~~), Reich encontrou
famosos recebendo ofertas que, no mínimo, devem tê-lo abalado "um rico matenal .IDte_.k.<mfrontaya .o_mundo. CQJll_oJ.atQ q~_-ª_repres.­
um pou~o. Celia Bertin, em sua biografia de Marie Bonaparte, co- 'são sexual ser-sõdológica e não de origem biológica". 38 O ingênuo
menta sobre essas propostas: otimismo de Reich é ostensivõem süã-desciíÇã<),dõs-riativos das ilhas
Trobriand. Ele achava que havia ali toda uma sociedade de carácte-
Freud era então tão famoso que Hollywood pediu:lhe ~ue cooperasse res genitais saudáveis, porque o problema da repressão sexual esta-
na redação de roteiros de filmes sobre famosas hlstónas de amor, a va resolvido e - como o próprio Malinowski também afirmava -
começar pela de Antônio e Cleópatra. Também rec.ebeu propost~s
("uma quantia incalculável em dólares", sua fllha ~athilde ~ontou maiS i,nexistia o complexo ediJ2iano, devido à estrutura sociológica. O que
tarde para Marie Bonaparte), dos Hearst e do Chicago Trl~une, p~ra houvesse de mal no homem era êiógeiíQ; iiiduzido pelarep"fessãó
éultural:--"--------"---------" --------------------
acompanhar o julgamento de Leopold e Loeb e fazer um diagnóstico
de ambos. No ano seguinte, o crítico literário holandês George Bran-
des fez uma viagem até Viena para conhecê-lo e Freud foi apresentado As crianças das ilhas Trobriand não conhecem a repressão sexual, os
34
ao filósofo-poeta indiano Rabindranath Tagore. segredos sexuais. Sua vida sexual pode desenvolver-se naturalmente,
em liberdade, sem obstruções, através de todos os seus estágios de vi-
Freud não reagiu favoravelmente a~~~~~~~r~t~_~~. ~~iE?A i'!:.~­ da, com plena satisfação. As crianças podem dar livre curso às ativi-
fão dó- oi.gãsmõ;-"cõm "que-este o ptésenteou ~~"~eu sep!UagéSl!!!O a~!: dades sexuais próprias à sua idade. Apesar disso, ou melhor, por isso
versarlo-e"in6de maiõ-(íe-r92"o.xéiclincou arrasado quando nao mesmo, a sociedade dos trobriandeses não conhecia, na terceira déca-
recebeu ~ plenoendos"so de Freud: "Pode~se perceber. uma frieza cres- da de nosso século, perversões sexuais de qualquer espécie, psicoses
cente" ele descreveu. "No início eu não compreendI. Por que Freud funcionais, psiconeuroses, mortes por motivo sexual; não têm palavra
para roubo; homossexualidade e masturbação, para eles, significam
deveri~ rejeitar a 'teoria do orgasmo' , que era tão entusiasticamente
apenas meios não-naturais e imperfeitos de gratificação sexual, sinal
recebida pela maioria dos analistas mais jovens!"35 Sterb~ não. con- de uma capacidade desequilibrada para obter a satisfação normal. As
corda com Reich sobre o entUSiasmo da acolhIda à sua teona do crianças nativas não conhecem o treinamento estrito e obsessivo do con-
orgasmo" pelos analistas mais jovens: trole dos esfíncteres, que destrói a civilização da raça branca. Os tro-
briandeses, portanto, são espontaneamente limpos, ordeiros, sociáveis
Uma outra teoria inaceitável de Wilhelm Reich, que ele defende cOl~ sem compulsões, inteligentes e trabalhadores. A forma socialmente acei-
fanatismo cada vez maior, é sua convicção de que um orgasm? perfei- ta de vida sexual é a monogamia espontânea, sem compulsão, num re-
to prevenirá ou curará todas as formas de neurose._q.p.~.Ó.P~~9 yr~ud lacionamento que pode ser dissolvido sem dificuldades; assim, não há
apontou para Reich, em u~~ das reu~iõ~§ e~ Berggasse .19!o f~to de promiscuidade. 39
muitOsÍmpulsosn"elfrotOgênícos, em particular os pré-~en~tal.s, nao EO-
ãerenfserOeScarregãdbs; -mesmó nó orgasmõ I?als perfelt~. A o?~er­ Algo do mesmo otimismo foi observado por. Derek .F.r~eman,
vãÇã"õ-ger-ar de-qüe" lilgüns neuróticos, em particular os compulslVC~.S, em Margaret Mead e Samoa, que expõe as justificativas históricas
podel~lter oi:giis~ósiriipecáveis~em. serem cur8:do~ pelos mes~os nlil o quê-piõmoviam"ás"distorções extremas, tão abundantes no final dos
pâiece ter sjº9jp.tegíàd~ por Relc~ à sua Co~vlcçao .d~s funçoes pre-
anos 20.40~reeman diz que a visão de Mead a respeito de Samoa
ventiva e curativas do orgasmo. Nós, os anallstas mais Jovens, faláva-
47
46
------
era uma idealização
povo.
."
...
e uma distorção da verdadeira natureza daquele
".. .-- .. _. ."..... da], escreveu ela a Laforgue em outubro de 1925, embora não lhe
adiantasse mais detalhes. Antes do final de outubro ela entregou a
,-- De fato, os habitantes de centros urbanos vêm há séculos idea- Freud os cinco cadernos de anotações sobre sua infância, para que
lizando a vida rural. Na Inglaterra do século XVI, os aristocratas ele os decifrasse e reconstruísse seu significado perdido. Assim que
tentaram regressar à "doce inocência" da natureza vestindo-se co- tivesse conseguido entender a natureza de seus conflitos inconscien-
tes, estaria livre para agir e aprender uma profissão que lhe permitis-
mo pastores e pastoras em festas prolongadas.~O inconscient~ facil- se realizar seu potencial. Ela esperava também ficar curada de seus
mente projeta em ~bjetos ext~~nos aquilo que não entende, e cria sua fracassos amorosos. Viera ao professor em busca do "pênis e da nor-
'j)iÓpriêi· reaíidade~: -. . . malidade orgástica". 44
Era fácil menosprezar a atenção dada por Reich à função geni-
tal como uma ingênua supersimplificação; era fácil diminuir o im- Na terceira semana, após ter descrito um sonho, Freud disse-
pacto de seu trabalho, como fizeram Sterba, Freud e os psicanalis- lhe que "ela havia presenciado adultos durante inltt-.;llfso sexual,
tas e, em seu próprio detrimento, ignorar os (:omponentes sexuais quando ainda era muito pequena. Ela objetou com violência, mas
e fisiológicos das neuroses, para os quais não tinham resposta ade- Freud assegurou-lhe que várias de suas associações confirmavam-no,
quada e eficiente. Embora Freud tivesse rejeitado a fórmula genital conforme a análise ia avançando" .45 Seus diários confirmaram pa-
de Reich, sua própria técnica não' pôde resolver o conflito genital ra Freud que Marie presenciara a cena primordial e que os protago-
de uma de suas mais dedicadas e íntimas seguidoras, Marie Bonaparte. nistas tinham sido o criado Pascal. e sua ama. Após mais terapia,
Marie Bonaparte era casada com o príncipe George, da Grécia, ela voltou a Paris e interrogou Pascal sobre o que havia acontecido,
que tinha pendores homossexuais e nenhum interesse sexual pela prin- e ele, pressionado, confirmou todas as deduções de Freud. Mas mesmo
cesa, sua esposa. Ela era uma mulher atraente, que resolvia seu pro- depois da reconstrução da cena primordial e da análise de suas im-
blema com romances discretos. Não obstante, era frígida. Ela estu- plicações, a princesa, aparentemente, continuava com sua frigidez
dou o trabalho do professor Halban, de Viena, biólogo e cirurgião, intacta.
e, em 1924, escreveu um artigo, sob pseudônimo, promovendo a so- Nos primeiros meses de 1927, ela fez com que o professor Hal-
lução para a frigidez que ele havia encontrado. 41 Ela descrevia co- ban removesse seu clitóris cirurgicamente, colocando-o mais perto
mo, embora alguns casos de frigidez pudessem ser curados pela psi- de sua vagina. Freud não ficou nem um pouco satisfeito. A opera-
coterapia, em outros, o clitóris estava muito longe da abertura vagi- ção marcou o "término do idílio com a análise" .46 Embora sua pro-
nal, sendo recomendável a cirurgia para deslocá-lo para mais perto funda amizade superasse a crise, o funcionamento sexual não havia
da passagem uretral. Em 1925, "a princesa", como acabou sendo melhorado, nem com análise, nem com cirurgia. Em 1929 continua-
conhecida no círculo freudiano, conseguiu uma consulta com Freud, va sem progressos:
por meio de ligações com os psicanalistas de Paris. O dr. René La-
forgue, psicanalista com quem tinha "conversas" assíduas, descreve-a Ela observou nessa ocasião que "o trabalho é fácil e o prazer sexual
como portadora de neurose obsessiva. Ela recebera Laforgue quan- difícil". "A psicanálise pode, no máximo, trazer-me resignação, e es-
do estivera acamada, após uma série de operações: a remoção de um tou com 46 anos de idade", escreveu em um de seus diários. "A análi-
cisto ovariano, uma plástica para "corrigir" os seios, o retoque de se proporcionou-me paz de espírito, de coração e a possibilidade de
trabalhar, mas, do ponto de vista fisiOlógico, nada alcancei. Estou pen-
uma cicatriz na base do nariz. Laforgue também achou que ela apre-
sando em fazer uma segunda cirurgia. Será que devo desistir do sexo?
sentava um "acentuado complexo de virilidade".42 Trabalhar, escrever, analisar? Mas a castidade absoluta me assusta.' '47
No final de setembro de 1925, Marie Bonaparte começou uma
terapia com Freud. O rapport entre ambos foi imediato, e ele logo Nos anos 30, Freud disse a um aluno: "Minhas descobertas não
consentiu, como ela solicitara, em atendê-la por duas horas todos são, primariamente, uma panacéia. São a base para uma filosofia
os dias. Ele lhe disse que ela era bissexual, o que a ajudava a enten- muito sóbria. São bem poucos os que entendem isso, são bem pou-
der os homens, "já que tinha um homem dentro de si" .43 cos os que são capazes de entender isso". 48
Reich era jovem. Ele não se resignara ao fracasso. É claro que
"A análise é a coisa mais 'absorvente' que já fiz. /eh bin, como dizem podemos especular sobre os resultados, caso a princesa tivesse trans-
na Alemanha, gepackt! aber vollstanding [estou totalmente encanta- ferido sua análise para ele. Ela o conhecera, entusiasmada com a opor-

48 49
tunidade, numa reunião em 1926, em que ele apresentara um traba- Na vegetoterapia, Reich observava o fluxo da energia no corpo.
lho para Freud e um círculo de convidados. Mas em 1920, Reich, Ele trabalhava com o padrão respiratório para liberar a contração crô-
apesar de bom educador da sexualidade, trabalhava vigorosamente nica do tecido, que impede a pulsação da vida. Assim como o ritmo
com a resistência e a análise do caráter. Tinha um êxito considerá- dos batimentos do coração, a respiração estabelece o ritmo e o fluxo
vel com clientes com disfunção sexual, mas só na década seguinte do corpo. Ao fluir natural e desimpedido da energia corporal Reich
desenvolveu té~!!.i~as corporais para liberar o substrato fisiológico chamou de reflexo do orgasmo, que passou a ser a meta biológica da
,da neur~se,Jécnicas que cbmou de vegetoterap~(l'7 vegetoterapia e a base para a dissolução do conflito neurótico.
EmJ~_n, na Escandinávia, separado de ,suá primeira esposa e
dos dois filhos, tendo saído da Alemanha por,causa da ascensão de
Hitler, em guerra com o Instituto Psicanalítko e com a: ex-esposa Notas
Annie, com os nazistas, com a liderança comunista na Alemanha e
da Escandinávia,49 Reich felizmente encontrou um refúgio dango 1. Wilhelm Reich, The Murder of Christ - vol. 1 de The Emotional Plague
of Mankind (Nova York: Simon & Schuster, 1953). (Em portuguê:s. O assassinato
aulas de seu método de análise do caiáüir: Ele ampliara seu trabalho
de Cristo.)
corporal e estava mais descontraído quanto a tocar o corpo e solici- 2. Ver Myron Sharaf, Fury on Earth: A Biography of Wi/helm Reich (Nova
tar expressão física. Identificou o trabalho com um paciente em Co- York: St. Martin's Press, 1983); e Bse Ollendorff Reich, Wilhelm Reich: A Personal
penhague, em 1933, como o momento da virada: Biography (Nova York: St. Martin's Press, 1969).
3. Sharaf, Fury; Wilhelm Reich, Passion of Youth: An Autobiography,
1897-1922, org. Mary Boyd Higgins e Chester M. Raphael, com traduções de Philip
Em 1933, em Copenhague, tratei de um homem que tinha resistências Schmitz e Jerri Tompkins (Nova York: Farrar, Straus & Giroux, 1988).
especialmente fortes contra a constatação de suas fantasias homosse- 4. Wilhelm Reich, Wilhelm Reich: Early Writings, tradução de Philip Schmitz
xuais passivas. Essa resistência manifestava-se numa atitude de extre- (Nova York: Farrar, Straus & Giroux, 1975), voI. 1, p. 66.
ma rigidez do pescoço ("empertigado"). Após um ataque energético 5. Ibid., p. 68. '
contra essa resistência, ele de repente cedeu, mas de uma forma que 6. Ibid., pp. 68-69; Reich, Passion of Youth, p. 29.
me alarmou bastante. Durante três dias, apresentou intensas manifes- 7. Reich, Passion of Youth, p. 34.
tações de choque vegetativo. A cor de sua face mudava rapidamente 8. Sharaf, Fury, p. 44.
de branco para amarelo ou para azul; a pele apresentava manchas de 9. Ibid., p. 52.
10. Richard F. Sterba, Reminiscences of a Viennese Psychoanalyst (Detroit:
várias tonalidades; teve dores intensas no pescoço e na região occipi-
Wayne State University Press, 1982), p. 87.
tal; seus batimentos cardíacos estavam rápidos; teve diarréia, sentiu- 11. Wilhelm Reich, The Function of Orgasm, tradução de Theodore P. Wolfe
se esgotado e parecia ter perdido o rumo. Fiquei perturbado ... No plano (Nova York: Meridian, 1970), p. 17. (Em português, A função do orgasmo.)
somático tinham irrompido afetos, depois que o paciente cedeu em sua 12. Ibid., p. 7.
atitude psíquica de defesa. O pescoço duro, expressando uma postura 13. Ibid.
de masculinidade tensa, aparentemente tinha contido energias vegeta- 14. Wilhelm Reich, Reich Speaks of Freud (Nova York: Farrar, Straus & Gi-
tivas que então pareciam ter transbordado de modo desordenado e roux, 1967), p. 40.
descontrolado. so 15. Wilhelm Reich, Genita/ity in the Theory and Therapy of Neurosis, 2~ edi-
ção, tradução de Philip Schmitz, org. por Mary Higgins e Chester M. Raphael (No.
va York: Farrar, Straus & Giroux, 1980), p. 9.
A partir dessa e outras experiências, Reich chegou a perceber 16. Reich, Function of the Orgasm, p. 89.
1 ql!e_ahiper~nsão muscular e as atitudes cio caráter serviam à mes- 17. Ibid., p. 63.
I
'I '!n~ função psÚ:luica: eram fundonalmente idênticas e não podiam, 18. Ibid., p. 62.
~~(sépái'áâaS-:-'- ,. '- 19. Reich, Genita/ity, pp. 73-74.
20. Ibid., p. 75.
21. Reich, Function of the Orgasm, p. 100.
Daí em diante comecei a fazer uso prático dessa unidade. Quando uma
22. Ibid.
inibição de caráter não chegava a responder à influência psíquica, eu 23. Ibid., p. 69.
trabalhava com a atitude somática correspondente. E quando era difí- 24. Ibid.
cil fazer contato com uma atitude muscular em distúrbio, eu trabalha- 25. Ibid.
va em sua expressão caracterológica e assim a liberava. Sl 26. Ibid., p. 75.
27. Ibid., p. 79 (itálico do original).

50 51
28. Ibid., p. 106.
29. Sterba, Reminiscences, p. 31. Capítulo 4
30. Ibid.
31. Reich, Function of the Orgasm, p. 101.
32. Sterba, Rem in iscen ces , p. 36.
33. Ibid., p. 37.
34. Celia Bertin, Marie Bonaparte: A Life (Nova York: Harcourt Brace Jova-
novich, 1982), p. 152.
35. Reich, Function of the Orgasm, p. 141.
Caráter e resistência
36. Sterba, Reminiscences, p. 87.
37. Reich, Function of the Orgasm, p. 172 (grifos do original).
38. Ibid., p. 200.
39. Ibid., p. 201 (grifos do original).
40. Derek Freeman, Margaret Mead and Samoa: The Making and Unmaking
of an Anthropological Myth (Cambridge, Mass.: Harvard University Press, 1983).
. 41. Bartin, Marie Bonaparte, p. 141.
42. Ibid., p. 147.
43. Ibid., p. 155. Reich não inventou a noção psicanalítica de caráter. Em 1908,
44. Ibid., p. 157. em "Caráter e erotismo anal", Freud identificou o caráter anal co-
45. Ibid. mo excepCíon3Jmênte organizado, parcimonioso e obstinado, carac-
46. Ibid., p. 170.
47. Ibid., p. 175. -redsticas que ele atribuía à zona anal na infância, "intensificadas na'
48. Hilda Doolittle, Tribute to Freud (Nova York: New Directions 1974) p. 'constituição sexual inata dessas pessoas'·.1 Freud especulou se "é
18 (grifos do original). ' , preciso considerar se outros tipos de caráter também não mostram
49. Wilhelm Reich, People in Trouble (vol. 2 de The Emotional P/ague of Man- uma ligação com a excitabilidade de zonas erotogênicas particula-
kind, tradução de Philip Schmitz (Nova York: Farrar, Straus & Giroux 1976) pp. res".2 '
135, 198-201. ' ,
50. Reich, Function of the Orgasm, pp. 239-240. Sem sombra de dúvida, Reich também foi influenciado por Adler,
51. Ibid., pp. 241-242. que, numa amarga ruptura com Freud, cooptou o estudo do cará-
ter. Em 1912, Adler apresentou uma teoria psicológica do desenvol-
vimento' do caiáterem TlJe Ne.!Y-PJ:I.§. .Çhª,act(!r, e, em outros artigos,
relacionou a inferioridáde de um órgão ao caráter neurótico. 3 Reich
ficou desapontado com Adler. "Ele protestava contra Freud", es-
creveu. "Na realidade, ele, AdIer, tinha chegado ao âmago da ques-
tão. O complexo de Édipo, disse ele, era contra-senso."4
Nos círculos psicanalíticos, "caráter" e "sexualidade" eram con-
siderados opostos incompatíveis, e "caráter" não era considerado
um tópico apropriado para discussão na sociedade de Freud. S Com
seu faro infalível para o proibido, Reich conseguiu desenvolver uma
teoria e uma técnica acerca do caráter que funcionavam harmonio-
samente com sua teoria da genitalidade ...Paraele, carªter era . osJs-
te!1!~_gçJ:l!:f,e,sa..rígicl9..~ çO!l~~rit.9. que bloqii'eavâ-ü lÍuxo nahiiálda
eíiérgii:' --~ ,- " ' ' - ---.---~.
~nos 20, Reich influenciou o curso da psicanálise. Quando
entrou para a Sociedade Psicanalítica de Viena, pensava-se em geral
que uma neurose poderia ser curada num período de três a seis me-
ses. "Freud encaminhou-me vários pacientes com a seguinte anota-
ção: 'Para psicanálise, impotência, três meses'."6 Na ausência de um
conceito de caráter de abrangência geral, os psicanalistas considera-
52
53
vam os sintomas neuróticos como intrusos num organismo que, afora Reich também constituiu um seminário para os novos membros da
isso, era saudável. E também não havia ainda a convicção de que Sociedade, criando assim uma poderosa força contrária, às vezes sutil,
um analista devesse ter passado por uma análise rigorosa .. A leitura às vezes nem tanto, da velha guarda. Em 1924, assumiu o seminário
dos textos de Freud e a análise dos sonhos eram consideradas sufi- ~écnico e impôs !l,~ !!,QYQ. ~i§!e,IIl:~ ,"DIscutíamos "êxcI\ísivaménte"si~
cientes. Max Eitington, por exemplo, tinha sido analisado em pou- tuações de resistência. Embora estivéssemos completamente perdi-
cas semanas, em caminhadas noturnas ao lado de Freud. dos no começo, logo começamos a aprender muito." 12 O seminá-
Parece que a meta da terapia era a reconstrução dos traumas rio técnico lidava com a hostilidade latente e a transferência negati-
básfcôs da infância, os quais, associados aos problemas edipianos va e, eventualmente, com a adequação da interpretação antes que
. e ao medo da castração, teriam d,esencadeado os sintomas neuróti-. a resistência tivesse sido abordada e resolvida. Reich observava a pos-
coso Supunha-se que os sintomas desaparecessem por si, depois de tura defensiva do paciente. A dissolução dos sintomas era insuficiente.
.. revelada sua causa básica e, er.:l certos casos, iBso de fato ocorriá. ".A cura real só poderia ser alcançada mediante a eliminação da ba-
Portanto, a técnica terapêutica era passiva, por parte do terapeuta, se caracterológica dos sintomas.,,13
que incentivava o paciente nas associações livll"es a analisava-lhe os'
sonhos. Havia pouca consciência da transferência negativa e nenhum Todos os esforços terapêuticos eram frustrados, como se tivessem si-
sistema para investigar os aspectos técnicos da terapia. Por volta de do desfechados contra uma "parede dura e grossa". Os pacientes es-
1920, foi minimizada a ênfase na sexualidade. A relação entre a psi- tavam "encoraçados" contra qualquer ataque. Não havia técnicas co-
canálise e a ciência natural continuava obscura e incipiente. nhecidas na literatura que mobilizassem aquela superfície endurecida.
Reich tinha dificuldade com muitas das regras psicanalíticas con- Era todo caráter que resistia. Assim comecei a análise do caráter .14
forme sua técnica ia se desenvolvendo. A l11ªioriados analistas im-
punha a abstinência sexual enquantqº~iá~Sê·otr,atâiii~IüP. "Seéssa Anos mais tarde, Sterba lembrava entusiasmado os notáveis se-o
regra:·eraImpostã'\ escreveu Rêidí; "como as perturbações genitais minários de Reich.,A ~Qord~~!!lj~njçaqas.J~sist~ncias, escreveu
dos pacientes poderiam ser entendidas e eliminadas?"7 ~~ich .sterba, P~P.~Jº9 9. tSIl'~rfQ.P~.~~ ~.livro ,de A~~~.f~~]J.a,)~·8Q~me.gi-
lJismos 4e.de!csa (1936): ... ' . - -.
rebelou-se contra o conceito de que o analista não deveria ser V!sto, ~
pari quf õ;Q!ldennáoh~egufsse'proJétar: sua.:tran.sfer~n(;ia· como nu- Reich tinha uma sensibilidade especial para reconhecer as resistências
ma tefirern:biãii"co: i 'tssO,' em vez dé eliminar, reforça no paciente latentes e sua influência pouco perceptível sobre o material consciente
a'sérisação de estar lidando com um ser 'invisível' , inabordável, sobre- do paciente. A forma de o paciente apresentar seu material, seus mo-
humano e que é , segundo o pensamento infantil, assexuado. Como dos e a peculiaridade de sua fala, como entrava no consultório, como
o paciente pode superar seu medo do sexo que o fez adoecer?".8 cumprimentava o analista (era um costume consagrado em Viena, no
Em l.n.5., Reich escreveu,-ºsgrmer...impHlsJvo •.que parece ter si- início e no término de cada sessão) - tudo isso Reich ensinou-nos a
do a primeira formulação do caráter limítrofe. 9 "Esses carácteres im- utilizar como informações importantes, em particular sobre as resis-
pulsivos", escreveu mais tarde, "pareciam representar um estágio tências latentes. Nós, estudantes e membros mais jovens do grupo, cres-
transicional da neurose à psicose. "10 Uma vez que Reich estava tra- cíamos tremendamente com suas argutas percepções sobre a teoria e
a técnica do manejo das resistências. IS
tando algumas personalidades limítrofes no ambiente restrito da clí-
nica, dificilmente teria considerado eficazes as técnicas psicanalíti-
A psicanálise obedecia à regra segundo a qual o terapeuta inter-
cas. Seus clientes precisavam de um envolvimento direto com o tera-
pretava o material na ordem em que o mesmo aparecia na sessão,
peuta. Reich incentivava um contato ainda maior, conforme aumen-
mas Reich desenvolveu uma regra muito diferente. EI~dmeiro li~
tava sua experiência, convidando os pacientes a criticá-lo. Ele que-
ria ser considerado de uma "forma humana, não autoritária". 11 Tal7 , ~~:;.?a_!itu!~:!mççllªffi"Ju~~cJQn~l!l~l1tQ.eIlt!~y~.~~.~~te ,e.te-
!~p~\!ta~~ ~~si_s.~~.nGul" a5.0 l!raça, a dura e grossa parede ciq caráter,
vez tenha sido influenciado porSfI1.dõrFerenSZi,ã qúem muito'àd- .3;!1!~..s il~lIl~erl2r~ta~ -o,~at~#al repriInido,. ..." ,- -'--'''---
n1ifãvà, famoso por seu estilo lerapêullco'nâõ ortodoxo, lúdico, e Após ter defendido por algurntempo que é preciso primeiro in-
interativo. terpretar a resistência e depois o material, Reich sofreu um revés,
Reich sugeriu a Freud a instituição de um seminário técnico. For- que depois se tornou seu confronto clássico com Freud. Talvez o in-
mado em 1922, era presidido por seu chefe de clínica, Hitschmann. cidente possa ser visto como o modo de ele desafiar Freud: .
54
55
Em dezembro de 1926, no círculo íntimo de Freud, apresentei um tra- embuste grosseiro que ocultava a natureza humana, perfeitamente
balho 'sôlirini -técnica oe análise do caráter. A dificuldade principal, decente e simples: "Ao atingir a capacidade para uma completa en-
conforme enunciei, era se, dbnte de uma atitude negativa latente, se- trega genital, o ser inteiro do paciente muda tão rápido'e fundamen-
ria melhor interpretar primeiro os desejos incestuosos do paciente ou talmente que, no início, eu não conseguia compreender. Era difícil
se seria preciso aguardar até que sua desconfiança tivesse sido elimi-
nada. Freud interrompeu-me: "Por que você não interpretaria o ma- ver como o tenaz processo neurótico conseguia conviver com uma
terial na ordem em que aparece? C/aro que é preciso analisar e inter- mudança tão repentina". 20
pretar os sonhos incestuosos assim que aparecem". Eu não esperava Assim que mudavam, os pacientes não aceitavam mais a atitu-
por isso. Continuei fundamentando meu ponto de vista ... Meus ad- de moralista do ambiente, nem conseguiam mais trabalhar de modo
versários de seminário regozijavam-se com mhnha desgraça, compade- mecânico. Procuravam um trabalho significativo e desenvolviam um
ciam-se de mim. Continuei calmo. 16 sistema ético que apoiava sua natureza interior. Desenvolviam uma
autoconfiança fundada na potência sexual. Em vez de serem guia·
Em meados da década de 20, Sterba e suá esposa tornaram-se dos pela regulação moral, orientavam-se por sua auto-regulação.
amigos de Reich e sua esposa, Annie. Caminhavam e esquiavam jun- .~ assim, R,eich concluiu que a tarefa terapêutica.. era transfor·
tos. Sterba observou que, no final dessa década, "Reich tinha se tor- mar'.o_"caráter
r~' .
'~-'-'.- ... neurótico"
"'~
em "caráter genital". Mas essa taref,
,- .. ---· . ··- __________
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nado mais sádico ao 'martelar' contra a couraça de resistência do tornou-se descomunalmente grande. Na clínica, Reich ouvia diaria
paciente. Um número crescente de membros (~terapeutas em treina- mente como eram estressantes as condições de vida e a repressão se
mento nos seminários não conseguia acompanhá-lo e teve que se opor xual. A avalanche de pessoas comprometidas deixava-o perplexo. I
a seu conselho técnico, e esse fato o amargurava e tornava belige- óbvio que a psicanálise não poderia começar a reverter os danos cria
rante" .17 Sterba também observou que Reich tornava-se mais rígi-
dos pela sociedade e suas formas impróprias de 'educação. Reicl
do em sua abordagem técnica, rtistringindo a flexibilidade e a aber- comprometeu-se a inserir a psicanálise no contexto social. Freud, con
tura da abordagem analítica. Segundo Sterba, sua beligerância levou-o
mais de setenta anos de idade, sofrendo dores devidas às sucessiva
aos conflitos com Freud: "Nem mesmo Freud. conseguia tolerar a
operações no maxilar, protegido pela fama e pelo reconheciment<
obstinada insistência de Reich qüaÍ1tô a: estar certo. Em uma de suas
de um séquito dedicado, poderia ter dado um simpático apoio à preo
reuniões, à qual compareci no ap.artamento d~ Freud, este interrom-
peu a arrogante repetição que Reich fazia de seus argumentos, não cupação do jovem e militante Reich, que pretendia desfechar um ata
permitindo mais que ele prosseguisse o debate" .18 que maciço contra a neurose, mas Freud não estava absolutament
,Re!~hdeu~se COI1t.~ pess.a§ ç,:Nçª.~, negativas em 1927. "Na As-
em condições de segui-lo nessa luta contra um Estado autoritário.
sociàçaÓPsiCanàIfticaem geral, porém", escreveu, "a interpretação As atividades políticas de Reich, auxiliando o Partido Comu
equivocada da teoria do ego florescia mais e mais. A tensão conti- nista com a instalação d~çljniças. sexuais que divulgavam informa
nuava aumentando. De repente, descobriu-se que eu era 'muito agres- ções, começaram no final dos anos 20 e terminaram abruptament
sivo' ou que estava apenas 'alimentando meu passatempo predileto' quando Hitler chegou ao poder, em.1933. Nessa época, Reich apli
e enfatizando excessivamente o significado da genitalidade." 19 cou sua análise do caráter ao estado mental do cidadão médio, e pu
Reich sofreu pressões terríveis em 1927. Estava mais voltado para blicou,t'lR.S.i€!ll12Kia..J1..i!..!1lI!§$t):do fas.cismp, que o transformou num
as questões políticas do que seus cofegas psicanalistas de Viena po- espéciê"-dlfherói' Clandestino. 21
diam supor. Diante da rejeição de Freud por vários tópicos, somada Disse Reich que a estrutura do caráter não se restringia aos ca
a algumas enfermidades físicas, Reich tornou-se ainda mais defen- pitalistas: "Prevalece entre operários de todas as ocupações. Há ca
dido e arisco. pitalistas libyrais e operários reacionários. ~~2.Jl:t'ª[~~inçt?~ g~c ~las!~
Reich esboçou descrições de vários tipos diferentes de caráter: . q,uando se tratafj/Lç!l.r4~~r" .22 Ele considerava que çJasç:isI.I1Q ~sta
impulsivo, passivo-feminino, aristocrático, histérico, compulsivo, va fUº,clamentado na família autoritária, em particular na família d
fálico-narcisista e masoquista. Também estipulou uma distinção ge- ciass~ médi~ baixá, que reprimia a sexu;:tlidadee obede~i~ ª,S cegá
ral entre o caráter neurótico e o caráter genital e identificou um ca- a ideologia !ÍQ. dever e'da honra. O medo religioso também ajudav
ráter de massa. Reich acreditava que os impulsos anti-sociais do ho- 'a suprimire a debilitar a expressão sexual:
mem - suas fantasias com o mal e suas manifestações - eram um

5
o homem que consegue satisfação genital é honrado, responsável, au- Nos últimos vinte anos, tem-me acompanhado o tempo todo a dificul-
daz, controlado, sem fazer grande alarde desses atributos. Essas atitu- dade para ver o trabalho científico finito e bem delimitado que a pes-
des são uma parte orgânica de sua personalidade. O homem cujos ge- soa pode realizar, perante a infinidade da vida. No fundo de todos os
nitais são enfraquecidos, cuja estrutura sexual é cheia de contradições, trabalhos detalhados estava sempre a sensação de não ser mais do que
deve lembrar-se continuamente de controlar sua sexualidade, de pre- uma minhoca no universo. Quando voamos num avião sobre uma es-
servar sua dignidade sexual, de ser corajoso diante das tentações etc. 23 trada à altitude de 1,5 km, os carros parecem estar rastejando. 30
Reich acreditava que o sistema familiar autoritário tinha desvi- Talvez o observador silencioso tenha se desesperado nos momen-
talizado as crianças, de tal sorte que elas se sentissem perdidas e, por- tos de grandes realizações.
tanto, se identificassem facilmente com um "Führer" (líder). O es- Mais tarde, o observador deslocou-se do "cenário" da vida pa-
tado lamentável de suas condições materiais era compensado pela ra o "campo" e, da perspectiva da natureza, observou os mesqui-
idéia exaltada de serem membros de uma raça superior: "Ele come nhos embates daqueles que estavam no cenário mundial. Tão ego-
mal e menos do que precisa, mas dá uma grandt! importância a um cêntrico quanto os outros o viam, depois da morte dos pais e da per-
'terno decente'. Um chapéu de seda e um sobretudo tornam-se o sím- da de sua casa, Reich sem dúvida começou a ver-se de uma grande
bolo material de sua estrutura de caráter".24 distância, às vezes angustiado, às vezes dramaticamente inundado
Reich achava que a Igreja testemunhava sem a menor vergonha
( . " : I o desenvolvimento do homem neurótico massificado, pela supres-
por um senso de heroísmo romântico, e, outras vezes ainda, com neu-
:.. / - são da sexualidade: "~s cr~~!!ç~.§_!)'~Q_~_Ç!~.g~t~m._c~IA Q€!]J.~!_~quanºo tralidade, desapego e identificano com a natureza como um todo,
têm que ªP..r~!1çl~r__~ ~lfprimir suª, ~?,çitação sexual, que caminha laqo diminuindo a importância do homem individual. É provável que te-
á lã.dô com a masturbação, que a crença em Deus instala-se nelas nha sido como observador que Reich não quis se defender quando
em -gêtal. Devido -a essa supressão; âdquirem o medo do prazer". 25 começou a sofrer ataques da imprensa na Escandinávia e, depois,
- --Reich estava em condições de descrever o caráter de três pers- nos Estados Unidos. Poder-se-ia dizer também que "o observador
pectivã-s: a-psicanalítica, a sociológica, a biológica. Ao longo de sua silencioso" denotava uma perigosa dissociação e um retraimento de
'vida profissional, como cientista Ílatural, ele uso~ imagens da natu- Reich, uma vez que apenas intensificava sua vulnerabilidade recusan-
reza para explicar seu trabalho. Sentia-se como. "uma minhoca no do-lhe o recurso à simples defesa.
universo" .26 Com um eczema incurável, que o acompanhou por toda Reich era fascinado pelos movimentos das paramécias e das ame-
vida, ele pode ter desenvolvido uma afinidade inconsciente com for- bas. No Congresso Psicanalítico de Berlim, em 1922, ele ficou im-
mas de vida cuja vulnerabilidade é mais aparente na pele. Vulnera- pressionado quando Freud comparou a projeção e a retração do in-
bilidade semelhante foi expressa em outra imagem, que evoca a sen- teresse psíquico ao movimento dos pseudópodos das amebas. Nesse
sação do corpo exposto. Por volta do final de sua vida, numa entre- período, Reich estava profissionalmente identificado com a psica-
vista dada em 1953, Reich contou a Kurt Bisler, diretor do Freud nálise e explicava a couraça em termos de id e ego freudianos. Mais
Archives, que se sentia como um veado em campo' aberto: "O pio- tarde, abandonou o modelo teórico de Freud e adotou o seu pró-
neiro é como o veado em campo aberto e todos os seus críticos e ini- prio, baseado numa imagem biológica:
migos estão à sua volta, de tocaia nos arbustos. Eles podem atirar
de repente e o animal nada pode fazer" .27 A respeito de seus pri- ~ ~J Dt:t~ 9.ª pers.o.nalida.de qll~e~!~ .eJCP'<?s~~.E1c:.? !ll~~? exter-
meiros tempos na psicanálise, conforme vimos no capítulo anterior, no, que acoIl~~c~ a formação de caráter; ele funclOna como pãIa-=éliógüe
Reich descreveu-se como "um tubarão num lago de carpas" .28 o
na Iuia-entre o id e' mundó externO. 'No interesse da--autopreserva-
Expressando-se de modo pessimista sobre a cura da neurose em adul- çao',"ó ego·:ieni"ando mediàf entre os dois lados, introjeta os objetos
tos, disse: "Depois que a árvore cresceu torta, você não consegue frustrantes-
..... I
d() m\1odo externo
. .
que; depois, formam o superego.
'. ,
31
mais endireitá-Ia".29 A imagem da minhoca no universo não se re-
feria apenas à vulnerabilidade, mas também à insignificância, às rea- Devido à ansiedade, um mecanismo protetor é levantado entre
lizações e ao retraimento. Nessa imagem estava um observador que o organismo e o mundo externo, que vem a ser a formação do cará-
se via de uma grande altura, como seu próprio pai crítico internali- . ter. Reich usou a imagem do protozoário para explicar essa idéia:
zado, observador aquele que, em seus últimos anos, estava inscrito
em seus manuscritos como o observador silencioso:

58 59
Podemos lembrar aqui determinados protozoários. Há muitos deles to" . 35 Por volta de 1929" Reich viu que o conflito psíquico entre o
que se protegem do mundo externo por meio de uma couraça de ma- prazer sexual e a resfrição mõáll era fisicamente transfeddo aoses-
terial inorgânico. A motilidade desses protozoários encouraçados é con- 'pasmos musciilªr~s. Enquanto num organismo genitalmente saudá-
sideravelmente restrita, se comparada à ameba simples; o conta(o com vel a descarga sexual é plena e convulsiva, na estrutura masoquista
o mundo externo é limitado aos pseudópodos qUt: podem ser projeta- ela é impossível. A energia em expansão é sexual e agradável, mas
dos através de pequenas aberturas na couraça e depois recolhidos de na contração é vivenciada como ansiedade: "
volta. 32
Como se comportaria uma bexiga que fosse inflada com ar por dentro
Como corolário do conceito de couraça, Reich desenvolveu o e não pudesse estourar? .. A bexiga, se pudesse se expressar em seu
conceito de contato e ausência de contato. Depois qJe as defesas mais estado de tensão insolúvel, iria queixar-se. Em sua impotência, vai em
, ostensivas foram dissolvidas pela análise, permaneçe um nível de pro- busca de causas externas para seu sofrimento e as condena ...
teção que o paciente se recusa a descartar e que Reich descreve como O paciente neurótico enrijeceu-se na periferia do corpo, ao mesmo tem-
ausência psíquica de contato: "Quando os pacientes se sentem es- po que reteve sua "vitalidade" central e as exigências desta. Ele não
tranhos, isolados dos vínculos, desinteressados por tudo, isso se de- está à vontade "em sua própria pele", é "inibido", "incapaz de realizar-
ve ao conflito entre uma tendência objeto-libidinal e a tendência de se", "bloqueado", como se uma parede o detivesse; "falta-lhe canta-
fugir para o Self". 33 O equilíbrio entre forças antagônicas cria uma to", ele se sente "tenso a ponto de explodir". Se esforça ao máximo
aparente passividade e falta de contato. Reich trabalhou, por exem- "para ir ao mundo" mas está "travado". 36
plo, com um paciente que, por trás de sua atitude passivo-feminina,
mantinha uma ausência de contato com as pessoas: "O próprio pa- A bexiga, segundo Reich, se estende para fora na forma de uma
ciente não tinha consciência imediata desse fato; pelo contrário, sua minhoca ou de um intestino; pode fazer movimentos rítmicos em sua
tendência passivo-Íeminina de depender dos outros enganava-o a es- expansão e contração e pode descarregar a energia acumulada com
se respeito e lhe dava a sensação de manter relaç:ões especialmente algumas contrações, ou o corpo todo pode se mover como uma ser-
intensas com o mundo externo". 34 pente. É ainda possível que, como na divisão celular a bexiga
A mais poderosa e proveitosa imagem de Reich com respeito à
! dividindo-se em duas, possa manter o mesmo volume, dtas passan~
,!
amebas e à minhoca era a da bexiga, da qual ele derivaria uma nova do a ser cercada por uma membrana maior, menos tensa, num pro-
representação do processo de formação da couraça.~Atéser bloqueada, cesso de relaxamento. Para Reich, as contrações para liberar a ener-
a energia ~e,expançle em direção ao mundo e à periferia e se contrai gia acumulada representavam o reflexo do orgasmo.
,p~laloíige do rmíndo e rumo aocentro, numa pulsação natural. A Por volta dos anos 40, Reich est~va cansado de usar palavras
em te;apia. ~inha estad? a ver a. vida pelo aparato do ego. A bexiga,
imagem da bexiga descreve <> dilema físico de todas as couraças mas
em especial o dilema do masoquismo. ~m clfculo, lIbertou ReIch ,das Imagens da psicanálise, do ego e do
,Id. ço~0,,~Jm9~1? ~ncestr!ll da totalid~det o c~rculo se tornou o mo',
5e '
,Reich nunca .cqnseguiu entender o, il!~t.!~t() de morte proposto d~o. d~ 1{e.I~~'p~i"a o Self~ Para ele, ao sugerir a ameba e'aimagem
Ror Freud, e achava quenão,h~via justificativ~sclínicás que o
eó~' ~a beXIga, oc~r~ulo ex~ressava as três camadas - a camada perifé~
,nca ou .superfIcIal e polIda; a camada secundária da couraça, mora~
~óssassem: Os Clientes quê' estavam fracassando na terapia e aos quais
era atribuída a vigência do instinto de morte acabaram por levar a da dos Impulsos demoníacos, anti-sociais; e a camada central onde
uma teoria alternativa, ou seja, o conceito reichiano, de masoqu.is- ~e localiza a natureza humana decente e comum. '
,mo. Houve um cliente que suplicou'tãritõ"ã RêIéh'que o espancasse, Conforme foi envelhecendo, Reich foi se torna~do cada vez mais
que este finalmente consentiu e bateu nele com uma régua. Em vez visionário. "O que está vivo funciona de modo autônomo" escre-
de sentir prazer na dor, o paciente apenas suportou-a, para romper veu, "mais além do reino da linguagem, intelecto ou voliçã~" .37 A
a tensão corporal e vivenciar a descarga. Reich comparou seu corpo expressão do indivíduo encouraçado é "reter", ao passo que a pes-
a uma bexiga esticada: "Os pacientes se queixam de estarem estica- soa s~m couraça é capaz de dar, de estar presente, de entregar-se ao
dos, repletos, como"sé estivessem prestes a explodir, a estourar. .. parceIro ~o ato se~ual. Reich viu a energia viva sob a couraça, sob
Aterrorizam-se com a idéia de sua couraça ceder em ,qualquer pon- o falatóno defensIvo. Tornou-se alguém que sempre via nos outros

60 61
o homem interior e natural: "Se se deixa o paciente falar qualquer 32. Ibid., pp. 159-160.
33. Ibid., p. 319.
coisa, descobriremos que seu discurso o distanciará dos problemas, 34. Ibid., p. 317.
que as palavras os obscurecem ... Assim que o paciente pára de fa- 35. R~ich, Function of lhe Orgasm, p. 228.
lar, a expressão corporal da emoção torna-se claramente visível" .38 36. Ibl~., pp. 231-232 (grifos do original).
37. Relch, Characler Ana/ysis, p. 365.
38. Ibid., p. 362.

Notas
1. Sigmund Freud, Collected Papers,' vol. 2 (Londres: Hogarth Press, 1950),
p.46.
2. Ibid., p. 50.
3. Ver Paul E. Stepansky, ln Freud's Shadow: Adler in Context (Hillsdale,
N.J., Analytic Press, 1983), p. 151.
4. Wilhelm Reich, The Function of Orgasm, tradução de Theodore P. Wolfe
(Nova York: Meridian, 1970), p. 17. [Em português, A função do orgasmo.]
5. Ibid., p. 51.
6. lbid., p. 31.
7. lbid., p. 146.
8. lbid., p. 147.
9. Wilhelm Reich, The Impulsive Character and Other Writings, tradução de
Barbara G. Koopman (Nova York: New American Library, 1974).
10. Ibid., p. 57 (grifos do original).
11. lbid., p. 147 (grifos do original).
12. Ibid., p. 95.
13. lbid., p. 125.
14. lbid., p. 114.
15. Richard F. Sterba, Reminiscences of a Viennese Psychoana/yst (Detroit:
Wayne State University Press, 1982), p. 35.
16. Reich, Function of the Orgasm, p. 142.
17. Sterba, Reminiscences, p. 87.
18. Ibid.
19. Reich, Function of the Orgasm, p. 105.
20. lbid., p. 149.
21. Use Ollendorf Reich, Wilhelm Reich: A Personal Biography (Nova York:
St. Martin's Press, 1969), p. 33.
22. Wilhelm Reich, The Mass Psychology of Fascism, tradução de Vincent R.
Carfagno (Nova York: Farrar, Straus & Giroux, 1970), p. XXIV (grifos do origi-
nai). [Em português, A psicologia de massas do fascismo.]
23. Ibid., p. 55.
24. Ibid., p. 47.
25. Ibid., p. 150.
26. Reich, Function of the Orgasm, p. 22.
27. Wilhelm Reich, Reich Speaks of Freud (Nova York: Farrar, Straus & Gi-
roux, 1967), p. 101.
28. Ibid., p. 40.
29. lbid., p. 70.
30. Reich, Function of the Orgasm, p. 22.
31. Wilhelm Reich, Characler Analysis, 3~ edição, tradução de Theodore P.
Wolfe (Nova York: Farrar, Straus & Giroux, 1949), p. 159. [Em português, Análise
do caráter.]

62 63
Cada vez mais voltamos nossa atenção para o homem como um todo,
Capítulo 5 desviando-nos da visão de sua doença aparente. Chegamos a entender
que o sofrimento psíquico não é um fenômeno localizado com exati-
dão, nem delimitado de forma nítida. É, antes, o sintoma de umª ati-
!,ude equivocada assumida pela personalidade tOtáT.'Nãopõ'dêffiós,' põr
is'sõ;Cspeiài que uma cura completa decorra de uni tratamento restri-
Jung, psicopat%gia e to ao problema em si, mas apenas de um tratamento que envolva a
personalidade como um todo. 3
processo de individuação Essa afirmação de Jung é aparentada ao conceito de caráter for.-
mulado por Reich, que' pode ser resumido como a atitude corporal
total do organismo.
A carreira profissional de Jung começou em 1900, no Hospital
Mental Burghõlzli, em Zurique, sob a supervisão de Eugen Bleuler.
Aos 25 anos de idade, Jung ingressava num campo cic!ntífico que,
Ao escrever sobre Jung e a psicppatologia, enfrenta-se uma apa-
segundo os colegas, era pouco promissor, após ter recusado um in-
rente contradição, porque a intenção de Jung, já em sua maturidade
vejável posto de assistente de medicina interna junto a um de seus
profissional, era constituir um sistema de pensamento em torno do
professores. Considerava-se que a doença mental tinha pouca rela-
ser humano saudável. Jung criticava os sistemas de Freud e Adler
ç:ão com a vida normal. O hospital estava distante da ativa vida co-
porque refletiam uma ênfase excessjva sobre estados mentais neuró-
'ticos: mercial da cidade; os médicos, que viviam com os pacientes, por uma
associação com eles, também eram excluídos do mundo "normal".
A meu ver, as duas escolas merecem ser reprovadas por acentuarem A esquizofrenia - ou demência precoce, como era então chamada
a ênfase sobre o aspecto patológico da vida e por interpretarem o ho- -- era considerada fisiologicamente causada e irreversíve:l. O paciente
mem com excessiva exclusividade à luz de seus defeitos ... De minha que se recuperava, com ou sem tratamento, era considerado alguém
parte, prefiro olhar o homem à luz do que nele é saudável e consisten- que nunca fora de fato esquizofrênico.
te, e libertar o homem doente daquele ponto de vista que colore cada Jung começou um estudo sobre a esquizofrenia usando o teste
página escrita por Freud. O ensinamento freudiano é definitivamente de associações. Era lida para o paciente uma relação de palavras co-
unilateral, no sentido de generalizar a partir de fatos que só são rele- muns e ele era solicitado a responder espontaneamente às mesmas,
vantes para os estados neuróticos de mente; sua validade de fato sem refletir. As respostas eram medidas em termos do tempo de rea-
restringe-se a tais estados ... De qualquer modo, a psicologia de Freud
ção e estipulava-se o tempo médio, de tal modo que as variações em
não é a da mente sadia. 1
torno da média poderiam ser observadas. O trabalho de Jung com
Os pontos de vista de Jung sobre psico patologia tiveram várias o teste de associações adequava-se perfeitamente ao contexto dos co-
origens. Em seu trabalho inicial como médico, antes de desenvolver nhecimentos clínicos especializados, mais progressivos e iI)vestiga-
suas próprias teorias, tratou de uma população hospitalizada e com tórios, que marcavam sua época, para o qual o bizarro comporta-
graves distúrbios. Em seus estudos sobre psicose e neurose há refe- mento verbal dos pacientes esquizofrênicos era fascinante.
rências positivas a Freud. 2 As definições básicas desenvolvidas no Erwin Stransky estudou as associações espontâneas d~pessoas
início de sua carreira continuaram relativamente inalteradas ao lon- normais, quando sua atenção estava distraída. Em seu' experimento,
go de sua vida. Ele desenvolveu o conceito de complexo, que se en- pediu~lhes:que'falassem'a~~~r!lo q.uranie um minuto, sem prestar aten-
raizou na terminologia básica do pensamento psicanalítico. Mas, em ção ~o_.qÜ~ ,~§t!'{~~~~~ 4!~~p,do~~ O uso da lingu'agem; as persevera-
sua evolução teórica, Jung foi adotando progressivamente uma pers- . ç6êá e contaminações resultaram comparáveis às produções verbais
pectiva que hoje podemos chamar de holística, sobre os distúrbios dos esquizofrênicos. O relaxamento ou "rebaixamento" da atenção
emocionais: era citado de numerosas formas, como "deterioração aperceptiya"
ou "frag~eza aperceptiva", ou pelo termo que Jung finalmente ele-
geu, de ___
Pierre Janet, "a.,baissement
.__ .•.. --- -' _ . " ' _....
du niveau
-
mental" (rebaixamen-
_ ....• " ._.0'0

64 65
to do nível mental). De acordo com Janet, disse Jung, "a associação
resulta do 'abaissement du niveau mental' que destrói a hierarquia de terror, em vez de ser integrado, submerge. Contudo, volta à tona
e promove, ou aliás, causa a formação do automatismo" .5 Também sempre que, por várias sutis razões, a experiência for mobilizada de
Emi Kraepelin observou a semelhança entre a linguagem dos sonhos novo. No caso da neurose, o complexo tornou-se até certo grau au-
e a da esquizofrenia. 6 tônomo e luta com o ego pelo domínio da pessoa, mas persiste o es-
Em seus primeiros sete anos no Burghõzli, Jung estudou o no- forço do ego contra o invasor inconsciente:
tável A interpretação dos sonhos de Freud e comparou o trabalho
deste sobre a histeria, com os mecanismos subjacentes à esquizofre- o pensamento e a ação são constantemente perturbados e distorcidos
por um forte complexo, nas grandes e pequenas coisas. O comJ?lexo
nia. Kraepelin observara o que chamou de "embotamento emocio-
do e&~j>5~~~§h!Ld!~er, ..Qªo ..é, IPais (). t9.Q~.,~a pe.~~p~ª(f~ei· a. se~
nal" na esquizofrenia, e Stransky especulara 1mbre a incongruência lado há um outro ser, vivendo sua própria vida, impedindo e pertur-
e~tre o conteú~o emocional e o "conteúdo da representação predo- báiidõõ'desérivolviriiéntõÓoéomplexodo ego, pois a.s ações'sintomá-
mmante na pSIque no momento".7 Com base nesse e em vários ou- tiê.!S::~~!i~\iml;lm co~sumir muito~~IIipQ ~~SfOl;ÇO, que o·coirip!~JÇ6.do
tr~s est~d.os"Jun~ .formulou a teoria de gue_º,uçqmQortamento ~s­
~~,lz<:f~ellJCOpod~f.l~ ser explic~d()p~lQ. çemc<!ito cle..f()lEE!~._tlõ ,.-
-_._-_._-_
égo vem a perder. ........ .
.. -

aoalssement du mveau mental", cuja causa {!ra incerta, uma desa- No caso da esquizofrenia, a coesão da psique não está apenas
tenção ou um enfraquecimento do complexo do ego permitia a emer- abalada, mas fragmentada. O complexo do ego perde o domínio e
gência de complexos que eram idéias carregadas de afeto, represen- os outros complexos governam como querem. A diferença entre n~u­
tativas de conflitos anteriores, traumas maion~s ou menores impos- rose e psicose é considerada uma questão de grãll.Juii~: registrou mais
tos à vida somática e psíquica. Esses complexos representavam de- 'tarde que, ao sair do Burghõlzli, em 1909, para iniciar uma concor-
sarmonias na psique e interrompiam o fluxo da vida consciente: rida clínica particda,r, pensou que não encontraria mais esquizofrê-
.. ~ nicos. Para sua surpresa, deparou-se com muitos, que tinham con-
, i. • ( ,..9. e~? ~. ~nuLITI~SrnO llllLÇOmpl~:lf.Q.,. .Q.~go .é .!l ~}Çp(essão- psicológica seguido evitar o hospital e mantinham-se bem mediante visitas aos
, ~~_~m~~_~~J?!vªçãQ.Jip:l!eI!!~.llt.~.~~~9Çiª~~ qe todas as sensações cor- psicoterapeutas. Também era freqüente encontrar pacientes neuró-
. e~~1:!~: .A personalidade, portanto, é o complexo inais firme e' 'forte, ticos, com psicose latente. As defesas neuróticas às vezes protegiam
~i~~8 u~B:.t:~~ .~l:lú~e 'p~~mitir)~e~~s~e. ~ t.odas ~s,!empest~d~s. p~~c.ológi- a pessoa de uma destruição mais global do complexo do ego.
EmJ2.Ql, Jung publicou !1.p$.ic.okJgiaJia_demêl1da..pr:ecoce,IO
em que fazia uma revisão da literatura relevante e discutia sua expe-
Jung descreveu graficamente como o corpo incorpora os trau-
riência como o teste de associações, que usara para estabelecer e iden-
mas psíquicos ao seu funcionamento geral. Seu trabalho com o teste
tificar os complexos dos pacientes esquizofrênicos. Fazia uso cientí-
de associações de palavras e com o teste do reflexo galvânico da pele
fico do teste de associações, mas que era também altamente intuitivo
alertara~-no para o modo como psique e corpo interagem, e essa
percepçao nunca o abandonou. Mas o gênio de Reich foi ter insisti- e, às vezes, extraordinário. Qtç sl e sk assocl~Ç2.<::~.~~~.1.~!!g.inçliçª.Yfl
do nessa ligação na época em que Freud estava seguindo uma regra a natureza e a existência de çp.ffip)exos em pacientes. tanto. normais.
Ç9friQj!euf~ií~<?s~u"psiçÓiico~: Irrompia uma psicopatologia quan-
até certo ponto contrária. Freud insistia em acompanhar determina-
dos aspectos psicológicos até o fini, em vez de dispersar sua atenção do um complexo já presente nas pessoas anormais era suficientemente
com detalhes neurológicos. Ele queria que sua nova ciência flores- capaz de dominar o complexo do ego e criar distúrbios severos. Jung
manteve o conceito de complexo como um dos fundamentos de sua
cesse e não que se desviasse de seu fumo com explicações somáticas.
compreensão da psicopatologia.
~om? exemplo de um trauma psíquico, explicava Jung, pode-
Após 1907, quando Jung começou sua associação pessoal com
mos lmagmar u~a I?essoa que foi gravemente ameaçada por um ca-
chorro. A expenêncla é acompanhada de tensões musculares e de vá- Freud, seu trabalho científico rapidamente levou-o a conclusões que
..... rias reações do sistema nervoso simpático. Inúmeras sensações cor- o afastaram da linha' mestra do conhecimento especializado de en-
porais são alteradas e, talvez nos meses seguintes, fragmentos passa- tão, e essas mesmas investigações acabaram por afastá-lo do próprio
geiros de memória a respeito do incidente recuperam a experiência Freud. Podemos considerar que as diferenças teóricas cada vez maiores
que é parcialmente revivida. Com o passar do tempo, o complex~ entre Freud e Jung resultam pelo menos em parte, de suas diferentes
populações de pacientes. ,Freud trabalhava exclusivamente com neu-.
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rótico~, ao passo que Jung, pelo menos até 1909, trabalhou predo- .pécie humana. O termo que escolhi para isso, ou seja, "arquétipo".
minàntemente com esquizofrênicos. . coincide, portanto, com o conceito biológico de "padrão de compor-
. Para Jung, o material inconsciente que irrompia na sessão tera- tamento". Não se trata de maneira alguma de idéias herdadas, mas
pêutica com o paciente esquizofrênico era acentuadamente diferente de impulsos e de formas intintivas herdadas, que podem ser observa-
das em todas as criaturas vivas. 12
do material inconsciente apresentado em terapia pelo paciente neu-
rótico. Com o tempo ele percebeu que por baixo da fina camada do
inconsciente pessoal (depósito pequenoemâíviatiàI de
ássociações
De acordo com Jung, o esquizofrênico está tão inundado de ma-
terial arquetípico proveniente do inconsciente coletivo que é incapaz
I5"áfíféUlarés)-estáuma ampla rede de associações 'com a.e~pécie hu- de integrá-lo com êxito. Jung cita um exemplo de um caso de Burg-
mana, um universal mundo mítico rehi.cionado ao fólclore e à histó- hõl:di, que o levou a formular seu conceito de inconsciente coletivo:
da racial da humanidade., Esse material, concluiu Jung, não pode "Cc!tto dia deparei-me com a seguinte alucinação de um paciente es-
ser corretam ente esclarecido como conteúdo de um inconsciente pes- quizofrênico: ele me contou que via um falo ereto no sol. Ele dizia
soal, como queria Freud; interpretado como material proveniente ape- que, quando balançava a cabeça de um lado para o outro, o falo
nas do inconsciente pessoal, não gera resposta nem resultado tera- do sol também oscilava e era daf que vinha o vento" .13
pêutico. Em 1910, imerso em seus estudos mitológicos, ele tomou conhe-
Para Freud, a resolução terapêutica estava no eompromisso com cimento de uma liturgia mitraica em que havia instruções, invocações
a contenção racional, no aspecto confessional do método catáitico e e visões. Para sua surpresa, uma dessas visões era: "E, da mesma
.na análise das experiências da infância. A referência aos aspectos mais forma, o chamado tubo, origem do vento propiciatório, pois verás
amplos do mito tinha valor, mas melhor seria se o mito fosse reduzi- pendendo do disco solar algo que parece um tubo" .14
c
do a colocações racionais. Para Jung,l no entanto, o significado sim- Jung, cujos interesses eram intensos e variados, estava bem equi-
bólico não era para ser necessariamente traduzido. Os sonhos não eram pado para abordar o mito e suas implicações. Desde a infância se
fachadas simbólicas, como para Freud". Em carta enviada a um "Dr. interessara por biologia e arqueologia. Trabalhando com esquizo-
N. " , Jung escreveu: "Você não deveria interpretar de forma redutiva frênicos, aprendera a identificar as várias personalidades parciais e
os símbolos produzidos pelos sonhos, mas compreendê-los como sím- viu, através da análise dos sonhos, os vários temas míticos que do-
bolos verdaGeiros, ou seja, a melhor formulação possível de fatos des- minavam a vida interior de seus pacientes. Após algum tempo, ele
conhecidos que não podem ser reduzidos a nada mais" .11 se perguntou: "Que mito estarei eu vivendo?", e, deixando de lado
Jung considerava símbolos, mitos, contos de fada e sonhos co- considerações psicopatológicas, passou a se deter nas questões da in-
mo a melhor expressão daquilo que estavam descrevendo. Não eram dividuação ou auto-realização. IS Para ele, o homem em geral tem
incursões desnecessárias no mundo normal da razão, mas expressões. uma consciência coletiva, e não uma individualidade verdadeiramente
desenvolvida. Muitas vezes, uma ilusão da individualidade é susten-
daquilo que dirigiu a energia psíquica do homem através das eras.
tada pelo que ele chamou de persona, máscara adotada como um
Para Jung, a invasão da consciência por esse tipo de material não intermediário entre a pessoa é o mundo; quer dizer, a persona é o
podia ser legitimamente reduzida a seu conteúdo sexual apenas: papel presumido da pessoa no mundo. 16 Jung veio a perceber que
para ser plenamente humano, o indivíduo precisa diferenciar-se dos
Foi essa freqüente retomada de formas arcaicas de uma associação, vários complexos e dos conteúdos coletivos arcaicos presumidos co-
observada na esquizofrenia, que primeiro me deu a idéia de um incons-
ciente que não consta apenas de conteúdos originalmente conscientes mo sendo o indivíduo autêntico. Através da análise dos sonhos e de
e depois perdidos, mas de uma camada mais profunda com o mesmo um processo que ele chamou de "imaginação ativa", no qual, em
caráter universal dos motivos mitológicos que caracterizam a fantasia estado de vigília, a pessoa se envolve ativamente com as várias per-
humana em geral. Esses motivos não são inventados, mas descober- sonalidades que emergem, desenrola-se o processo de diferenciação.
tos; são formas típicas que aparecem de modo espontâneo em todas A divisão entre doença e normalidade não era mais uma linha
as partes do mundo, independentemente das tradições, nos mitos, nos nítida, e o processo terapêutico poderia continuar mais além do ponto
contos de fada, nas fantasias, nos sonhos, nas visões e nos sistemas de um "funcionamento adequado'~. Se Jung tivesse mantido suas
delirantes dos insanos. Uma investigação mais detida mostra serem ati; investigações patológicas focalizadas objetivamente fora dele mes-
etudes e modos de agir típicos - processos de pensamento e impulsos mo, seu principal trabalho teria terminado com o teste de associa-
que devem constituir o comportamento tipicamente instintivo da es- ções e a teoria dos complexos, ou talvez tivesse se desenvolvido mais

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um pouco nessa direção. Mas Jung explora seu r~laci~nament~ com nhecida como uma influência nem por Jung, nem por Freud, cujo
seus pacientes e investigou seu próprio processo mtenor. A pSIco~e­ conceito de·instinto de morte foi desenvolvido a partir de um traba-
rapia estava em seus primórdios e a transferênc~a era uf!1 ~o~ceIto lho anterior por ela produzido. Numa carta posterior destinada a
não testado, e Jung não tinha qualquer presunçao de Ob!,etlVl~ad_e. Freud, datada de 21 de junho de 1909, Jung admitiu uma certa cul-
Tudo que escrevera, segundo ele, não passava de ~ma confIssao pa quanto ao relacionamento com Sabina. "Não obstante, lamento
subjetiva",17 Porém, mais do que qualque.r outro pSIc~logo, tornou os pecados que cometi, pois sou muito culpado." Também admite:
pública essa confissão subjetiva ao publIcar Memórias, sonhos e "minha atitude foi um ato de patifaria" .21 A mãe de Sabina rece-
reflexões. IS • • beu uma carta anônima advertindo-a do relacionamento comprome-
No fim da vida, Jung manifestou uma capacIdade malOr que tedor com Jung, e Bettelheim especula sobre a possibilidade de Jung
a de Reich para proteger-se, para permanec~r oculto; e, apesar de ter-se afastado do Burghõlzli, em março de 1909, para evitar escân-
todas as suas confissões autobiográficas, contmua sendo um homem dalo maior. 22 Não está claro se o caso de amor entre Jung e Sabina
extraordinariamente difícil de conhecer. Por isso, suas primeiras in- chegou de verdade às vias de fato, sexualmente falando. 23 O que está
discrições e conflitos nos dão uma sensação de envolvimento genuí- claro, contudo, é que ele a amou com uma certa paixão.
no. Houve alguns aspectos a cujo respeito Jl!ng não pôde proteger- Com o tempo, a relação entre ambos encontrou um novo equi-
se e suas notáveis vitórias não foram conqUIstadas sem o derrama- líbrio e Sabina formou-se em medicina, tornando-se analista e pro-
m~nto de sangue real. Suas investigações sobre sUa própria natureza fessora. a extenso envolvimento de Jung com Sabina foi posterior-
e sobre a natureza da transferência; assim como seu fascínio pela lou- mente repetido com Toni Wolff, que também tinha sido sua pacien-
cura, levaram-no a profundos envolvif!1entos ~om seus pacie.nt~s q~e, te. As duas, mulheres de inteligência excepcional, conheciam intima-
inevitavelmente, ultrapassaram os limItes estntamente profIsslOnals, mente, por sua própria luta, os meandros do processo da cura inte-
Sua disponibilidade para abrir seu coração criou problemas. rior. Talvez tivessem sido capazes de ser a companhia intelectual e
Por exemplo, Jung traba~hou na cura de uma. brilhante e atraente a validação que faltavam na vida de Jung. Mais tarde, quando so-
moça russa, Sabina Spielrein, mantendo o relaclOnamento com ela fria seu próprio julgamento pelo fogo, seu confronto pessoal com
por um longo período porque, como alegou em carta a Freud, ela o inconsciente, Toni pôde servir-lhe de âncora com sua sensível per-
precisava de um grande apoio para rec~perar-se. Neste c~so, ele so- cepção consciente, de tal sorte que ele conseguiu chegar a uma inte-
freu com a profundidade de seu envolvImento com a paCIente e com gração da anima - dimensão desconhecida e desenfreada dele mes-
seu aprisionamento na transferência. Jung afirmou em carta a Freud mo. Com o tempo, Emma Jung acabou por aceitar Toni, reconhe-
que, ao contrário do depoimento de Sabina, ela. nun~a foi sU,a amante, cendo que sem a assistência que ela prestara num momento crítico
Mas, segundo os diários e cartas dela, J~ng, .aI.nda Inexp.en~nte nu~ seu marido poderia ter-se tornado psicótico.
campo novo, apaixonou-se por ela e fOI deCIdIdamente Indiscreto. Um modelo que Jung descobriu mais tarde na alquimia explica
Jung escreveu a Freud: o processo em que se envolveu com essas mulheres especiais. O tra-
balho alquímico envolve um casamento entre um rei e uma rainha,
Por assim dizer ela foi meu caso-teste e por essa razão lembro-me de-
la com gratidã~ e afeto especiais. Um,a vez que sabia, por experiên~ia o masculino e o feminino interiores, representados pelo alquimista
que ela recairia de imediato se eu retirasse meu apOIO, prolonguei o e uma mulher assistente. Em seu conceito de transferência, Jung des-
relacionamento ao longo dos anos e, no final, descobri-me moralmen- creveu como, no trabalho mais profundo, tanto o terapeuta como
te obrigado, por assim dizer, a ded~car-Ihe uma gral;1de amiz~de, até o paciente estão "no mesmo caldo". Ambos são transformados pe-
perceber que uma roda não pretendida começara a girar ~or SI, o que lo relacionamento. O terapeuta não está imune. Cada um dos par-
enfim levou-me a romper com ela. Ela evidentemente estivera plane- ceiros deve aprender a distinguir entre o Self projetado e o parceiro
jando de modo sistemático seduzir-me, o que considerei inoportuno. que está lá, além dele.
Agora, ela está buscando vingança. 20 Enquanto ainda trabalhava no Burghõlzli, Jung entregou-se apai-
xonadamente à cura de atto Gross. Tornou-se amigo íntimo de Gross
Bruno Bettelheim é da opinião que Sabina Spielrein não foi ape- e de sua esposa, mas não conseguiu curá-lo, mesmo depois de incon-
nas amante de Jung como também elemento crítico no desenvolvi- táveis horas de trabalho. Em junho de 1908, Jung escreveu a Freud:
mento de seus conceitos de sombra e anima. Spielrein não foi reco-

70 71
Apesar de tudo, ele é meu amigo, pois, no fundo, é um homem muito o homem que, finalmente, em 1913, teve um colapso e retirou-se por
bom e educado, com uma mente incomum. Está agora vivendo o delí- um certo período.
rio de que eu o curei ... A ruptura entre Jung e Freud foi uma gradual e esmagadora de- /
Não sei quais serão seus sentimentos ao recebe:r estas notícias. Para cepção para os dois. Provavelmente, eles nunca estiveram em toraI
mim, esta experiência é uma das mais difíceis de: minha vida, pois, em
acordo, desde o início de sua associação, em 1907, e o enorme inves
Gross, descobri muitos aspectos de minha própria natureza, de modo
que muitas vezes ele parecia ser meu irmão gêmeo - menos quanto timento na amizade profissional envolveu-os nas complexas questõ s
à demência precoce. Isso é trágico. Você pode avaliar de que poderes da transferência, que expuseram esses dois cautelosos e reserva os
me vali dentro de mim para curá-lo. Mas, apesar do sofrimento de tu- senhores muito mais do que pretendiam. Em Dire 1I1astery, Fran-
do, eu não teria perdido essa experiência por nada, pois, no final, ela çois Roustang esboça os mútuos avanços e recuos desta relação com
me proporcionou, com a ajuda de uma personalidade singular, um detalhes notáveis, reunidos a partir de sua correspondência. Numa
aprofundamento inigualável da visão sobre o que constitui o próprio colocação mais geral, esboça o ctilema havido entre eles:
cerne da demência precoce. 24
Freud procurava um pupilo brilhante e não um futuro líder brilhante.
o preço do envolvimento de Jung foi alto e: de passou por mo- J un.g estava procurando um pai compreensivo e não um mestre que
mentos amargos. ",Gross e Spielrein são experiências amargas" , es- anSiOsamente buscava um sucessor para preservar a herança. Os dois
creveu Freud, "A nenhum de meus outros pacientes dediquei tanta se eqLlÍvooaram a respeito das intenções recíprocas e isso criou um in-
amizade e de nenhum outro colhi tantos dissabores" .25 terminável entrecruzamento de linhas, envolvendo avanços e recuos de
.Um outro choque adicional no início da carreira de Jung foi o ambos, que os dois tentavam ignorar ou ocultar tão bem ou tão mal
suicídio de seu talentoso e jovem assistente, Honegger, que em silên- quanto puderam. Durante anos, Freud quis acreditar, contra todas as
cio matou-se com uma injeção de morfina. "O {mico motivo" , disse evidências, que Jung aceitaria suas teorias sexuais, mns isso o preocu-
pava: "Acredito que seria uma boa política se partilhássemos do tra-
Jung a Freud, "era evitar uma psicose, pois ele não queria, sob cir-
balho de acordo com nossos caracteres e posições ... Mas peço-lhe não
cunstância alguma, desistir de viver de acordo' com o princípio do sacrifique nada que seja essencial em prol do tato pedagógico ~u da
prazer" .26 François Roustang acha que o jovem assistente de Jung, afabilidade, e não se desvie muito de mim, quando na realidade você
tão útil a ele em coisas secundárias, sentia profundamente as exigên- está tio perto, pois, se o fizer, poderemos ser postos um contra o ou-
cias que lhe fazia Jung. Seu suicídio teve conseqüências bem maio- tro". A obstinação de Freud não se esgotava com facilidade, pois ele
res do que a carta de Jung leva a supor. Não era tanto uma questão ainda estava convencido, em janeiro de 1911, que Jung era "o homem
de Jung ter sido o responsável, mas de ele não ter-se dado conta. 27 do futuro" . Aparentemente, ele perderia toda a esperança quando apa-
Por intermédio de Gross, Jung pôde ter um vislumbre de si mes- receu Wandlungen (Sfmbolos da transformação). Freud foi totalmen-
mo na loucura e perceber a profundidade de sua própria depressão te incapaz de escrever a Jung a respeito, durante longo tempo.28
e desequilíbrio interior. Seu relacionamento com os outros não foi
sempre uniforme. Sua relação com Bleuler parece ter esfriado con- Não estava de modo algum claro que a psicanálise tivesse qual-
forme ia aumentando a proximidade entre ele e Freud. Sua ligação ,quer efeito sobre a esquizofrenia. Jung atinha-se a seus próprios mé~
com este era atormentada por medos inconscientes e anseios não re- todos de pesquisa com uma paixão desesperada. Freud pouco enten-
solvidos. Seus esforços junto a Gross foram derrotados por Gross, dia de demência precoce, mas sabia muito de suas próprias referên-
que parecia estar zangado com Jung e competir com ele. Sua ligação cias à paranóia. Roustang explica essa oposição em termos de suas
com a esposa, Emma, era falha em algumas dimensões, pois ele apa- respectivas identificações com a demência precoce e a paranóia:
rentemente não a considerava capaz de acompanhá-lo em suas mais
profundas incursões pelo reino psíquico. Seu relacionamento com Claro que! clinicamente, Freud não é um paranóico, como Jung não
é um esqUlzofrênico. Mas seu antagonismo está profundamente entra-
Sabina era obscurecido e comprometido por seu próprio envolvimento
nhado nesses dois tipos de conhecimento (e loucura).
inconsciente, e ele pode ter tido motivos reais para temer por sua re- Cada um tem que realizar a difícil tarefa de se preservar de sua pró-
putação. Sofrendo extrema pressão psicológica, ele parece ter men- pria forma de psicose, através dela mesma: protegendo-se com uma
tido e intimidado Sabina e sua mãe inquisidora. Embora uma ima- teoria e protegendo-se da loucura fazendo o outro enlouquecer. 29
gem como esta não nos leve a apreciá-lo muito, podemos ver melhor

72 73
viagem ao mundo subterrâneo. Enquanto a libido, imersa no incons-
Para Jung, a redução à interpretação sexual era superficial e te-
ciente, mobiliza reações e fantasias infantis, também anima imagens
diosa. Ele orbitava naturalmente em torno do símbolo oculto. Seus arq:letípicas que podem ter valor curativo:
estilos eram muito diferentes. Roustang comenta:
O que realmente acontece nas fantasias uterinas e de incesto é que a
o que definitivamente diferencia a paranóia da e~quizofrenia é que es- libido mergulha no inconsciente, onde provoca reações pessoais, afe-
ta não tem sistema de expulsão. Ela se move contmuamente de um ele- tos, opiniões e atitudes infantis, mas, ao mesmo tempo, anima im~­
meiiiopara outr(), sem excluir ou privilegiar nada. O p~ranóic? nunca gens coletivas (arquétipos) que têm significado compensador e curatI-
pára de escolher e eliminar, ao passo que para o esqUlzofrêmco, que vo, como aquelas sempre pres'entes nos mitos. 33
.- é indiferente ao objeto isolado, tudo é prontamente intercambiável. 30
Lou Andreas-Salomé, que na época estudava com Freud, embo-
Com a publicação de Símbolos da transformqção, e~ 1912~ o ra apreciasse as amplificações dO.conceito de incesto feitas por Jung,
relacionamento estava encerrado, apesar de todas as boas mtençoes sentia que essa tentativa de tornar o conceito de libido todo-inclusivo
e propósitos. No oitavo capítulo, "O sacrifício", Jung finalmente ~orna era um "filosofar ingénuo". Em seu diário, no dia 7 de novembro de
dolorosamente clara sua incompatibilidade com a. teoria freudiana. 1912 ela anotou uma perspicaz observação sobre a disputa entre Freud
A noção de libido, para Jung, ia muito mais long l;! do qu~ o sexual, e Ju~g: "Chega-se às vezes a suspeitar que se acende uma discórdia
e também questionava o conceito freudiano de tabu do mcesto: a respeito de termos, quando a questão real é muito mais profunda,
sua natureza nada tem de terminológica".34 Presente, no início de se-
Portanto, não pode ter sido o tabu do incesto que forçou a humanida- tembro de 1913, ao Congresso de Munique, ela pôde apresentar um
de a emergir do estado psíquico original de indiscriminaç~o .. Pel~ c0!l-
trário foi o instinto evolutivo peculiar ao homem que o dlstmgulU tao retrato ímpar, conquanto nada elogioso, do Jung daqueles tempos:
radic~lmente dé todos os outros animais e o forç:ou a submeter-se a
'inumeros tabus, entre os quais o do incesto. Contra esse "outro': ins- No congresso, os representantes de Zurique sentaram-se em mesas opos-
tinto o animal que há em nós luta com todo o sem conservadorIsmo tas à de Freud. Seu comportamento com relação a Freud pode ser ca-
e mis'oneísmo - o ódio ao novo - instintivos que são dois traços dis- racterizado em apenas uma palavra. Não é tanto que Jung divirja de-
tintivos do homem primitivo e pouco consciente. Nossa mania de pro- le, mas se comporta como se lhe coubesse resgatar pessoalmente Freud
gresso é representada por uma compensação mórbida correlata. 31 e a causa deste, através dessas divergências. Se Freud assume a pró-
pria defesa, suas declarações são entendidas no mau sentido, como evi-
Disse Jung que a teoria de Freud buscava a causa da neurose dência de que ele não consegue demonstrar tolerância científica, de que
no passado distante, conceito confortável para o neurótico; mas a é dogmático e assim por diante. Uma rápida olhada para os dois já
indica qual deles é mais dogmático, mais apaixonado pelo poder. Há
neurose é recriada diariamente, conceito que se harmoniza com a vi- dois anos, a retumbante gargalhada de Jung manifestava uma joviali-
são do caráter proposta por Reich: dade robusta e uma vitalidade exuberante, mas agora sua veemência
compõe-se de pura agressão, ambição e brutalidade intelectual. Nun-
Freud faz de sua teoria da neurose - tão admiravelmente pertinente ca me senti tão perto de Freud como aqui; não só em virtude de sua
à natureza dos neuróticos - uma estrutura por demais dependente das ruptura com o "filho" Jung, a quem amava e por quem praticamente
idéias neuróticas, das quais justamente o paciente sofre. Isso leva à no- havia transferido sua causa para Zurique, mas em razão da maneira
ção (que ao neur6ticQ cai como uma luva) de que a causa efficiens de como se deu a ruptura - como se Freud a tivesse desencadeado por
sua neurose está no passado distante. Na realidade, ela é refabricada sua obstinação tacanha. Freud era o mesmo de sempre, mas só com
a cada dia, por uma atitude errada, que 'consiste no fato de o neuróti- grande dificuldade continha suas emoções mais profundas. E em ne-
co pensar e sentir como pensa e sente, justificando isso com sua teoria nhum outro lugar eu teria preferido sentar-me que não ao seu lado. 35
- da neurose. 32 I

Brilhante, preocupado com sua reputação, mergulhado no tra-


Jung dizia que a regressão vai mais longe, atingindo um nível
balho e em relacionamentos poderosos, enfurecido e ferido, Jung per-
de maior profundidade que o sexual, ou seja, o da função nutritiva
deu a credibilidade e os amigos quando se distanciou de Freud. So-
e digestiva, e daí a libido recua para uma condição intra-uterina, pré-
zinho, viajando de trem em outubro de 1913, ele teve a visão de uma
natal, ultrapassa a camada pessoal e p'enetra na psique coletiva, numa

74 75
monstruosa inundação de corpos recobrindo a Eur~pa, uma inUI~d!l­
ção que se transformava em sangue. Ele não a consIderou uma VIsao mais neutro, mais um observador dele mesmo, sem tanto a defen-
profética mas, em vez disso, pensou que devia preparar-se para ser der. Aprendeu com Filemon - uma de suas personalidades incons-
inundado pelos conteúdos do inconsciente, ~avendo pouco q~e p~­ cientes que se tornou seu professor - uma verdade amedrontadora
desse fazer a respeito. Acercando-se com herOlSm? de sua própna PSI- e notável: ele não era o criador das figuras inconscientes que povoa-
cose preparou-se para registrar o evento: tomarta notas metIc~losas vam sua vida. Uma vez que, na cultura ocidental, presume-se que
que ~ais tarde poderiam ser út~is à ciê~cia. Nove meses depOIs, en- as experiências interiores são irreais, a estabilidade de Jung estava
quanto dava palestras na EscócIa, eclodIU a guerra na Europa, ~u~~­ ameaçada porque vivenciava uma visão contraditória da realidade
ra que praticamente pegou a todos de surpresa, uma vez que a CIVIh- que, em outro contexto, poderia considerar psicótica.
zação ocidental não estivera pensando em guerra há a~gum tempo. Em Tipos psico/6gicos, Jung pôde criar um contexto mais am-
Jung ficou chocado com o advento ~a guerra, mas .sentIU-se profun- po a partir do qual analisar os métodos freudianos. A luta entre eles
damente aliviado por sua visão refem-se a acontecImentos externos. não terminou em 1913. Se nos círculos freudianos Jung era tido na
Depois do rompimento com Freud, começou para Jung um pe- pouca conta de místico científico, no mundo de Jung, o sistema ex-
ríodo de incertezas e desorientação internas, durante o qual usou con- trovertido de pensamento de Freud poderia ser considerado um as-
sigo mesmo sua técnica de análise e diferenciação: a pecto simples e restrito de uma abordagem mais ampla. Jung distin-
guia dois tipos de atitudes, introvertida e extrovertida:
Sentia-me totalmente suspenso no ar, pois ainda n~o en:~ntrara m~­
nhas próprias bases ... Mais ou menos nessa época, VlvenClel um mO~l­ A atitude do introvertido tende à abstração; no fundo, ele está sempre
mento de incomum clareza que me permitiu ver o percurso que ?aVla propenso a privar o objeto de libido, como se tivesse que impedir a
percorrido até ali. Pensei: "Agora você tem u~a c~ave pa~a a ~ltolo­ preponderância do objcto. O extrovertido, pelo contrário, tem uma
gia e está livre para abrir todos as portas da PSlq~; mconSclent~ . Mas relação positiva com o objeto. Afirma a sua importância a tal ponto
então alguma coisa sussurrou dentro de ~lm:. Por que abnr t~das que sua atitude subjetiva é constantemente relativa ao objeto e por ele
as portas?". E logo se impôs a questão: afmal de contas, o que tmha orientada. 38
realizado? Eu explicara os mitos de povos do passado.; escr;,vera um
livro sobre o herói, o mito em que o homem sempre viveu. Mas em Quatro funções representam maneiras básicas de estruturar o
que mito vive ele agora?" No mito cristão, poderia ser a respo~ta: E mundo e interagir com ele: sentimento, pensamento, sensação e in-
me perguntei: "Você vive nele?". Para ser honest?, a ~esp,~~t,a f.5'l na~.
Não é o mito no qual vivo. "Então não temos mais mito? Nao, eVI- tuição. Os dois tipos de atitudes e as quatro funções criam oito tipos
dentemente não temos mais mito algum." "Mas entã? qual é o ~eu de personalidade. Assim, uma pessoa pode ser introvertida ou ex-
mito - o mito no qual você vive?" Nesse ponto o diálogo comigo trovertida em seu comportamento. A primeira função da pessoa re-
tornou-se incômodo e parei de pensar. Tinha chegado a um beco sem presenta seu principal modo de comportamento. A segunda função
saída. 36 pode estar bem desenvolvida, mas é secundária. A terceira está na
sombra, mas disponível. A quarta função representa o lado mais pri-
A identificação de Jung com o herói morreu com suas invest~­ mitivo e indiferenciado, área em que somos praticamente cegos, vul-
gações, e ele aprendeu a não se identific~r com ~s forças ar.quetíp!- neráveis e inconscientes. Uma vez que as funções estão dispostas em
cas que brotam dentro de nós. Jung sentIu que NIetzsche se.ld:ntIfI- polaridades, a sensação é oposta à intuição, e o pensamento é opos-
cara com a voz profética que !,e expressava com tanta convIcçao em to ao sentimento. Assim, o desenvolvimento do pensamento como
Assim falava Zaratustra e que a identi.ficaçã~ do ego ~o~ Zaratus- função principal relega o sentimento à quarta função. O intuitivo
tra corrompera sua capacidade de se dIferencIar, contnbumdo P?ra
introvertido teria, em sua quarta função, o tipo sensação extrovertida.
a loucura. Os intensos processos interiores de Jung tornavam a VIda
acadêmica inteiramente inviável e, com uma certa angústia, ele de- Jung peroebeu que já não precisava ser um observador passivo
sistiu de ensinar. Continuou trabalhando com alguns pacientes mas, de seu inconsciente, mas que podia ingressar ativamente na fanta-
neste trabalho, deix.ava de lado as teorias e regras e "simplesmente sia. Poderia ater-se a uma figura, na fantasia, e lhe pedir alguma
ajudava os pacientes a entenderem as imagens de seus sonhos por coisa através da imaginação ativa. Ele se lançava no mar do incons-
si mesmos, sem a aplicação de regras e teorias". 37 Jung tornou-se ciente como num veleiro, ciente de um poder aterrorizante, do gran-
de risco envolvido nisso.
16
77
la, não pensa que fez essas pessoas ou que é o responsável por elas".
Numa dessas aventuras, deparou-se numa remota re~ião de va- Foi ele que me ensinou a objetividade psíquica, a realidade da psique. 41
les, evidentemente habitada por primitivos. l!m c1;lr~ndeuo de es.ta-
tura elevada estava ao seu lado. Vendo u.ma mscnç~o um tanto Ile- O pensamento mecanicista do século XIX desprezava todo o pro-
gível numa rocha, Jung tomou um martelInho e um cll,!-zel par~ acen- cesso interior da experiência sensível; não atribuía qualquer sentido
tuar as letras de modo que pudesse lê-las. O curandeiro quel~ou-se à psicose ou às outras formas de irracionalidade, considerando a ex-
de que uma lasca da pedra havia entrado em seu olho e. pediU que periência subjetiva como complacência perigosa ou, na melhor das
Jung a removesse. Este concordou, desde que o .curan?el~o.lhe tra- hipóteses, um mal necessário. A subjetividade era permitida às mu-
duzisse a inscrição, o que ele fez, explicando assIm o sIgmflcado de lheres e crianças, considerada encantadora, mas sem sentido e infe-
toda a fantasia. 39 . ' rior. Para Jung, portanto, cujo caráter masculino era tão marcante,
Alguns anos mais tarde, von Franz apont~u pa~a J~ng u~a hIs- sua precipitada descida ao plano subjetivo e interno refletia, pelo me-
tória na Odisséia, que ilustrava o processo da Im~gmaçao atlva. ~o nos, aceitação e integração parciais do feminino em seu íntimo, as-
quarto livro desse épico, Menelau, preso numa. Ilha pela calmana, sim como uma libertação do ethos masculino cultural, estreitamente
pois havia ofendido os deuses com uma certa atitude, encon.tra,.en- voltado para o poder. Com a publicação de Tipos psicológicos (1921)
quanto caminha pela areia, uma linda mulher de .nome Id~téla, fIlha ele legitimou as perspectivas introvertida e intuitiva como apenas di-
de Proteu, o ancião. Ela lhe diz como obter a l~formaçao que ele ferentes, não inferiores, dos referenciais extrovertido e racionais. Jung
quer de Proteu, que sabe tudo que Menelau preC:Isa saber. ~le de,:e considerou esses anos a mais profunda reviravolta em sua carreira,
surpreender Proteu adormecido com seu cardume de foc~s, e rete- sobre a qual se assentaram todas as suas formulações teóricas poste-
lo impedindo que se vá enquanto não disser o que ele precIsa saber. riores.
C~m quatro homens a ajudá-lo, M~nelau conserva ~roteu firme no Jung estava ciente da relatividade da saúde psíquica e da pato-
chão; mas o velho passa por uma séne de transformaçoes, tornando:se logia. A normalidade pouco nos informa sobre a integração e a har-
sucessivamente um leão, uma serpente, uma panter~, um grande Ja- monia da psique. Uma pessoa normal pode ser bem adaptada a uma
vali, água de corredeira e urna grande árvo:e. DepOiS de al~um tem- sociedade doente. A respeito do homem dito normal da sociedade,
po, porém, ele fica cansado e Menelau entao consegue ser_mforma- o homem indiferenciado, dizia Jung:
do do que precisa. 40 Em outra~ pala~ras, ~o d~rmo~ atençao às nos-
sas imagens interiores por melO da Imagmaçao ativa, elas mudam o coração do homem de hoje, que lembra mais ou menos o ideal cole-
de forma e se dissolvem, como se quisessem escapar de nós. M~s com tivo, se transformou num antro de bandidos, como pode ser facilmen-
persistência, depois de algum tempo, podemos aprender aquilo que te comprovado pela análise do inconsciente, mesmo se ele próprio não
. precisamos. ., . sente a menor perturbação com isso. E, na medida em que é normal-
Por volta do final de seu confronto com o própno mconSClen- mente "adaptado" ao seu meio, é verdade que a maior infâmia come-
te, Jung começava o dia desenhando mandala.s espontan~a~ente, e tida por seu grupo não o abalará, desde que a maioria de seus seme-
estas lhe davam um senso de vinculação e alívlO da pressao mterna, lhantes acredite com convicção na alta moralidade de sua organização
processo este que depois ele estudaria mais deta~hadame~te ... çomo social. 42
Reich, Jung desenvolvera poderos,?s recursos nao:verbals ~e cura, O conceito junguiano de saúde não é definido pelo ajustamento
que alcançavam as camadas mais profundas da Vida psíqUica: cultural. Como tornar-se não patológico numa sociedade patológi-
ca? Essa é uma questão no mínimo moral, mas as considerações prá-
Filemon e outras figuras de minha~ fant~sias aproxim~ram-me da cru-
cial constatação de que há na psique COlsas que eu nao produzo, mas ticas do processo individual, em sua esmagadora dificuldade, são dig-
que se produzem e têm vida própria. Filemon representava u~a for- nas de consideração. Jung considerava que a patologia da sociedade
ça que não era eu. Em minhas fantasias conversei com el~ e disse-me exerce uma força coletiva massacrante contra o indivíduo. Grandes
coisas que eu conscientemente não ha~i.a pensado. Percebi clarament~ comunidades, dominadas por preconceitos conservadores, desapro-
que era ele quem falava, não eu. Ele diZia que eu tratava os pe.nsamen vam consistentemente as diferenças individuais. A única fonte dos
tos como se fossem minha produção, mas que, do ponto de vista dele, avanços morais e espirituais da sociedade, que é a visão do indiví-
os pensamentos eram com animais numa floresta~ o~ pessoas numa sala duo, é repetidamente reprimida e ignorada. Os elementos individuais
ou pássaros no ar, e acrescentou: "Quando voce ve pessoas numa sa-
79
78
da personalidade, presentes des~e o iní~io da infância, _sã~,empurra­
dos para o subterrâneo, nível mconSClente em que s~o transfo~­ e de uma existência limitada, poupam energia: pouco a pouco esta se
mados em alguma coisa essencialmente baixa, destrutiva: anárqUi- acumula no inconsciente e, por fim, explode na forma de uma neurose
ca. Socialmente, esse princípio maligno se expres~a nos cnme~ espe- mais ou menos aguda. Este mecanismo simples não oculta necessaria-
taculares" .43 Em vez da diferença e da singulandade, a socledade mente um "plano". 9 impulso perfeitamente compreensível para uma
auto-realização parece uma explicação bastante satisfatória. 46
encoraja a mediocridade do homem coletivo. "~individual~dade será
inevitavelmente posta contra a parede ... Sem lIberdade, nao há mo-
ralidade.' '44
o aspecto mais poderoso da perspectiva de Jung foi que ele che-
gou a confiar na interioridade do homem, o mundo das imagens es-
A vida de Jung na Suíça, tendo atravessado duas guerras e em
pontâneas. Ele atravessou para o lado de lá do espelho. Da perspec-
especial a dominação nazista, sublinhava de modo sombrio a ~esa­
tiva da ciência extrovertida, o mundo interior era indigno de confiança
lentada visão do indivíduo impotente diante das forças coletivas.
Quando uma pessoa entra no processo de individuação há inúmeros e perigoso. O mundo interior tinha que ser controlado - entendido
apenas para ser tornado inócuo ou explorado. Jung foi }Ievado a voltar-
fatores coletivos dos quais diferenciar-se:
se para dentro, a confiar na inteligência dos sonhos, a dialogar com
Não há dúvida, por exemplo, de que símbolos arcaicos que.surgem fre- as figuras da fantasia, a respeitar e registrar simbolo.s espontâneos
qüentemente nas fantasias e nos sonhos são fatores coletlvos. Tod~s que chegam à orla da diminuta ilha da consciência. Ele sabia que as
os instintos fundamentais e formas de base do pensamento e do senti- imagens interiores são as genuínas diretrizes do mundo exterior.
mento são coletivos. Tudo a cujo respeito todos os homens concor- Penso naquele mestre-artista chinês que pintou uma paisagem
dam que é universal é coletivo; a~sLm como tudo que ~ univ.ersalmente e pôs, num detalhe impressionante, uma minúscula porta na verten-
entendido encontrado, dito e feito. A um eXElme mais detido, é sem- te de uma colina. No momento certo, ele abriu a porta e desapare-
pre espant~so constatar quanto nossa suposta psicologia, reputada in- ceu por ali. Dar um passo para dentro é entrar no jardim do mundo,
dividual é na realidade, coletiva ... É necessária uma profunda refle- o inconsciente coletivo de que todos partilhamos. Ê a esse jardim
xão par~ d~scobrir aquilo que é autenticamente individual em nós; e,
de repente, nos damos conta do quanto é extraordinariamente difícil que regressamos, não para escapar, mas para fazer contato com as
a descoberta da individualidade. 45 imagens que determinam nossas vidas. Nos níveis interiores, o ver-
dadeiro curso e significado de nossas vidas pode ser visto e essa com-
Diferenciar-se dos fatores coletivos não é rejeitá-los ou rejeitar preensão deve ser trazida de volta e aplicada ao mundo externo. Os
os aspectos coletivos da sociedade, mas constatar sua existên.cia in- sonhos não são os únicos recursos disponíveis para fazer contato com
dependente e não os identificar com posses, nem se confundlf com as imagens interiores, mas continuam sendo o instrumento mais pro-
eles como se fossem uma expressão individual. Assim sendo, não é lífico e imediato.
a p:ática de uma assídua distância em relação ao mundo que se im-
põe, mas o exercício de uma neutralidade e de uma esc~lha cada vez
maiores. Ê irônico que a pessoa normal, ao desenvolver smtomas neu- Notas
róticos, possa de fato estar dando um passo. na direção d: sua pró-
pria saúde psíquica. A neurose pode ser um smal de elevaçao. Em~~­ 1. C. G. Jung, Modern Man in Search of a Soul, tradução de W. S. DeU e
ra para Jung, o inconsciente não manifestasse qualquer plano umÍl- Cary F. Baynes (Nova York: Harvest, 1933), p. 117.
cacto para chegar a alguma meta definida, determinada, ele de fato 2. C. G. Jung, Psychogenesis of Mental Disease, tradução de R. F. C. Hull,
reconhecia a vigência de "um impulso para a auto-realização": Bollingen Series XX, voI. 3 (princeton: Princeton University Press, 1960), p. 55.
3. Jung, Modern Man, p. 192.
4. Jung, Psychogenesis, p. 22.
Há amplos contingentes populacionais que, apesar de sua notória in- 5. Ibid., PI 28.
consciência, nunca chegam nem perto de uma neurose. Os poucos fa- 6. Ibid., p. 26.
dados a essa sina são realmente pessoas do tipo "superior" que, por 7. Ibid., p. 19.
algum motivo, permaneceram tempo demais num plano primitivo. Sua 8. Ibid., p. 40.
natureza a longo prazo, não suporta perseverar no que, para elas, é 9. Ibid., p. 47.
um torp~r anormal. Em decorrência da estreiteza de seu consciente, 10. C. G. Jung, "The Psichology of Dementia Praecox", in Jung, Psychoge-
nesis.

80
81
11. C. G. Jung, "Letter of February 5, 1934", in C. G. Jung Letters, tradução 35. Ibid., pp. 168-169.
de R. F. C. Hun, org. Gerhard Adler e Aniela Jaffé, Bollingen Series XCV, vol. 36. Jung, Memories, Dreams, Reflections, pp. 170-171.
1 (1906-1950) (Princeton: Princeton University Press, 1973), p. 143. 37. Ibid., p. 170.
12. Jung, Psychogenesis, pp. 261-262. 38. C. G. Jung, Psychological Types, tradução H. G. Baynes, org. R. F. C.
13. C. G. Jung, Symbols of Transformation: An Analysis of the Prelude to HulJ, Bollingen Series XX, vol. 6 (Princeton: Princeton University Press, 1976), p.
a Case of Schizophrenia, 2 ~ edição, tradução de R. F. C. Hun, Bollingen Series XX, 330. (Em português, Tipos psicológicos.)
vol. 5 (Princeton: Princeton University Press, 1956), p. 101. 39. Barbara Hannah, Jung: Bis Life and Work- A Biographical Memoir (Nova
14. C. G. Jung, The Structure and Dynamics of the Psyche, 2~ edição, tradu- York: Putnam's, 1976), p. 116.
ção de R. F. C. Hun, Bollingen Series XX, ·vol. 8 (Princeton: Princeton University 40. Ibid., pp. 115-116.
Press, 1969), p. ISO. 41. Jung, J./emories, Dreams, Reflections, p. 183.
IS. Ver C. G. Jung, Memories, Dreams, Reflexions, edição revista, tradução 42. Jung, Two essays, p. 154.
de Richard e Clara Winston, org. Aniela Jaffé (Nova York: Pantheon, 1973), p. 171. 43. Ibid., p. 153.
[Em português, Memória, sonhos e reflexiJes.] 44. Ibid.
16. C. G. Jung, Two Essays on Analytical Psychology, 2~ edição, tradução 45. Ibid. p. 155.
de R .. F. C. Hun, Bollingen Series XX; vol. 7 (Princeton: Princeton University Press, 46. Ibid., p. 184.
1972), p. 281.
17. Jung, Modern Man.
18. Edição revista, tradução de Richard e Clara Winston, org. Aniela Jaffé
(Nova York: Pantheon, 1973).
19. Aldo Carotenuto, A Secret Symmetry: Sabina Spielrein Between Jung and
Freud, tradução de Arno Pomerans, John Shepley e Krishna Winston (Nova York:
Pantheon, 1982), p. 12; citações do diário de Sabina, anotadas em 11 de setembro
de 1910: "Sua esposa é protegida pela lei, respeitada por todos, e eu, que queria
dar a ela tudo que possuía, sem a menor preocupação comigo mesma, eu sou cha-
mada de imoral pela socilldade - amante, talvez, concubinal". [Em português, Diário
de uma secreta simetria.]
20. William McGuire, org., The Freud/Jung Letters: The Correspondence Bet-
ween Sigmund Freud and C. G. Jung, tradução de Ralph Manheim e R. F. C. HulJ,
Bollingen Series XCIV (Princeton: Princeton University Press, 1974), Carta n~ 144,
4 de junho de 1909, p. 228. (Em português, Freud/Jung: Correspondência Completa.)
21. Ibid., p. 236.
22. Bruno Bettelheim, "Scandal in the Family", New York Review of Books,
30 (30 de junho de 1983): 39.
23. Numa Conferência Transpessoal da qual participei em Davos, na Suíça,
Marie-Louise von Franz, amiga e colaboradora de Jung por muitos anos, foi inda-
gada sobre a suposição de Bettelheim, de que Jung teria dormido com Sabina Spiel-
reino Von Franz disse que sabia tudo da relação entre ambos e que não haviam tido
um caso.
24. McGuire, org., Freud/Jung Letters, Carta n? 98j, 19 de junho de 1908,
p. 155.
25. Ibid., Carta n? 144, de 4 de junho de 1909, p. 229.
26. Ibid., Carta n? 247j, 31 de março de 1911, p. 412.
27. François Roustang, Dire Mastery: Discipleship from Freud to Lacan, tra-
dução Ned Lukacher (Baltimore: John Hopkins University Press, 1982), pp. 88-89.
28. Ibid., p. 39.
29. Ibid., p. 44.
30. Ibid., p. 53.
31. Jung, Symbols of Transformation, pp. 418-419.
32. Ibid., p. 420.
33. Ibid.
34. Lou Andreas-Salomé, The Freud Journal of Lou Andreas-Salomé, tradu-
ção de Stanley A. Leavy (Nova York: Basic Books, 1964), p. 43.

82 83
Capítulo 6 - que Deus é responsável por toda a criação. Portanto, a treva é
tão essencial quanto a luz na evolução do homem, constituindo um
campo de provas para desenvolver sua natureza interior.
A psique do homem, como microcosmo do mundo, contém igual-
mente os opostos luz e treva. Aquilo que é negado é lançado no in-
consciente e vive seu segredo na sombra da vida da pf!SSoa. Quando
A sombra a cultura cinde os opostos do homem, nega a sombra e exalta as vir-
tudes masculinas sobre as femininas, está fadada às guerras e aos
inesperados reinados de terror, e o lado escuro, por tanto tempo si-
lenciado, irrompe após longa supressão. Reich considerava o mal uma
camada secundária, originária da perversão da expressão livre e ple-
na do instinto sexual; Jung considerava-o de um modo mais global.
No processo de individuação, é preciso aceitar os opostos, con-
Jung compreendeu a doença da cultura ocidental, que nega os tar com que o homem bom tenha momentos de fúria, incluir as li-
opostos na natureza humana. Como filho de uma família protestan- ções escuras da vida que nos encaminham para o santo Graal. O ca-
te, fora lançado no seio de uma cristandade que negava o lado escu- minho até Deus pode ser uma consciência superior, uma conscienti-
ro, negava o valor da dúvida. Em sua primeira comunhão, esperou zação mais profunda, em vez de uma adesão ao "bom" comporta-
com ansiedade pela experiência subjetiva de uma mudança profun- mento. A queda do homem no Jardim do Éden foi seu. primeiro pas-
da, mas nada sentiu. so para o despertar, e seu despertar foi sua salvação. Submissão e
Aos oI1;ze anos, foi atormentado por uma visão de Deus senta- obediência não trazem iluminação. Começar, em vez disso, a ver que
do em seu trono, sobre a catedral de Basiléia. Perante esta visão ex- a vida chega ao apogeu em seus opostos é vivê-la com vitalidade,
traordinária, um pensamento terrível ameaçou irromper, mas ele fi- inteligência e cooperação com o próprio caminho espiritual.
cou aterrorizado e impediu-se de continuar pensando, senão seria sua ...T-º4.º~ t~Jl10~ um lado sombrio e uma contraparte: masculina ou
danação. Por fim, após dias de angústia, decidiu deixar sua mente feminina em nós, o animus ou a anima, criada no impulso natural
se expressar e viu um enorme excremento cair do trono de Deus e da lei dos opostos. A integração daSOrllhra e da natureza bissexual
destruir o teto e as paredes da catedral. Em vez de sentir a danação, da psique é essencial no caminho da individuação.
vivenciou alívio e um certo estado de graça. Jung lançou mão da linguagem, rica em conotações. A sombra,
Esses sentimentos reforçaram em Jung a sensação de ser um es- como conceito e experiência, permeia a vida e a arte. Embora abun-
tranho. Não parecia- haver espaço no edifício cultural cristão para dante e comum como o sal, continua mutável, esquiva e tão letal quan-
incluir a sombra. Sua mãe sugeriu que lesse o Fausto, de Goethe, to o próprio poder da imaginação. Neste planeta, tudo que é afeta-
e este veio a ser o mito guia de sua vida, pois fazia plena justiça à do pela luz deve projetar uma sombra, que aliás confirma à vista
integração do "Jado escuro". que o objeto tem substância, é tridimensional.
Mais tarde, particularmente em Resposta a J6, Jung expressou Jung diferenciou sombra pessoal, sombra coletiva e sombra ar-
o dilema da cristandade que cindiu os opostos luz e treva, masculini- quetípica. Como disse Marie-Louise von Franz:
dade e feminilidade. Cristo é apenas bom e os cristãos não devem
dar valor ao "pecado". O demônio não tem nenhttma função séria Na psicologia junguiana, geralmente definimos sombra como a perso.:
na vida. Deus é homem. A Igreja é a Noiva de Cristo, mas isso difi- nificação de certos aspectos inconscientes da personalidade que pode-
cilmente introduz o feminino na divindade. Por essa razão, Jung fi- riam ser aCljescentados ao complexo do ego, mas que por várias razões
cou gratificado com a doutrina Católica Romana, sobre a Assunção não o são. Podemos, por isso, dizer que a sombra é o lado escuro, não
da Virgem, que fazia da trindade uma quaternidade, precisamente vivido e reprimido do complexo do ego, mas isso é apenas parcialmen-
por incluir o feminino na divindade. Em contraste com a polariza- te verdadeiro. l
ção de bem e mal adotada pela Igreja cristã primitiva, os gnósticos
proclamavam que Deus inclui OSi opostos, tanto a treva como a luz r
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85
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Jung tendia a se afastar de definições de sua terminologia quando A meio caminho de nossa jornada de vida, extraviei-me
eram rigidamente aplicadas. Mais uma vez, citando von Franz: do caminho reta e despertei para encontrar-me
sozinho numa floresta escura. Como dizer
Jung detesta quando seus alunos adoülm uma postura muito literal e que floresta era aquelal Nunca vira mata
se apegam aos seus conceitos fazendo deles um sistema, citan?o-o s:m tão lúgubre, tão cerrada, tão árdual
saber exatamente do que estão falando. Certa vez, numa dlscussao, O mero recordá-la dá forma ao medo. 6
acabou por dizer: "Isso é um ab~urdol A soml~ra é simplesmente todo
o inconsciente". 2 Dessa forma podemos perceber algo da amplitude desse concei-
to, que abrange desde a sombra pessoal até a sombra inteira que cer-
A conciência é justamente um foco de luz que se move na escu- ca o pequeno lume de nossa consciência. A sombra, no nível pes-
ridão, e a sombra abriga não apenas o que não ousamos ver, mas soal, pode conter não só os nossos aspectos descartados e rejeita-
nosso potencial, aquilo que estamos nos tornando. Nas palavras de dos, mas também a potencialidade do ser. Como disse G~~he, "Even-
tos vindouros lançam antes sua sombra"J "-=-·=',r~. __ :
Jung:
,-,- Á sombra-é-aquilo que n'osconferé três dimensõ~:s, que nos ra-
Aquela personalidade futura que seremos daqui a um ano já e~iste, diciíla realidade presente, comprova nossa presença no plano físico
i embora esteja na sombra. O ego é como os fotogramas de um flime. e nossa pertinência ao grupo daqueles que estão sujeitos à dor e à
'. A personalidade futura ainda não é visível, mas continua?I~s nos mo- . constrição do tempo. A sombra contém a essência do que é estar vivo.
vendo adiante e logo veremos o futuro ser. Essas potenCialidades na- O mundo do espírito não emite sombras, não está radicado aqui;
turalmente pertencem ao lado escuro do ego,,3 não é responsável pelas leis deste mundo, nem pode apreender seus
estranhos privilégios. A sombra nos dá peso e credibilidade, nos ra-
Embora'nos inclinemos a evitar as trevas, por medo e por ver dica no espaço e no tempo. O mundo físico, com suas exigentes lr-'
nelas algo que presumimos ser inferior e desprovido de valor, a psi- . mitações, tem um fascínio 'pelo mundo espiritual suspenso no ar. Disse
cologia nos ensina que devemos penetrar mais tranqüilamente nas William Blake, "a eternidade está enamorada das produções do tem-
sombras para podermos cooperar com a natureza e com nós mes- ·po;,:s-Os deuses não 'se contentam-em ffcarno Olimpó: Únéní,:-s'é-ã.
mos. Como disse Jung: hUmanidade.
A vida se desenvolve em uma tensão dos opostos. A luz costu-
A consciência, não importa sua extensão, deve sempre permanecer o ma ser considerada razão, ordem, aquilo que se adapta, avança, pa-
círculo menor dentro do círculo maior do inconsciente, uma ilha c(:r- rece bom, relaciona-se facilmente com as outras partes, é científica,
cada pelo mar; e, como o próprio mar, o inconsciente contém uma in-
'terminável abundância de criaturas vivas, em perpétuo auto- empírica, previsível, compreendida, capaz de obter um acordo ge-
reabastecimento, uma riqueza de seres que ultrapassa de muito o que ral, imediatamente disponível, civilizada, equilibrada, a mão direi-
podemos imaginar, Podemos conhecer há m~ito te~po o signi~icad~, ta, estrutura, sanidade, a cara das coisas, o apolíneo, as folhas, os
os efeitos e as características dos conteúdos mconsclentes sem Jamais ramos e o tronco da árvore.
sequer vislumbrar sua profundidade e potencialidade, pois q~e ~les são A sombra, pelo contrário, é imaginada, não é vista, primitiva,
capazes de variações infinitas e nunca podem ser despotenclahzados. arcaiea instintiva, primordial, imprevisível, confusa, rebelde, deses-
O único meio de acessá-Ios na prática é tentando atingir uma atitude truturada. negada, desvinculada, não civilizada, instável, indisponí-
consciente que permita ao inconsciente cooperar, em vez de ser mobi- vel, louca, a mão esquerda, a máscara antitética, o dionisíaco, o la-
lizado a opor-se. 4 do de baixo das coisas, o lado ctônico, o fundo, o periférico, o per-
verso, o ansiado, aquilo que retém e recua, aquilo que é vislumbra-
A jornada do herói leva ao inconsciente, à sombra do ser social. John do no canto do olho, aquilo que parece ruim, mágico, negado, inco-
Bunyan, em The Pilgrim's Progress, começa com um passo para o mum, mercurial, esquivo, letal, subterrâneo, as raízes da árvore.
inconsciente, vivenciando uma sensação de alienação: "Enquanto ca- Por um lado, disse Jung, o "homem empíríto, pecador", se opõe
minhava pelas áreas selvagens deste mundo", ele diz, "iluminei um ao "homem primordial", primitivo, uma "sombra de nossa cons-
' . e quan d o d orml,. t'lve um son h o " . 5
certo lugar que era um re f UglO; ciência atua}"', que "tem suas raízes no homem animal (o Adão de
Dante também se extravia em uma crise de meia-idade: rabo). há muito tempo desaparecido de nossa consciência. Até mes-

86 87
mo o homem primitivo tornou-se um estranho para nós, de modo continua separada e nunca pode ser completamente integrada na per-
que devemos redescobrir sua psicologia. Foi portanto uma certa sur- sonalidade humana. 13
presa para mim quando a psicologia analítica descobriu, nos produ-
tos do inconsciente do homem moderno, tanto material arcaico - Talvez mais poderosa no nível pessoal, a sombra se torna o par-
e não só isso, mas também a sinistra escuridão do mundo animal ceiro, o antagonista que aguça nossa habilidade. A sombra vem até
dos instintos".9 O instintivo e o primitivo, tudo que recaiu sobre o nós sob a forma de um tormento indireto, de uma""pessoaouevênto
lado escuro, é em grande parte evitado pela sociedade. qúe vareêe"bloquear nossa expansão,iitterromper" nossa âlêgtia-;-ne-
Por outro lado, Jung disse que "o homem sem sombra é esta- gai"nõSSos plãnos. A" sombra vem até iios" na
área de"
"nossâ.-mãiór
tisticamente o tipo humano mais comum, alguém que imagina ser :cegúéIrâ", ·iíiimã."area de desenvolvimento inferior, em que somos me-
apenas aquilo que se importa em saber a seu respeito". 10 Nas famí- nos capazes de nos defender, na área em que somos menos sutis e
. lias, por exemplo, as crianças ou outros membros podem assumir ~enos diferenciados. Jung escreve a respeito:
a sombra que foi negada por outro membro da família. É freqüenú:
-que, nas famílias, as crianças assumam os impulsos inconscientes dos G~~!aria apena~ de ~~HeI1tar q!:l~ªJ4nçª9 inf~r.i()ré PrMj~amente-idên­
pais, que brincamaníniados, embora inconscientes, através da mê- ~ica ao lado esçuro da persona lidade humana. A escuridão existente
ninice de seus filhos. A. I. AlIensby, analista junguiano inglês, con- êm "toda pérsonalidade é a porta para o inconsciente e o canal de saída
ta um relato que Jung lhe fez: a
dos sonhos, a partir dos quais essas duas figuras indistintas - som-
'bra e a anima - invadem nossas visões noturnas ou, permanecendo
Contou-me que uma vez conheceu um homem muito distinto, um qua- invisíveis, se apoderam de nossa consciência egóica. O homem que é
ker, que não podia imaginar ter alguma vez feito algo errado na vida. possuído por sua sombra está sempre sob a luz de seu próprio refletor
"E você sabe o que aconteceu aos filhos dele?", perguntou Jung. "O e caindo em suas próprias armadilhas. 14
filho tornou-se ladrão; a filha, prostituta. Como o pai não podia assu-
mir sua sombra, sua quota de imperfeição da natureza humana, seus Aproximando-se daquela nossa parte em que nos sentimos me-
filhos foram compelidos a dar vazão, em suas próprias vidas, ao lado nos defendidos, nossa sombra nos leva a agir de modo explosivo e
escuro que ele havia ignorado.,,1J catastrófico e, é inevitável, queremos nos livrar dela. Thomas Bec-
ket era uma personificação da sombra para HenriqUl~ II. Qualquer
,Ser um homem sem sombra é viver como massa, projetando nos pessoa ou situação sobre a qual projetemos a sombra torna-se nosso
outros os erros do mundo, apoiado numa retidão superficial, facil- demônio, o inimigo, e, na melhor das hipóteses, o inimigo querido.
mente sujeita às forças coletivas da vida. Sem sua sombra, o homem Uma vez que freqüentemente a sombra se instala em nosso lado ce-
moderno não tem bases, não tem qualquer noção individual de sig- go, ela pode nos ver do ângulo pelo qual preferiríamos não sermós
vistos, e assim ficamos constrangidos. O inimigo querido se colocà
nificado. "O homem moderno", argumentou Jung, "deve redesco- à porta de nosso inconsciente. Alardeia e aponta nossos repetidos
brir a fonte profunda de sua própria vida espiritual. Para isso, é obri- fracassos, nossa falta de talento numa área que estamos mal-equipados
gado a lutar com o diabo, a enfrentar sua sombra, a integrar o dia- para desenvolver. Tais eventos ou pessoas devem ser acolhidos sem
bo. Não há outra escolha" .12 A meta é uma síntese dos opostos, a que tentemos dominá-los.
assimilação da treva, uma aceitação e rejuvenescimento pelo reco- Na maioria das vezes, as personificações da sombra mais cruéis
nhecimento do lado mais instintivo, primitivo, o lado inferior. Mas são nossas mestras. ~In Ilos.~ªJ~sl.$~ênciae neg(:lção somos incapazes
a sombra pessoal, concluiu Jung, é como uma escuridão que jamais ~QUYirJJ·U~g!l_agem"'bõridosae indireta de nossos amigos; óuós for~
será completamente assimilada: çamos ~o silênciocõ-ffi nossa sensibilidade ou negativas implacáveis:
Mas~chega até nós alguém que não se abala com nossa fragilidade,
Em termos psicológicos, a alma se encontra nas garras d.ª lllelancolia, nem com nossas manipulações. Ele (ou ela) é o querido inimigo, um
havanclQ uma luta com ã"sõinbra":O riilstéd6 dã coniUliêt10, omis-- aspe~!() da sombra que se coloc~ diante de nós~pàreritemenú~ blo-
tefiocefifráfêlâ alqúimili;"·vísã-"êXàtàmente a síntese dos opostos, a Queando nosso caminho. Muitas vezes, sua atitude implacável des-
assimilação das trevas, a integlação do mal. Para o cristão "desper- creve perfeitamente um aspecto interior de nossa própria obstinação
to", essa é uma experiência psíquica muito séria, pois trata-se de um caprichosa. Deste modo, a sombra pode ser de fato nosso melhor
confronto com sua própria "sombra", com a treva, o nigredo, que professor, refletindo nosso lado cego.

88 89
o grande perigo de nos livrarmos da sombra está descrito no zias, infantis, mas amaldiçoado com a fina intuição de um rato ou de
Novo Testamento (Mateus 1~:~~:-4~), quando uIl1 homem livra-se de um mendigo de rua. Representava a sombra, a parte inferior da perso-
'-úrndemÔnIü-iue-õ'I>ossiiI; 'm~lS este vai contar para outros sete -de- nalidade de todas as pessoas, num grau arrebatador, e essa foi uma
môniOs"éitié' há ·uma -vaga~-e'esiêsvoltãm"aocupii-Io-aIndamãfs. outra razão que explica por que teve tantos adeptos.
---Ap'ãrfemenos-déSenvolvitla--depóssiipersoriãliiiiiae;õTâdõõpqs- Mas o que poderia o povo alemão ter feito? Em Hitler, cada ale-
mão deveria ter visto sua própria sombra, seu próprio pior perigo. Cabe
to de -Íiossbs principais talentos e forças, J.a áreaconh~.ci~~Eº!!!.9 a todos tornar-se conscientes desta sombra e aprender a lidar com ela.
qUal"tá-fuhção ria psicologia junguiana. É nela que a sOIlll>rª,s~.~Ps­ Mas como seria possível esperar que os alemães entendessem isso, quan-
tala para nos educar e provocar nossa indignação, 'I10~SO choqll.e e do ninguém no mundo pode entender uma verdade assim tão sim-
resistência. À medida que essa quarta função é desenvolvida e en- ples?18
frentada, toda a estrutura da personalidade aumenta em amplitude
e estabilidade, perdendo a sensação unilateral de ser supercorreta, ~erá preciso reconhecer que o encontro com a sombra coletiva
trocando a rigidez pela flexibilidade. é muito aterrorizador. Preferimos lidar com essas questões do pon-
Até certo ponto, o terapeuta deve colocar-se do lado de nossa to de vista histórico ou como projeções. Sempre existe a sensação
sombra, de tal modo que nos familiarizamos com uma presença es- de que o mal pode ser identificado pela razão e dotado de significa-
tranha, que se encontra em nosso lado cego, sem julgá-la. O trans- do ou psiquicamente evitado. Para além das projeções pessoais está
formador, o agente de mudança, deve poder atrav(:ssar as fronteiras a própria sombra arquetípica, sempre presente, prestes a intrometer-se,
entre os territórios da luz e da escuridão, ficando igualmente à von- a sentar-se à nossa mesa como um de nossos mais leais amigos. "Mas,
tade em ambos os domínios. Deve ser alguém que conhece bem as olhai", disse Jesus, "a mão daquele que me traiu está comigo sobre
regiões selvagens e o deserto, o escuro, os caminhos da mão esquer- a mesa" (Lucas 22:21). Deslizar repentinamente para fora do que
da. Miticamente, ele foi representado por Hermes OViercúrio), o men- é esperado como humaniçlade e fitar os olhos de algo "inumano"
sageiro dos deuses, o protetor dos ladrões e deus das fronteiras, cuja é vislumbrar a sombra arquetípica. "Em outras palavras", escreveu
forma corporal costuma ser a de um jovem adolescente, quando os Jung, "cabe muito bem dentro dos limites da possibilidade que um
aspectos masculinos e femininos estão delicadamente entrelaçados. homem reconheça o mal relativo de sua natureza, mas é uma vivên-
Mas, é claro, se a sombra nos aterroriza, ela assumirá mais a forma cia rara e esmagadora que ele contemple face a face o mal absolu-
do diabo, daquele que nos testa e se opõe a nós, e inclusive busca to" .19
destruir-nos. "A oposição", disse William Blake, "é a verdadeira . Trevor Ravenscroft acredita que "o círculo mais interno do rei-
amizade" .15 no nazista era composto por satanistas confessos" ,20 que Hitler ti-
.Não apenas os indivíduos criam sombras; os grupos, as organi- nha o apoio de adeptos da magia negra, Eckart, Haushofer e Heils-
zações e as nações também. Quando, por um lado, desenvolvemos cher, e que o "Principado de Lúcifer que habitava a alma de Hitler
e projetamos um ideal de ego, por outro, vai gradualmente se desen- buscava, por meio de doutrinas racistas, desviar a humanidade do
volvendo uma sombra. Os Estados Unidos, com seus ideais de liber- caminho que levava ao reconhecimento do Espírito Humano Indivi-
dade e justiça, também têm na sombra a morte dos índios e a escra- dual" .21 A documentada argumentação de Ravenscroft conduz à no-
vização dos negros. O exemplo mais óbvio de sombra coletiva é a ção de uma sombra arquetípica.
Alemanha nazista. Conforme Jung percebeu em 1938, Hitler era o
Uma descrição sinistra do Doppelgiinger (duplo) aparece em The
"curandeiro", o "megafone que magnifica os sussurros inaudíveis
Spear of Destiny, de Ravenscroft: "Hã em todo ser humano", es-
da alma germânica".16 "Assim que as pessoas se reúnem em mas-
creve ele, "uma espécie de 'antipessoa' ... que o ocultismo chama de
sa, submergindo o indivíduo, a sombra é mobilizada e, como a his-
'Duplo' ".22 Goethe fala de uma ocasião em que, ao entrar em seu
tória mostra, pode até ser personificada e encarnada." 17
estúdio em Weimar, viu o que lhe pareceu ser ele mesmo, uma con-
Como o resto do mundo, eles [o povo alemão] não compreendiam qual traparte sentada em sua cadeira, "atrás da escrivaninha e devolvendo-
era o significado de Hitler, não entendiam que ele simbolizava uma lhe descaradamente o olhar". Durante alguns segundos conseguiu
coisa para cada pessoa. Ele foi a mais prodigiosa personificação de olhá-lo nos olhos e encarar a expressão zombeteira de sua contra-
todas as inferioridades humanas. Era uma personalidade absolutamente parte. "Foi a primeira de uma série de experiências em que o poeta
incapaz, desadaptada, irresponsável, psicótica, cheio de fantasias va- veio a compreender a razão para a existência desse desapiedado e

90 91
inumano elemento sombra na alma humana" .23 O propósito da som- Capítulo 7
bra é promover na alma humana a oposição e a ~ensão para o desen-
volvimento da firmeza interior resoluta e deternunada, esclarecer me-
diante o desafio dos opostos, e nos despertar, para que nos prepare-
mos para uma profunda transformação.
o duplo como Self imortal
Notas
1. Marie-Louise von Franz, Shadow and Evi/ in Fairytales (Zurique: Spring
Publications, 1974), p. 5. [Em português, A sombra e o mal nos contos de fada.]
2. Ibid. . Y k
3. C. G. Jung, Analytical Psychology: Its Theory and Practlce (Nova or :
Vintage, 1968) p. 22.
4. C. G. Jung, The Practice of Psychotherapy: Essa)'s on lhe Psychology.of Ao longo de toda a sua brilhante carreira, Otto Rank foi atraí-
the Transference and Other Subjects, 2~ edição, t~adu~ão d,e R. F. C. Hull, Bolhn-
gen Series XX, vol. 16 (Princeton: Princeton UruvefSlty Press, 1966), p. 14. do pelo conceito do duplo. Apresentado a Freud em 1905, aos vinte
5. John Bunyan, The Pilgrim's Progress, org. Roger Sharnrock (Hardmonds- e dois anos, por seu médico, Alfred Adler, logo foi acolhido no cír-
worth, Inglaterra: penguin, 1965), p. 39. culo de Freud, tornando-se secretário, analista leigo, editor da pu-
6. Dante Alighieri, The Inferno, tradução de John Ciardi (Nova York: Men-
tor, 1954), p. 28. . . (N
blicação psicanalítica oficial e filho favorito até 1924. A intimidade
7. Esta citação encontra-se em Trevor Ravenscroft, Thf! Spear of Destmy ova entre Freud e Rank parece não ter similar, de tal modo que seu afas-
York: Putnam's, 1973), p. 21. . tamento de Freud, após anos de colaboração e apoio, é uma história
8. William Blake, "Proverbs of Hell", in Poems and letters, org. J. Bronowskl amarga e em grande parte inexplicada. Paul Roazen, em Freud and
(Middlesex, Inglaterra, Penguin. 198?), P: ~~. . . .
9. C. G. Jung, Mysterium ComuncllOms: An InqUlry mto the Separatlon and his Fo/lowers, sugere que a possibilidade iminente de Freud morrer
Synthesis of Psychic Opposites ~n Alchmey! 2~ edição! trad.ução de R. F. C. Hull, de câncer mandibular, em 1923, desencadeou inconscientemente a
Bollingen Series XX vol. 14 (Prmceton; Prmceton Umverstlty Press, 1977), p. 417. separação, que além disso foi fomentada pelo ciúme de outros se-
10. C. G. Jung, The Structure and Dynamics ofthe Psyche! 2~ edição,. tra~u­
"ão de R. F. C. Hui!, Bollingen Series XX, ':'01. 8 (Princeton: Prmceton Umverslty guidores de Freud, em particular Karl Abraham e Ernest Jones. 1
Press, 1969), p. 208. .
11. William McGuire e R. F. C. Hull, orgs., C. G. Jung Sfeak!ng: InterVlews Mas Rank, com seus amplos conhecimentos literários, seu fas-
and Encounters, BoJlingen Series XVII (Princeton: Princeton Umverslty Press, 1972) cínio por mitologia e seu eventual repúdio pela ciência mecanicista
p. 158. da psicanálise tinha muito em comum com Jung, embora dificilmente
12. Ibid., p. 230. pudesse admiti-lo. Após anos considerando Jung e Adler como de-
13. Ibid., p. 228. _
14. C. G. Jung, The Archetypes and the Collective Unconscious, tra~uçao sertores, ele não poderia dar uma guinada tão repentina e reconhe-
R. F. C. Hull, org. Sir Herbert Read, Michael Fordham e Gerhard Adler, Bolhngen cer um irmão. Em seu último livro, Beyonc/...Psychology, Rank agru-
Series XX, vol. 9 (Princeton: Princeton University Press, 1980), p. 123. pa Jung, Adler e Freud-ôeuin modô-que"faz poüca justfçaalung,
IS. Blake, Poems and Letters, p. 105. descrevendo-o como o criador de "uma psicologia mais subjetiva do
16. McGuire e Hull, orgs., Jung Speaking, p. 118.
17. C. G. Jung, Four Archetypes: Mother/Rebirth/Spirit/Trick~ter, .tradução indivíduo do que Freud ou Adler" .2 Em vez de citar o conceito jun-
R. F. C. Hull, Bollingen Series XX, vol. 9 (Princeton: Princeton UmvefSlty Press, guiano de inconsciente coletivo por esse nome, Rank usou um termo
1970), p. 147. . _ mais pejorativo, "inconsciente racial":
18. C. G. Jung, Civilization in Transition, 2! edIção, traduçao de R. F. C.
Hull Bollingen Series XX vol. 10 (princeton: Princeton University Press, 1970) p. 223.
, 19. C. G. Jung, AION: Researchs into the Phenomenology.ojthe Self,.2~ edi- Nesse processo psicológico de sublimação, o indivíduo, de acordo com
ção, tradução de R. F. C. Hull, Bollingen Series XX, vol. 9 (Prmceton: Pnnceton Jung, faz U!iO do simbolismo em seu inconsciente racial, alcançando
University Press, 1968), p. 10. então, por assim dizer, uma espécie de coletividade dentro de si mes-
20. Ravenscrof, Spear, p. 261. mo. Esse esforço por uma união praticamente mística entre o Self e
21. Ibid., p. 262. seus fundamentos raciais supostamente vincula a pessoa isolada a um
22. Ibid., p. 290.
23. Ibid., p. 129. todo maior, do qual ele pode sentir-se parte essencial. .. Em suas di-

92 93
pla~o es~rit~ente racional. Em conseqüência, rejeitamos aquelas for-
versas tentativas de elaborar uma psicologia do indivíduo, todo os três ças IrraClOnaIS como pertencentes ao nosso passado primitivo, em vez
parecem ter chegado a uma conclusão semelhante, ou seja, que o mal de as reconhecermos em nossas necessidades espirituais de hoje. lO
do qual nossa personalidade padece é um excesso de individualização;
por isso, concordam em que o remédio consiste numa unidade emo- D~ .~a~~ que_a lla.s.e.Jia Ç..ultl!f~lé 8: .visão de mundo sobrenatu-
cional com algo maior que o Self. Freud encontra-o no sexo, Adler
na adesão social, e Jung, na coletividade racial. Nesse sentido, a psi- ~~l do ,~omem, da q~_~~er!~~rp.j~...t~'!tr:~.! ~_~9tiffetura.-'eaioufras­
cologia está procurando um substituto para a união cósmica que o ho- artes. O homeIll_~r~a cult.ur~ mu~an~o as con~i~ões -naturais para
mem da Antiguidade desfrutava e expressava em sua religião, mas que ~an~~r ~~~~rfes1?.I~~t,!al."l1 PerSIste no homem seu "ancestraJairi-
o homem moderno perdeu - e essa perda explica o desenvolvimento â~.VIVO, seu S"elf espmtual ou homem primitivo". 12 O ego superci-
vJl~zado do homem moderno "desintegra-se ao cindir esse último em
do tipo neurótico. 3 .
dOlS selves opostos" .13 .
Grande parte da produção posterior de Rank s,e harmoniza com . Rank achava q.ue a psicologia moderna tentava tornar racional
o pensamento junguiano. Em 1914,4 Rank havia publicado pela pri- aqu~lo que é e contmuará sendo irracional na natureza humana, e,
meira vez um estudo do duplo e, em 1925, uma versão mais comple- eq~lvoc.adamente, acusava Jung de reduzir o inconsciente por meios
ta do mesmo. 5 Finalmente, seus conceitos foram ainda mais desen- raCIOnaIS:
volvidos num capítulo de Beyond Psychology, em que o agnosticis-
mo científico dá lugar a uma sutil percepção e aceitação da natureza Assim, ~nquant.o os três psicólogos admitem a qualidade extra-indivi-
humana. Em 1925, ele escreveu que a cr~nça na imortalidade é ape- ~ual do.mcon~cle.nte: ~odo~ racionalizam-no em termos de suas respec-
nas uma enérgica neg~ção da_morte! ~"-~--'-"'-'-'-" .... '- tIvas pSlc~loglas mdlVlduals, perdendo assim seu verdadeiro significa-
do, ou seja, q~e este aspecto da natureza humana cada vez mais nega-
Desta maneira, portanto, a crença primitiva nas almas é, originalmen- do sempre fOI e sempre será poderoso, e, quando frustrado, irrompe
te, nada mais que uma espécie de crença na imortalidade que nega ener- e~ comportamentos neuróticos ou anti-sociais, quer dizer irracio-
gicamente o poder da morte; e ainda hoje oConteÓdo essencial da crença nals. 14 '
na alma - conforme subsiste na religião, na superstição e nos cultos
modernos - não se tornou outra coisa, nem mais do que isso. A idéia Rank. desprezava também o caráter de Jung, assim como ou-
da morte é suportável quando a pessoa se assegura de uma segunda tros, consIderando-o erroneamente simpatizante nazista e anti-semi-
vida, depois desta, como um duplo.6 ta. Em 1933, o breve envolvimento de Jung com a hierarquia nazis-
t~, em seu ~apel de presidente da Sociedade Médica Geral Interna-
Por volta de 1939, Rank escrevia: "A psicologia, em outras pa- cI~nal de PSIco.terapIa e como editor de sua publicação, Zentralblatt,
lavras, não é um instrumento objetivo, como um telescópio ou mi- fOl uma. tentatIva de sa!var a sociedade de ser destruída por Hitler
croscópio; ... não é uma ciência além ou sobre a civilização que pre-
7
reorga~Iza~do-a e publIcando uma edição especial do periódico, pa~
tende explicar" - ponto de vista idêntico ao de Jung. Em "O Du- ra _ser dIstn~uída só na Alemanha, para apaziguar as autoridades ale-
plo como Self Imortal" a atitude de Rank sobre a questão esp1fITuãl- ~as. Esse bIzarro m~s bem-intencionado esforço de proteger os ana-
cliega à maturidade. Escreveu então: "O'homem civilizado não age lIstas que ele conheCIa na Alemanha foi providencial para os inimi-
somente sob a orienta~o racional de seu ego intelêéluaI,-nemrce: go~ de J~ng, que não se deram ao menor trabalho de entender quais
gamenteélfr1gJdº--J2Q~ ~eiitsfor9as-e1ementá!sª~'~e.li~~fÜ.n~irjijIYã;~, tena~ SIdo seus 'p~nsamentos ou motivos. Muitos dos mesmos psi-
maseniergiu por causa de um tercêifo'pÍiÍ1cípio, "que combina O§ c~nalIst~s que cn~lcaram Jung expulsaram, a troco de nada, o mar-
e
elementos' racioriãIs Tiiaéioíiãís 'riüffia-Visãõ 'aeinundo ba.seada na XIsta WIlhelm R~ICh de suas fileiras, em 1933, para que Hitler não
concepção "do (opre:nãl\iiID~~~8Esir..· visão' não' eiã 'preCiõsá apenas'
pa- se ofendesse. Eram tempos de terror e confusão.
ra o grupo; mas "ainda se sustenta ~m nossa civilizaçãÇ> altamente R~nk su~umbiu ao padrão de todos os filhos rebeldes de Freud,
mecanizada em virtude da necessidade vital de valores espirituais" ,9 que tenam .felto bem melhor se tivessem conversado entre si. Rank
e Jung pa~Ilhavam uma ~~sci~ação. pelo homem primitivo e pelo es-
Isso quer dizer que o que !~lll!entt!temos em comum com nossos an- tudo do mIto, uma conSClenCla da Importância do arquétipo espiri-
~s!r~s II!~i~ re~otõSêUm.§~!t~sfZiriiiÚil~-en-ão um priffiídvo;elsso' .
! '

tual no homem; ambos estavam decepcionados com o conceito de


é algo que não podemos admitir, porque nos orgulhamos de viver num
. \ !.
95
Q4
ciência objetiva no campo da psicologia e com o conceito de neurose O duplo, segundo Rank, varia de uma certeza do Self imortal
no homem moderno. O notável trabalho de Rank sobre o duplo, con- a um presságio de morte. A doutrina cristã e as igrejas, que se presu-
forme pode ser observado nas tribos primitivas, no folclore e na lite- mem juízes das almas boas e más, estabeleceram "o culto do demô-
ratura moderna, contribui de forma excepcional para o conceito de nio, que em essência nada mais é que a personificação do duplo mo-
sombra. O,duplo inclui a sombra, o reflexo do homem no espelho ralizado" .17 No Fausto, de Goethe, a luta com o diabo torna-se a
e na água,osgem-eos 1denliéõs'c ()utros relacionamentos intensos,., busca da auto-realização. Na literatura moderna, o duplo costuma
, nos quaisâüas pessoas são vistas comoaspectos de um todo. Embo- , representar a torturada cisão na personalidade do escritor. No caso
ra o termo dup!U'seJá-aorangente;-prefirousá-lo no contexto restrito de Dostoievsky, por exemplo:
do Self imõiiâC
Rank achava que a representação de um segundo Self pela pró- Segundo Merejkovsky, o tema do Duplo foi o principal problema pes-
pria'sombra ou pelo reflexo da pessoa pode ter ,sido a primeira con- soal de DostoievslCy:- ' 'Oessa-forma, todos os seus trágicos ecombati-
cepção humana da alma: vos pares de seres reais, que pare;!em em si mesmos entidades comple-
tas, são apresentados como duas metades de uma terc:eira personali-
Inúmeras superstições relativas à sombra ou à imagem que ainda pre- dade dividida - metades que, como os dupios, buscam-se e perseguem-
valecem em todas as partes de nosso mundo civilizado correspondem se". Isso foi transmitido na maior grandiosidade em sua última e prin-
aos difundidos tabus dos primitivos, que viam nessa imagem natural cipalobra, Os irmãos Karamazov, em que Smerjakov é retratado co-
do Self a alma humana ... Os povos primitivos não apenas têm medo mo o duplo de seu iúiião;- Ivan. Esses dois personagens, em geral, não
de deixar que sua sombra incida sobre certos objetos, em especial ali- , só aparecem juntos e discutem os mesmos assuntos, mas também es-
mentos, como também têm horror de que caia. acidentalmente sobre tão inseparavelmente unidos por um dos temas favoritos de Dos-
eles a sombra de outras pessoas - sobretudo mulheres grávidas e so- toievsky, a idéia do criminoso em potencial. Esse duplo (diz Ivan) "é
gras. Tomam cuidado para que ninguém cruze sua sombra e observam só uma personificação de mim mesmo, na realidade apenas uma parte
precauções especiais para que suas sombras não caiam sobre os mor- minha ... de meus mai~ baixos e estúpidos pensamentos e sentimen-
tos ou sobre o caixão ou num túmulo, razão pela qual, supõe-se, seus tos" .18
enterros em geral são feitos à noite. Seu maior medo, porém, diz res-
peito à lesão intencional de sua sombra por mãgica, uma vez que, de No uso do duplo para representar o lado criminoso, inferior e
acordo com uma crença comum, um inimigo pode ser morto ferindo- estúpido de nossa personalidade temos um conceito que concorda
se sua sombra. Muitas outras tradições folclóricas de natureza seme- com a noção junguiana da sombra pessoal, composta pelos aspectos
lhante indicam com clareza que p homem primitivo considera a som- reprimidos e desprezados, pelo lado escuro do ego. No Dr. Jeckyl
bra seu duplo misterioso, um ser-espirihial, mas' reál. IS -- . '
e o Sr. Hyde, de Robert Louis Stevenson, Hyde é a sombra, assim
Rank percebeu que a origem da religião era a crença na alma como o sempre mutante retrato de Dorian Gray, que é a sombra de
dos mortos, e que a psicologia acabou por se desenvolver a partir sua eterna beleza adolescente.
da crença na alma dos vivos. Postulou que primeiramente o homem Rank fala de uma experiência real de Guy de Maupassant, em
associou sua alma imortal à sombra, ao observar a morte e o reapa- 1889, que estava sentado em sua escrivaninha, em seu gabinete de
reCimento da sombra, no cicl() diário do sol. Do trabalho de um es- trabalho, após ter dado ordens estritas para que ninguém o inter-
pecialista clássico, Erwin Rohde, Rank extraiu uma curiosa citação rompesse:
sobre a natureza dual do homem, conforme Homero:
De repente, ele teve a impressão de que alguém havia aberto a porta.
De acordo com Homero, o homem tem uma existência dual, uma em Voltou-se e, para seu enorme espanto, viu ele mesmo entrando e
sua aparência visível, a outra em sua imagem invisível que se liberta de- sentando-se diante dele, descansando a cabeça na mão. Tudo que Mau-
pois da morte; esta, e nada mais, é sua alma. No homem vivo habita, passant escreveu naquele dia foi ditado pelo duplo. Quando terminou,
como um estranho convidado, o Duplo mais inaistinto - seu outro Self ele se ergueu e o fantasma se desvaneceu. 19
na forma'de'sülf-Psiqúe - cujo reino é ti mundo dos sonhós. Quando
o Self consciente dorme, o Duplo trabalha e espreita. Essa imagem (ei- ~Mas o dupl<!._çºmº_.seltb!!-º!t~l~ um conceito diferente do coo-
dolon) reflete o Self visível e constitui um segundo Self: para os roma- ~~i,~~d.esf)~bra, e pode apar~cer na vi4aeíiossonhos-cómofig~~a,
nos, era o Gênio; para os persas, o Fravauli; para os egípcios, o Ka. 16 como um duplo que nos desafIa, como um Self mais vital, talvez màis

96 97
.Qrimitivo, mas raramente cO!]]._QO lad_o.s.ombra do ego. Jung aparen- cavalgava sem reparar neles, europeus, com. seus relógios de bolso
temente'coIihedaoconceito do duplo. Num seminário que dirigiu e sua incômoda noção de tempo. Logo depOIS, Jung teve um sonho
-eml~h6~f93-7, comentou o aparecimento -de um espelho mágico num em que estava numa cidade árabe situada numa planície e cercada
sonho de uma criança e o lado escuro do duplo: por uma parede quadrada, com quatro portões ~ cercada p~r uma
vala sobre a qual se estendia uma ponte de madeira. A desafiar sua
Também entre os antigos gregos, quando aparecia o espelho num so- entrada apareceu uma figura difícil de caracterizar; para ele, era um
nho, ele era considerado sinistro. Ele indicava a morte da pessoa, por- duplo ~om aspectos da sombra. Jung decidiu que não era uma ima-
que a imagem que ela via no .;spelho era a do seu duplo. Ele é o Ka gem da sombra pessoal, mas "uma espécie de sombra do SeU" ,23
dos egípcios. É uma imagem da alma. É por isso que os primitivos não
categoria até certo ponto inexplorada:
querem ser fotografados, pois temem que seu duplo, sua imagem da
alma, seja levada, seguindocse a isto a perda de sua almà.
Quando a pessoa vê seu duplo, isso indica morte. Narciso vê sua ima- Ansioso para ver a cidadela também por dentro, avancei e caminhei
gem e se afoga nela. O estudante de Praga que vendl!u a própria imagem pela ponte. Quando já havia andado a metade da distância, um belo
ao diabo não é dotado de imagem, vale dizer, a alma saiu do corpo árabe de pele escura, porte aristocrático e quase real veio do portão
e isso significa infortúnio. Encontramos o mesmo problema em Cha- em minha direção. Eu sabia que aquele jovem de albornoz branco era
misso, no "Peter Schlemihl", que não tem sombra, e em "O Retrato o príncipe da cidadela. Quando chegou perto de mim, atacou-me e ten-
de Dorian Gray" de Oscar Wilde. 2o tou derrubar-me. Lutamos. 24

Essa figura que aparece para Jung é mais ampla do que as cate-
Num artigo intitulado' 'O Duplo: uma confiSluração arquetípi-
gorias junguianas mais típicas. Como o anjo de Jacó, ele aparece
ca", Mitchell Walker também avalia o conceito do duplo: "_Eu gos-
numa oposição criativa, mais vital, apresentando alguns aspectos ue
taria de propor um conceito arquetípico, Q 'duplo' , para referir uma _
um ego ideal, algumas se~entes de nossa identid,a~e~ uma image~
figura anímica com todos os mesmos significados eróticos e espiri.- da alma; um potencial criativo, um teste e, sem duvIda, um arquétI-
tuais atribuídos àanim_a.-e.. ao_.àni.nuis,-mas que é do Ill€:.S!ll() sexo da _ po do duplo.
pessoa, sem porém se~ _~~ª ~ºIllJ?Ia. E,ssa fig\lra tem exemplos mito- O arquétipo do duplo é examinado, sem ser assim rotulado, no
lOglcoseé consfáfáda na experiência psicológica. Se for chamada ensaio de Jung intitulado "Acerca do Renascimento" (1939). Jung
-sombiiou animal animus fica perdida". 21 O-ilJl.Qlo é .!~~lado.n.ºs__ descreve como, no processo de individuação, acontecem transforma-
pares~~ her..9j~l.. tais como David e Jônatas, Aquiles e Pátroclo, Gil- ções naturais, uma vez que a própria Natureza exige uma morte e
galliesh e Enkidu; é caracterizado por beleza física, juventude e fei- um renascimento, e essas transformações anunciam-se principalmente
tos heróicos: em sonhos. 25 Um aspecto do simbolismo do renascimento é a trans-
formação em "outro ser", "aquela personalidade maior que ama-
Como sugerem tais mitos, ()clllplo é I!ma alma gê!l1e~lAe af~to e pro.;: durece em nós, e que já encontramos como o amigo interior da
ximidade intensos. O amor entre homens e o amor entre mulheres, co- alma".26
'mo experiênCia psíquica, em geral está radicado na projeção do du-
plo, assim como a anima/animus são projetados no amor entre pes-
soas de sexos diferentes. E, tal como se dá com o animus/ anima, esse É por isso que sentimos conforto sempre que encontramos o amigo
I amor pode ocorrer dentro ou fora da busca heróica. Além disso, uma e companheiro representados num ritual, do que é um exemplo a ami-
zade entre Mitra e o deus sol. .. É a representação de uma amizade en-
I vez que o quplo é uma figura anímica, o instintosexuªl pode ou não
tre dois homens que é simplesmente o reflexo externo de um fato in-,
estar envolvido. Quer dizer, o motivo do duplo pode incluir uma ten-
dência à homossexualidade, mas não é, necessariamente, um arquéti- terno: revela nosso relacionamento com aquele amigo interior da al-
po homossex~al. Em vez disso, o duplo encarna o espírito amoroso ma em que1l1 a própria Natureza gostaria de nos transformar - aque-
.. ~ .. '
entre seres do mesmo sexo. E considero o espírito amoroso no duplo la outra pessoa que nós também somos e que, não obstante, nunca con-
o substrato de sustentação do ego. 22 seguiremos alcançar por completo. Nós somos aquele par de Dioscu-
ros, um dos quais é mortal e o outro imortal e que, embora sempre
.
Juntos, nunca podem tornar-se InteIramente
. . um sÓ.27
Em 1920, ao viajar com amigos pelo norte da África, Jung fi-
cou' fortemente impressionado com um elegante e altivo árabe que

98 99
Depende apenas ,de nós se essa pessoa interior, tão "estranha Quando é alcançado o auge da vida, quando o botão desabrocha e
e siiiistra" , será confrontada como amiga ou inimiga. As vezes, essa menor emerge o maior, então, como disse Nietzsche, "o Um torna
outra pessoa, conhecida primariamente como uma voz interior, é tra- Dois", e a figura maior, que a pessoa sempre foi mas até então fic!
tada como loucura absoluta ou como a voz de Deus. Jung propõe invisível, aparece à personalidade menor com a força de uma reve
ção. Aquele que é verdadeira e irremediavelmente pequeno sempre;
uma terceira abordagem, mais moderada, por meio da qual pode-se
rastará a revelação do maior para o nível de sua pequenez, e nun
desenvolver um diálogo com esse amigo interior. Mas, adverte, nem compreenderá que o dia do julgamento de sua péquenez chegou. M
todos estão à altura desse diálogo, pois se for uma conversa com o o homem que é interiormente grande saberá que o tão ansiado ami
anjo de Jacó, então a supremacia do ego é verdadeiramente abalada de sua alma, o imortal, agora chegou de verdade, "para tornar cati
e a pessoa chega "perto do fogo": o cativeiro". 31

Algo similar por ter estado na mente do alquimista que escreveu: "Es-
colha para sua Pedra aquele por meio de quem os reis são honrados Notas
em suas coroas, e por meio do qual os médicos curam seus doentes,
pois ele está perto do fogo". Os alquimistus.projetavam o evento in- 1. Paul Roazen, Freud and His Followers (Nova York: Mentor, 1974), p
terno numa figura externa, de modo que para eles o amigo interior apa- '401 e ss.
recia sob a forma da "Pedra" .28 - 2. Otto Rank, Beyond Psychology (Nova York: Doverm, 1941), p. 36.
3. Ibid., p. 37 .
.No.. t~ªp.~~ho" cie. _tr~ºsfºrmM!~.1!ml!v'I~I.~ªSª-q),ÇL ªlquimista. 4. Otto Rank, "Der Doppelgãnger", Imago, 3 (1914): 97-164.
voltava-se para Hermes (ou Mercúno, em sua encarnação romana). 5. Otto Rank, Der Doppelgiinger: Eine Psychoanalytische Studie (Leipzig, Vi
~'Desde Qs.:J~mp-ôs maís'remõtos, Hermes-fõrc)lfiiS"tãgogoé-·psico- na e Zurique: Internationaler Psychoanalitischer Verlag, 1925) - mais tarde foi p
e
pômpo dos alquimistas, seu amigO conselheiro,qiú:'õs'conduz à blicado como The Double: A Psychoana/ytic Study, tradução e org. de Harry Tu
ker, Jr. (Nova York: Meridian, 1971).
meta do seu trabalho." Ele é "como um professor, intermediário 6. Ibid., pp. 84-85. '
emfe1niUro-e-u-disclptilo". Para outros, a amigo pode aparecer co- 7. Rank, Beyond Psych%gy, p. 27.
mo Cristo ou como um outro grande mestre espiritual. Através do 8. Ibid., p. 62.
diálogo com o imortal em nós, desfazemo-nos de nosso "invólucro 9. Ibid.
10. Ibid., p. 63.
mortal", de nossa camada secundária. 29 1 I. Ibid, p. 64.
12. Ibid., p. 65.
Os alquimistas viram isso na transformação da substância química. As- 13. Ibid.
sim, um deles, ao buscar a transformação, descobriu-a fora, na maté- 14. Ibid., p. 39.
ria, cuja transformação gritava para que, por assim dizer, ele ouvisse: 15. Ibid., p. 71.
"Eu sou a transformação'''. Mas alguns foram bastante astutos para 16. Ibid., p. 75. A citação está em Erwin Rohde, Psyche (Leipzig, 1893).
saber: "É minha própria transformação, não transformação pessoal, 17. Rank, Beyond Psych%gy, p. 76.
mas transformação do que é mortal em mim, em algo imortal. É des- 18. Ibid., p. 81.
cartado o resvestimento mortal que sou e desperta em mim uma vida 19. Ibid., p. 79.
própria; ela sobe na barca do sol e pode levar-me consigo. ,,30 20. C. G. Jung, "A Seminar with C. G. Jung: Comments on a Child's Drearr
(1936~37)", Spring 1974 (1974): 205-206.
21. Mitchell Walker, "The Double: An Archetypal Configuration", Spring 1971
-º--~elf§p_eE~oniJ!~ac!º-R.elo.~c!()j!!lºr!ªt~o duplo, diante de (1976): 165.
cujo poder nossa pequena existência como, ego-Self não deve sucumbir.' 22. Ibid., p. 169. '
-Díversamente do adepto oriental, o místico ocidentilfnão·àliiridõna 23. C. G. Jung, Memories, Dreams, Ref/ections, edição revista, tradução de
o ego sem que haja uma grave perda. Inversamente, é na conserva- Richard e Clara WinstoIl, org. Aniela Jaffé (Nova York: Pantheon, 1973), p. 245.
ção do Self menor, na provação e na purificação do' SeH'Il1enor que [Em português,'Mem6rias, Sonhos e Reflexões.]
24. Ibid., pp. 242-243.
, um novo equilíbrio se realiza e o processo de individuação pod'e 25. C. G. Jung, The Archetypes and the Co//ective Unconscious, tradução R.
progredir: F. C. Hull, org. Sir Herbert Read, Michael Fordhame Gerhard Adler, Bollingen Se-
ries XX, voI. 9 (Princeton: Princeton University Press, - 1980), p. 130.
26. Ibid., p. 131.

100 101
27. Ibid., p. 137. Capítulo 8
28. Ibid., p. 131.
29. Ibid., pp. 132-133.
30. Ibid., p. 134.
31. Ibid., p. 121

Jung e Reich-
o corpo como sombra

Estrita.m.ent.e.lª-lªnºº" a.s9}1.1pr~ é !l pªrtereprimid.adº.~goç Je.-


pres(:!1~_ª_CJ!lllo que somos incapazes de rec,onhec,er._~o1:J.~e Ilós!!l.e~­
'mos~ O corpo que se'ocult'!,sob'~sr.oupas c.ostuma expressél,r, defor-,
--ffiâ'os((!nsiVa, aquilo que negamos conscientemente. Na imagem que
"1IpTesentamos aos outros é freqüente que não queiramos demonstrar
Li ,'.~} ":.; ) ') , I
nossa raiva, nossa ansiedade, nossa tristeza, nossos bloqueios, nos-
~i~' ,'.'./_ j
sa depressão ou nossa carência. Já em 1912, Jung escrevia: "Deve-
se admitir que a ênfase cristã no espírito provoca, inevitavelmente,
uma intolerável depreciação do aspecto físico do homem, e assim pro-
duz uma espécie de caricatura otimista da natureza humana".1 Em
1935, na Inglaterra, Jung deu palestras sobre suas teorias gerais e
indicou brevemente como o corpo poderia representar a sombra:
Não gostamos de olhar nosso lado sombra; portanto, há muitas pes-
soas, em nossa sociedade civilizada, que perderam inteiramente sua
sombra, perderam sua terceira dimensão e, com ela, em geral, perde-
ram o corpo. O corpo é o amigo mais duvidoso, porque produz coisas
que não apreciamos: há coisas demais sobre apersonificação dessa som-
Jua QQ,ggQ., Às vezes, funciona como o esqüel~t(ÚiQ:ariil.~i'J.º. ii; iíãiü-
ralmente, todos querem livrar-se de üma'coisa assim. 2 -

De fato, o corpo é a sombra, na medida em que contém a trági-


ca história de como o surgimento espontâneo da energia vital é mor-
to e rejeitado de cem diferentes maneiras, até que enfim o corpo se
torne um objeto sem vida. A vitória de uma vida super-racionalizada
se dá ~custa de uma vitalidade ~ais primitiva e natural. ,Para quem
'pode1er o corpo, ele guarda o arquivo de nosso lado rejeitado, reve-
lando o que não ousamos falar, expressando nossos temores passa-
dos e presentes. gÇ,~rpo como sombra é, predominante.!I1eIlte,o çorpo
.çOntQ ','caráter", o êôrpõ comoeiiergiãcolitid~qüe-iíão-é'reconhe-,
i.\
cida, não é constatada, 'é ignorada e indisponível.

102 103
Embora ~osse um homem vibrante, alto e vigoroso, na rea- corresponde à vida fisiológica do corpo, mas o modo como ela está
lidade poucofalou sobre o corpo. Quando construiu sua torre, em ligada ao corpo é, por motivos óbvios, ininteligível. Especular a res-
um
Bollingen; ~voliõu ii estilo de vida-mais primitivo, bombeando água peito dessas coisasincognoscíveis é mera perda de tempo".7 No en-
do poço e cortando lenha. Seu vigor, sua espontaneidade e encanto saio intitulado "Sobre a Natureza da Psique", Jung escreveu:
indicavam um certo conforto e familiaridade com seu corpo. Alguns
de seus comentários mostram uma atitude perante o corpo que esta- Uma vez que psique e matéria estão contidas num único e mesmo mun-
va em harmonia com as idéias de Reich, mas num plano mais dis- do, e, sobretudo, uma vez que estão em cantata contínuo entre si e,
tante, mais metafórico. em última análise, fundamentam-se em fatores irrepresentáveis e trans-
Reich, que nos~ ensinou_a observar e trab~lha~ co~ o corpo, era cendentais, não é somente possível como, inclusive, bastante provável
direto e concreto. Ele considerava mente e corpo "fundóiüilmente que coisa.
ma psique e matéria
.
sejam. .dois aspectos diferentes de uma
' - "- ,.' .
s6 e mes-
- --~.. ....
8
i:âêfitlCÓS"~.3~ReidnraÕalfiava--êom 'a psique como expressão corpo--
-ral e contribuiu com uma brilhante alternativa e antídoto à sofistica- ambQr~ ~xistam concordâncias surpreendentes e freqüentes en-
. da psicanálise dos analistas vienenses, que, pelo rn(~nos no iIÚcio, não . tre ambos, Rei~h~ Jung .trilharam caminhos diferentes. Diante de
tinham consciência do poder da expressão corporal na psicanálise. diferenças tão incômodas de estilo e disposição, reunir esses dois sis-
A natureza de Reich era intensa, até certo ponto rígida, sem muita temas é um exercício inesperado e grandioso. É irônico que aconte-
tolerância com os meandros da mente metafísi<:a, literária. Ele era ça com a mediação teórica de Freud. Reich e Jung-nunca-conversa:':'
um cientista que se fundamentava naquilo que podia ver, com uma "ram, não se corresponderam nem se -êõmunicaranr-cle-quatqüer fór-
predisposição impaciente a descartar tudo que fosse "místico", ca- !frã-:-~~(Eilij)lnsi>~õucos e esparsosconieiitáriõfiridi~ám que~~e!cli sà-
tegoria que logo atribuiu a Jung desde que este ingressou no círculo biã -da existênCia-oe Jung; e~ esse -conheCimento parece opiniático é
de Freud, no início dos anos 20. Posteriormente, em Ether, God and "oaseado-numaavâliaçãosuperficiat Por outrolado, não há meIição -
Devi! (1949) Reich escreveu: alguma a Reich nos escritos de Jung. Mas tanto um como outro vot~~"·
lavam, vez por outra, a comparar seus conceitos com os preceitos
A identidade funcional como um princípio de pesquisa do funciona- ãeFreüd;-lJessafõrmâ inespeiida, pode:'seproceder a~ tinfcruiãmellto
lismo orgonômico está, mais do que em qualquer outro lugar, brilhan- '~~~_!:~laçQe~ entre Qssonceitos de Reich e de Jung. ....... - - . ,
temente expressa na unidade entre psique e soma, emoção e excitação,
sensação e estímulo. Essa unidade ou identidade, como princípio bási- Num arfig"õ"-delI939,'Jung comparava a sombra ao conceito freu-
co da vida, exclui, de uma vez por todas, qualquer transcendentalismo diano de inconscieD.te: " A s<J.P.lpra coincide com o inconsciente 'pes-
ou até mesmo autonomia das emoções. 4 soal' (que corr~sponde aó conceito de inconsciente de Freud)".9 No
prefácio à 3 ~ edição de A psicologia de massa do fascismo, escrito
Por outro lado, )ung foi influenciado por Kant, cuja teoria do em agosto de 12~2, Reich disse que sua camada secundária corres-
conhecimento manteve Jung filosoficamente- orientado para um es- pondia ao incõllsclente de Freud. Reich expiicou que o fasCismo emer-
tudo da psique como um cientista, como um empirista, s~m conCluir ge da camada secundária da estrutura biopsíquica, que representa
que havia se apoderado da Realidade. "As pessoas praticamente não três camadas de estrutura de caráter (ou depósitos de desenvolvimento
compreendem minha perspectiva empírica", confessou Jung numa social) que funcionam de maneira autônoma. A camada superficial
carta a Upton Sinc1air. "Estou lidando com fenômenos psíquicos e do homem comum, segundo Reich, é "reservada, educada, compas-
não estou absolutamente interessado na questão, em geral ingênua siva, responsável, conscienciosa". Mas a camada superficial de "coo-
e sem resposta, a saber, se uma coisa é histórica, quer dizer, concre- peração social não está em contato com o profundo cerne biológico
tamente verdade ou não."s Portanto, é inevitável que sua prudên- da própria natureza individual; ela é limitada por uma segunda ca-
cia empírica condicionasse suas poucas declarações concernentes à mada, interm~ária, que consiste exclusivamente de impulsos cruéis,
relação mente e corpo. Para Henry Murray, escreveu: "Corpo e es- sádicos, lascivos, rapaces e invejosos. Representa o 'inconsciente' freu-
pírito são para mim meros aspectos da realidade da psique. A expe- diano ou 'aquilo que está reprimido' ... 10
riência psíquica é a única experiência imediata. O corpo é tão meta- Uma vez que tanto a "som1?ra'!_çle Jung como a "camada se-
físico quanto o espírito". 6 Em outra carta, quase vinte anos mais Gu~dária' '. d.çReiçb correspõriaeni"ãõTíinconsCieíife' '-dê Fieud;põ=
tarde, escreveu: "Estou pessoalmente convencido de que nossa mente eternos reconJiêcer, -iio'mfriíriio, -ü-ma refã:tlvá-Ccirres-põíiêlêriCii-entre

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ambas. Tal como ret1etida no corpo, a camada secundária, segundo ~~()nsjdçrar ,a, camada su,perf~ci~l iI.1C:ºlJ.~(!giieple,,Jto_PASsoque J \lIl8
Reich, caracteriza-se por rigidez, contrações crõnicas de músculos ."dava particular atenção à interação vital entre nossa máscara e nos-
sa vida' interior. ..,
e tecidos, por uma couraça defensiva contra ataques procedentes de
dentro e de for~, uma espécie de auto-encerramento, de tal modo Para Reich, o modo de alcançar a camada central do homem
que o fluxo de energia no corpo fica seriamente reduzido. Reich tra- era desafiar a camada secundária, da sombra. A resistência, para
balhava diretamente na camada corporal encouraçada, liberando as- Reich, tornou-se uma espécie de bandeira, assinalando a área da cou-
sim o material reprimido. Q,çº~ru> ~o~.Q.<§Qmbra"p-ortanto,I.efere­ raça e mostrando o caminho para o centro do homem. "Nesse cen-
Je ao aspecto. da cour.aça corR<l~!~-""<~-"'·« ," '.< .,' -,. . tro, sob condições sociais favoráveis, o homem é um animal essen-
No conto de fadas de Hans Christian Andersen "A Sombra" , cialmente honesto, diligente, cooperativo, amoroso e, se motivado,
uma sombra consegue despregar-se de seu dono, Ulm estudioso. 11 Este um animal racionalmente irado."14
vive satisfatoriamente e desenvolve uma nova sombra e, até certo pon- A equivalência entre o conceito junguiano de sombra e o de ca-
to, uma sombra mais modesta. Alguns anos mais tarde, ele encontra mada secundária, de Reich, é aproximativa, havendo poucos ~ncai­
a velha sombra, que ficou rica e famosa. Prestes a se casar com uma xes justos. "----
Jung -" •.con~iderªva a sombra
, " .. . ' ,-- pa~te .
uma do" .c:ern~ ......,
da vida
. . .. ,

princesa, a sombra teve a audácia de tentar contratar seu antigo se- 'inserida na natureza da imagem de Deus na psique humana. Oléido
nhor para que fosse sua sombra. O estudioso tentou denunciar a som- ,fscúro rios éIáuin põ'deroso meio de" ácessefà vida negãtiva do ho- '
,pi~ni:"Mefistófeles pôde devolver a Fausto sua juventude, restabele-
bra, mas esta,. em sua esperteza, fez com que ell~ fosse preso, con-
venceu sua nOIva de que sua sombra enlouquecera e, dessa maneira, cendo seu vínculo com a natureza e despertando seu coração. Mefis-
conseguiu afastar o homem que ameaçava seu amor. Este conto de tófeles tem um encanto irônico, uma integridade perceptiva. Além
fadas nos conta como os aspectos sombrios e descartados do ego po- de inimigo bem-amado de Fausto, emerge como seu duplo, como seu
dem acumpliciar-se de modo impetuoso e imprevisto, materializando- Sel~ imortal. Para J,~n-ª.,-~valor de Herme~_(Mer~~~~~h.~~ vez~_~­
ceb1..4º,~omoflgura demoºraca~-é"silâ."càpa_cidade de cruzar as fron-
se com tanto vigor que acabam por dominar e inverter a relação servo-
patrão. Essa história mostra o que Reich teria considerado um pro- e
~asSiue separãm-!~ tI~y:a~ :Mrui:para'-Re1êh;-o malrüm meca-
cesso de desenvolvimento do caráter encouraçado. .~n,lsmo crÔnico, que nega a vida energética e constitui ot)stáculo' paiã
Num sentido mais estrito, portanto, o corpo como sombra re- o cerne espontâneo, biológico do homem. O diabo nunca chega no
presenta o c()rp9.4~,<çº!!r!ça!.~~e~ess'ª!!dó~quIE>=-qtie fofreprírnldõ' . cerne, mas é a personificação da camada secundária restrita.
_~elo ego. Também po~em?s supor que o C~!!~!ºj~rig:~iang -ª~ /l~~­ Após anos de trabalho, Reich chegou a partilhar do desespero
~n~<corresE.0n~a,à I>!!!!!~lra ca.mada de:Relch. "Na camada supei- terapêutico de Freud. Tentara dissolver a couraça em escala da mas-
-ficIal de sua personalidaderr;'escreve--Reianpara citar novamente a sa, pela educação e, em nível individual, pela terapia. Seu modelo
mesI?-a passagem), "o homem comum é reservado; educado, com- de três camadas não atribui um valor à camada secundária,' que apa-
passIvo, res.ponsáv~l, consciencioso" .12 Jung escreveu: '~~ Q,ersgl1.fL. rece como processo virtualmente impossível de dissolver por com-
~~,f;~-'EP!l~ª~9 §!,(lJ~l!laA~. re,La.ç,º~~,~º:JrS;.A.~<?-nsciêºçiª lIlcIJvid.ual pleto. Atu~Il1!~!l_~e, ,~~.~!te-s,ed~ m(.)~? geral, entre os clínicos, que
~"a, socle~a~e! ç()~p0!1:d9~IIl,~ "~spéç!~ d«IÉ~!<::~a-.destinada, porum t9do~.y!.~~!.~~!?4éi ~.2,\lraç~co~~..proteção. Al(!tªpi~,º1.l§~él não apé-
I!~~ ~lssolver a couraça, mas mtroáuili-flexibilidade e escolhacõns-'
.ra~'2~,éi_~éi~sar uma determinada impressão nosoutfQs,',é; iJQújutro,
~ oçultar a verdadeirallatureza do indivIduo" .13 Enibótáã petsoiíii C!en~\iHe,<tUe; 'ate-'então," crá uma estrutura rígida'e -inconsc1en-
'te..dedefesa. . .'. .. . -. ' . ' .....
de Jung funcione de Uma IIláheiramais complexa do que a "primei-
ra camada", de Reich, há uma razoável correspondência entre os dois -~ Emboii o conceito biológico de couraça tenha uma especifici-
dade própria quand? aplicado a? trabalho energético com o corpo,
siste~as._~n~~4<éi:::l!~"SQlla..~0~<!.J!~cr~7.~~!1!ll.. ,e.quilíbti.2..~ntre""o ... a sombra, como eqUIvalente funCIOnal no nível psíquico desfruta um
.~onscl~nte e o 111consclente, uma sequencla de compensações. Quan~
o'
to mais o homem faz ó' papel de' forte perante mundõ-liirus ele âm.bito de significados, próprios à sua função psicológi~a. A sombra
é inte~namente compen.s~do pela fraqueza feminina. Qua~to menos . contém um poder que foi execrado. A sombra não deve ser totalmen-<
consciente ele é do femmmo que há nele, mais é provável que proje- 1e' dissolvidâ, nem repudiada. Deve haver uma relação com a som-
te no mundo uma anima primitiva, ou seja, esteja sujeito a ataques, bra, ela deve ser integrada, mesmo reconhecendo-se que uma parte
mudanças de humor, paranóias, histerias. Reich era mais propenso muito profunda do seu cerne jamais será domada. A sombra e o duplo
," " \ ~ I" .. , .. {'-',
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106 \' ( ! ',\.' . (, rI')' .0 '- - .... ~
U.· .11 .•. .;.1' 107
.\

..
..... ..,.. -.
contêm não apenas a escória de nossa vida consciente, mas nossa força Capítulo 9
vital, primitiva e indiferenciada, uma promessa de futuro, que in-
tensifica' nossa percepção consciente e nos fortalece pela tensão dos
opostos.

Notas o cerne, o inconsciente coletivo e


I. C. G. Jung, Symbols of Transformation: an Analysis of the Prelud to a
mais além
Case of Schizophrenia, 2~ edição, tradução R. F. C. Hull, Bollingen Series XX, vol.
5 (Princeton: Princeton University Press, 1956), p. 71. [Em português, S{mbolos da
transformação. )
2. C. G. Jung, Analytical Psychology: Its Theory and Practice (Nova York:
Vintage, 1968), p. 23 (grifo do autor).
3. Wilhelm Reich, The Function ofthe Orgasm, tradução Theodore P. Wolfe
(Nova York: Meridian, 1970), p. 241. [Em português, A função do orgasmo.) Numa entrevista fascinante, e.m. outu.bro ge 1952, Reich reco-
4. Wilhelm Reich, Ether, God and Devil, tradução de Mary Boyd Higgins vheceuque concordava com o conceito de inconsciente càietlvo de
e Therese P:>I (Nova York: Farrar, Straus & Giroux, 1973) p. 91. . JiffiizSº~w~ilp.~ap'_:qY~J ~l~Jª~~~~ ti~fia êhégãoô'.Dissi: 'iíô entan-
5. C. G. Jung, "Letter to Upton Sinclair, November 24,1952", in C. G. Jung
Letters, tradução R. F. C. Hull, org. Gerhard Adler e Aniela Jaffé, Bollingen Series
H::;-'-qúe tinha chegado a essa conclusão cientificamente, ao passo que
XCV, vol. 2 (Princeton: Princeton University Press, 1973), p. 97. Jung a concebera misticamente:
6. C. G. Jung, "Letter to Henry Murray, September 10, 1935", in C. G. Jung
Letters, vol. 1, p. 200. Jung quis dizer algo muito importante. Sabem o quê? Ele realmente l
7. C. G. Jung, "Letter to D. Cappon, March 15, 1954", in C. G. Jung Let- falava da energia do universo, de uma libido universal. Freud disse que l
ters, vol. 2, p. 160. isso não era científico. Não é possível medi-la com um contador Gei- '
8. C. G. Jung, The Structure and Dynamics of the Psyche, 2! edição, tradu- ger, como eu. Sobretudo, sua concepção foi misticamente concebida.
ção R. F. C. Hull, Bollingen Series XX, vol. 8 (princeton: Princeton University Press,
Portanto Freud estava certo ao rejeitá-la ...
1969), p. 215, [Em português, A dintimica do inconsciente.]
9. C. G. Jung, The Archetypes. and the Collective Unconscious, tradução Ah, sim, agora me lembro quando Jung entrou no debate. Na época,
R. F. C. Hull, org. Sir Herbert Read, Michael Fordham e Gerhard Adler, Bollingen eu me inclinava à unificação da teoria do instinto. Isso significa que ,
Series XX, vol. 9 (Princeton: Princeton University Press, 1980), p. 284. todos os nossos principais instintos - oral, anal etc.- têm uma raiz i
lO. Wilhelm'Reich, The Mass Psyclzology of Fascism, tradução Vincent R. Car- comum, ao passo que, para Freud, eles são como pilares indiVidUaiS.)
fagno (Nova York: Farrar, Straus & Giroux, '1970), p. XI. [Em português A psicolo- Eu já estava no caminho dessa unificação dos instintos parciais num
gia de massas do fascismo.] único princípio biológico comum. Mas precisava me resguardar con-
11. Hans Christian Andersen, "The Shadow", in Hans Christian Andersen: tra Jung, porque ele havia mistificado a coisa. toda.!
Eighty Fairytales (Nova York: Pantheon Press, 1982), p. 193. Ver também Otto Rank,
The Double: A Psychoanalytic Study, tradu.,:ão e org. Harry Tucker Jr. (Nova York:
Meridian, 1971), pp. 10-11. Essa concordância aconteceu nos últimos anos de vida de Reich,
12. Reich, Mass Psychology of Fascism, p. XI. após a descoberta da energia orgônica, quando sua consciência des-
13. C. G. Jung, Two Essays on Analytical Psychology, 2! edição, tradução se conceito já amadurecera e aprofundara. Decerto, antes da desco-
R. F. C. Hull, Bollingen Series XX, voI. 7 (Princeton: Princeton University Press, berta do orgônio, em 1940, o conceito junguiano de libido não tinha
1972), p. 192. [Em português, Estudos sobre psicologia anaWica.]
14. Reich, Mass Psychology of Fascism, p. XII.
a menor validade para Reich. Em )9J_6, por ocasião do octogésimo
aniversário de Freud, Reich escreveu depreciativamente sobre o con-
ceito de Jung: "Com Jung, a libido tornou-se um conceito sem sen-
tiQ~..,L!ll.í~ti,ÇO e completamente anImico, o melhor álibi possível pá~a
a po~terior Gleichschaltung ('equalização') do Terceiro Reich".2
No dia 20 de junho de 1942, Reich escreveu para seu antigo pa-
trão e colega na clínica de Viena, dr. Hitschmann, que a libido é ener-
gia orgônica: "Acontece que você é um dos poucos psicanalistas que

108 109
não recua diante do fato de que a lipido descoberta por nosso pro- na segunda metad~ de sua vida, parece que foi levado àquela que,
fessor Freud é hoje tangível e mensurável, como a biologicamente provavelmente, sena sua quarta função, a intuição, em oposição ao
eficaz energia orgônica. Sempre me espanta o quanto tem sido pou- se~ foco na sensação. Embora comprometido com o caminho cien-
co apreendido e aplicado o verdadeiro princípio científico da ener- tífICO, com o foco sensorial extrovertido, Reich encontrou como cien-
gia emocional".3 Aparentemt:nte, ~eich havia generalizado
~,-"",,".,,,,, .,-- .
a li~id~,
".
~i.sta, um meio para investigar o intuitívo introvertido ~ue nele ha-
fazendo-a englobar a energia do uíÍlverso. VIa, sem que soubesse.
" A descoberta da energia 'orgÔriica fói ô'prindpal marco na vida . . ~o final da década de 1930, enquanto estudava os movimentos
de Reich. Antes da püOIíCaçaõ'de suas-aescooe'ifãifõtg6nõ'niiCás, em: ao ?IIcrosc~pio! Reich ampliou a imagem muito além dos padrões
horapessoa controvertida, Reich também era um herói contracultu- óptICOS habItuaIs, forçando-a a ficar fora de foco, para assim poder
ral, professor brilhante e respeitado, criador da análise do caráter obs~rvar o ~ovimento da vida. Esse deslocamento panl além do fo-
e da vegetoterapia, autor de A psicologia de massa do fascismo, ateu co VIsual fOI um poderoso movimento rumo ao intuitivo do obser-
e decididamente anticlerical. Era extrovertido, politizado, arrogante vador para o visionário. Quem quer que tenha utilizado ~m micros-
nos debates, vivendo como se as conseqüências não lhe pesassem, cópio, sabe que ver é uma arte, mesmo nos círculos científicos mais
embora atormentado por dentro, perseguido peleiS críticos .e por suas rigorosos; mas, para _Reich, ver tornou-se sua mais fundamental fa-
próprias metas internas. Durante alguns anos, na Suécia, desfrutou çul~~d~. Tornou-se u~ ~ísionário, um homem de visões, que muitas
da proteção oferecida por um grupo de estudantes dedicados. Mas, .vezes VI~ o que a maIOrIa de seus alunos não conseguia ver, e esse .
aos poucos, foi se afastando das pessoas e se dedicando mais a uma ver, maIS tarde, chegou a extremos, que foram consideradas idea-
vida de pesquisas científicas. Na América, tornou-se mais cautelo- ções pa~anóicas. Enquanto isso, Reich conseguiu sustentar que esta-
so, introvertido, explosivo, ressentido - deixou de ser "Willy" pa- va funCIOnando de acordo com os parâmetros mais científicos.
ra ser "Reich" . Mais adiante, nos anos 40, queiKou-se ao amigo A. ,0 d~. Reich visionário, o homem qU~.,,Çontemplava océu por
S. Neill, fundador de Summerhill, por ter que faz:er terapia, pois pre- hor~~-ªJ!º evia.!l",e.º~!g!.ª,º-1;gQI!iJ~.é!,!,çyºlvendo-seem {clrmas ldénti~
feria dedicar seu tempo integral ao trabalho de laboratório. O movi- .·,!§y.~~~!=J~IJr~T~~.dEl~!f!º.!~~~.!.!~o~.,~J~() (;!êi!Hsfii: Rurriores de que
mento para um estudo científico mais profundo foi, talvez, parte da era PSICÕtICO persegUiam-no desde sua ruptura com Freud. A fór-
mudança natural que ocorre na segunda metade da vida e precedeu mula conve~entemen~e romântica na cultura da antiga Viena era que,
os virulentos ataques da imprensa sueca contra seu trabalho sobre aq~ele que tivesse deIxado Freud, era amaldiçoado de alguma ma-
sexualidade e origens da vida. neIra; Jung foi r~tulado de "místico" e Reich, de "psicótico".
A energia orgônica era o veículo por meio d_o qual Reich pôde . J3~Relch,passouporumcolapso efllociQ,paLqueJlssina-
configurar as metáforas maiores, relativas à humanidade. Propor- }ou~~~ revolllção em seu pensamento. Assim como Jung, teveu~
ciorrava;,;lhe uma justificativa "cieiüífica" para enfim lidar com con- c~lapso ao ro~per com Freud. Nos primeiros meses de 1927, o con-
ceitos tais como Deus e Diabo, sentiYãqUiloqueséiÜem-õsgrai1aes' flIto entre ReIc~ e Freud ficou sério. Reich atribuiu a ruptura com
poetas,'vivend~ú:o 1mliªcto crQn_õrriéInaI:r-a$iª.9õpar~ OSeI() de uma Fre~d ao assassmato do caráter por seus inimigos analíticos, em es-
na.tUreza ime'nsa e mais sábia, sentir, enfim, aquilo que os mitos con- peCIal o _dr. Pa~l. Fedem, e ao seu crescente fervor político, do qual
'fam,-Os místicos sentem, sem ser um deles. Enfim, ele pôde até en- Freud nao partiCIpava. n~e OU<;lndorff Reich,sua terceira esposa, em
. tender, em certa medida, que o inconsciente coletivo de Jung corres- su~ notável e moderada biografia, concorda com Annie Reich, a pri-
.pondia ao seu va.sto ()ceano de orgônio. ," ' . meIra esposa, 9ue achava que.Q. fatormais signjfica,tivo ... nQ.,ÇQp. f1it9
Para Reich, o cientista, tão seriamente atento aos fenômenos ~o~ :~fud, fOI a ~ec.usa d~~t~. ~II1~ ,!~ende,r R~~c.h como Clie,I)J~...d~.te­
físicos, o processo intuitivo de sair de foco para sentir sensorial e ra~~~: Em termos SImples, a meu ver, Freud havia se tornado o pai
afetivamente o que está por baixo ou em volta da apreensão imedia- S~Stltuto ~e Reich. A rejeição, como Reich sentiu, era intolerável.
ta dos fenômenos físicos não fazia'o menor sentido. Esse processo Relch r~aglU a essa rejeição com uma profunda degressão". 4
era mais "místico" do que científico,.e Reich não tinha um vocabu- Ma13 ou me~~s na mesma época, Reich ..Qe..senvolYeu tuberculo-
lário particular para incluir ou sequer identificar essa abordagem como ~1. do.ença que VItImara o pai e o irmão e o obrigou a um períodô
uma alternativa a ser considerada. Ele era brilhante, mas, também, de retIro em Davos, na Suíça, para uns meses de tratamento num
~-
espantosamente
.
literal,desprovidõ'(te'humõr:conéretô":-Conúido,
. sanatório. O próprio Reich descreve esse período de transição nos
110
111
termos mais dramáticos. 5 Ocorreu-lhe que sua benigna confiança na
Encontramos Reich e fomos à praia, conversando sem parar enquanto
sociedade era um equívoco, que a sociedade e as instituições huma- andávamos. Reich, que na época significava muito para n6s~ falou-
nas funcionavam de modo patológico, verdade essa que os outros nos do esboço geral do livro em que estava trabalhando. Era o princípio
chegaram aperceber, segundo ele, nos anos 40. Os fundamentos de de sua teoria do orgônio. Fenichel e eu nem ousamos nos entreolhar
sua confiança haviam sido repentinamente destruídos e ele se viu tra- e sentimos calafrios. Depois, Reich parou de repente e disse: uKinder,
gado pela imensidão da enfermidade humana, de sua perfídia. A perda wenn ich meiner Sache nicht so sicher ware, wurde es mich anmaten
do apoio de Freud - e da proteção emocional que isso representava wie eine Skizophrene Fantasie" (Crianças, se eu não estivesse tão cer-
- foi esmagadora. A psicanálise tradicional não parecia mais viável to daquilo em que estou trabalhando, isso poderia parecer uma fanta-
nuam sociedade desesperada, tumultuada. Os colegas vienenses de sia esquizofrênica). Nada dissemos. Nem em nossa viagem de volta.
Reich, que não gostavam dele, estavam ingenuamente divorciados Foi para nós uma grande perda e uma grande lástima. 8
da política de seu tempo, na esperança de permanecer incólumes ao
nazismo, "aparecendo o menos possíveP'. Além de radical, a mudanp ocorrida na forma de pensar de
Reich, no início dos anos 30, foi desanimadora. Sua intervenção di-
o primeiro encontro com a irracionalidade humana foi um choque reta e radical para liberar a energia do corpo, energia que ele podia
imenso. Não consigo imaginar como o suportei s(~m enlouquecer. Con- medir eletricamente, não fazia sentido para Feniche! e pode ter pa-
sidere que, quando passei por essa experiência, estava confortavelmente recido uma evidência de instabilidade mental. (A referência ao or-
ajustado aos modos convencionais de pensamento. Ignorante daquilo gônio, no relato de Gyõmrõi, deve referir-se a esses primeiros expe-
com que estava lidando, aterrissei no "moedor de carne" ... Como se rimentos com energia, pois não há outra referência ao termo "orgô-
tivesse sido atingido por um golpe, reconheci de repente a futilidade nio" nessa época.) Mais tarde, quando essa energia mensurável foi
.científica, a ausência de sentido e nocividade dt: pontos de V1sta e in:sti- generalizada como energia orgônica, outros acharam fácil chamar
•tuiçOeSqúe, até aquele momento, tinham pareddo inteiramente natu-
rais e evidentes em si. É uma espécie de experiência escatológica, fre-
Reich de louco. Mas seus alunos, colaboradores e suas duas últimas
qüentemente encontrada de forma patológica nos esquizofrênicos. E esposas, Elsa Lindenberg e Ilse Ollendorff, não achavam que Reich
até poderia comentar a crença segundo a qual a forma esquizofrênica estivesse louco. Consideravam-no difícil, às vezes, mas não psicóti-
de enfermidade psíquica vem regularmente acompanhada por insight coo Apesar disso, podemos aceitar a palavra de Reich de que passou
sobre a irracionalidade dos costumes político-sociais, principalmente por uma profunda e dramática alteração de consciência em 1927, que,
os que regem a criação e a educação de crianças ... A diferença entre tal como aconteceu com Jung, determinou o rumo de seu pensamento
a experiência de um esquizofrênico e o insight límpido de uma mente nos anos subseqüentes.
forte e criativa está no fato de que este último desenvolve-se na práti- Reich nunca foi respeitado como intuitivo, visionário, como al-
.~a, ao longo de extensos períodos, em geral durante séculos. 6
guém capaz de ver além dos fenômenos físicos. Em sua maior parte,
A experiência escatológica de Reich, a revolução política e pes- o Reich que finalmente tinha as metáforas que lhe permitiam ter acesso
à ampla erudição da raça humana foi um transtorno para seus amigos
soal de suas idéias, não foi compreendida nem partilhada por sua
e ele foi considerado um homem trágico, falido, que em seus últi-
primeira esposa, Annie, que continuava consistentemente leal a Freud,
mos dias de vida repudiava os próprios princípios, que tão vigorosa-
em todos os sentidos. Em Berlim, onde os psicanalistas mais politi-
zados tinham estado discutindo marxismo e psicanálise durante anos mente estabelecera contra as pressões do homem de massa. Em par-
a fio, sob u liderança do amigo de Reich, Otto Fenichel, Reich fez ticular, os escritos de seus últimos dez anos estão repletos não só de
análise, por breve período, com Sandor Rado. Numa atitude fran- novas terminologias, grandiosidades, autocongratulações, como tam-
I camente antiprofissional, Rado advertiu secretamenieJ\:nnié·Reidí bém de relatos de suas mais poderosas e mobilizadoras experiências
internas de sua relação com a vida e a natureza.
fãê·qüe-erádeveriaddxar omarido", quê considerava "portador de
r uriC'p·fôcesseqjslc6ITéÕ insidio só' ".T .. . . . . .._ . . Reic~foi'um verdadeiro devoto da natureza, um entusiasta dar-
.winistado futuro, movido por um insopitável otimismo quanto ao .
- IrrirT9rr;-crffõFenicheI ·e Edith Gyõmrõi visitaram Reich em
Copenhague, onde este vivia exilado, após a ascensão de Hitler ao poder da natureza para se purificar e se encaminhar para um equilíbrio
poder. Edith Gyõmrõi escreve: -melhor, a cada geração. Em contraste com o conceito de natureza
. vigente no século XVIII, segundo o qual ela era apenas um reflexo
de Deus, o Relojoeiro, a natureza de Darwin, através da sobrevivência
112
113
quando me mostraram os mapas e diagramas, para somar,
do mais apto, era capaz de descartar o cansado, o não-funcional e
o inautêntico, para produzir um futuro mais saudável e robusto. Os ~~~~~~,es':n~~~~s~UVi o astrónomo ali onde dava sua aula
processos da natureza são inerentemente corretos e o tema apropria- muito elogiada na sala de palestras. ,
do de um estudo sério. O cientista, como devoto e verdadeiro sacer- o foi rápido o inexplicável cansaço-tédIO qu~ se a~~teu
dote, está repleto de um senso de significado e otimismo porque a ~~;que levantando-me e deslizando para fora dldstanclel-me
natureza é ilimitada, abundante, inexprimível e um refúgio da bele- fi. ' 'd de do ar noturno e, e vez em
za e do deslumbramento. Reich usava a palavra enigma para a natu- :u~~~~, p:f:a~a s~~:a u:~/:O. em perfeito silêncio, mirando
reza, em vez de mistério, porquê a natureza pode si~r conhecida pela as estrelas. 10
razão, pela ciência. Na natureza darwinista, o futuro também é um
Quando Reich publicou Sobreposição cósmica, em ,1951, tinh~
refúgio. Alfred Kinsey, outro cientista concreto, de mentalidade li-
teral, tinha em parte o mesmo otimlsmo e a mesma crença na bon- estudado a vida de ~risto, identificando-se ca!~i~e:I~~O~o::f~;
d o martírio As Imagens levaram-no para . I
dade subjacente da natureza. Desde que vimos nosso planeta do es- d: ~iologia e d~ física. Indiretamente, ele nos descreveu o ISO amen-
paço, a perspectiva otimista de que a natureza tem um poder de lim-
to que sentia, na seguinte passagem:
peza ilimitado chegou a seu triste, mas sábio fim. A natureza evo-
cou em Reich uma certa pureza inocente que irroIl1peu em meio às
terríveis e amargas desilusões que sentia, num justo contra-equilíbrio Aqui
guer
:~~~m~l~r~~l~
..
::~:~eV;t~~t~~~i~:~os~~~~n;o~~~~gc~~á:f~
am elas nos palcos teatraIS, em
à praga emocional que ele vivenciava na sociedade.
Nos seus últimos dez anos de vida, Reich parece ter saído do
d:~~~:e~~J~~~;so~U=~::i;~~~:~eligiOSaS, Quando Cristo s~, viu
r 'd't mpletamente sozinho num campo ou co ma,
mundo, afastando-se do cenário da vida para viver no campo. Sua em apuros, f~~ me, 1 ar ~mais uma vez alguma coisa importante, em-
permanência em Rangely, no Maine, no verão de 1946, favorecia um ~~~ ~!~:~~u~~~~l~l~::trazida de volta do campo ou da montanha para
vínculo mais profundo com a natureza. A perspectiva a partir do cam-
po não destoava de alguns pronunciamentos de Jung. Em Sobrepo- ~~d~:-~~~r:~~~~~I~giOSo da ~stória humana é uma tentativa vã de
sição cósmica Reich' escreveu: tra~er ,a m~nsaftem da profundidade emocional, do campo para o ce-
náno mtenor,
Muito pouco do verdadeiro drama das lutaS sociais atuais aparecerá /, C Jung Reich percebeu uma ordem funcional relacionan-
nessas páginas,., Visto da perspectiva destes campos, sob a luz das es- do nat~~~a e h~mem, percepção essa de importância ~~nsi~erável
trelas resplandecentes que brilham no céu, o espetáculo no palco apa- para um cientista. Finalmente, ele foi impressionado pela IÓlg~a fu~­
rece estranho, De alguma maneira, 0$ céus intermináveis no silêncio
das noites não parecem de modo algum combinar com o espetáculo
nos teatros ou com o tema da representação. Tudo que pertence ao
espetáculo parece muito distante, irreal e completamente deslocado
) cional objetiva nas funções naturais, além do nível pessoa o pr -
prio ser" .12 Reich continua:
Em meu tumulto emocional, comecei a compreender a absoluta neces-
quando visto de fora das paredes do teatro. 9 sidade da idéia de "Deus.':...entr~ to~os os pov.os, todas as raças, em
al ní I primitiVo de consclêncla dessa lÓgica na natw:eza... Nessa
A percepção de Reich e o alcance de sua consciência não foram ~~u~e:-'D:~s" parecia ser o resultado perfeit~ente l~glco d~ ~o~s-
observados pelos amigos ou pelos críticos. A passagem acima citada '~enci~ do homem sobre a existência de uma lóglca funclOnal o jetlva
Cl • 13
constitui um interessante paralelo a um poema de Walt Whitman, no uruverso,
também acusado de grandiosidade por aqueles que não viam com
Reich enco~trou consolo nessa identificação ampla com o oceano
bons olhos sua sensação expansiva e fusional de identidade: cósmico de orgônio; sentiu-se parte da natureza, que tem su~s pró-
Quando ouvi o erudito astrónomo, prias leis, leis estas, que vão além dos caprich~s do .~go. O:o;:~~~~
do palco para o campo é, na verdade, um dIstanCIar-se o .
quando as provas, os números. dispuseram-se em colunas à do ego para aceitar um contexto mais amplo, do Self; é a acel-
minha frente,
l1S
114
Senti-me então como se fosse o primeiro homem, a primeira criatura
tação do lugar da pessoa num contexto maior, do mundo coletivo a saber que aquilo tudo é. O mundo inteiro à minha volta estava quie-
da natureza. to, em sua condição primordial. Não sabia que é. E então, naquele
Reich achava que a energia orgônica na humanidade busca momento em que comecei a saber, o mundo ganhou existência; sem
tornar-se consciente-desrmesma, que-hífil-o hOIIlem rima fome dé aquele momento, ele jamais teria sido. A Natureza inteira almeja esta
conscientizar-se e saber que faz p-afte da natureza e que há uma rela- meta e a encontra cumprida no homem, mas somente no homem mais
ção tanto com o micro (homem) como o macrocósmico (natureza): altamente desenvolvido e mais plenamente consciente. Todo avanço,
mesmo o menor, ao longo do caminho da percepção consciente acres-
Sob este prisma, e somente assim, buscar o conhecimento perfeito tem centa-se ao mundo. 18
. um significado cósmico. Penetrando na profundidade maior e na mais
plena extensão da integração emocional do Self, nós não só vivencia- Jung sabia que a doença da moderna cultura ocidental decorre
mos e sentimos como também aprendemos a compreender, mesmo que do divórcio entre o homem e o mundo dos arquétipos e suas raízes
de modo indistinto, o significado e o funcionamento do oceano cós- na natureza:
mico de orgõnio, do qual somos parte diminuta. 14
Entendendo-os ou não, o homem deve permanecer conscil~nte do mundo
Esse movimento do ego para o Self maior foi descrito por Jung dos arquétipos, porque ~êle é, ainda uma parte da Natureza, que está
como a passagem do vale à montanha: ligada às suas próprias raízes pessoais. A visão de mundo ou de ordem
social que o aliene das imagens primordiais da vida não só não é cultu-
o que, num nível inferior, tinha levado ao mais selvagem conflito e ra nenhuma, como em grau crescente, é uma prisão ou. um estábulo.
a explosões aterrorizantes de erroção, do nível mais elevado da perso- Se as imagens primordiais permanecem conscientes de uma forma ou
nalidade parecia agora como uma tempestade 110 vale, vista do alto outra, a energia que pertence a elas pode fluir livre para dentro do ho-
da montanha. Isso não quer dizer que a tempestade seja privada de mem. 19
sua realidade, mas, em vez disso, que a pessoa em vez de estar dentro
está acima dela. Uma vez, no entanto, que no sentido psíquico somos Em passagem paralela, disse Reich:
tanto o vale como a montanha, poderia ser uma vã ilusão pensar so-
bre si mesmo além dos domínios do que é humano. IS Nenhum grande poeta ou escritor, pensador ou artista conseguiu furtar-
se a essa profunda e fundamental constatação de ser uma pessoa, de
.lá em 1912,ainda relativameIlte jovem, Jung tinha uma pro- alguma forma, e em algum lugar, alicerçada na natureza como um to-
!~n-ª(~gç~(;L~e .coPiõ. a. patureza prrcisa do homem para torriai-s~ . do. 2o
'consciente de si mesma. Ele então escreveu: "O mundo passa a exis-
"tir quando o liõiiiem o descobre, mas ele só o descobre quando sa- Ao se encaminharem para o impessoal mundo coletivo, tanto
Reich como Jung deixaram Freud muito atrás, ainda aprisionado no
crifica o estar contido na mãe primordial, o estado original de in-
consciência" .16 Mais tarde, em suas viagens pela África, Jung pas- palco. Jung escreveu sobre o dilema de Freud:
sou por uma poderosa experiência, que confirmou a noção da fun-
ção do homem na natureza, que é a de estar ciente de sua consciên- A impressão é que Freud ficou preso em seu próprio pessimismo, ape-
gado, como é seu estilo, à sua concepção profundamente negativa e
cia. Para ele, essa é uma consciência despertando de.uma "~~.P..urusha pessoal do inconsciente ... Mas rasgado o véu dessa doentia ilusão, é
todó-abrangente como alma do mundQ'.', que representa ~'o 'estado possível pisar fora desse estrito e pesado ângulo pessoal, ingressando
áe penumbra' original da psique" .17 no amplo âmbito da psique coletiva, na matriz saudável e natural da
mente humana, na verdadeira alma da humanidade. 21
Posso apenas fazer uma confissão de fé: acredito que, após milhares
e milhões de anos, alguém teria que perceber que esse maravilhoso mun- Reich encontrara uma saída da armadilha que ainda retinha
do de montanhas, oceanos, sóis, luas, galáxias e nebulosas, plantas e Freud. Havia passado pela sombra, pelo inconsciente pessoal, pela
animais, existe. De uma pequena colina na planície Athi, na África estrutura de caráter, pela armadilha na estrutura emocional do ho-
Oriental, presenciei certa vez grandes rebanhos de animais selvagens mem. Saíra do palco e fora para o campo, e com isso sofreu as mes-
pastando em silêncio, imóveis, como vinham fazendo desde o primór- mas perdas que os alquimistas e outros adeptos haviam sofrido em
dio dos tempos, tocados apenas pelo sopro do mundo primordial.

116 117
todas as épocas. Reich escreveu de maneira enfática a esse respeito Embora Jung e Reich vissem o mundo por ângulos singularmente
em O assassinato de Cristo: diversos, podemos reconhecer uma certa correspondência entre' a "ca-
mada primária" de Reich e a ''persona'' de Jung; entre a "coura~
Para onde quer que nos voltemos, encontramos o homem correndo em ça" de Reich e a "sombra" de Jung, e entre a experiência do "orgô-
círculos, como se estivesse dentro de uma armadilha em busca da saí- . 'nio" de Reich no cerne do homem e o "inconsciente coletivo" jun-
da, em vão e desesperado. guiano. Tanto Reich como Jung tinham a forte impressão de que
. É poss(vel sair dessa armadilha. Contudo, para fugir de uma prisão, -a "natureza buscava conhecer-se por intermédio da consciência do ho-
é preciso primeiro que a pessoa confesse que está presa. A armadilha
é a estruturaemocional do homem, sua estrutura de caráter... A pri- mem. Vivenciaram o movimento do estágio da consciência egóica
meira coisa a fazer é encontrar a salda dessa armadilha ... mundana para a autoconscientização mais ampla, um movimento do
Onde está a salda para o espaço aberto infinito? palco para o campo, do vale para a montanha. Ambos sentiram a
'" As chaves para a saída estão cimentadas em sua própria couraça , necessidade de o homem fundar-se em arquétipos, na natureza. Os
de caráter e na rigidez mecânica de seu corpo e alma. Essa é a grande dois puderam reconhecer que o mundo representa uma armadilha
tragédia. E Cristo sabia disso. 22 para o homem, da qual, mediante um conhecimento especial, ele po-
, deria escapar, mas correndo determinados riscos. E Jung pôde ad-
Disse Jung que "no reino do consciente somos nossos próprios mitir uma base biológica e material para o inconsciente coletivo, uma
senhores; parecemos ser os 'fatores' em si. Mas se 4amos um passo materialidade para os símbolos.
para dentro do limiar da sombra, descobrimos com terror que so-
mos ali os objetos de fatores invisíveis" .23 Jung também descobriu
uma saída para o espaço aberto: Notas
o encontro consigo mesmo é, a princípio, o encontro com a própria 1. Wilhelm Reich, Reich Speaks of Freud (Nova York: Farrar, Straus & Gi-
sombra. A sombra é uma passagem estreita, uma porta estreita, -de cuja roux, 1967), p. 88, nota.
dolorosa construção ninguém é poupado, se penetrou no poço profun- 2; Ibid., p. 263.
do. Mas a pessoa deve aprender a se conhecer para saber quem é. O 3. Ibid., p. 227.
que vem depois da porta é, conquanto surpreendente, uma ilimitada 4. Use Ollendorf Reich, Wihelm Reich: A Personal Biography (Nova York:
expansão repleta de incertezas sem precedentes, aparentemente sem den- St. Martin's Press, 1969), p. 14. ,
tro ou fora, acima ou abaixo, aqui ou.ali; sem meu ou teu, bom ou 5. Wilhelm Reich, People in Trouble (vol. 2 de The Bmotional P/ague of Man-
í mau. É o mundo da água, em que todas as formas de vida flutuam kindJ, tradução Philip Schmitz (Nova Yor-k: Farrar, Straus & Giroux, 1976), p. 7.
, em sUSpehsãi)';'em"quecomeça o teinÓdo sistema simpáticó;"almã de 6. Ibid.
(lôdas"as coisas vivas, oridé eu sou ihdiVisivelmeriteissoe" àquQo, onêlê 7. Myron Sharaf, Fury on Barth: A Biography of Wilhelm Reich (Nova York:
iií' vi\iéiícTõ" o"óütio em mim mesmo e em que o outro-que-não-eu me St. Martin's Press, 1983), p. 193. A alegação envolvendo Rado é de uma psicanalis-
vivencia. 24 ta chamada Edith Jacobson.
8. Russell Jacoby, The Repression of Psychoana/ysis: Oito Fenichel and the
Jung relacionou esse mundo inconsciente coletivo ao corpo, par- Politicai Freud/ans (Nova York: Basic Books, 1983), p. 82, citando a partir do ma-
nuscrito de Edith Rudowyk Gyamrai, "Recollections of Otto Fenichel".
ticularmente ao sistema simpático, que Reich trabalhara e estudara 9. Wilhe1m Reich, Cosmic Superimposition, tradução Mary Boyd Higgins e
extensamente: Therese Pol (Nova York: Farrar, Straus & Giroux, 1973), pp. 165-166.
10. Walt Whitman, "When I Heard the Learn'd Astronomer", in Leaves of
O incQllS.Ci~l2~igue que se afasta da lu,z diurna da mentalid~de Grass (Nova York: New American Library, 1958), p. 226. Para uma análise desfa- '
e-moraiidade lúcida cià c.Q.i.i~êiêiiêiã;·eãrã: 'ó' füõctó d<r5iSfemâriervoso vorável da "grandiosidade" de Whitman, ver D. H. Lawrence Selected Literary Cri-
qrre"lfá eras é conheCIdo-comõõ nsimpiffié~fênãõiõVeijiãã'per- ticism, org. Anthony Beal (Nova York: Viking Press, 1956), p. 392.
·cepçã<fe" a' atividadê ilíüscUlar;-'coI1IO\fSístema cérebro-espinal e, nes- 11. Reich, Cosmic Superimposition, p. 168.
sá medida, controla o ambiente. Mas, embora funcione sem os órgãos 12 [bid., p. 283. '
dos sentidos, mantém o equilíbrio da vida e, através de misteriosos ca- . 13. Ibid. (Nesta, como na passagem precedente, Reich refere-se a si mesmo
na terceira pessoa.)
minhos de excitação simpática, não só nos fornece o conhecimento dos 14. Ibid., p. 281.
mais reclusos recessos da vida de outros seres como também exerce so- 15. C. G. Jung, Alchemical Studies, tradução R. F. C. Hull, BoJlingen Series
bre eles um efeito interior .25 XX, vol. 13 (Princeton: Princeton University Press, 1967), p. 15.

118 119
16. C. G. Jung, Symbols of Transformation: An Analysis of the Prelude to Capítulo 10
a Case of Schizophrenia, 2~ edição, tradução R. F. C. HuII, Bollingen Series XX,
vol. 5 (Princeton: Princeton University Press, 1956), p. 417. [Em português, Sfmbo-
los da Transformação.]
17. Ibid.
18. C. G. Jung, The Archetypes and the Co/lective Unco~lcious, tradução
R. F. C. Hull, org. Sir Herbert Read, Michael Fordham e Gerhard Adler, Bollingen
Series XX, vol. 9 (PrinceLOn: Princeton University Press, 1980), pp. 95-96. Ciência e misticismo
19. Ibid., p. 93.
20. Reich, Cosmic Superimposition, p. 280.
21. C. G. Jung, The Practice of Psychotheraphy: Essays on the Psychology
of the Transference and Other Subjects, 2~ edição, tradução R. F. C. Hull, Bollin-
gen Series XX, voi. 16 (Princeton: Princeton University Press, 1966), p. 35. [Em
português, A prdtica da psicoterapia.)
22. Wilhelm Reich, The Murder of Christ (voi. 1 de The Emotional Plague
of Mankind) (Nova York: Simon & Schus.ter, 1953), pp. 3-5 (grifos do autor). [Em
português, O assassinato de çristo.) No século XVII, protestantes e católicos, quando não estavam
23. Jung, Archetypes, p. 23.
24. Ibid., pp. 21-22.
perseguindo os judeus, matavam-se uns aos outros, pensando serem
25. Ibid., pp. 19-20. os donos da verdade absoluta, revelação que os distinguia e justifi-
cava atrocidades contra outras pessoas. No século XVIII, alguns ho-
mens adotaram apaixonadamente a razão, que lhes dava um ponto
de vista superior para avaliar as proclamações absolutas e convictas
das forças adversárias. O apelo à razão e ao bom senso, o julgamen-
to de pessoas instruídas, abriu espaço para a evolução de uma plata-
forma humanística que se tornou a visão inspirada de uma ciência
em desenvolvimento. Até certo ponto, a ciência estava ligada à con-
sideração da igualdade entre todos os homens, ao modesto reconhe-
cimento de que ninguém é dono da verdade absoluta, mas profun-
damente limitado por uma consciência parcial e relativa, e que essa
consciência tinha que ser validada por um questionamento impar-
cial dos outros. Esse princípio iluminista desbancou o absolutismo
religioso do passado, que com grande freqüência servia a homens
egoístas e poderosos, e questionou todas as formas particulares de
revelação.
Homens racionais criaram um deus racional, assim como ho-
mens sedentos de sangue seguiram obedientemente um deus vingativo.
Um certo tipo de deus tradicional morreu no século XIX, e nasceu
um homem evolucionário. As pessoas acreditavam na força caris-
mática da razão. Assim, o século XX não estava preparado para a
irrupção de uma violenta irracionalidade, das escuras correntes do
inconsciente. que sorveram a pequena ilha de cultura num único gole
de guerra.
Na cultura ocidental do século XX, o casamento entre Igreja
e Estado já se dissolvera o bastante para que a experiência religiosa,
a revelação pessoal, deixasse de envolver ganhos políticos ou pessoais.
A Igreja deixou de carregar a espada e a ciência tornou-se o

120 121
novo assassino. Nesse contexto, os argumentos em torno da ciência Não estou nem um pouco em desacordo com vÇlcê e não tenho a ~e­
e do misticismo caíram numa confusão renovada. nor vontade de deixar a psicologia suspensa no ar, sem base orgânica.
Que relação pode se estabelecer entre o racional e o irracional Mas além da sensação de uma convicção (de que deve existir essa ba-
se) ~ãO tenha nada - teórico ou terapêutico - com que trabalhar
na própria natureza? Seria o inconsciente um pântano a ser drenado e, ~ssim, devo comportar-me como se estivesse me d~pa~ando apenas
e transformado--etí:Í algo útil, ou deveria ser preservado como san- com fatores psicológicos. Ainda não tenho a menor IdéIa de por que
tu,ário da vida selvagem? O que era uma atitude científica ou uma 4
não consigo reunir o psicológico e o orgânico.
atitude mística? Qual era o matador, qual era o salvador? Seria a
relação da pessoa com a natureza científica ou mística? Em "sua àuto-imagem progressivamente psicológica" , Freud se
.Freud, Jung e Reich se empenharam em resolver, cada um por via como alguém "em oposição às teorias médicas consagra~a~" , que
si, essa aparente polaridade entre ciência e misticismo. Mais especi- eram somáticas e fisiológicas; "e, em contraste, Freud engm uma
, ficamente, ~avia confusão quanto ao equilíbrio adequado entre um sofisticada psicobiologia da mente, que lhe parecia ~ma psicolo~ia
referencial biológico e uma psiCologia filosoficamente fundamenta- pur~ e, enfim, capaz de r~;elar as equivocadas faláCIas do paradIg- .
da. Freud, treinado como cientista epesquisador, e influenciado pe- ma organicista da mente . S •
"10 materialismo do século XIX, rejeitava ii experiência mística, que Conforme sua psicologia ia se desenvolvendo, Freud precIs~u
ele explicava com hipóteses psicológicas. Para eles, uma questão prin- separá-la da disciplina-mãe para desenvolver suas estruturas próp.nas
cipal era firmar a psicanálise como ciência digna de crédito, com re- e singulares caso contrário ela continuaria sendo apenas uma cnan-
gras e conceitos próprios, que não fossem simplesmente empresta- à
ça sujeita aprovação e às limitações intelectuais da mãe.
6

dos da biologia. Freud catalisou essa transformação da psicologia , Embora Freud descartasse qualquer tentativa de fundamentar
em ciência em sua profunda ligação com Wilhelnl Fliess. As idéias a psicologia na neurofisiologia, sua teoria estava "impregnada de
de Freud, Fliess e dos sexualistas faziam parte do corolário concei- . sua concepção evolutiva da vida ... Acima de tudo, era o contínuo
tuaI maior da revolução darwinistd. : recurso de Freud aos pressupostos biológicos que justificavam sua .
Frank Sulloway, em Frl!ud: Bi%gist of the Mind, sugere que , convicção pessoal de que, afinal, tinha criado uma teoria uni~eJsal- /
o afastamento de Freud do referencial biológico tinha raízes com- mente válida do pensamento e do comportamento human<? .'
plexas. Sulloway expõe a penetrante influência de Fliess no trabalho Mas, ao mesmo tempo em que estava separando a pSIcologIa
da psicanálise, que resultou na dolorosa ruptura com Freud. Sua ami- das outras ciências, Freud não queria que ela se tornasse enteada da
zade, na década de 1890, lhes proporcionava uma troca de 'idéias cien- filosofia ou da religião. Imaginava-se, inclusive, isento de tendên-
tíficas livre e aberta; e Fliess foi o primeiro a convencer Freud da cias intelectuais místicas. Erich Neumann assinala que Freud tinha
bissexualidade do homem.! uma inconsciência fundamental de sua própria herança espiritual como
Enquanto Freud se ateve à teoria da sedução como causa trau- judeu. Em carta a Karl Abraham, Freud escreveu: "Nós, j~deus, vi-
mática da perturbação neurótica, não estava ameaçado pela pode- vemos com mais facilidade, sem termos o elemento místIco". 8 De
rosa influência de Fliess e sua biologia sexual. "Repartimos como alguma maneira, Freud podia projetar a atitude religiosa nos não-
dois mendigos", disse Freud, "um dos quais atribuiu-se a província judeus, e esquecer, como observa Neumann, "que. o~ judeus são ~
de Posen: você fica com o biológico e eu com o psicológico."2 De- povo religioso por excelência e, na Cabala e no hassIdIsmo, produZi-
pois, porém, de ter abandonado a teoria da sedução, o relaciona- ram as mais importantes idéias e movimentos místicos". 9
mento científico entre Freud e Fliess tornou~se incomodamente com- Reich nunca pôde entender por que Freud relutava em aplicar
petitivo. Ele queria usar as idéias de Fliess, mas a seu próprio modo: suas conclusões biológicas à questão da sexualidade, preferindo,. em
"No centro da alteração da relação entre os dois cientistas", diz Sul- vez disso, contentar-se com especulações teóricas, que, para ReIch,
loway, "estava a questão de quanto o reducionismo biológico era pareciam insustentáveis na prática clínica. No final dos anos 20, Freud
necessário e adequado à concepção freudiana, cada vez mais genéti- estava realmente encaminhando-se para uma filosofia menos depen-
ca, do pensamento e do comportamento humanos".3 Enquanto, para dente das curas terapêuticas e mais coerente com um ~odo de ser/e~tar
Fliess, a relação biológica com a psique era clara, Freud continuava no mundo - atitude que, ao mesmo tempo, era resIgnada, estÓIca,
vacilante. Ao questionamento de Fliess, responderia, em 22 de se- empática, irônica e desapegada, R~ich foi incap~z de compre~nder
tembro de 1898: . essa atitude de Freud como homem Idoso; ele era Jovem e acredItava

122 123
na ciência, e Freud incentivava-o para um senso de valor e honra por o caçador atrás da raposa, os cães latindo no calor da perseguição,
uma grande causa. "Pertencíamos a uma elite de combatentes cien- Reich saltou por cima das cercas dos vizinhos e correu pelos com-
tíficos, formávamos uma frente contra o charlatanismo na terapia portados jardins científicos, sem dar qualquer atenção à etiqueta ou
da neurose" , disse Reich. 10 A história da ciência era pura e válida,
. à propriedade. Pesquisas sobre o câncer, sobre fenômenos da física
dando significado à sua vida: e da astronomia foram alguns dos campos pelos quais perseguiu a
raposa. Não havia tempo para obter as credenciais necessárias, para
A história da ciência é uma longa cadeia de continuidades e elabora- observar os rituais de obediência aos latifundiários científicos.
ções, moldagens e remoldagens, criação e crítica, novas formulações Reich estava em guerra contra o territorialismo científico, as-
e reformulações, e novas criações. É uma longa e árdua estrada, e es-
sim como contra a atitude mecanicista que com tanta tenacidade res-
tamos apenas no início de sua história. Incluindo espaços vazios, ela
se estende por apenas uns 2.000 anos. Sempre vai em frente e, funda- tringia os métodos dos cientistas e seus campos de observação. A va-
mentalmente, nunca retrocede. O ritmo da vida se acelera e a vida se lidação científica em áreas nas quais estavam envolvidos fatores emo-
torna mais complicada. O trabalho científico pioneiro honesto sempre cionais e subjetivos incontestes era, para Reich, uma abordagem mais
foi seu líder e sempre o será. Além disso, tudo é hostil à vida. Isso nos natural e flexível, que ele chamou de funcionalismo. Essa aborda-
coloca uma obrigação. 11 gem evitava a rigidez do mecanismo e os vôos de imaginação de um
misticismo desencarnado e flutuante. O funcionalismo não pressu-
Mas, como membro da contínua comunidade científica, a pes- punha uma objetividade inexistente, assim como não evitava modos
soa tem a garantia de alguma espécie de imortalidade. Reich achava inclusivos de pensar. Como Jung, Reich precisava de uma definição
que ele, em particular, era especial para Freud, já que os dois eram da ciência que lhe permitisse continuar perseguindo a raposa sem im-
os únicos psicanalistas que tinham treinamento científico válido. 12 pedimentos. "A natureza é imprecisa", argumentava. "A natureza
Reich achava que Freud tinha a capacidade de pensar "de mo- não funciona mecânica, mas funcionalmente" .16 O funcionalismo
do natural, científico", em vez de apenas psicologicamente. Mas "a não evita as emoções, não é abstrato mas "tangível, pleno, pulsátil
associação psicanalítica não atingia absolutamente o alvo" porque e, simultaneamente, demonstrável e mensurável".17 A ciência me-
ninguém mais no grupo era capaz de pensar como cientista, exceto canicista mata a vida, macula-a, coloca-a sob um microscópio e pre-
Reich. 13 Contudo, como cientista, Freud não via necessidade de se "S'ume que aquilo que o observador vê ainda é "vida". O funcionalis-
referir à política ou às condições sociais, ao passo que Reich consi- 'mo adapta seu método ao estudo das coisas vivas:
derava obrigação do cientista ter consciência política. "Politicamente,
ele (Freud) sempre disse 'Eu sou um cientista, não tenho nada a ver É impossível uma pesquisa livre de erros. Toda pesquisa natural é, e
com política' , e já que a política estava ligada à sociologia, eu disse, sempre foi, tentativa, "irregular", instável, flexível, perpetuamente cor-
'essa é uma postura insustentável'. Você não pode ser apolítico na retiva, fluente, incerta e insegura e, não obstante, em contato com os
situação em que se encontra o mundo" .14 processos reais. Pois esses processos reais, apesar de todas as suas leis
A princípio, ~eich considerava a religião como o grande em-·· unificadoras básicas, são variáveis em grau máximo, são livres, no sen-
busteiro do homem. Uma das causas principais da neurose, segundo tido de serem irregulares, imprevisíveis e irrepetíveis. 18
ele, era a supressão sexual promovida pela Igreja e implantada nas
famílias. Os tabus e punições contra a masturbação, dizia Reich, eram (' Tempos depois, no começo dos anos 50, Reich ainda usava a
, mantidos pela religião, cujo "contágio místico" derivava da energia palavra misticismo para representru um afastamento ou uma sepa-
sexual reprimida e não reconhecida. "A função do misticismo se ex- ração, um retraimento perante o próprio corpo, a vida autêntica, e
pressa com clareza: desviar a atenção da miséria cotidiana, 'libertar a humanidade:
do mundo' , para prevenir uma revolta contra as causas reais da mi-
séria humana." IS I
Para o místico, a alma "vive" no corpo. Não há conexão entre corpo
Em seu trabalho científico posterior, Reich foi atacado por cien- e alma, exceto por esta influenciar aquele e vice-versa. Para o místieo
tistas cuja abordagem era mecanicista e que não estavam dispostos (e para o mecanicista, se ele tiver alguma noção da existência de fato-
res emocionais), corpo e alma estão rigidamente separados por suas
a investigar' 'a vida" porque isso significava transgredir muitos limi- realidades inter-relacionadas. 19
tes seguros que demarcavam o território da suposta ciência. Como

124 125
o místico simplesmente experimenta sensações corporais de ma- .Antes, Reich condenara a religião como única responsável pelo
neira distorcida por causa da couraça. Aqui, misticismo significa, s?fnmento _humano, 'mas depois passou a ver a religião como um
em sentido literal, que as impressões sensoriais e sensações orgâni- smt0!fl~' nao a causa. Como socialista, culpara o capitalismo pela
cas se transformam em algo irreal, além deste mundo. 2o c~ndlçao.humana. Como defensor de Freud, chegou a sustentar que
Reich dizia que o homem primitivo projetava suas próprias sen- o mc.onsclente era mau e responsável pela miséria humana. Mas, disse,
sações na natureza, animando-as, conferindo um caráter humano ao contmu~~ flexí~el. A partir de um certo momento, passou a susten-
sol e às árvores, mas que o homem moderno projeta sensações per- tar que o sofnmento humano era a patologia da estrutura huma-
vertidas, distorcidas. Reich havia trabalhado longo tempo com uma na, que por sua vez está alicerçada em sua couraça"24, embora isso
paciente esquizofrênica cujo sistema de projeção de um outro mundo pudesse ser também apenas um mecanismo. Reich, finalmente, pos-
acabou vindo à luz, proporcionando assim um interessante paralelo tulou o que todo bom prelado vem declarando há séculos mas ele
à experiência mística e uma explicação para a mesma., Reich concluiu contava com uma te~minologia própria para isso: o sofri~ento do
que o místico, cuja estrutura psicológica é tão próxima do catáter hom~m pode ser atnbuído ao seu relacionamento com a "energia
'esquizoide,21 experimenta suas sensações orgânicas como que por es- cósmIca que o governa":
peIliõaist5rcido: ' ,
~ resposta está em algum ponto, naquela área de nossa existência que
Dessa forma, gradualmente cristaliza-se um ego unificado, a partir do tao pesadamente vem sendo turvada pela religião organizada e posta
caos das percepções internas e externas; começa a tornar-se consciente fora de nosso alcance. Nesse sentido, é provável que esteja na relação
do limite entre ego e mundo externo. Se então a criança experimenta entre o ser humano e a energia cósmica que o governa. 2S
um choque severo nesse período de auto-orientação, os limites tornam-
se indistintos, vagos ou incertos. Os estímulos provenientes do mundo De algum modo, Reich pensava que toda experiência religios~
exterior podem ser então percebidos como experiências inteJ;'nas ou, e~a ape~as uma ~uleta dese~perada, uma busca por uma experiên-
ao contrário, as percepções internas podem ser vivenciadas como oriun- CIa de VIda p~rdld~. Se. o corpo estivesse livre da couraça, a vida
das do mundo externo ... O início da perda do teste da realidade no apres~n~~r-se-Ia de ImedIato e seria a resposta para a busca e a fome
de rehglao.
esquizofrênico está na errônea interpretação que o paciente faz das sen-
sações decorrentes de seu próprio corpo. Somos todos, simplesmente, Reich. passou a acr~ditar que descobrira a energia de vida uni-
uma complicada máquina elétrica que tem uma estrutura própria e es- versal, antlg~ente conSIderada éter, e que podia vê-la e medi-la com
tá em interação com a energia do universo ... Hoje, eu sei que os pa- o contador GeIger. Consolava-se com a percepção de sua vinculação
cientes mentais experimentam essa harmonia sem qualquer distinção com ~~se ~asto oceano cósmico de orgônio. Começou a ver que suas
entre ego e mundo externo. E que os conformistas não têm a menor expenenCIas eram paralelas às experiências das pessoas espirituais'
idéia dessa harmonia, por sentirem que seus adorados egos, extrema- no entanto, taxav~ se~s Il!-éto~?s de "místicos", ao passo que ele che~
mente bem delimitados, são o centro do universo. 22 gara a esta expenencla CIentIfIcamente, funcionalmente. Ele falava
desse vasto oceano de o~gônio como os místicos orientais sentiam
Jung também estudou a relação entre loucura e visão espiritual. a presença de Br~a. Relch sentia que o impulso místico é uma parte
Enquanto Reich definia o misticismo à sua maneira, considerando-o da presença subjacente, porém, é claro, dizia isso em seus próprios
errado, não obstante encaminhava-se para vivenciar aquilo que outros termos:
poderiam descrever como "místico". Mas ele chamava de funciona-
lismo seu próprio processo. Reich estava passando por experiências O anseio orgástico, que tem um enorme papel na vida animal, aparece
que considerava pertinentes ao âmbito científico, e que até então ti- a~ora para expressar essa "busca pelo que está além de si mesmo"
nha sido prerrogativa exclusiva dos indivíduos de propensão espiri- esse "anseio" d,e escapar dos estreitos confins do próprio organismo. 2&
tual. Em Ether, God and D(!vil, ele chegou a esboçar seus equívocos
passados e a sugerir que, uma vez que tinha estado enganado antes, Mais ad~~t~, Reich expressou, com base em sua experiência pes-
soal, ~ expe~Iencla dos místicos, a fome de "Deus" por voltar pa a
poderia ser que estivesse errado no presente. Ele disse: "Eu conheço
cas.a, para SI m~sm.?, a ânsia da vida por deslocar-se, de maneira i~­
o erro humano por experiência própria. Também eu participei da gri- reSIstível, em dueçao à autoconsciência de si mesma a fome d 'd
taria: 'Culpado! Çulpadol' ".23 por conhecer: ' a VI a

126
127
Diversamente ele KelCn,JUng eSlava aLCULU Cl;) UllJ:lll"""'.rV .." ........ I'
Vive e luta em nós uma sede de conhecimento que é mais forte do que
sica moderna. Foi co-autor de \1m liYro_comofís~c.º~olfgang Pau- \0»'
qualquer pensamento filosófico, seja ele de afirmação ~u de negação
da vida. Essa ânsia fervorosa de conhecer pode ser perceblda como pro- li. 31 Além disSo,-)ungüâdüZluo processo espiritual em-termos psi-
longamento de nossos sentidos, para que alcancem mais além do refe- cológicos e o submeteu aos rigores do intelecto e do ego. Seus estu-
rencial material de nosso corpo, permitindo-nos compreender o que .dos percorreram as religiões orientais e do passado, o gnosticism?
é racional no modo metafísico de existência. 27 e, finalmente, a alquimia, que para ele se tornou o elo entre os pri-
meiros gnósticos e o homem ocidental contemporâneo. Para Jung,
Reich experimentou uma apreensão direta e intuitiva de Deus, a alquimia tornou-se um caminho para o estudo das relações entre .
da Vida , da Natureza, de Brahma, do Orgônio Cósmico, ou do..que psique e matéria. Em S(mbolos da transformaç~o~ pu~licad~ e~ 1912
seja lá o nome que lhe derem. R. D. Ranade, autor de Mysllclsm e que precipitou sua ruptura com Freud, ele dlstmgUla dOiS tlpOS de
in India, definiu o misticismo de uma maneira pouco diferente da pensamento:
de Reich:
Temos, portanto, dois tipos dep~n~~l.I:Ilent.o: o dirigicJ..Q. e o sonhador,.
o misticismo denota uma postura mental que ilmplica uma apreensão ou pensamento-fantasia. O primeiro opera com elementos da fala, co~
de Deus direta, imediata, intuitiva e em primeira mão. Quando o mis- opropósito de comunicar, é difícil e cansativo; o segundo trab~a sem
ticismo é entendido nesse sentido, não há razão para considerá-lo al- esforço, por assim dizer, espontaneamente, com conteúdos Já p~on­
gum fenômeno misterioso e oculto, como ocasionalmente acontece. 28 tos, e é orientado por motivos inconscientes. O primeiro produz 100-
vações e adaptação, imita a realidade e procura agir sobre ela; o outro
Como, en!ãQ,.poderemos distinguir um misticismo válido de um afasta-se da realidade, liberta tendências subjetivas e, quanto à adap-
misticismo "improdutivo? Erich Neumann, junguiano, em seu notá-
"vêl ensaio "Mystical Man", distingue dois tipos de misticismo.
misticismo urobórico é um anseio Ipelo retorno a uma situação se-
º tação, é improdutivo.
Como indiquei acima, a história mostra que o pensamento dirigido nem
sempre esteve tão desenvQlvido quanto agora. A mais clnra expressão
"ínélhante à da vida intra-uterina - ou ao panúso ilusório - , que do moderno pensamento dirigido é a ciência e as técnicas por ela ali-
implica uma incapacidade da pessoa em situat~se realisticamente nç> mentadas. Ambas devem sua existência, simples e exclusivamente, aO
rnundu;-é·ümá. posfura bastanleparecida com a do misticismo niilis- treinamento enérgico do pensamento dirigido. 32
. ta, que Reich deplorava. O segund,o tipo d~.misticismo, porém, e~-
perimenta os fenômenos de tal maneira ql!e o místico volta transf~r­ O pensamento dirigido, 4esenvolvimento peculiar à cultura oci-,
mado e sua consciência, enriquecida. É parte da natureza do homem dentàl, é representado pela ciência; e foi esse próprio instrumento
criativo impelir-se mais além do ego, até chegar aos limites do não- que 'Jung aplicou IlO exame de todas as áreas da vida religiosa, até
ego, alcançando a espontaneidade, o desconhecido, o numinoso. 29 então sob domínio exclusivo do misticismo. (O funcionalismo de Reich
Esse é um ato de coragem, de afirmação da vida, muito parecido com ., foi um significativo paralelo do empirismo de Jung.) Jung não esta-
as próprias experiências criãtivasde Reich. Como cientista, Reich va disposto a ficar restrito a um sistema rigidamente biológico ou
parece não ter tido consciência de que a física dã relatividade e a teoria a desconsiderar extensas áreas do aprendizado humano, tachadas de
quântica postulavam uma visão do homem, no universo, em harmo-
não-científicas ou consideradas indignas de estudo, e também não
nia com o misticismo oriental; e, não obstante, seu conceito de fun-
mergulhou em práticas religiosas, abandonando o poder do ego, a
cionalismo incorpora atitudes semelhantes quanto à participação cien-
tífica na natureza. Fritjof Capra escreveu: presença da consciência questionadora. No início de sua carreira,
Reich repudiou Jung por generalizar o conceito de libido. Ele acha-
A física moderna. ',' deu um grande passo em direção a uma visão de va que Jung generalizara o conceito em tal extensão que o levara a
mundo típica da mistica oriental, com sua teoria atômica. A teoria perder completamente seu significado de energia sexual, terminan-
quântica aboliu a noção de objetos fundamentalmente separados, in- do por considerá-lo o "inconsciente coletivo" .33 Mas Jung percebia
troduziu o conceito do participante para substituir o do observador e seu movimento por um outro prisma. ~J~ achava.Que, Pa!]tl"re_uJi,
pôde, inclusive, considerar necessário incluir a consciência humana em (e esta opinião certamente aplica-se a Reich),. a sexualidade era um
sua descrição do mundo. Ela passou a ver o universo como uma teia "numinosum", e que "elementos mais profundos repercutiam n.e~,
interligada de relações físicas e mentais, cujas partes s6 podem ser de-
finidas através de suas vinculações com o todo. 30 le", evidentes na emotividade com que ele falava sobre sexualidade.

128 129
Ba~icamente, ~izia Jung, Freud "queria ensinar - ou assim me pa- Jung passa a descrever, com maiores detalhes, o dilema que a
re~la - que,. VIS.t~ por ~entro, a sexualidade incluía a espiritualidade psicologia enfrenta quanto a si mesmji, dentro de um referencial cien-
e Unha um SI~m!IC~do mtrínseco. Mas sua terminologia concretista tífico. Ela disse: "A psicologia não tem outro meio para se refletir,
e~a por demaIs hmltada para exprimir essa idéia. Deu-me a impres- a não ser em si mesma. Ela só pode retratar-se em si mesma e descre-
sao de que, no fundo, estava trabalhando contra. suas próprias me- ver a si própria" .38 Assim, Jung empreendeu um estudo do homem
tas e contra si mesmo". 34 . sem pontos de referência fixos, estranhos à psique do homem:
. !ung disse que passou a investigar em seu trabalho o aspecto
.espmtual d~ sexua.lidade "e seu significado numinoso, explicando A~p'siq\le_.é...o. eiJÇ9.p.9 D1~:r!~<>':, não é só uma grande ~ondição para a
~existência do mundo, como tàmbém uma interferêncIa na ordem na-
?essa maneua aqUllo que tanto fascinara Freud, mas que este fora tural existente e ninguém pode dizer com certeza onde irá essa inter-
mcapaz de apreender ....A sexualidade é da maior importância co- venção enfim acabar. É quase desnecessário enfatizar a dignidade da
~o expressão do espírito ctônico". Esse espírito é a "outra fac~ de psique com objeto da ciência natura1.
39
Deus, o lado escuro da imagem divina". 35 .
Nos primeiros trabalhos escritos por Jung, enquanto ainda es- Jung estava suficientemente a par da nova física para vincular
!ava de acordo com Freud, ele relacionava a libido à formação .Çla à fenomenologia da psique a filosofia oriental e a teoria quântica.
---.
....
Imagem de Deus na psique:
-- - . ..- . -.- .-- .-... ---. -... .........-
.~ " ~
--- A relação do homem com o mundo fenomênico tinha mudado radi-
calmente, e até o físico não era mais capaz de situar-se fora da natu-
! P~rta~to, sou da opinião que, em geral, a energia psíquica ou libido reza e observá-la. Não havia mais lugar no novo mundo de espaço-
cna _~ Ima~.~m ?e I?eus usando padrões arquetípicos e que o homem, tempo para o cientista como observador objetivo:
em consequ~ncla dl~SO, adora a força pslquica quc~ age dentro dele co-
mo algo dlvm~. Ass~, che~amo~ à discutível conclusão segundo a qual, A experiência nos tem mostrado que a luz e a matéria comportam-se
do ponto de vista pSicológiCO, a Imagem de Deus é um fenômeno real como partículas separadas e como ondas. Essa conclusão paradoxal
mas subjetivo. 36
r"+;' ~,. ••• , •• ,
"
•. ;;.>.'-~
~, obriga-nos a abandonar, no plano das grandezas atômicas, uma des-
crição causal da natureza no sistema espaço-tempo comum, e a
Jung descre.~eu .como a psicologia arquetípica ia muito além dos
A
substituí-la por campos invisíveis de probabilidades em espaços multi-
parametros da ClenCla convencional, mas, a psicologia não dispunha dimensionais que, de fato, não representam o estado de nosso conhe-
~e uma matemática consistente ou de um ponto de Arquimedes a par- cimento atuaI. Na base desse esquema abstrato de explicação há uma
tIr do qual se avaliar: concepção de realidade que leva em conta os efeitos incontroláveis que
o observador exerce sobre o sistema observado, cujo resultado é que a
Os probl~mas da psicologia analítica, conforme tenho procurado deli- realidade perde algo de seu caráter objetivo e um elemento40
subjetivo
near aqUi, levaram a conclusões espantosas até para mim. Pensei estar acrescenta-se à imagem do mundo esboçada pelo físico.
trabalhando dentro dos mais estritos limites científicos estabelecendo
f~tos,. observando, classificando e descrevendo relaçõe~ causais e fun- As abordagens subjetiva e objetiva não eram mais pólos opos-
clOn~ls, qua~do per.cebi, no final, que me envolvera numa rede de re- tos; a ciência praticada por Jung não estava mais distanciada da sur-
fIexoes qu~ Iam .mUlto além da ciência natural e se ramificavam pelas preendente inovação introduzida no coração do mundo científico.
áreas da fIlosofia, da teologia, d:l religião comparada e das ciências Jung descobrira com Filemon que o interior do homem, sua psique,
humanas em geral. Essa extrapolação, tão inevitável quanto suspeita tinha conteúdos objetivos. A pessoa podia entrar num mundo psí-
c~us.ou-me preocupações nada pequenas. Afora toda minha incompe: quico objetivo e evolucionário, ou seja, num mundo de conteúdos
te_ncla pesso.al ne.sses campos do saber, parecia-me que minhas refIe- e representações coletivas e lutar para determinar seu conteúdo -
xoes, em pnn~íplO, tam~;m eram suspeitas, porque estou profunda- como participante, como faz o físico. Para a perspectiva junguiana,
mente convencIdo de que equação pessoal" tem um efeito considerável havia uma maneira pela qual a psique e a matéria eram talvez aspec-
sobre. os ~esultad~s da observaçã~ psicológica. O trágico é que a psi-
cologIa nao pOSSUI uma matemática consistente à sua disposição mas
tos diferentes de uma mesma coisa. A física sem dúvida havia des-
apenas um cálculo de preconceitos ;subjetivos. 37 ' truído a solidez do mundo físico.
Jung d~screvia-se como empírico e fenomenó!9gºc~i~ua aborda-
gemempliic-a- pode' ier sido uma- fachadá astuta para protegê-lo do

130
131
para ser mais exato, são feitas de Deus, no inconsciente; e essas ima-
julgamento dos outros e dar-lhe validade "científica" mas ele esta-
. . ' ,gens são, sem dúvida, muito relativas. 42
va mUlto maIS comprometido com o pensamento dirigido. Este re-
presentava para ele uma poderosa lncóra no ego, que lhe permitia ' Para um certo senhor Irminger, ele escreveu:
regressar após extraordinárias incursões pela religião oriental, pelo
,pen~amento da mente primitiva, pela física atômica, pela psicose dos Antes de mais nada, gostaria de agradecer todo seu trabalho em de-
pacIentes, por seu próprio inconsciente. Ele não entendia como o monstrar como a doutrina católica completa e aperfeiçoa meus traba-
Oriente podia abrir mão do ego e achava que, para o homem oci- lhos psicológicos. O senhor também se pergunta - com razão, a seu
dental, essa perda seria irreparável. Numa expedência documentada ver - por que não declaro minha crença em Deus e não volto ao seio
da Igreja ... Meu caro senhor! Minha busca é ciência, não a apologéti-
durante um.a viagem à África, em 1925, teve um sonho que sugeria
ca, nem a filosofia, e não tenho nem a capacidade, nem o desejo de
que se contmuasse lá por mais tempo, corria o risco de ser tragado fundar uma religião. Meu interesse é cientifico; o seu, é evangélico ...
pelo "c.on~i!lente.escuro", "r~gredir" e ser engolido por seu próprio Como cientista, eu tenho que resguardar-me de acreditar que estou de
lado pnmItIvo atIvado. É mUlto interessante obs(:rvar que a relutân- posse da verdade final. 43
cia de J~ng em desistir do ego no processo oriental é compartilhada
pelos fíSICOS, que se vêem diante de uma escolha similar. Nesse pon- Reich se queixava de ser chamado de místico porqU(~ investiga-
to, Fritjof Capra comentou: va áreas que tinham sido prerrogativa da religião. Defendia ardoro-
samente seu direito, como cientista, de investigar o "misticismo" de
Os míst!~os nã? e~tão satisfeitos com uma situaçiio análoga à verifica- modo funcional. Numa postura paralela, Jung sofreu ataques mal-
da na flSlca atomlca, em que o observador e o observado não podem dosos e defendia-se como empírico:
ser separados, embora ainda possam ser diferenciados. Eles vão mui-
to mais longe, e no estado de meditação profunda chegam a um ponto Os críticos têm às vezes me acusado de manifestar tendências "filosó-
onde a distinçã? ~ntre o~servador e observado desaparece completa- ficas" ou até "teológicas", acreditando que o meu desejo é explicar
mente, onde sUjeito e obJeto se fundem num todo unificado e indife- tudo "filosoficamente" e que minhas perspectivas psicológicas são "me-
r~nciado. É assim que dizem os Upanhishades: "Onde existe uma dua-
tafísicas". Mas uso determinado material filosófico, religioso e44histó-
hdade, um vê o outro, por assim dizer, sente o cheiro do outro, sente rico com o exclusivo propósito de ilustrar fatos psicológicos.
o_gosto do outr~ ... Mas onde tudo se tornou apenas o próprio ser, en-
tao de q.ue maneira ele vê, a quem ele vê? Então de que maneira ele sen- o desenvolvimento de uma psicologia sólida, e ao mesmo tem-
te o cheiro, de quem ele sente o cheiro? Então de que maneira ele sente
o gosto, de quem ele sente o gosto?". po científica e irrestrita em sua função de investigar, continua sendo
Essa é, então, a apreensão final da unidade de todas as coisas. É al- uma meta fugidia. Mas a psicologia não pode ser governada por re-
cançada - assim nos dizem os místicos - num estado de consciência gras das outras disciplinas. Ela precisa desenvolver seus próprios pa-
onde a individualidade do ser se dissolve numa unidade indiferencia- drões singulares de avaliação. E Jung, que há tanto tempo deixou
da, onde o mundo dos sentidos é transcendido e onde a noção de "coi- para trás as aparentemente sólidas margens do mundo científico ra-
sas" é ultrapassada. 41 cional, descobriu gue stu!..própria jornada sem parâmetros tinha Qª-
ralelº -'!()~ apreseritavam~o{j'-eíisa4õie's-(fã:fíSi.Ca -inoderná~ A"'Pr6-
Ao l?ngo dos anos, Jung recebeu muitas cartas de padres, algu-
mas elog~an?o seu trabal~o, outras manifestando perturbação dian-
:pfia ciência é um "mito'; de nosso tempo, e neste mito juligtradu- -
ziu os mitos antigos:' ,' .
te da ausenCIa de sua profissão de "fé". Ele escreveu ao pastor Ernst
Jahn: A psicologia, como uma das múltiplas expressões da vida psíquica, ope-
ra com idéias'que, por sua vez, são derivadas de estruturas arquetípi-
Quando falo de Deus: sempre falo como psicólogo, como enfatizei ex- cas e, nesse sentido, geram, até certo ponto, uma espécie mais abstra-
?ressamente em muitos lugares, em meus livros; para o psicólogo, a ta de mito. Portanto, a psicologia traduz a fala arcaica do mito numa
J..~a~~IIl~9$"Reu~_~_1l~Ja!~ ps~~~~§!.s.,o..:.Ele nada pode dizer sobre a mitologia moderna - que, evidentemente, ainda não foi reconhecida
realIdade metafísica de Deus,'pOrque isso excederia muito os limites como tal - e que constitui um elemento do mito "ciência". 45
de sua t~~ria ?Ó con?ecime~to. Como empírico, conheço apenas as ima:,
g.ens ongmánas do mconSClente que o homem tem sobre Deus O\iqüe,
133
132
Em seus esforços para traçar uma psicologia científica, distinta 16. Wilhelm Reich, Elher, God and Devil, tradução Mary Boyd Higgins e The-
da metafísica, Freud, Reich e Jung alcançaram metas significativas. rese Pol (Nova York: Farrar, Straus & Giroux, 1973), p. 83.
Freud cinzelou um lugar para a moderna psicologia, distinto da bio- 17. lbid., p. 95.
logia, da filosofia, da religião, que ameaçavam engolir a nova disci- 18. Ibid., p. 84.
19. Ibid., p. 91.
plina. Reich, com sua atenção voltada para o corpo, foi capaz de re- 20. Ibid., p. 88.
lacionar a psique à experiência biológica do homem. O funcionalis- 21. Wilhelm Reich, Character Ana/ysis, 3~ edição, tradução Theodore P. Wolfe
mo de Reich - como o empirismo de Jung -proporcionou-lhe uma (Nova York: Farrar, Straus & Giroux, 1973), p. 83. [Em português, Análise do cará-
latitude científica para investigar experiências que, por sua própria na- ter.]
tureza, dissolviam quaisquer limites nítidos entre o observador e os fe- 22. Reich, Funclion of the Orgasm, pp. 24-25.
23. Reich, Ether, God and Devil, p. 46.
nômenos observados. Em seu esforço para compreender o relaciona- 24. Ibid., p. 47.
mento entre psique e matéria, Jung pôde relacionar a psicologia à fí- 25. Ibid.
sica moderna e às disciplinas espirituais. Jung Gonsiderava que a espi- 26. Wilhelm Reich, Cosmic Superimposition, tradução Mary Boyd Higgins e
ritualidade, assim como a sexualidade, tinha fundamento no incons- Therese Pol (Nova York: Farrar, Straus & Giroux, 1973), p. 222.
27. lbid., pp. 278-279.
ciente, era inseparável da condição humana e que a pessoa poderia pas- 28. R. D. Ranade, Mysticism in lndia: The Poet-Saints of Maharashtra (Al-
sar por estados místicos sem abandonar funçêíes importantes, como bany, N.Y.: State University of New York Press, 1983), p. XIII.
a inteligência crítica. Na qualidade de exploradores do século XX, es- 29. Erich Neumann, "Mystical Man", tradução Ralph Manheim, Spring 1961
ses três homens enfrentaram a tarefa de discernir o racional do irra- (1961): 9-49.
cional e de formar uma atitude nova e consistente com respeito ao vio- 30. Fritjof Capra, The Tao of Physics (Nova York: Bantam, 1976), p. 129.
[Em português, O Tao da ffsica.]
lento e ao benigno no inconsciente do homem de seu século. (ffic:. G. Jung eYi ~J>~uli, The Interpretation of Nalure and the Psyche Ihlova
York:'-Píínflleon;-I955). - . ---- _. .. '. _.- --~,
~-"-<. 32. C".C;:-)üni;'SYmbols of Transformalion: An Ana/ysis of the Prelude to
Notas a Case of Schizophrenia, 2~ edição, tradução R. F. C. Hull, Bollingen Series XX,
vol. 5 (Princeton: Princeton University Press, 1956), pp. 18-19. [Em português, Sím-
bolos da transformação.)
1. Frank J. Sulloway, Freud: Biologisl of lhe Mind - Beyond lhe Psychoa- 33. Reich, Reich Speaks of Freud, p. 263.
nalysl Legend (Nova York: Basic Books, 1979), p. 183. 34. C. G. Jung, Memories, Dreams, Reflections, edição revista, tradução de
2. Cito em ibid., p. 217. Richard e Clara Winston, org. Aniela Jaffé (Nova York: Pantheon, 1973), p. 152.
3. Ibid., p. 217. [Em português, Memórias, Sonhos e Reflexões.]
4. Sigmund Freud, Origins of Psychoanalysis: Lel/er to Wilhelm Fliess, Drafts 35. lbid., p. 168.
and NOles, 1887-1902, org. Marie Bonaparte, Anna Freud e Ernst Kris, tradução 36. Jung, Symbo/s of Transformalion, p. 86.
Eric Mosbacher e James Strachey (Nova York: Basic Books, 1954), p. 264. _ 37. C. G. Jung, !he Structure and Dynamics of lhe Psyche, 2~ edição, tradu-
S. Sulloway, Freud, p. 422. çao R. F. C. Hull, Bollingen Series.xx, vol. 8 (Princeton: Princeton University Press,
6. lbid., p. 426. 1969), p. 216.
7. lbid., p. 419. 38. lbid., p. 217.
8. Erich Neumann, Creative Man: Five Essays: Kafka/Trak/Chagall/Freud/ 39. Ibid.
Jung, tradução Eugene Rolfe, Bollingen Series LXI, vol. 2 (Princeton: Princeton 40. Ibid., p. 229.
University Press, 1982), p. 238. 41. Capra, The Tao of Physics, p. 128.
9.lbid. 42. C. G. Jung, "Letter to Pastor Ernst Jahn, September 7, 1935", iÍl C. G.
10. Wilhelm Reich, The Funclion oflhe Orgasm, tradução Theodore P. Wolfe Ju~g Lel/ers, tradução R. F. C. Hull, org. Gerhard Adler e Aniela Jaffé, Bollingen
(Nova York: Meridian, 1970), p. 31. [Em português, A função do orgasmo.) Senes XCV, vol. 1: 1906-1950 (princeton: Princeton University Press, 1973), p. 195.
11. Ibid., p. 18. 43. C. G. Jung, "Letter to Herr Irminger, September 22,1944", in C.·G. Jung
12. Wilhelm Reich, Reich Speaks of Freud (Nova York: Farrar, Straus & Gi- Lelters, vol. 1, p. 346.
roux, 1967), p. 4. 44. Jung, Sttuclure and Dynamics, p. 278.
13. lbid., p. 121. 45. C. G. Jun~, The Archetypes .and lhe Colleclive Unconscious, tradução
14. lbid., p. 83. R. ~. C. Hull, org. SI~ Herbert R~ad. Michael Fordham e Gerhard Adler, Bollingen
IS. Wilhelm Reich, The Mass Psychology of Fascism, tradução Vincent R. Car- Senes XX, vol. 9 (Pnnceton: Pnnceton University Press, 1980), p. 179.
fagno (Nova York: Farrar, Straus & Giroux, 1970), p. 126. [Em português, A psico-
logia de massas do fascismo.)

134
135
Capítulo 11 çonhecer aquilo que não conhece - algo que está sempre presente,
sempre acontecendo. É um velho em busca de sua vinculação com
um presente universal. Em sua jornada vitalícia, adquiriu poderes
e discípulos que se concentraram em seus poderes específicos, mas
isso era secundário e estava bem longe de seu impulso interior e de
seu compromisso vital.. Em vez de procurarem conhecer o que não
Alquimia e orgônio conhecem e encontrar seu vínculo interior com o que está sempre acon-
~ecendo agora, seus discípulos estão mais interessados em aprender
~~a "feitiçaria" , que é sem dúvida de grande valor, mas não é o mes-
!lló quê embarcar na própria jornada interior. Portanto, a descober-
ta das mandalas não lhes ocorre de modo orgânico (como produto
espontâneo do inconsciente), de modo que sintam a verdade espon-
taneamente de forma verdadeira. Em vez disso, torna-se algo que
De acordo com Marie-Louise von Franz, o problema psique/ma- eles aprendem, mas a que nunca foram levados por si mesmos. Não
téria não foi resolvido. Ela e J :mg sentiam que, provavelmente, o pagaram todo o preço pelo aprendizado interior, e por isso conti-
inconsciente tem um aspecto material, e que é assim que ele pode nuam não iluminados.
se conhecer como matéria. A alquimia não·é apenas um brinquedo Em Sobreposição c6smica, Reich nos mostrou uma situação se-
arqueológico, trata diretamente da relação entre a psique e a maté- melhante. Ele desenhou a·s imagens que observava na natureza e no
ria, ainda não resolvida, aumentando o mistério. l céu, ilustrando a sobreposição cósmica de uma forma sobre outra.
Tanto Jung como Reich foram alquimistas. Certa vez, Jung con- Ele havia estudado as formas da natureza durante anos, e fizera dia-
tou uma história a esse respeito que, indiretamente, se referia a ele gramas, mas os outros não foram capazes de acompanhá-lo. Ele es-
mesmo, mas também pode servir, com algumas modificações, como tava em seu mundo próprio; ele via o que os outros não viam, e não
história sobre Reich. Era sobre um velho ermitão que vive numa ca- sabiam como segui-lo nesse percurso. Por isso, ele escreveu:
verna e é considerado um feiticeiro pelos curiosos. Os discípulos
reúnem-se em torno dele na e!!perançade aprender seus segredos, mas o oceano cósmico de orgônio, que foi pesquisado com alguns deta-
o velho, que medita por muito tempo, está perseguindo aquilo que lhes neste livro, segue seu eterno trajeto, quer tenhamos ou não cons-
ainda não conhece e aquilo que se oculta além de suas meditações. ciência dele, quer compreendamos ou não o flagelo do câncer, que)
a raça humana exista ou não. Não parece fazer diferença. Compreende·
Para ajudar em sua busca, passa a fazer diagramas com giz. Depois s~ bem o estado de espírito do monge eremita entregue às orações, qUt
de muitos esforços, sentiu alguma satisfação quando, certo dia, de- ViVe apenas para regressar a Deus. Conhecendo-se o oceano cósmicc
senhou um círculo e depois colocou um quadrado dentro dele. Jung de orgônio, tem-se uma melhor'com.preensão e uma melhor percepçãe
continua o relato: da natureza essencialmente ascética de todos os principais sistemas re·
ligiosos. Nada importa. 3
Os discípulos estavam curiosos; mas o máximo que podiam compreen-
der é que o velho se debruçava sobre alguma coisa e dariam qualquer Em 1928, Jung recebeu uma tradução do texto taoísta alquími·
coisa para saber o que ele fazia. Mas, quando eles lhe perguntaram: co, O s~gredo da flor de ouro, de seu amigo Richard Wilhelm, qm
"O que está fazendo aí?", ele não respondeu. Depois eles descobri- lhe pedm para escrever o prefácio. Embora Jung ainda não estivess{
ram os diagramas na parede e disseram: "Então é issol" - e todos envolvido com a alquimia, o manuscrito foi-lhe de grande ajuda err:
copiaram os diagramas. Mas, ao fazê-lo, inverteram toda a seqüência
do processo, sem perceberem: antecipavam o resultado na esperança seus estudos'. A alquimia foi para ele uma ponte para as antigas tra·
de fazer repetir-se o processo que levara àquele resultado. Assim acon- dições gnósticas, cuja simbologia coincidia com suas observações de
teceu no passado, e continua acontecendo ainda hoje. 2 inconsciente coletivo, como se revelava nos sonhos de seus clientes.
Em épocas anteriores, quando o estudo das propriedades físicas d~
O ancião esquisito não está absolutamente voltado para o exte- matéria ainda estava na infância, a alquimia surgiu como predeces·
rior. Ele é professor só secundariamente. Seu inte.resse primário é sora primitiva da química moderna. Terra, enxofre, mercúrio, sal

136 137
De acordo com a antiga concepção alquímica, a terra emerge das águas
e outras substâncias conhecidas eram combinadas, aquecidas e des-
caóticas e originárias, da massa confusa; acima dela está o ar, o ele-
tiladas em conjunção com o alinhamento das estrela~.. A alquimia - mento volátil que sobe da terra. Sobre ela está o fogo, a substância
vinculou Jung a uma tradição mística permanente. Ele descobriu neste "mais fina", ou seja, o pneuma ígneo que já toca o trono dos deuses. I I
ob~curo procedimento uma grande reserva de referências simbólicas
'inestimáveis, que elucidavam a vida psíquica de homens e mulheres Podemos imaginar alguém olhando para a retorta aquecida e
do século XX. Segundo ele "A alquimia descreVt:, não apenas em assistindo o vapor subir como uma nuvem ao redor do topo de uma
'linhàs gerais, mas muitas vezes nos mais impressionantes detalhes, montanha, assim como as essências espirituais se reúnem, só para
-os mesmos fenômenos psicológicos que podem ser observados na aná-
depois se condensarem num destilado. Os elementos c:scuros são ilu-
1ise dos processos inconscientes".4 Num sonho de um de seus clien-
minados. Em processos alquímicos subseqüentes, o sol e a lua, o mas-
tes, por exemplo, uma águia voltou a cabeça completamente para
culino e o feminino, o quente enxofre e o úmido e f~io mercúrio são
trás, enquanto voava, e comeu suas próprias asa:" imagem esta que
levados a um casamento divino, à união entre o rei e a rainha.
representa uma inversão, na qual uma ação cria seu oposto. Jung
encontrou essa mesma imagem numa obra alquímica. s
É muito bizarro, comenta von Franz, que um objeto tão comum
Para Jung, a alquimia não era apenas uma s,érie de experimen- como uma pedra possa ser o objetivo do trabalho alquímico: "Uma
tos químicos, mas lidava com "algo ,que lembrava os processos psí- pedra não come, não bebe, não dorme; simplesmente permanece ali
quicos expressos em linguagem de pseudoquímic:a".6 O alquimista por toda a eternidade" .12 A pedra representa uma espécie de perso-
não estava em busca do ouro comum, mas do omo filosófico conti- nalidade objetiva, um Self permanente que, a partir do sofrimento
do na pedra, símbolo do Self irredutível, "a essl!ncia in~orruptível -e confronto com o inconsciente, se fixa como presença neutra. 13 Ao
-do homem que sobrevive à morte, uma parte essencial do ser huma- pesquisar a literatura alquímica dos séculos XVI e XVII, Jung en-
no que pode ser preservada". 7 Uma v,ez qlle a matéria era ':l!ll mis- controu alguns praticantes que consideravam a natureza pessoal e
tério para o homem medieval, servia de tela onde projetar suas ex': subjetiva do trabalho. Entre eles, Gerald Dom, em especial, foi ca-
· periências inconscientes. "A verdadeira natureza da matéria", es- paz de apreender as implicações psicológicas do trabalho, ao insistir
'creveu Jung, "era desconhecida do alquimista: elt: só a conhecia por sobre o bom caráter dos praticantes, os quais deveriam ter uma ati-
indícios. Na medida em que procurava investigá-la, projetava o in- tude ascética para com o mundo. }\través do opus, do trabalho, o
consciente na escuridão da matéria, a fim de iluminá-la". 80 mer- alquimista buscava primeiro a unia mentalis, que Jung interpretav~ -
cúrio era particularmente fascinante, pois apresentava propriedades como autoconhecimento.
ao mesmo tempo líquidas e sólidas" que sugeriam mudanças mila- Num primeiro estágio, a tentativa era de Hbertar a alma de seu,
grosas. Para o âlquImIsta, 'o mercúrio se tornou "o espírito criador aprisionamento na matéria. O homem está cativo por sua falta de
do mundo , oculto ou cativo na matéria".9 Como um dragão místi-
- consciência, por suas açoes inconscientes, é arrastado por forças ar-
'co, Meicurius devora-se a si próprio e morre apenas para renascer quetípicas que afuam sobre ele, cativo'na carne deste mundo. O pri-
como pedra filosofal. Mercurius começava e completava o trabalho meiro estágio·;-·para o praticante, é enfrentar sua própria escuridãC?,
alquímico. o nigredo, apropriar':sede SUa própria sombra, que o aprisiona na
O alquimista preparava e aquecia materiais, tais corrio terra e ferríveldepressão e enfrenta o "corvo negro", o demônio. Se a al-
mercúrio, numa retorta, da qual esperava extrair uma essência, o es- ma está livre, é necessário um envolvimento com Mercutius. Mercu- -
pírito até então contido na matéria; e através de muitas destilações , rius é a personificação do inconsciente coletivo. Alguma coisa fora
assistia à separação do caos em quatro elementos: terra, fogo, ar e do nosso controle deve irromper e envolver-nos.·efÔpus A/chymi-
água. O alquimista concebia a criação como ela era representada no
,cum descreve o segredo da criação, "que começou com a incubação
Gênese, onde, no princípio, Deus se movia sobre a escura face das das águas" .14 Mercurius, como espírito vivo e universal, desce à terra
águas. A quadratura do círculo fascinava a mente medieval. Como
para misturar-se com o enxofre impuro e fica cativo. Só pode ser
símbolo do processo alquímico, representava a divisão da unidade
libertado pela arte da alquimia:
caótica original nos quatro elementos e sua reordenação numa uni-
dade mais elevada. 10

138 139
"Mas onde está esse Mercúrio dourado, essa umidade radical, que, dis-
solvida em enxofre e sal, torna-se o germe animado dos metais? Ah, dos grilhões da armadilha do mundo, ela deve então reconhecer suas
ele está aprisionado e contido com tanta firmeza que até mesmo a na- próprias projeções e abordar o dragão e arriscar morrer ou ficar psi-
tureza não pode tirá-lo da dura prisão se a Arte Mestra não abre cótica. O erivOlvim§Iifó-cófu -o-fundamento escuro do Self propor-
caminho."l$ . clonauma-novâce!1tra窺 <lQ Self, menos confinada e com mais do
que uma simples orientação deegõ. O praticante terá também ad--
A luz vem do sol com um espírito sábio e ensina ao homem aquela quirido uma autoconfiança e uma sensação de segurança, uma cer-
arte pela qual "a alma aprisionada nos elementols" é libertada',Mer- teza interior. A emergência dessa totalidade pode sef acompanhada
curius, embora considerado um espírito de luz, é um ser de opostos na produção espontânea das mandalas, de imagens unificadoras que
e contém também o lado escuro, o Hermes subterrâneo, a serpente provêm do inconsciente.
que sobe e desce, um uroboro (símbolo circular de uma serpente ou Embora a pedra filosofal ou totalidade psíquica pareçam bas-
dragão engolindo a pióptta~cauda), que se gera a partir de si mes- tante difíceis, alguns alquimistas viram um estágio posterior, que foi
mo. Nas trevas, ele vive como serpente. 16 chamado deunus mundus. Unus Mundus era o mais alto grau de
conjunção, representando a união do homem com o unus mundus
Afirma-se, em geral, que Mercurius é o arcanum, a prima materia, o - "o mundo potencial do primeiro dia da criação, quando nada ainda
"pai de todos os metais", o caos primevo, a terra do paraíso, a "ma- existia 'in actu', isto é, a duplicidade ou a pluralidade, mas apenas
téria sobre a qual a natureza trabalhou um pouco mas, apesar disso, existia o Um". 19 Esse mundo potencial é "o fundamento eterno de
deixou imperfeita". É também a ultimo materia, a meta de sua pró- todo ser empírico, assim como o Self é fundamento e origem da per-
pria transformação, a pedra, a tintura, o ouro .filosofal, o carbúncu- sonalidade individual, passada, presente e futura". 20 O trabaIho da
lo, o homem filosófico, o segundo Adão, o análogo de Cristo rei, a
luz das luzes, o deus terrestris, na verdade, a própria divindade ou sua alquimia era levar à união dos opostos e estabelecer uma condição
contraparte perfeita ... Mercurius é também o processo que intermedia livre dos opostos, como nos conceitos orientais de Atman e Tao. O
e por meio do qual ele é efetivado. Ele é "princípio, meio e fim do terceiro estágio une o adépto ao unus mundus, psicologicamente en-
trabalho". Portanto, é chamado de Mediador, Servator e Salvador. tendido como síntese da consciência com o inconsciente.
É um mediador como Hermes. l ? Reich não tinha qualquer intenção alquímica quando começou
o trabalho que o levou à descoberta do orgônio. Apesar disso, tinha
}un...garg!lmentava que, para abordar Mercurius, o inconscien- um referencial psicológico que o tornava estranhamente semelhante
te, era preciso apoderar-se dele de alguma maneira, através da ima- aos alquimistas medievais, cuja maioria não contava com conceitos
ginação ativa. No processo dá imagiriação ativa, toma-se algum pro- subjetivos da psique. Assim como eles podiam projetar-se no misté-
-du[o~-do inéonsciente e confronta-se-o: rio da matéria, Reich estava intrigado com sua investigação sobre
o nascimento da vida a partir da matéria inanimada. Finalmente, em
Tome o inconsciente em uma das formas mais acessíveis, uma fanta- seu laboratório, estava longe dos pacientes, com todo o equipamen-
sia espontânea, um sonho, uma disposição irraciona,l de ânimo, um to de que necessitava. Oslo foi para ele uma oportunidade paradi-
afeto ou algo desse tipo, e opere com isso. Preste atenção especial nis-
so, concentrando-se e observando objetivamente suas modificações.
síaca. A utilização de lentes poderosas no trabalho com microscópio
Não poupe esforços em dedicar-se a essa tarefa; acompanhe as trans- era·outra alternativa para que pudesse sair do foco e começar a esta-
formações ulteriores da fantasia espontânea, com atenção e cuidado. belecer um contato maior com sua quarta função, a intuição, via para
Acima de tudo, não permita que coisa alguma exte~na, que não per- o inconsciente. Na segunda metade dos anos 30, Reich mudou. Ele
tence ao processo, intrometa-se nele, pois a fantasia tem "tudo de que ultrapassara sua metade de vida, e outras energias e interesses come~
precisa". Desse modo, tem-se & cçrteza de não interferir com arbitra- ç~ram a se estabelecer. Na segunda metade da vida, o homem volta-
riedade consciente e de dar curso livre ao inconsciente. Em resumo, se para dentro e começa a desenvolver-se naquelas áreas até então
a operação ai química parece-nos equivaler ao processo psicológico da ignoradas e subdesenvolvidas, segundo a teoria junguiana dos tipos
imaginação aliva. ls e seus oito modos possíveis de funcionamento psicológico. Tanto Jung
A busca da unjo mentalis, ou auto conhecimento, primeiro mer- como Reich começaram a trabalhar seriamente, com a alquimia e
gulhá- nonlgredo, a noite escura da alma. Mas se a alma sé separá o orgônio, respectivamente, no final da década de 30.

140
141
Em trabalhos posteriores, Reich acrescentou caldo de carne,leite
Ao associar o trabalho de Reich ao processo alquímico, não quero e gema de ovo como nutrientes para a mistura de bíons, além de car-
de modo algum menosprezar seu trabalho científico ou insinuar que bon.o sob várias formas, tais como pó de carvão e fuligem aquecida
este trabalho era acientífico ou "místico" e que de estava simples- até Incan~es.cer . .Lo~ose convenceu de que a vida era criada a partir
mente se enganando. Não sendo cientista, não me sinto qualificado da maténa Inorgâmca. '
para avaliar seu trabalho científico. Sua apressada mfutação da ciência ,É duro imaginar cientistas modernos fervendo terra em recipientes
ortodoxa é um outro exemplo de perseguição ao alquimista. A hie-
fe~ha~os e acrescentando sal. É uma imagem mais adequada a:o àl-
.rarquia eclesiástica da ciência americana, em conluio com 'o Estado, qUlmlsta do século XVII. Este não pensava suas diligências em ter-
considerou necessário queimar seus livros. Espera-se que um dia al-
mos psicológicos, mas estava fascinado pelo mistério da ~atéria e
guém possa recuperar seu trabalho ou documenta.r os erros de seus
era capaz de projetar nela o processo inconsciente desencadeado e
procedimentos. No mínimo, seu trabalho deveria receber um fune-
estimulado por seus esforços e deslumbramento genuínos. Reich de
ral científico decente, em vez de ter seus restos of,erecidos a abutres
maneira semelhante, projetou seu inconsciente no esforço científi':
e hienas. cOo. Ao estudar o movimento, ta~to no microscópio como no céu,
Reich tentou estudar as correntes vegetativas nos protozoários
em microscópio. No preparo dos protozoários, e:ra orientado pela chegou a formular uma noção de interligação e significado na natu- .
assistente de laboratório do Instituto de Botânica de Oslo, obedecia . re~a,. e ta}vez seus anos no laboratório concorressem para a alqui-
ao procedimento padrão de colocar feno e água juntos e verificar mIa Intenor de sua natureza.
a lâmina depois de 10 a 14 dias. 21 Quando indagou como os ani- , -Ósalto mais dramático, depois de ter refutado a teoria dos ger-
mais entravam naquela infusão de água e feno, foi lembrado da teoria ml~s por sua postulação de uma energia de vida difusa, começou com
dos germes. Mas estudando continuamente a grama embebida em um erro de laboratório:
água do microscópio, Reich acabou por se convencer de que o teci-
do da grama estava transformado p,m vida animal, após um estágio Em janeiro de 1939, uma de minhas assistentes estava demonstrando
de transição formado por fases de desenvolvimeJlto, embora estas o experimento de incandescência para um visitante, no laboratório de
observações entrassem em choque com a teoria dos germes. A fim Oslo. Por engano, ela pegou o frasco errado no esterilizador e em vez
de impedir que os organismos se infiltrassem em seus preparados, de ,terra, aqueceu areia do mar até que incandescesse, Dois dias de-
como os germes do ar, ele ferveu esses preparados por períodos de . pOIS, a cultura estava começando a formar dentro do caldo uma solu-
15 a 30 minutos, em recipientes de vidro fechados. Para sua surpre- ção de cloreto de potássio que, quando inoculada num meio de ovo
sa, "os preparados fervidos exibiram imediatamente formas novas e agar [alga], apresentou um crescimento amarelo, No microscópio
e mais ativas de vida do que os preparados não fervidos, ap6s dias es~e novo tip,o de cultur~ aparecia como vesículas grandes e pouco mó:
ve!~ d,e energIa, d~s ~UaIS emanava um azul intenso, A cultura era "pu-
de incubação" .22 ra ,1St? é, consistIa de apenas uma grande espécie de formação ...
Quando Reich ferveu terra nos recipientes com cloreto de po-
Esses blOns receb~ram a designação de BA (Bolsas de Areia). Eram
tássio e gelatina, os estágios preliminares da vida, as pseudo-amebas dotados de proprIedades extremamente interessantes.
exibiram movimento lento e trêmulo sem qualquer fluxo interior - O efeito dos bíons BA sobre bactérias putrefatas, protozoários e bacilos-
ou seja, "mecânico". Reich chamou essas formas de vida de "bíons" . T era mu~to mais poderoso do que o dos outros bíons, Quando esta-
Para incentivar a transição das mesmas para a vida animal, acres- vam prÓXImos de células de câncer, matavam ou paralisavam-nas mes-
centou leutrium, colesterol e clara de ovo: mo a uma distância aproximada de 10 microns,24 '

Apenas o leutrium com cloreto de potássio não produziu células, mas


só formou regularmente tubos de vários tipos. Também não há movi- ~eich tin?a, conhecimento do fenômeno de radiação dotado de
mento orgânico, mas apenas crescimento e germinação, aparentemen- p~~pneda?es u?Icas. Qu~ndo foram feitos testes de radiação, por um
te causadas pela ingestão de fluido. Clara de ovo que só foi impregna- flSlCO ~adIOloglsta, os bIOns BA não reagiram sob um eletroscópio
da de KCI (cloreto de potássio) não, resulta em qualquer formação de de rádIO, mas, num tubo, os bíons BA manipulados pelo experi-
células. Contudo, clara de ovo mais leutrium mais KCI mais colesterol ~entador avermelhavam a pele em poucos minutos. O estudo dos
induzem a formação de células. 23 bIOns BA também produziu conjuntivite nos olhos de Reich.

143
142
o aposento em que os bions BA eram mantidos tinha que ser Reich observou também que as culturas transmitiam umf;l carga
continuamente ventilado, suas janelas tinham que ser abertas, senão elétrica à borracha e outr~s substâncias, como papel, lã de algodão
os pesquisadores ficavam com fortes dores de cabeça. O ar ficava e celulose, que, com a absorção dessa energia, podiam enrolar uma
"pesado" e os objetos de metal tornavam-se altamente magnéticos. folha vista por um eletroscópio. "Umidade, penumbra, combinada
Ao fazer experiências com lâminas fotográficas, Reich descobriu que com brisa forte ou um toque da substância por alguns minutos fa-
até mesmo as lâminas de controle, sem cultura, instaladas na mesma ziam o efeito desaparecer. "30
sala, tornavam-se embaçadas como as outras, Icomo se a energia es- ~I!ich chamou essa energia de orgônio, pois a descoberta decor-
tivesse presente em todas as partes. ~~rade seu trabalho com o orgasmo, e porque a energia era absorvida
Reich transferiu suas culturas para um porão escuro, onde, de- pela matéria orgânica. Ele decidira confinar a radiação construindo
pois que os olhos se acostumavam à escuridão, o aposento não pare- .uma caixa metálica por dentro, para refletir e conter a radiação, e
cia mais negro, mas azul-acinzentado: "Vi vapores parecidos com de matéria orgânica por fora, para reduzir ou impedir a transmissão
nevoeiro, fiapos de luz azul e pontos que passavam rapidamente de da radiação para fora. Com a cultura instalada dentro da caixa, Reich
um lugar para outro. Uma luz violeta intensa parecia vir das paredes "conseguiu observar com nitidez o vapor azul deslocando-se além
e dos objetos que estavam na sala" .25 Depois de duas horas, Reich de faixas e pontos de luz brilhantes, branco-amarelados. Esses fenô-
conseguiu ver "com muita nitidez uma radiaçiio que saía da palma menos foram confirmados por várias pessoas que serviram de sujei-
de minha mão, das mangas de minha camisa e (olhando no espelho) tos nas repetições do experimentú" .31 Reich ficou surpreso quando
do meu cabelo. Gradualmente, a luminosidade azul envolveu meu viu os mesmos fenômenos acontecerem com a caixa vazia, após ela
corpo e os objetos da sala, como um vapor de neblina, que se deslo- tcr sido bem ventilada e limpa. Outras caixas construídas da mesma
cava devagar, de cor cinza-azulada".26 Reich descobriu que a radia- maneira produziram os mesmos efeitos visuais.
ção era muito irritante para o nervo óptico; e outras pessoas à sua Nos anos 40, durant~ uma viagem de férias de verão pelo Mai-
volta, expostas aos mesmos fenômenos, viram praticamente as mes- ne, Reich observou o lampejo intermitente das estrelas e começou
mas coisas. Um comerciante que se expôs ao trabalho de Reich co- a questionar a validade do conceito de que as estrelas piscavam por
mentou: "Sinto como se tivesse ficado olhando o sol por muito causa da difusão da luz. Olhou para o céu através dt~ um tubo de
tempo".27 madeira e, por fim, surgia sua concepção da energia orgônica:
Na realidade, a energia solar poderia explicar uma boa parte do
pensamento de Reich: a "irritação dos olhos, a conjuntivite, o aver- Comecei a olhar cada estrela separadamente, com um tubo de madei-
melhamento rápido da pele e seu subseqüente bronzeamento. (Eu rea- ra, num ponto não intencionalmente direciom~do para um ponto azul
lizara os experimentos no inverno e no começo da primavera de 1939, escuro no céu, entre as estrelas. Fiquei espantado ao constatar um ace-
lerado lampejo seguido de flashes de raios finos de luz, no campo cir-
não tinha ficado exposto ao sol e, no entanto, estava com o corpo cular do tubo. O fenômeno se desfez gradualmente, conforme eu mo-
todo bronzeado.) Sentia-me extremamente bem-disposto, 'forte co- via o tubo na direção da lua, e era mais intenso nas porções mais escu-
mo um urso' e vegetativamente cheio de vida, em todos os senti- ras do céu, entre as estrelas. Eram o mesmo lampejo e as mesmas raja-
do" .28 O medo de Reich de ser exposto a uma radiação perigosa ce- das de luz, com pontos e faixas, que eu havia observado tantas vezes
deu, e ele relaxou suas medidas de segurança. Estava impressionado em minha caixa. Coloquei uma lente de aumento no tubo, para am-
por ter-se deparado com uma energia cuja atividade biológica era pliar os raios. De repente, minha caixa perdeu seu mistério. O fenô-
tão elevada. Qual era a natureza dessa energia, como poderia ser meno se havia tornado bastante compreensível: a radiação em minha
medida? caixa livre de cultura originava-se na atmosfera. A atmosfera contém
uma energi~ da qual eu não tinha conhecimento prévio. 32
Certo dia, a idéia de "energia do sol" ocorreu-me de repente, forne-
cendo assim uma solução simples, que s6 a princípio parecia absurda: Encontramos em Reich, portanto, fortes paralelos com os al-
os b(ons BA tinham se originado da areia do mar. Mas areia do mar quimistas, que aqueciam a terra em retortas fechadas, usavam sal
não é nada mais que energia solar solidificada. A incandescência e a e estudavam o nigredo ou a decomposição e a dissolução. Reich che-
dilatação da areia tinham, uma vez mais, liberado essa energia de seu gou enfim a ver que aquilo que os homens tinham chamado de éter
estado material. 29 que preenche o espaço e existe em todo o universo, era o onipresen~

144 141
te, observável e demonstrável tipo de energia que ele chamou orgô- te livro baseia-se numa série de palestras dadas por von Franz em 1959, no Instituto
C. G. Jung, em Zurique.
nio. Os alquimistas também sabiam da existência do éter azul, o la- 2. C. G. Jung, The Archetypes and the Collective Unconscious, tradução R.
pis aetherius, a Pedra Filosofal, considerada como o mesmo fenô- F. C. Hull, org. Sir Herbert Read, Michael Fordham e Gerhard Adler, Bollingen
meno. Em uma de suas mais vigorosas passagens do livro O assassi- Series XX, vol. 9 (Princeton: Princeton University Press, 1980), pp. 129-130.
nato de Cristo, Reich via o homem numá armad.ilha. "A armadilha 3. Wilhelm Reich, Cosmic Superimposition, tradução Mary Boyd Higgins e
Therese PoI (Nova York: Farrar, Straus & Giroux, 1973), p. 278.
é a estrutura emocional do homem, sua estrutura de caráter" ,33 ele 4. C. G. Jung, The Psychology ofthe Transference, Bollingen Series XX, vol.
nasce dentro dela e herda-a de sua cultura. A 'illquimia também via 16 (Princeton: Princeton University Press, 1974), p. 34.
o mundo da matéria como uma armadilha. Mercurius aprisionado 5.. Von Franz, Alchemy, p. 14.
no mundo do enxofre impuro pode ser libertado pelo poder do sol, 6. C.G. Jung, Psychology and Alchemy, Bollingen Series XX, vol. 12 (Prin-
pelos bíons BA, e pela alma livre da prisão matl~rial através da arte ceton: Princeton University Press, 1977), p. 242. [Em português, Psicologia e
Alquimia.]
alquímica. Reich, com seu senso de conexão com a natureza, certa- 7. Von Franz, Alchemy, p. 93.
mente teve vislumbres do unus mundus. Seu au/:oconhecimento, con- 8. Jung, Psychology and Alchemy, p. 244.
tudo, a unio mentalis, permaneceu incompleto. 9. Ibid., p. 293.
Algumas pessoas podem objetar que descrevo um Reich que che- 10. Ibid., p. 124.
gou a uma orientação espiritual após ter sido a.tem por muitos anos, 11. Ibid., p. 264.
12. Von Franz, Alchemy, p. 169.
e estes podem preferir desprezar seus dez últimos anos de vida como 13. Ibid.
produto essencial de seu colapso emocional. Mas o próprio Reich 14. C. G. Jung, Mysterium Coniunctionis: An Inquiry into the Separation and
reconheceu que os esquizofrêrucos penetram 1110 cerne da vida com Synthesis of Psychic Opposites in A/chemy, 2~ edição, tradução R. F. C. Hull, Bol-
muito mais facilidade que muitos neuróticos ou que as p~ssoas en- lingen Series XX, vol. 14 (Princeton: Princeton University Press, 1977), p. 339.
couraçadas. Mesmo se declaramos (eu não) que ele estava "louco" 15. Ibid. Aqui Jung está citando o Opus A/chymicum.
16. Ibid., p. 340.
em seus últimos anos, ainda assim não se deve repudiar as pungen- 17. C. G. Jung, A/chemica/ Studies, tradução R. F. C. Hull, Bollingen Series
tes introvisões que expressou com tanta beleza. Chamar Reich de es- XX, vol. 13 (Princeton: Princeton University Press, 1967) p. 235.
piritualista, quando passou grande parte de sua vida a opor-se ao 18. Jung, Mysterium Coniunctionis, p. 526.
misticismo que negava a vida, pode contradizer um dos princípios 19. Ibid., p. 534.
básicos de seu pensamento. Mas o próprio Reich estava lidando com 20. Ibid.
21. Wilhelm Reich, The Bion Experiments on the Origin of Li/e, tradução de
a incumbência de fazer as pessoas recordarem-se de que seus corpos Derek e Inge Jordan, org. Mary Boyd Higgins e Chester M. Raphael (Nova York:
expressam sentimentos e imagens inconscientes' que contradizem a Octagon, 1979), p. 25.
--represeritação racional que faiem de si mesmas. Assim acontecia com 22. Ibid., p. 49 (grifos do original).
ele mesmo. Seu ponto cego estava na área de sua intuição fervorosa 23. Ibid., p. 59.
24. Wilhelm Reich, The Cancer Biopahty (vol. 2 de The Discovery of the Or-
e de sua tendência para um referencial espiritual que ele pôde admi- gone, tradução Andrew White e Mary Boyd Higgins e Chester M. RaphaeI (Nova
tir parcialmente no fim da vida. York: Farrar, Straus & Giroux, 1973), p. 82.
É possível que, com o tempo, venhamos a descobrir que a al~ 25. Ibid., p. 85.
quimia era de fato um processo simbólico, que transformava o co- 26. Ibid., p. 86.
ração profundo do homem, mas também que ela nos põe em conta- 27. Ibid.
28. Ibid., p. 87.
to com o éter azul, que é a energia do universo. Podemos também 29. Ibid., p. 86 (grifos no original).
vir a descobrir que Wilhelm Reich, como ele próprio afirmou, com- 30. Ibid., p. 88.
provou cientificamente a realidade do éter azul, chamando-o de 31. Ibid., p. 91.
orgônio. 32. Ibid., p. 94 (grifos no original).
33. Wilhelrrl Reich, The Murder uf Christ (vol. 1 de The Emotiona/ P/ague
ofMankind) (Nova York: Simon & Schuster, 1953), p. 3. [Em português, O assassi-
nato de Cristo.]
Notas
1. Marie-Louise von Franz, Alchemy: An Introduction to the Symbolism and
the Psychology, org. DaryI Sharp (Toronto: Inner City Books, 1980), pp. 37-38. Es-

146 147
vo e padece, parcialmente alijado do contato com o mundo. Si~i­
Capítulo 12 larmente, Freud, que antes pronunciava-se com t~nta beleza, .tt;ve can-
cer no maxilar em 1923, e depois disso, por vános anos, fOI mcapaz
de falar em pÓblico. Pelo resto de sua vi.da s~freu dores consi~erá­
veis. A respeito do câncer de Freud, ReIch dIsse numa entrevIsta:

ll"ês mitos Ele não conseguia falar. Veja, ele tinha sido um orador maravilhoso.
Suas palavras fluíam com clareza, simplicidade, lógica. Lembro-me do
Congresso de Berlim. Ele estava maravilhoso. Falou sobre o Ego e o
Id. Falou com muita clareza. E então ele foi acometido bem em seu
órgão da fala. 2
Nosso destino parece ser nossa propensão, consciente ou incons-
ciente, para viver uma história com a qual nos identificamos.
Freud, Jung e Reich estavam identificados, cada um deles, com
um 'grande drama que, de alguma forma, os reunia em sua indivi- : )ung J filho de um pastor em família .de ~astores, nã,? sentiu ne-
dualidade específica. nhuma elevação transcendental em sua pnmeIra comunhao, nem nos
Após sua auto-análise, em 1897, Freud afirmou que Édipo era meses sequintes passou pela experiência de um estado de graça que
o principal drama humano, que ele proclamou ünlversal, ,fescreven- esperava vir do coração do Cristo. Sua mãe, numa reação ao seu aba-
do a condição pai-filho no nível dos desejos secretos. Sabe-se que timento arrasador, deu-lhe of'_,!!!sto, de Goethe, que se tornou seu
ele chamava a filha Anna de "Antígona", nome da filha de Édipo. mito.
Como Freud, Édipo sentiu-se inicialmente traído e ameaçado Num paralelo proposital com o início da história de Jó, Deus
por alguém de sua inteira confiança, chegando depois a ficar para- e Satã em Goethe, parecem estar em bons termos. A tarefa de Satã
nóico. Creonte, seu cunhado, com quem repartia i~ualmente o po- é test;r a fidelidade do rebanho, exercitar uma visão de vida mais
der, inocentemente manda o vidente Tirésias até Edipo, para uma cínica e irônica, enquanto Deus, de suas excelsas altitudes, expressa
consulta, na esperança de que este cego tivesse alguma explicação um benevolente contentamento com a lealdade de seus melhores sú-
para a praga que assolava Tebas. Édipo interpreta as terríveis pala- ditos. Enquanto as mais medonhas aflições se abatem sobre Jó, sem
vras de Tirésias como parte de um plano de Creonte para destroná-lo. qualquer raião aparente, no Fausto, Mefistófeles só aparece a pedi-
Freud sentiu-se traído por Wilhelm Fliess, seu melhor amigo até do de Fausto.
1900. Mais tarde, essa traição prosseguiu com as deserções de Adler, A música divina que Fausto ouve não toca seu coração. Fausto
Jung e Rank. Embora inicialmente Freud considerasse esses cismas é um profundo conhecedor de muitas coisas, mas, diversamente de
como tentativas de destroná-lo, o drama edipiano sugere que foram seu aprendiz, Wagner, não encontra mais consolo ou respostas nos
acompanhadas de um profundQ sentimento de culpa, relativo a um livros empoeirados. Fausto acompanha o pai no atendimento às ví-
envolvimento não-revelado, da parte' de Freud. "Homem de destino timas da praga e é aclamado curador, mas sente culpa e uma sensa-
amaldiçoado", grita Jocasta, mãe e esposa de Édipo. "Que nunca ção de impostura.
venhas a descobrir quem és!" Seu pai, como um alquimista, administra estranhos medicamen-
Com enorme coragem, Freud buscou sem tréguas conhecer a ver- tos aos pacientes, que para Fausto pareciam servir mais às suas mor-
dade a seu respeito. Mas, a partir dos cinqüenta e poucos anos, tes do que a praga. Por trás do verniz da fama e da aprovação, há
resignou-se, amargo e, inclusive, mordaz - fato comentado tanto um lado escuro e ainda inexplorado. Jung, como Fausto, sentia dor
por Jung como por Reich. 1 Édipo também é amargo, amaldiçoan- e desapontamento profundos com o pai, e partilha sua perda da fé.
do o escravo que permitiu que ele sobrevivesse quando bebê, culpando Seu pai, que representava a Igreja, foi incapaz de lidar abertamente
Apolo por cumprir seu destino: "Mas sou odioso aos deuses, acima com sua falta de fundamento interior.
de todos os homens". Édipo arranca os próprios olhos porque nada Mas, como Fausto, Jung buscou, e,m seu diálogo com Mefistó-
que veja pode lhe trazer alegria. Édipo não morre, mas continua vi- feles:' despertar a alegria de viver, pois Mefistófeles tem as chaves

148 149
dos reinos inferiores. Como Mercurius, ele conhece o espírito cativo o resultado mais provável de uma tentativa de deixar a linha da ciên-
na natureza e pode soltar o deus ctônico escuro da juventude e se- cia oficial e do pensamento tradicional. 4
xualidade. O pai de Fausto, que não integrara o lado escuro, não
pode apoiar o filho, mas Mefistófeles pode, ,;: Fausto precisa desse Peer é um jovem destrutivo, improdutivo. Seu pai, que já tinha
fundamento para progredir. Fausto (como Jung) passa por uma cri- sidoi'lCo e respeitado, torna-se alcoólatra, aoandona mãe e filho na
se de meia-idade, e, nesse processo, recupera a juventude e retoma pobreza, amargurados e expostos ao ridículo. Peer tem uma relação
seus interesses sexuais, como numa segunda adolescência. Fausto, de provocação e manipulação com a mãe, que tem um fraco por ele.
provavelmente, havia perdido sua adolescência. com a obediente pres- Sem pai, Peer não tem os pés no chão. Vagueia dias a fio pela mata,
tação de serviço ao pai. Inicialmente, viveu sua depressão, o nigre- sonhando intensamente, como um estranho. A comunidade, cuja men-
do, e vai em busca do autoconhecimento mediante um diálogo com talidade é estreita, está totalmente voltada para interesses e preocu-
o lado escuro. pações comerciais e mundanos, divertindo-se e desprezando suas men-
Depois de lidar com a sombra, Fausto se depara com a esquiva tiras e exageros.
e nutridora anima, na forma de Gretchen, uma virgem inocente, lin- Como Peer, Reich tinha uma fixação na mãe. Muitas vezes so-
da e reverente. Fausto age de maneira mundana e arma abertamente litário na infância, também foi abandonado à natureza. Sua mãe,
uma trama, com Mefistófeles, para seduzi-la. Seu envolvimento com como a de Peer, se aliara ao filho contra um pai cruel. Também co-
ela proporciona-lhe, em última análise, uma libertação através da mo Peer, Reich, antes parte de uma família bem-de-vida, foi lança-
pureza e da fé da moça, mas para ela traz a perdição e a desgraça
numa sociedade que valoriza a vIrgindade feminina acima de todas do na pobreza.
as outras virtudes. Como Fausto, Jung teve que aprender o uso éti- Sentingo-sç alheio ao mundo, Peer tem sonhos extravagantes.
co e apropriado de seu poder e de seu conhecimento mundano em "Serei um rei, um imperador", diz à mãe. Em suas roupas sujas,
sua relação com as mulheres .. verdadeiros andrajos, é dolorosamente sensível ao d~:sprezo e ao es-
A angústia e as contradições internas de Jung mergulharam-no cárnio com que é tratado. Peer vai a um casamento e conhece uma
na noite escura da alma. Quando emergiu dela, pôde se relacionar moça, Solveig, mas ele rouba a noiva e dorme com ela na fonte,
melhor com o feminino em si mesmo, e, presume-se, foi capaz de abandonando-a depois, sem a menor compaixão, evidenciando as-
reconhecer e conter suas projeções. sim sua ambivalência para com a mãe. Os moradores revoltam-se
Goethe se interessava por alquimia e, portanto, Jung foi espe- e buscam-no pelas colinas com armas e paus.
cialmente atraído pela segunda parte do Fausto, qúe ele considerava Como proscrito, Peer sente-se forte como um urso, capaz de en-
.-um encontro com o inconsciente coletivo. Fausto obtém de Mefistó- frentar o mundo e progredir interiormente. Nas montanhas, ele dor-
feles a chave que permite descer ao mais profundo do reino das mães, . me com uma mulher Iroll, filha do rei troll, que, segundo costumes
-e essa descida é um feito heróico. Para Jung, então, o Fausto tornou-se ancestrais, têm uma forma dupla. O palácio parece um monte de li-
um modelo que ele seguiu conscientemente em suavida e em seu tra~ xo, o preto parece branco e o feio, bonito. Os Irolls tentam transfor-
balho teórico. Fausto era tipo pensamento e encontrou em Mefistó- mar Peer num deles, mas sua natureza humana prevalece e ele não
feles um meio para explorar sua quarta função, o sentimento, que aprecia viver entre os animais, comendo comida de vaca e boi. Sua
o leva às camadas profundas do ser.
futura esposa é uma vaca em sua outra forma. O comprometimento
com essa mulher e com essa vida é uma maneira feia, intolerável de
,O drama de Reich foi Peer Gynt. Em outubro de 1920, escreveu estar no mundo e, por isso, Peer foge.
um artigo sobre o tema, "Conflitos libidinais e delírios no Peer Gynt Peer tem suas lutas interiores. Luta com uma voz que impede
de Ibsen", que apresentou à Sociedade Psicanalítica de Viena. 3 seu caminho mas não o ataca fisicamente. Peer acaba conseguindo
Quando reescreveu A função do orgasmo, em 1940, "Peer Gynt" passar porqu~, como diz a voz, "Ele era muito forte, havia mulhe-
foi o título e o tema do segundo capítulo: res atrás dele". Com todas as lutas internas e externas que enfren-
tou, Reich sempre teve mulheres que o apoiaram e também ajudaram.
o mundo estava num estado de transição e incerteza na época em que Quando Peer ergue para si uma cabana na floresta, percebe co-
li e entendi Peer Gynt, e quando conheci Freud e compreendi seu sen- mo sua atividade sonhadora interfere em seu trabalho, mas sua com-
tido. Senti-me um estranho, como Peer Gynt. Seu destino pareceu-me preensão limitada não muda esse comportamento. Solveig, a moça
150 151
que conhecera no casamento, vai atrás dele e lhe dedica sua vida, Peer, como a Gretchen de Fausto, representa a pureza pueril e into-
mas a princesa lrol/ volta como bruxa velha, arrastando uma feia cada da alma interior, um nível de inocência feminina que, para Reich,
criança atrás de si e prometendo estar sempre ao lado dele, num pa- era o centro. Como Peer, Reich tinha uma energia espontânea, in-
ralelo escuro de seu amor por Solveig. No ponto em que Peer pode- quieta, uma inocência juvenil e pueril que encantava, uma pureza
ria comprometer-se com alguém e vivenciar uma confiança e uma inata. Ele era um sonhador, um homem de visão, um homem de co-
intimidade profundas, é visitado pelas intoleráveis conseqüências e ragem.
limitações de suas ações passadas. O lado escuro da mãe não permi- Reich não estava inteiramente satisfeito com Pel~r, o sonhador,
te que vá em frente. Peer escapa mais uma vez e: fica rico, como mer- pois achava que lhe faltava força suficiente para criar seu lugar no
cador de escravos na América. mundo. Reich achava que Brand, um pregador rígido e moralista da
Incapaz de relacionar-se com a ética das pessoas comuns, é um peça homônima de Ibsen, era um modelo melhor: "Temos que sef
fora-da-Iei, como Fausto, às vezes insensível, empedernido, amoral, como Brand, que alcançou o que Peer Gynt quer. Brand, porém, não
psicopata, cujo único objetivo é tirar vantagens pessoais, num indi- tem imaginação suficiente. Brand tem força, mas Peer Gynt sente
vidualismo extremo e vazio. Peer deixa de ser provinciano e, mais a própria vida". 5
uma vez, como Fausto, torna-se um cidadão do mundo. Deseja ga- Embora Reich tenha ensinado aos outros a entregar-se, a
nhar dinheiro suficiente para tornar-se imperador do mundo, mas abandonar-se, ele vivia em conflito em sua própria vida. Peer é fi-
perde tudo. nalmente capaz de render-se nos braços de Solveig e de confiar sua
O resto do relato de Ibsen é um comentário sobre os esforços identidade ao amoroso coração da moça, abandonando-se e, dessa
de Peer para ser ele mesmo, seguir seu verdadeiro destino. O egoís- maneira, é salvo. Reich não parece ter desistido de sua guerra com
mo e o isolamento de seus esforços são examinados quando ele se o mundo. Permaneceu ligado à natureza e à inocência, mas sempre
torna imperador num asilo de lou<;os. Mais tarde, ele volta às mon- como um fora-da-Iei aos olhos do mundo. Peer Gynt é um intuitivo
tanhas, perseguido por várias figuras de morte. Descasca uma cebo- que não sabe como cooperar com o mundo. O processo de Reich ti-
la, símbolo de si mesmo, e não encontra o miolo, não há cerne, só nha um foco rígido demais, como se assim calasse sua vida intuitiva.
as camadas. Aparece o Moldador Automático com uma ordem para Os três dramas levam seus protagonistas a uma luta de vida e
dissolvê-lo, porque ele nunca foi ele mesmo, apesar de toda postura morte para saberem quem são. Édipo é amargo e deficiente; Fausto
em contrário. O Demônio não tem lugar para ele, porque até mes- é um ser cansado de viver, indiferente e esclarecido; Peer é grandio~
mo seu diabo não se compromete. Por fim, Peer é salvo da morte so, espontâneo, um sonhador que encontra a solução na entrega a
p-<?~~olveig,que esperou fielmente por ele na ca.bana, por vários anos. uma mulher simples e amorosa. Esses dramas delineam com muita
"Diga-me, então", ele pede, "onde estava meu verdadeiro eu, sutileza a singularidade de Freud, de Jung e de Reich em suas jorna-
completo e verdadeiro - o Peer que tinha o selo de Deus na testa?". das no mundo e nos contam algo dos mitos que os governaram.
Solveig diz: "Em minha fé, em minha esperança e em meu amor".
_Como Fausto, Peer é finalmente salvo pela devoção e pela pureza
de uma mulher - aquela que mantém em seu coração um senso de Notas
seu ser verdadeiro, que ele sozinho não consegue sustentar.
_Como.Peer,.Reich_era inquieto e aparentemente incapaz de com- I. Em Memories, Dreams, Reflections, edição revista, tradução de Richard e
promisso íntimo com uma mulher. Em vez disso, as mulheres tor- Clara Winston, org. Aniela Jaffé (Nova York: Pantheon, 1973), p. 152. Jung escre-
nara.nHeinstrumentos ueseuprojefo maior, enquanto ia sendo le- veu: "Havia uma característica (em Freud) que me preocupava mais do que tudo:
sua amargura". No mesmo sentido, Reich escreveu, em Reich Speaks of Freud (No-
yado por seus sonhos de grandeza. Como Peer, ficou ao léu um va York: Farrar, Straus & Giroux, 1967), pp. 20-21: "Há muito poucas dúvidas de
cidadãOdü múndo, em guerriú;om o provincianismo e, não ob~tan­ que (Freud) era ~enitalmente muito insatisfeito. Tanto sua resignação como seu cân-
te, em perigo de permanecer moralmente subdesenvolvido, como ex- cer evidenciavam isso. Como pessoa, ele teve que desistir ... Ele fumava muito, mui-
plorador dos outros. Confrontado com o dilema de Peer, Reich tentou to. Sempre tive a sensação - não nervosismo, não nervosismo - mas porque ele
resolver de outra maneira a questão de seu isolamento egoísta e fal- queria dizer alguma coisa que nunca lhe vinha aos lábios ... como se ele tivesse que
'engolir em seco' ... Ele sempre era muito educado, 'mordazmente' educado, às ve-
ta de fundamentos sólidos. Quando Reich descascou a cebola de si zes".
mesmo, encontrou a couraça e, finalmente, o centro. A Solveig de 2. Reich, Reich Speaks of Freud, p. 73.

152 153
3. Wilhelm Reich, "Libidinal Conflicts and Delusions in Ibsen's Peer Gynt"
in Wilhelm Reich Early Writings, tradução de Philip Schmitz (Nova York: Farrar: Capítulo 13
Straus & Giroux, 1975), vol. 1, pp. 3-64.
4. Wilhelm Reich, The Function Df the Orgasm, tradução Theodore P. Wolfe
(Nova York: Meridian, 1970), p. 21. [Em português, A função do orgasmo.]
5. Reich, Function of the Orgasm, p. 27.

o que Reich e Jung poderiam ter


aprendido um com o outro

Jung e Reich nunca se encontraram. Jung, uma geração mais


velho, abandonara os rígidos preceitos da psicanálise anos antes de
Reich, ainda jovem, juntar-se ao grupo de Freud, na década de 20 ..
-Que- euteiihaconliecimento, Jung nunca mencionou Reich; e este,
até o final dos anos 50, desprezava completamente o trabalho de Jung,
. sem muita elaboração. Apesar disso, em minha fantasia, perguntei
. o que Reich e Jung poderiam ter dado um ao outro, caso tivesst!m
mantido algum tipo de associação. Inicialmente, imagino um grace-
jar teórico e distante, com gargalhadas e conflitos repentinos, mas,
com o tempo, emergiriam os níveis mais profundos que tinham em
comum, para sua surpresa mútua - e seu conforto. Como terapeu-
tas notáveis, recorreram à auto-análise, por não poderem encontrar
terapeutas adequados. Em minha fantasia de um como terapeuta do
outro, imJ:lginei Jung salvando Reich de suas infrutíferas brigas com
o mundo, e Reich atravessando as sofisticadas paredes de descon-
fiança que protegiam Jung de um contato mais íntimo com homens.
Jung era muito mais cauteloso, escondido, menos exposto ao
mundo. C()m suá capacidade mental, ele certamente foi um dos mais
-brIrhantes psicólogos de seu tempo. Além disso, tinha uma consti-
tuição robusta que o ajudava nos mais obscuros atalhos de sua eru-
dição. Por outro lado, Reich era um homem de uma energia enorme
e com um foco compulsivo e unilateral, pouco humor e reduzido re-
curso às metáforas. Mas mesmo com essa unilateralidade, ele foi ca-
paz de chegar ao coração, ao cerne mesmo do homem. Ele insistia
que as pessoas estivessem presentes, em contato, e acabava com qual-
quer defesa que impedisse a emergência da vida interior espontânea.
Mas, em minha especulação, eu quis salvar Reich de sua rígida
orientação intelectual, pois ele excedia seu vocabulário. Estava mais
familiarizado com a terminologia biológica do que com as expansi-
vas metáforas psicológicas. Apesar disso, suas experiências iam muito
154
155
além, até mesmo da linguagem psicológica que, enfim, abandonou menos que estivesse impressionado com aquela pessoa brilhante? Nu-
em favor do que concebia comq ciência. Não que eu me junte aos ma carta de 1928, endereçada aLou Andreas-Salomé, Freud conti-
outros para desacreditar sua ciência. Pelo contrário, eu faria com nuava mencionando Reich com respeito, embora desafiando suas su-
que ele olhasse seu trabalho de uma outra perspectiva. Seu "funcio- persimplificações juvenis:
nalismo" reconhecia que a velha física estava morta. A natureza não
estava mais disponível para ser estudada objetivamente, mas obser- Temos aqui um dr. Reich, valioso mas impetuoso jovem, apaixonada-
vador e observado estavam interligados. A nova física da relativida- mente dedicado a seu hobby predileto, que agora encontra no orgas-
mo genital o antídoto para todas as neuroses. Talvez ele devesse inteirar-
de e da teoria dos quanta expressaram a relação entre o homem e se de sua análise de K. para aprender a ter respeito pela complicada
o mundo com eloqüência matemática, mas Reich apreendera apenas natureza da psique.!
urna parte insuficiente dessa verdade. A comunidade da moderna ciên-
cia tem a eficiente beleza de contrapor, ao egocentrismo de seus mem- Diversamente de Jung, Reich nunca pôde conseguir uma vida
bros, rigorosas exigências de validação. Reich estava isolado dos ou- protegida, nem mesmo, finalmente, em Rangely, Maim:. Lembro dos-
tros e, como o Peer Gynt, de Ibsen, era autodidata. Sem interações "Provérbios do Inferno" de William Blake, com respeito a Reich:
mútuas, o andamento da ciência moderna é tal que a falta de conta- "A raposa provê sua própria subsistência, mas Deus garante a do
to com o trabalho dos outros é o mesmo que promover a probabili- leão".2 Tenho estima especial pelo diamante em estado bruto. Sei
dade de duplicações. Reich adotou o exemplo de Freud, o grande que as deficiências estão do lado de fora, onde posso vê-las e onde
homem, o pensador solitário e pioneiro, como um antigo modelo de não há surpresas desagradáveis num plano mais profundo. Meu de-
ciência, cujo andamento era mais benigno. sejo para Reich, portanto, era uma terapia que aliviasse sua tensão
Descobri que alguns escritores não gostam de Reich. CoJin Wil- diante do mundo sem destruir a força de que ele precisava para ser
son, por exemplo, ficou decepcionado ao perceber em Reich uma pes- ouvido. Ele tinha medo de no final tornar-se um mero sonhador, como
soa rígida, com necessidade de estar sempre certo. Uma colega, de- Peer Gynt, a menos que trabalhasse sem cessar. Estou convencido
pois de ter lido o que eu escrevera sobre Reich no manuscrito para de que uma alquimia interior aconteceu e conduziu Reich a um nível
este livro, concluiu que preferia muito mais Jung. E eu explodi: "Mas muito elevado de compreensão espiritual.
você nâo vê o que está por trás da brusquidão de sua personalida- Reich sabia inconscientemente como isolar-se e tinha faro para
de?". Penso que a personalidade é a roupa que vestimos de qual- a sombra em cada situação. Em cada grupo levantava exatamente
quer maneira num momento de plinico, quando abandonamos o barco aquelas questões que tentavam escamotear. Em Viena, os analistas
de nossa infância. Reich, tão sensível por dentro, precisou de sua da década de 20 finalmente trabalhavam com êxito, inovando, pro-
agressividade para sobreviver às trágicas e precoces mortes dos pais. tegidos da agitação social à sua volta; em resumo, formavam um gru-
Ele precisava da proteção do grupo psicanalítico de Viena, com sua po de elite. Individualmente, num nível profissional, Reich aponta-
dissimulação, indiretas e malícia política. Pelo menos ele foi corajo- va as falhas técnicas da prática psicanalítica e, politicamente, adota-
so e agarrou a oportunidade. Expôs-se e foi audacioso. Deu ao mundo. va o socialismo. Como socialista, acusava o Partido Comunista e sua
Tinha um grande coração mal encoberto por sua ambição, por sua liderança de permanecerem a uma distância segura do tumulto, e ata-
pungente noção de destino. Por isso amei Reich como pessoa e só cava suas tendências burguesas inconscientes com sua educação se-
me dói e lamento por ele ter sabotado sua própria felicidade futura. xual explícita para os jovens. Sentia-se atraído pela esquerda, pelo
Era um grande e comovente professor. Durante a agitação social mergulho instintivo no lado escuro da vida. Sendo atraído pela som-
dos anos 20, divulgando informações sexuais como socialista, ele ia bra, Reich pôde intuir a resistência latente em seus pacientes, mas
para as ruas e trabalhava com os pobres, pois ele mesmo tinha co- seu perturbador talento inconsciente comprometia relacionamentos
nhecido a penúria. Por causa de seu coração e seu encanto pessoal, sociais estáveis. A consciência teórica de Jung da sombra poderia ter
foi capaz de atingir centenas de pessoas e de educá-las sobre seus cor- servido para Reich se proteger, pressupondo-se que fosse capaz de
pos e sobre liberdade, trabalho que ele mesmo custeava. Se fosse tão incorporar esse conhecimento e de dar uma atenção mais cautelosa
absolutamente rígido e convencido, como poderia ter aprendido a ao seu próprio processo.
entrega, como poderia ter defendido o autêntico encontro sexual? O conceito de caráter de Reich, embora desenvolvido e comple-
Por que Freud o aceitaria e defenderia de enciumados acusadores, a xo, não era inclusivo o suficiente. Ele precisava fazer a pergunta que

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Jung se fizera durante os tempestuosos anos de sua autodescoberta poderiam facilmente tê-lo salvo da prisão, mas Reich estava possuí-
(1912-1917): "Qual é o mito que estou vivendo?". Pois Reich, sem do pelo mito de Cristo.
dúvida, era governado pelo mito. Inicialmente, seu mito derivou de Jung conhecia o perigo de identificar-se com um arquétipo. Quan-
Freud, que se considerava um audaz pioneiro diante de um mundo do o "velho sábio" é ativado em nós, quando a voz do grande pro-
resistente; participou do grupo de combatentes científicos que usava feta se faz ouvir em nós, somos apenas um instrumento. Nietzsche
a razão como espada contra as trevas das imagens inconscientes. Reich identificara seu ego com Zaratust~a, a voz profética que o possuíra.
tinha em comum com Freud uma imagem de uma grandeza isolada, A identificação com um arquétipo leva à inflação doO ego e pode
uma sensação de ser historicamente lembrado, ter sua vida documen- ameaçar-nos com um severo desequilíbrio psíquico. Infelizmente,
tada, de que mais tarde as pessoas veriam que ele estivera certo afi- .Reich não tinha, em seu sistema, o vocabulário para lidar com esses
nal, uma espécie de Darwin do século XX, o cilentista descobridor fenômenos. Sofria de uma identificação egóica com o arquétipo do
da vida. Por esta ingênua e inconsciente aceitação de seu mito, Reich grande homem. Às vezes, em seus escritos, aparentava predileção por
parecia uma criança, um Peer Gynt. novas fórmulas presunçosas. E, contudo, há nisso um.a característi-
Jung havia confrontado o mito que o governava. Foi à procura ca infantil, ingênua, um jeito que ele encontrou de se incentivar com
dele e se apoderou dele e, embora compreendesse a ira do ego por seu próprio aplauso, devido ao seu isolamento. Há mesmo na tolice
-coísas·coíno reputação e fama, manteve sua privacidade. Jung foi de Reich uma grande e tocante vulnerabilidade, porque, decerto, ele
à Feira da Vaidade, mas não comprou coisa alguma. Afastou-se, deu- era um grande homem e um grande espírito. Acreditando no poder
se distância, e viveu como alguém que era parte de algo mais do que da intervenção terapêutica, eu fantasio a confusão de Reich sendo
seu próprio século. Quando jovem, Jung tivera inimigos e se prote- magicamente desfeita. Muitas são as pessoas destruídas pelo sofri-
gera, exibira sua força e provocara seus adversários; mas na maturi- mento, e poucas se enobrecem, atingindo internamente níveis mais
dade, disse a um jovem admirador: "Não sou nada. Sou um homem elevados e lúcidos. A identificação de Reich com Jesus tinha alguma
velho. Não minto mais. Antes, talvez, também, como jovem cientis- justificativa.
ta sem reputação. Agora não minto mais".3 Desistiu do mundo após Nos anos 50, Reich às vezes parecia paranóico, d(!pois dos ata-
seu rompimento com Freud e o colapso psíquico subseqüente, após ques que sofreu por mais de meio século de vida. Talve:z ainda guar-
-1913. Jung nunca mais se envolveu tão diretam(mte com o mundo. dasse trancada no coração a convicção de que tinha matado a mãe
·Ocultou-se e passava meses praticamente sozinho, primeiro em sua e que, por isso, estava, como Caim, fadado a vagar sem teto pela
casa em Kusnacht e, mais tarde, no retiro de sua torre em Bollingen, face da Terra, sem poder desfrutar o calor e a intimidade de amigos.
escrevendo e pensando. Por volta dos 40 anos, Jung afastou-se do É até comovente ler que, durante seus últimos anos, quando os aviões
mundo e teve o apoio, mesmo em sua introversão, do sossego e de sobrevoavam a área, Reich achava que a Força Aérea estava que-
um consultório bem-sucedido. Reich tentou encontrar seu refúgio em rendo vigiá-lo. Ele podia ser muito concreto. Nos anos 30, para ver
Rangely, no Maine, perto do final da vida, quando o mundo exter- o fluxo energético na vida, aumentara o poder óptico de seu micros-
no assediava-o e perseguia-o. Sua paz foi seriamente perturbada. cópio a um grau espantoso - caminho perfeito para, como cientis-
E assim, em minha fantasia, Reich e Jung teriam conversado ta, sair de foco e forçar sua atenção consciente a uma visão mais in-
sobre relacionar-se com o mundo, ser famoso e reconhecido, algo tuitiva. Incapaz de adotar um vocabulário espiritual para examinar
que Reich nunca foi realmente. Ele era controvertido, apreciado por e expressar sua necessidade de proteção, ele podia contar com a For-
alguns seguidores, mas nunca foi publicamente festejado com o re- ça Aérea para lhe proporcionar uma certa sensação de atenção semi-
conhecimento, como Freud e Jung. Nenhuma universidade outorgou- divina.
lhe um grau honorário, nem nunca lhe pediu para dar palestras,Freuçi Jung afirmava que a psique inconsciente contém imagens de
e Jung souberam ser grandes e obter o que precisavam de seu am- Deus, imagens,estas que ela projeta Gom maior facilidade naquilo
biente, mas, Reich não pôde conquistar muito para si, pelo contrá- que a mente consciente não consegue compreender. A percepção da
, rio, achava necessário destruir. Talvez fosse seu processo criativo im- . projeção é o coração das disciplinas religiosas orientais, e Jung co-
. petuoso, mas se tivesse sido levado a observar seu mito, poderia ter locou essa percepção no centro de seu trabalho psicológico. Mas Reich,
reescrito sua vida. Seu mito final sobre o Cristo crucificado foi re- . ainda desesperada e infantilmente apegado à concretude do mundo,
presentado da maneira mais dolorosa possível. Conselheiros legais sentia-se tranqüilizado pelos aviões.

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Tragicamente, em seus últimos dias, após anos de brilhantes des- tinuamente isolado pela transferência que as pessoas tinham nele,
cobertas, Reich construiu uma extensa seqüência de delírios a res- tão viva era a imagem do Mago para os outros, o velho sábio,a vida
peito de discos voadores. Em A Book of Dreams, Peter Reich, seu inteira acostumou-se a viver sozinho. Reich, terapeuta brilhante, te-
filho, retrata vividamente a sensação de envolvimento do pai com ria desafiado o lampejo frio e encantador do olhar de .Jung e o puri~
a vida extraterrestre. 4 Jung, por outro lado, achava que ver discos . ficaria. Reich teria ajudado Jung a expressar sua fúria e decepção,
voadores era projeção do Self pelo inconscient,e. Os discos, grandes teria abalado sua postura de controlada distância. Provavelmente,
e mágicos, vindos de um outro planeta, concretizavam o círculo, o Jung não estava tão consciente de sua irritação e poderosa fúria quanto
símbolo da totalidade que as pessoas anseiam e projetam no mun- poderia. Na velhice, isso de vez em quando vinha à tona e ele tinha
do. Só em seus últimos escritos ele começou a admitir a possibilida- que se desculpar e pedir que sua empregada o compreendesse. Uma
de de terem uma realidade independente das JPtojeções do incons- espécie de espírito bélico libertava-se, de tempos em tempos, como
ciente. Reich, que via os discos voadores com os próprios olhos, po- quando perdeu o controle depois de uma doença. Apareceu também
deria ter aproveitado as observações de Jung; e este poderia ter apro- em seu Resposta a J6, não tanto no conteúdo como no tom áspero,
veitado a infatigável atenção de Reich ao mundo externo. sarcástico e duro que irrompeu em sua prosa.
Reich também teria aproveitado de Jung uma introdução ao Reich teria desafiado como ninguém mais a estrutura definitiva
taoísmo e outros modas orientais de pensamento, em que sexualida- de Jung para manter distância e controlar o contato, e então, no ní-
de e espiritualidade estão poderosamente entrdaçadas, e o espírito vel do corpo, teria visto Jung suavizar-se. Poderiam ter emergido a
não está divorciado do corpo. Teria aprendido novas linguagens con- mágoa e a paranóia. Seu coração, tão apaixonado mas reservado,
cernentes às realidades espirituais, uma científica objetividade oriental. teria muito mais espaço para se manifestar. Ele teria compartilhado
Em meados dos anos 50, foi ostensiva a incursão de Reich por terri- mais com os outros e se sentido mais à vontade em sua companhia.
tórios espirituais, sempre porém da maneira precavida e militante, Talvez sua dependência das mulheres tivesse ocupado umas poucas
como se estivesse conquistando novos territórios. Ele foi, para a ciên- horas terapêuticas, e sua anima projetada encontraria um novo ní-
cia, um explorador que agiu de maneira muito semelhante à dos aven- vel de integração, mesmo que ele já tivesse trabalhado anos a fio nessa
tureiros brancos em sua conquista do oeste americano: convictos, co- questão. Por meio da vegetoterapia, Reich teria auxiliado Jung a che-
mo se os índios fossem ignorantes e não tivessem uma cultura real gar a uma maior abertura de coração e corpo. Os fios de um temor
ou percepção consciente das coisas. Embora Reich dissesse que to- homossexual não resolvido, rapidamente mencionados em suas car-
dos estão certos de certa maneira, nem sempre ele era capaz de tole- tas a Freud, teriam tido condições mais favoráveis para se desema-
rar as opiniões dos outros. ranhar. E, por fim, depois de ter sido pai para tantas pessoas, Jung
Jung tinha mais encanto social. Era capaz de compreender inte- poderia ter-se consentido ter um pai, algo nunca resolvido com seu
lectuãlmente os pontos de vista dos outros. Mas não há evidência próprio pai ou com Freud.
real de que se sentisse à vontade com competidores. Cercava-se pre- Jung precisava soltar-se um pouco, ceder mais. No nível corpo-
dominantemente de mulheres; ele enviava os homens ao mundo pa- ral, precisava aprender a render-se. Sempre o grande professor entre
ra que testassem sua força. Politicamente, Jung era muito mais so- seus seguidores, ele não podia eVltar as transferências nele concen-
fisticado que Reich. Ele sabia como manobrar, como recuar, como tradas. Durante anos mantivera-se coeso, contra o medo de se tor-
dominar. Reich poderia ter tido algum consolo com a sabedoria de nar psicótico; mesmo após seu confronto com o inconsciente, ele ainda
Jung em lidar com o mundo, mas também poderia ter-lhe invejado ponderava sobre o que teria acontecido se tivesse baixado a guarda.
a liberdade financeira que permitiu a Jung afastar-se quando decidiu. Foi à África na década de 20, não só como cientista, para estudar
Idealmente, Jung poderia ter desfeito a inflação do ego e a cou- os povos primitivos, mas também em busca de uma resposta à ques- ,
raça de Reich, mas Jung também teria aproveitado uma terapia com tão "O que vai, acontecer com Jung, o psicólogo, nos ermos africa-
Reich. O sentimento era a função' inferior de Jung, seu lado cego, nos?". Deixou a África pouco depois de um sonho que o advertia
e os sentimentos não expressos permaneciam contidos em seu corpo de que o homem primitivo que havia dentro dele estava ativado e
como tensão crônica. Se Reich era literal, provinciano, concreto e ameaçava tomar o controle. Segundo o que escreveu, o homem ar-
rígido em sua abordagem, também era extremamente vulnerável, pes- caico ou primitivo em cada um de nós ficou perdido no decorrer do
soal e presente em seu coração., Jung, imensamente encantador, con- desenvolvimento da civilização. O 'homem primitivo era vital, não-

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intelectual, direta e emocionalmente envolvido, sem distinguir os fe- gônio e, com isso, impossibilitou a discussão. Freud procedeu de modo
nômenos interiores dos exteriores e, dessa forma, vivia no mundo semelhante ao explicar os fenômenos psíquicos que Jung lhe apre-
mágico e numinoso da natureza, ao qual pertencia inquestionavel-
sentou em março de 1909. Um dia, quando estavam na biblioteca
mente. Reich teria ajudado Jung a evocar o homem primitivo nele
de Freud, Jung sentiu um forte calor no diafragma. Um momento
latente, ainda perigoso e ameaçador para o ego civilizado, mas ca-
depois, Jung e Freud se alarmaram com um agudo ruído que vinha
paz de acordos e dramaticamente expressivo em uma terapia corpo-, de uma prateleira. Jung afirmou que isso era um exemplo do "fenô-
ral. Embora sua índole fosse física e ligada à terra, Jung nunca en-
controu um caminho tão direto para o homem primitivo. E essa ex- meno de exteriorização catalítica"; mas Freud apenas disse: "Boba-
pressão corporal primitiva, com seus sentimentos arrebatados ~ es- gem". Jung sabia de alguma maneira que o ruído ia s6 repetir e, cor-
pontâneos, teria liberados, na presença de um terapeuta conflável retamente, predisse um outro som logo depois. Mais tarde, em sua
do sexo masculino, um grande processo de resgate e cura. correspondência, Freud explicou a experiência ocorrida. Ela simples-
mente não cabia em seu sistema de crenças.
Jung teria feito Reich voltar-se para si, para longe das ofensas
Jung e Reich podem ter esperado que Freud satisfizesse suas ex- da rejeição pelo mundo, conduzindo-o para longe, afinal, ao lhe mos-
pectativas por um pai afetuoso e emocionalmente disponível. Em 1926, trar seus predecessores, seus antecedentes na busca da energia uni-
Reich estava amargamente desapontado com a. recusa de Freud a versal da vida. Ele lhe falaria das verdades alquímicas, e Reich teria
analisá-lo. Antes disso, Jung tentara sanar a distância que havia en- proclamado que poderia demonstrar aquilo tudo com um contador
tre ele e o pai através de seu relacionamento com Freud. Durante Geiger, medindo o orgônio e confirmando de uma vez por todas a
semanas, Freud e Jung viajaram juntos, quando visitaram a Univer- existência da pedra filosofal. Jung teria mostrado a Reich o imenso
sidade Clark, nos Estados Unidos, em 1909, para um ciclo de pales- cubo de pedra que esculpira em seu jardim, e que lhe havia chegado
tras. Mais tarde, Jung datou seu rompimento com Freud nessa épo- "por acaso" quando estava construindo sua torre em Bollingen. Es-
ca. Quando intercambiavam sonhos, freud personalizava os. sonhos
sa pedra tinha sido rejeitada pelos pedreiros, para fechar o canto co-
çl,ç Jung, reduzindo seu significado d~tal forma que lembrava o e~­
trelto e redutivo sistema de crenças do pai de Jung. Quando este pe- mo pedra angular, porque era do tamanho "errado". Simbolicamente,
diu a Freud maiores informações sobre um sonho que este apresen- ambos teriam se identificado com essa pedra, após terem sido rejei-
tara, Freud recuou, aparentemente sentindo que sua autoridade es- tados pelo mestre construtor de sua profissão. Relegados pela cultu-
taria sendo comprometida. A opção abertamente autoritária, pelo ra a uma vida solitária, ambos, como Cristo, trouxeram a revelação
maior expoente da verdade e honestidade no século XX deve ter fei- e a cura e foram rejeitados. Sua verdade assustava os outros.
to Jung recuar. O pai de Jung se apegara à própria autoridade para Talvez, após uma análise compartilhada, Jung e Reich teriam
se preservar. Como Jung poderia continuar a 'ver Freud como pai dado semin~ios sobre a cisão mente/corpo na cultura ocidental. Te-
herói que o incluía e era digno de sua irrestrita cumplicidade? riam conversado sobre Jesus 'e Hermes. Jung via a cisão antinatural,
Jung quis curar a perda da fé paterna, mas o homem rígido e no desenvolvimento do cristianismo, entre bem e mal, entre Cristo
zangado não quis saber disso. No caso de Jung e Freud, havia uma e o Diabo. Uma vez que o lado escuro da natureza humana não po-
chance para que os grandes homens conversassem, curassem um ao de ser eliminado, vai sendo soterrado. Precisamos de um símbolo
outro, penetrassem os disfarces em nome da verdade e abris~e~ to- que integre trevas e luz. Jesus, que assumíu para si o lado escurf',
das as defesas, abandonando a cautela sem temer pela própna lma- os pecados do mundo, tornou-se um s,ímbolo da Igreja e foi elevado
gem no mundo. E hoje, em minha imaginação, Jung tem uma nova acima da condição humana. Mas Hermes, que era mensageiro dos
chance de ingressar no âmbito da verdade com um igual. Quem mais 'deuses, uma figura fálica amistosa para o homem, estava freqüente-
haveria para que Reich falasse da esmagadora rejeição de Einstein? mente na sombra. Por causa de sua educação cristã baseada no te-
Afinal de contas, Jung conhecera Einstein e trabalhara com Pauli. -mor e na rigidez, Jung tinha dificuldade para considerar Jesus como
Em 1941, quando Einstein estava em Princeton, Reich conseguiu um símbolo unificador sem o concurso de Hermes. Por outro lado, Reich
encontro com ele. O grande homem pareceu muito interessado na via Jesus muito mais terreno, sexual, vivo, inatãinentesaüdável,ilííi
teoria de Reich sobre o orgônio e estava disposto a testar seu acu- , homem genital sem couraça, cujo poder de cura fluía ineviiávelmen--
mulador. Em carta posterior a Reich, Einstein deu uma explicação , te de seu ser livre e descompromissado, liberto das armadilhas do
insatisfatória para a diferença de temperatura no acumulador de or- mundo e em contato com a energia do universo. Jung e Reich teriam
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falado do poder das técnicas não-verbais, de terapia corporal e de . Capítulo 14
símbolos de mitos e caráter, de transferência e OVNIs, de taoísmo,
do home:n de massa e de individuação, da esperança e da futilidade
da terapia, do poder da respiração, do caminho interior, da ioga e
da corrente de energia no corpo e no céu. Teriam conversado sobre
o céu noturno.
E teriam falado sobre Viena. Jung abanaria a cabeça concor-
o corpo é mais do que a sombra
dando com a perspicácia de Reich sobre os seguidores de Freud. Tanto
Reich como Jung poderiam falar da resignação e da amargura de
Freud, que o impediam de acolher suas crenças psicológicas. Jung
atribuía a resignação de Freud à sua incapacidade de penetrar na di-
mensão espiritual; Reich, à constrição imposta por sua orga~ização,
um caráter genital incapaz de penetrar em· sua sexualIdade e
compreendê-la num nível pessoal ou teórico. Assim, amb?s proje!a- pizer que o corpo é mais do que a sombra é renunciar ao pessi-
ram na resignação de Freud aquilo que estava em seu própno coraça~. mismo do século XX e tomar coragem, reafirmando o ser vivo do
Em minha fantasia, cresceria entre Reich e Jung uma grande h- homem. Essa cultura que tanto traficou imagens públicas da carne
gação - uma amizade improvável, diriam as pc~ssoas, inesperada e . também desqualificou o indivíduo, e por isso olhamos para os cor-
tocante. Na presença um do outro seriam mais suaves, mais reveren- pos, não para as pessoas, nas revistas. A carne jovem, em toda sua
tes - qualidades que evidenciam uma análise do caráter e uma ind.i- primitiva exuberância pode esconder, de olhos desa.visados, a falta
viduação bem-sucedidas. Pois um encontraria no outro sua própna de identidade e de organização interina. Como os leôezinhos de Dis-
estratégia de isolamento e, finalmente, confiariam suas verdades um ney, essas imagens são sempre "uma gracinha", sempre as mesmas,
ao outro sem recorrer a uma autoridade defensiva. Tantos são os fragmentos da natureza coletiva sem significado individual. Uma vi-
assuntos 'que os teriam estimulado. Quanto poderia ter sido ganho! da tão sem fundamento, tão desenraizada, é uma semente que cai
Esses dois homens, cujo pensamento era, aparentemente, tão arro- na superfície; brota depressa, mas no calor do meio-dia fenece. O
corpo que é mais do que a sombra não está restrito à juventude, mas
jado, muitas vezes se sentiam ameaçados na presença de outr~s m~ntes
inclui aqueles que fizeram a jornada interior e enfrentaram sua som-
brilhantes. Eles precisavam de silêncio para perceber a frágIl tela de bra. O corpo da meia-idade é profundamente capaz de mudar, mas
suas próprias imagens. Por quanto tempo Reich e Jung teriam sido esta deve ser uma mudança das imagens internas e uma descarga da
amigos? Quanto tempo Gauguin e Van Gogh trabalharam juntos? tensão muscular crônica. Na meia-idade, o corpo pode adoecer ra-
Mas os encontros teriam produzido resultados extraordinários. Quem pidamente e morrer, ou desabrochar numa maturidade em que bele-
mais pode ser o terapeuta de um grande terapeuta? Só nos resta es- za interior e exterior estejam mais alinhadas. Com a idade, as ima-
pecular que Jung teria encontrado um modo de libertar seu corpo gens interiores devem vir para o primeiro plano e predominar.
e seu coração, e que Reich teria tido um fundamento maior para sua Caso precisemos ser lembrados de imagens corporais que sejam
grande alma. mais do que a sombra, podemos olhar o Davi, de Michelangelo, que
representa, de forma tão impressionante, o estar presente. Percebe-
slHambéni à presença luminosa da vida em muitas esculturas gregas
Notas antigas, criadas antes que a psique se divorciasse do corpo. Para ver
a unidade que perdemos, podemos nos voltar, como Rilke, para os
1. Ernst Pfeiffer, org., Sigmund Freud and Lou Adreas-Salomé: Letters, tra- animais que'enjaulamos como que para levá-los ao desespero.
duzido por William e Elaine Robson-Scott (Nova York: W.W. Norton, 1985), p. 174.
2. William Blake, Poems and Letters, org. por J. Bronowski (Middlesex, In- De verem as barras, sua vista fica tão exausta
glaterra: Penguin, 1986), p. 96. que ela já não agüenta mais nada.
3. Maud Oakes, The Stone Speaks: The Memoir of a Personal Transforma- Para ele o mundo são barras, cem mil
tion (Wilmette, III.: Chiron Publications, 1987), p. 15. barras, e por trás das barras, nada.
4. Peter Reich, A Book of Dreams (Greenwich, Ct.: Fawcett, 1973), pp. 17-31.

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o flexível balanço daqueles passos leves e ritmados encarnado, o cristianismo, em sua luta contra o paganismo, amaldi-
que giram em círculos dentro da minúscula jaula çoou a carne e lançou o grande Pã da natureza, com suas patas, na
é como uma dança de energia em volta de um ponto exclusão, como se ele fosse o demônio. O corpo do homem desper-
no qual uma grande vontade contém-se entorpecida e aturdida.
S6 de vez em quando a cortina das pupilas se ergue tou, por breve período, durante a Renascença, descobrindo a magia
sem som algum ... então entra uma forma, do paganismo grego, mas novamente retrocedeu a um devaneio abs-
que desliza apertada em meio ao silêncio dos ombros, trato, distante. Reich chegou a sentir que o dano ao corpo do ho-
chega ao coração e morre. 1 mem era irreversível. Só pela aceitação da sexualidade na infância
e em uma cultura que dê preferência à auto-regulação e à autonomia
o corpo não é apenas sombra, mas luz. O corpo fatigado, ~ue individual em vez de um comportamento passivo, é que um novo cor-
impõe suas·própriasliinitações às considerações da mente consCIen- po, espontâneo e vivo, pode sustentar uma sociedade não-patológica.
te, que parece desenvolver, aleatoriamente, um~ wndência, uma fra- Depois que uma folha de papel é dobrada, a marca nUo pode mais
queza, uma incapacidade, !l!pr~senta um Sei! VIVO total. O corpo de- desaparecer; mas, embora o caráter possa ser fixado de uma vez por
.termina como o espírito do homem é moldado no mundo, .e par~ce - todas, o dano pode ser revertido. Nós podemos nos apropriar de nos-
. que é sua a palavra final. A mente pode reclam..ar cAontra a mJ~stIça
de uma dor nas costas, mas seus argumentos nao tem relevâncIa no lias projeções, podemos afrouxar as constrições de nosso peito e pel-
mundo e sua tentativa de se apartar do corpo cria um paraíso enga- ve, e voltar a sentir o fluxo da vida. Podemos envolver diretamente
noso um mundo de sonhos irreais. Um corpo não informado pela o corpo em movimentos que o relacionem com sua sombra.
ment~ e pelo espírito pode entregar-se à vida instintiva ou às imita- Alexander Lowen, fundador da bioenergética, foi além da me-
ções canhestras, mas a mente não informada pelo corpo perde seu táforâ biológica e observou os idiomas da linguagem. O idioma é
discernimento e de maneiras imprevistas e críticas, embota e recua. uma expressão natural da amplitude da psique humana e, como tal,
Sem o corpo a' sabedoria do Self não pode ser conhecida. inclui tanto impulsos sexuais quanto espirituais. Quanto às questões
Abando~amos o corpo porque não conseguimos tolerar as li- religiosas, Lowen é cauteloso. Como Jung, ele, acertadamente, não
mitações impostas pela couraça docaráter, seu aspecto opressivo" queria tornar-se um metafísico e cindir a psique que proc;urava curar.
sombrio. Quando crianças, fomos tieinados em cegueira e temores Como terapeuta, pode-se encorajar todas as mais profundas expres-
. desnecessários, e ingerimos o mesmo veneno quc~ nossos pais. "Se sões dos impulsos, espirituais e sexuais, sem formular conclusões para
as portas da percepção fossem limpas", escreveu Blake, "tudo pa: o cliente.
receria ao homem o que é, infinito. Pois o homem fechou-se em SI Lowen, ao reparar na linguagem, não só liberou a bioenergéti-
mesmo, de tal modo que só vê todas as coisas através das estreitas ca como, posturalmente, ergueu o corpo do divã. Reich trabalhava
frestas de sua caverna"2. Como Reich, Blake achava que a força re- com a pessoa deitada; com Lowen, o vocabulário do movimento hu-
pressora da Igreja e do Estado destruíam a expressão sexual e a ale- mano se expandiu ao potenciá! do bailarino. Se, de fato, corpo e mente
gria do corpo. Ele dizia que é "a astúcia das mentes fracas e domes-
ticadas que tem o poder de resistir à energia".3 Blake desenhou cor- são dois lados de uma mesma moeda, o movimento irrestrito do corpo
pos de homens e mulheres exaltados como corpos de l?z, r~pletos representa uma drástica libertação da restrição psicológica e da morte.
de energia e força. Na concepção de Blake, os poetas antigos tmham Para o terapeuta, trabalhar com o corpo deitado é mais útil no con-
animado o mundo com deuses e deusas, nomeando-os e identificando- texto de uma ampla gama de posturas, que incluem ficar em pé, es-
os com florestas árvores, rios, e depois se desenvolveu um sistema tender os braços adiante, alongar-se, curvar-se adiante, socar. Reich
e um clero que s~ aproveitaram das pessoas comuns, assumindo au- havia desenvolvido 'os conceitos de retenção, colapso, entrega e re-
toridade ao alegar que falavam em nome dos deuses. "Assim foi que flexo do orgasmo. Lowen desenvolveu, na postura ereta, o conceito
os homens se esqueceram de que todas as divindades residem no pei- de grounding, em que o corpo ereto tem que sentir a função e a for-
to humano."4 ça das pernas apoiando-se no mundo. As posturas de Lowen desen-
O corpo de luz pode ser visto na ressurreição de Cristo. Ele ins- volveram um ego mais flexível, capaz de integrar os transbordamentos
truiu'Tomé, que duvidava, a pôr suas mãos nas feri.das ainda viv~s, regressivos da posição prona. Lowen conseguiu encontrar posturas
e o Cristo ressuscitado comeu e bebeu com seus dlscípulos - nao úteis nas disciplinas orientais e também usou o conceito oriental de
era um fantasma, não era uma aparição. Em contradição com o Cristo centrar no hara (três dedos abaixo do umbigo).

166 167
Se, como Moisés, Reich liderou o povo escolhido no deserto, Jung dizia que os símbolos podem refletir a fisiologia arcaica
então Lowen levou-o à terra prometida, às portas de Jericó, ao Self. do corpo ou podem ser mais diferenciados, refletindo o caráter mais
Reich foi o pioneiro; o gênio de Lowen foi como técnico, como bri- consciente. No corpo humano reside todo um acervo de símbolos,
lhante estrategista das intervenções clínicas cotidianas. Lowen desen- dos mais primitivos aos mais diferenciados; assim sendo, o símbolo
volveu e sistematizou a definição reichiana de caráter e reduziu a da serpente que aparece numa fantasia ou sonho está diretamente
afirmações essenciais os diferentes estilos de personalidade. Embora relacionado com a função corporal:
Lowen nunca se atribuísse uma nova filosofia de corpo, ele criou ins-
tintivamente um âmbito mais permanente de movimentos que evoca Mais especialmente, a ameaça ao próprio Self mais intl~rior, por dragões
uma confiança, uma esperança de que o corpo seja maior do que e serpentes, aponta para o perigo de que uma consc:iência recém-ad-
a sombra, sendo intrínseco a seu trabalho um otimismo americano quirida seja novamente tragada pela psique instintiva, o inconsciente.
diante da natureza como curadora generosa. Desde tempos imemoriais os vertebrados inferiores têm sido os símbo-
Lowen baseou seus cinco tipos de caráter nos estágios de desen- los por excelência do substrato psíquico coletivo, que está anatomica-
volvimento de Freud. Dessa maneira, lançou os alicerces para uma, mente localizado nos centros subcorticais, cerebelo e medula espinhal.
psicologia do corpo vinculada ao conjunto mais amplo da psicologia Esses órgãos constituem a serpente. Portanto, sonhos com cobras cos- ,
do século XX. Embora o trabalho de Lowen t(~nha trazido o nome tumam ocorrer quando a mente consciente está distante de suas bases
. de Reich para o primeiro plano, Lowen não foi de maneira alguma instintivas. 8 . .

um popularizador; pelo contrário, foi - e ainda é - um soberbo Jung pensava que, com o sistema simpático, a pessoa penetra
estilista, com predileção pela simplicidade e pela despretensão. Na no inconsciente coletivo profundo, onde talvez psique e matéria par-
linguagem do corpo, Lowen descobriu um corpo que é mais do que tilhem uma a natureza da outra:
sombra. Ele tem trabalhado para desenvolver o corpo harmonioso,
gracioso e confortável.
Para Jung, chamado de místico, o maior de todos os mistérios As "camadas" profundas da psique perdem singulnridade conforme
se recua progressivamente na escuridão. "Mais para dentro e para bai-
estava no próprio corpo. Em seus estudos da ioga oriental, ele se in- xo", equivale a dizer que, conforme se aproximam os sistemas funcio-
teirou da produção do "corpo diamantino", o desenvolvimento de nais autônomos, elas vão se tornando cada vez mais coletivas, até se
algo eterno e durável no laboratório da vida. E ele sabia que a alqui- tornarem universalizadas e se extinguirem na materialidade do corpo,
mia que buscava implicava mudanças corporais similares. A criação ou seja, em substâncias químicas. O carbono do corpo é simplesmente
da pedra filosofal, de um Self durável num mundo em perpétua mu- carbono. Por isso, "no fundo", a psique é simplesmente "mundo ... 9
dança e decadência, e até a formação de imagens simbólicas proce-
dentes do inconsciente, refletem-se no corpo. "A formação dos sím- Reich estabeleceu sete segmentos do corpo em que a couraça se
bolos", Jung escreveu, "está freqüentemente associada a distúrbios instala, as contrações segmentais que formam ângulos retos com o
físicos de origem psíquica, que, em certos casos, são decididamente fluxo da energia pelo corpo. Em contraste com esses focos de som-
vividos como 'reais' ". 5 E continuou: "Os símbolos do Self proce- bra, os sete chakras são há séculos conhecidos como importantes cen-
dem das profundezas do corpo, e expressam sua materialidade em tros psíquicos da consciência. Historicamente, os chakras têm sido
todos os pormenores, tanto quanto a estrutura da consciência aper- ilhas de luz num oceano escuro, refúgio daqueles que, através de ha-
ceptiva. O símbolo, portanto, é um corpo vivo, corpus el anima" .6 bilidades desenvolvidas, tentaram ir mais além do corpo-sombra. Co-
Para a mente oriental, o próprio pensamento tem substância. mo centros da consciência, nossa tendência, nas palavras de Harish
O homem como ser vivo, disse Jung, aparece externamente como um Johari, é "entender as situações da vida do ponto de vista do chakra
corpo material que, no interior, se manifesta como uma "série de no qual costumamos nos sentir mais à vontade e identificados". 10
imagens das atividades vitais que se processam lá dentro. São dois Numa série de seminários sobre os chakras, realizado em outu-
lados da mesma moeda".7 _EI1!'{I!~(te.JD~º.a,lJ!ªLQjJ~t~mlçnte C.oro.o, bro de 1932, junto com o dr. J. W. Hauer, Jung esboçou suas con-
_corpo, Jung escolheu trabalhar com os símbolos, sab.endo qU.~Leles cepções acerca do significado desses centros energéticos em relação
tinham unia materialidade própria e alteravani profundamente a ener- ao seu próprio sistema de pensamento. 11 O primeiro chakra, mulad-
gia do corpo. .' .. - .- hara, localizado no períneo, nos relaciona com o mundo. Associado
168 169
Pensamentos e sentimentos se reúnem no coração, onde se reconhe-
à nossa sexualidade, também representa nossa "raiz de apoio" , nosso
ce valores. Alcançamos um nível de civilização e de desenvolvimen-
fundamento. ~ossa consciência é m~ramente o lugar do ego. Esta-
to pessoal. Passamos a conhecer o poder dos fenômenos psíquicos .
mos adormecIdos se não nos movermos mais adiante. O primeiro
No nível do coração passamos a saber que somos contidos por algo
.chakra representa a terra. -
maior do que nós mesmos, cuja existência é exclusivamente psíquica.
O segundo chakra, svadhisthana" representando a água e situa-
~o quinto nível, centro laríngeo ou visuddha, a pessoa passa
d.o no plexo hipogástrico e nos genitais, é o passo rumo ao incons- a saber que as essências psíquicas são as essências fundamentais do
cIente, o oceano em que vive o leviatã, em que a pl~ssoa deve enfren- . ínundo: Nele aprendemos a reabsorver as projeções que colocamos
tar sua batalha de herói" como Beowulf lutando nas profundezas das ·no mundo, que nosso pior inimigo é um mero veículo para nossa pró- .
ág~as. co~ a mãe de OrendeI. A luta com o mOIllstro pode levar à
pria projeção.
amquIlaçao, mas também representa um batismo, uma fonte de re- No centro ajna, o sexto, ou terceiro olho, o deus que dormia
generação após a destruição dos velhos modos. O mito do sol é uma
no muladhara está plenamente desperto, e a psique, a semente ala-
história batismal. O sol vespertino está velho e fraco e por isso mor- da, pode voar. Ou seja, a função intuitiva está desperta e vê as imà-
re, ~e~cendo para dentro do mar ocidental, onde acontece a jornada gens e a energia que governam nossas vidas.
~antlI~a noturna até renascer no horizonte oriental. A jornada ao
9s.étimo ~entro, sahasrara, ou chakra coronário, é representa-
InCOnSCIente S? ~ possível se a pessoa tiver despertado a grande ser- ·do pelo lótus de Jnil pétalas. Nele alcançamos ó último portal de acesso
pe~te, kundahm, que só será mobilizada pela atitude correta. Como
para a iluminação. O chakra da coroa é a passagem a uma outra di-
a vIagem é longa e perigosa, um compromisso trivial não adiantará ·mensão da realidade, para nossa conexão com o que é durável e eterno,
de nada. De~emos nos encaminhar decididamentt: às profundezas; , e com a experiência mística dos adeptos que nos precederam através
caso contráno devemos retroceder. psicologicamente, a kundalini é dos séculos. Em virtude do avanço representado pelo conhecimento
o q~e nos faz embarcar em grandes aventuras. Se o cavaleiro arrisca' desse nível, e também pelas experiências intraduzíveis já relatadas
.a vIda pela dama, então a dama é a kundalini. O segundo chakra - experiência do nada, por exemplo -, somos reduzidos a genera-
é o útero do renascimento, e é intensamente feminino. lidades e ao silêncio.
Quando o sol emerge e seus róseos dedos são vislumbrados na Os chakras fornecem imagens estranhas à biologia do século XX,
aurora como jóias no céu, o terceiro centro é alcançado - manipu- imagens de enorme poder e de precisão inacreditável, que agem so-
ta - .e este !epresenta fogo e emoções;estã-sitüadono plexo sólai: bre nós. A serpente da vida divina desenrola-se na escura pelve de
. DepoIs de bb.erar todo o mundo emocional do sexo e do poder, ii nosso inconsciente e nos mobiliza, atravessando os centros de lótus
pessoa deve VIr à tona no fogo e representa o divino. Aquele que não que ligam as trevas à luz, nosso inconsciente e nosso estado vígiI.
consegue sobreviver no fogo, ser por ele excitado, é mera sombra. Todos os deuses, deusas e demônios estão em nós e nossos corpos
N? plex~ solar, co~vém que a pessoa esteja viva no fogo, porque se abrem para o cosmo.
n~o h.á b?~rdade, nao há ~r, só ossos, músculos, sangue e intestinos. Em 1933, Heinrich Zimmer, professor de indianismo, falou so-
~I o IndIVIduo é como mInhoca. Emergir dessa inconsciência é en-
bre ioga tântrica na primeira conferência de Eranos, na qual Jung
fim alcanç~r a superfície da terra, indicada pelo diafragma. também apresentou um trabalho. 12 Disse Zimmer nessa ocasião:
A segUIr, alcança-se o qulgto centro, anahata, ou coração, o quar-
to elemen~o, ar, .representado pelos pulmões, que absorvem e expe-
lem energIa - vInculando os mundos interno e externo. O sopro vi-
°
Todos os deuses estão em nosso corpo; nada mais quer dizer esque-
ma visual da ioga Kundalini, cujo adepto orienta a serpente do macro-
tal é nosso vínculo com o Espírito Divino e toca a todos nós em to- cosmo geradora do mundo, multiplicadora do mundo, a sair de seu
~.os os p~ntos ?O planeta, e nos vincula, para além'do'ego, ~oín to~ torpor nas profundezas, e subir por todo o corpo até seu oposto su-
das as COIsas VIvas. A pessoa elevou-se acima da terra finalmente e, praterrestre. 'Em seu caminho ascendente, passa através dos centros de
lótus do corpo, nos quais são reunidos todos os elementos o material
no anahata, começa a individuação. A individuação é o processo que
nos le~a ~ nos centrar em algo que não é mais nosso ego. O ego está a partir do qual a força vital informe cria todas as forma~ e todos os
. no pnmeIro chakra, aquele em que nos enraizamos na terra, o mu- gestos, e nesses mesmos centros são vistas e adoradas as formas mani-
ladhara, enquan~o que o. êe!f está no coração. Cruzar o diafragma festas como aparições da divindade, assim como as facetas de suas shak-
tis (poder feminino).13
nos conduz do VIsível ao InvIsível, ao intangível, às coisas 'psíquicas.

170 171
A consciência do corpo e o despertar espiritual têm sofrido uma
separação artificial no Ocidente. A atenção à imagem psíquica e ao 9. Ibid., p. 173.
10. Harish Jo hari, Chakras: Energy Centers of Transformation (Rochester,
fluxo energético do corpo abrem caminho para o ser iluminado e en- Vt.: Destiny Books, 1987), p. 14.
carnado. Imagem e energia são a inquieta vanguarda de nosso ser, 11. C. G. Jung, "Psychological Commentary on Kundalini Yoga", Spring, 1975
conduzindo-nos para perto e para longe da sombra. (1975); 1-32.
As limitações que aceitamos ao encarnar neste planeta são du- 12. As conferências anuais de Eranos, organizadas por Olga Frõbe-Kapteyn,
teosofista holandesa, em sua vil/a à beira do Lago Maggiore, na Itália, todo mês
ras e frustrantes. Para muitas pessoas, com a idade, as sombras se de agosto, buscavam o caminho da mediação entre as tradições psicológicas e espiri-
alongam e se apoderam delas. Alguns consideram essas limitações tuais do Ocidente e do Oriente. Essas conferências, nas quais Jung desempenhou
como justificativas para evitar experiência corporal usando negação, um papel predominante, reuniram muitos homens e mulheres brilhantes.
entorpecimento ou recursos físicos como drogas e álcool. Limitações 13. Heinrich Zimmer, "The Significance of Tantric Yoga", in Spiritual Disci-
plines: Papersfrom the Eranos Yearbooks, org. Joseph Campbell, Bollingen Series
às vezes nos amarguram. Lesões cerebrais ou doenças deformantes XXX, voI. 4 (Princeton: Princeton University Press, 1985), p. 32.
nos desafiam a encontrar sentido e significado para a vida; não obs-
tante, na psique de cada um de nós está a semente alada de nossa
iluminação. Não há problema sem solução, nenhum acontecimento
sem propósito. O Self maior se mantém oculto e revela suas verda-
des quando o fundamento de nosso ser estiver plenamente preparado.
O corpo é nossa escola, nOSGa lição, nosso protagonista, nosso ,
inimigo querido, nossa sombra e animal animus, o amigo profundo
de nossa alma. Nossos corpos, tão completamente a substância do
mundo, tão sensíveis às nossas imagens internas, são mais mutáveis
do que pensamos, mais fluidos e espirituais, mais impregnados de
luz do que suspeitamos. Nossos corpos, finalmente, tornam-se o tram-
polim para reinos superiores, e podem nos acompanhar em alguma
forma superior aos outros mundos. Nós talvez não sejamos sepulta-
dos com nossas lanças, escravos e animais favoritos, mas se nossa
vida continuar com a morte do corpo, alguma espécie de tecido cor-
poral ainda pode nos revestir de forma primaI e elegante.

Notas
1. Rainer Maria Rilke, "The Panther", in Selected Poems of R. M. Rilke,
tradução de Robert Bly (Nova York: Harper Row, 1983), p. 139.
2. William Blake, "A Memorable Fancy", in Poems and Letters, org. J. Bro-
nowski (Middlesex, Inglaterra: Penguin, 1986), p. 101.
3. Ibid., p. 102.
4. William Blake, "Proverbs of Hell", in Poems and Letters, org. J. Bro-
nowski (Middlesex, Inglaterra: Penguin, 1986), p. 96.
5. C. G. Jung, The Archetypes and the Collective Unconscious, tradução de
R. F. C. Hull, org. Sir Herbert Read, Michael Fordham e Gerhard Adler, Bollingen
Series XX, voI. 9 (Princeton: Princeton University Press, 1980), p. 173.
6. Ibid.
7. C. G. Jung, The Structure and Dynamics of the Psyche, 2" ed~ção, tradu-
ção de R. F. C. Hull, Bollingen Series XX, voI. 8 (Princeton: Princeton University
Press, 1969), p. 326.
8. Jung, Archetypes, p. 166.

172
173
Por outro lado, os junguianos abordam as imagens e os símbo-
Capítulo 15 los da psique por intermédio da análise dos sonhos e da imaginação
ativa. De maneira profunda e inesperada, as imagens contêm e libe-
-i'am energia. Contudo, por não tratar diretamente o corpo, o analis--
-ta junguiano pode negligenciar o clamor do corpo ou não mobilizar
a energia de seu cerne. Uma abordagem energética ~: "imagética"
Imagem e energia (para cunhar uma expressão), ao trabalhar com a bioenergia e com
a bio-imagem, recupera a cisão mente-corpo. A bioenergética, que,
como Hermes, está situada nas fronteiras entre corpo e psique, for-
nece um significativo ponto de encontro - ou disciplina inclusiva
- para o estudo das imagens que informam o processo energético.
Neste capítulo final, como analista bioenergético, examinarei algu-
mas possibilidades nas quais imagem e energia, esferas separadas em
Jung e Reich, podem funcionar juntas.
A sexualidade é nosso vínculo com o movimt:nto íntimo da vida, Da perspectiva junguiana, o casamento com o sistema reichia-
um arco-íris biológico que nos liga ao coração energético da nature- no é uma revelação. A sombra é fisicamente revelada. Aquilo a cujo
za, a Pã e à terra rica e escura. Repousando no ventre de nossa mãe, -acesso tivemos tanta dificuldade aparece ostensivamente diante de
adotamos como nosso o ritmo de sua respiração. Quando vemos o
nós. Temos então o acesso mais direto possível ao que era rejeitado
arco-íris no céu após uma chuva torrencial, estamos conectados, por
outro pacto, ao Self que desperta, e sOmos possuídos por uma torren- e inacessível. Os elementos masculino e feminino, o animus e a ani-
te de imagens inesperadas que determinam nosso presente e futuro. ma, tão evasivos nos sonhos, dançam diante de nossos olhos, tangí-
Quer sigamos ou não o arco-íris da terra e do céu, chegamos ao nosso veis e aparentes. Freqüentemente, nosso corpo, relutando em mani-
ser vivo, uma mistura de sombra e luz, de energia e imagem. Com re- festar nossa imagem contras sexual de maneira óbvia, busca incons-
lutância, somos levados a lidar com elementos de nossa natureza que cientemente pelo corpo do outro, para que este acolha a imagem.
antes havíamos negado. Jung e Reich.'expuseram eficientemente os ele- Uma imagem feminina que não tenha expressão reconhecida em nosso
mentos negados de nosso corpo e de nosso espírito. corpo pode nos atrair para uma mulher que contenha por nós a pro-
Os processos simbólico e energético estão profundamente rela- jeção. Parte do trabalho imagético é observar essa imagem contras-
cionados. @m~rimenta.nlÓs ii psique pelas imagens qúe-âélaemanam, sexual em nosso próprio corpo, como um paralelo à retomada de
e experimentamos_o corpo através do fluxo e da interrupção daener,:- nossas projeções.
_gür. -As imagens são para a psique o que a energia é para o corpo; - No corpo como sombra lidamos com uma categoria corporal
elas compõem uma identidade funcional. mais -inclusiva do que a de corpo encouraçado: é o corpo inexpresso;
A bioenergética e o trabalho reichiano têm implícita considera- ~primitivo, indiferenciado; o corpo perdido na escuridão. Não mera-
ção pela imagem subjacente que, como peixe preso na rede das con- menfe contido, contraído ou negado, mas um corpo que nos lembra
trações musculares, incorpora a experiência do trauma passado. O as esculturas "inacabadas" de Michelangelo, em que o homem pa-
trabalho com o caráter - cujo pioneiro foi Reich -, desenvolvido rece lutar contra a pedra incipiente. Se uma área do corpo está sepa-
por Lowen, associa o trauma infantil à couraça de caráter do corpo. rada da energia e não mostra evidências de conflito, é mais provável
As cinco modalidades de couraça de caráter de Lowen contam his- que tenha se mantido indiferenciada, e isso se refletirá na sombra
tórias de violações infantis e de defesas desesperadas construídas à subjacente. Lidamos então com um corpo que precisa ser relaciona-
custa de alguma perda vital, pessoal, à custa do funcionamento do
do, mas perde" toda relação consciente consigo mesmo. Na sombra
corpo, à custa da queda ou da redução da energia de alguma parte
do corpo. A análise do caráter investiga o mito ou o grupo de ima- está o corpo de nossa família, que inconscientemente nos determi-
gens subjacentes ao processo corporal de encouraçamento. Muitas na. A maneira de andar da mãe, os ombros curvos do pai, podem
vezes, no entanto, por limitações financeiras que reduzem o tempo se impor à nossa própria disposição subdesenvolvida. Devemos nos
de trabalho, o estudo rigoroso da energia corporal deixa de lado o individuar física e psicologicamente, superando o corpo familiar e
exame das imagens mais sutis e ambivalentes. liberando nossa herança. O corpo-sombra precisa desenvolver um

174 175
vocabulário de movimentos que nos conduza, da auto-referência res- caso O cliente deve prestar atenção às suas bio-imagens determinan-
trita e isolada, ao contato genuíno com o mundo. A couraça, como tes. Mais adiante, convido-o a examinar uma série de movimentos
defesa obsoleta, deve ser sacudida, enquanto a sombrá deve ser relà- que o conduzem à sua libertação. Muitas vezes, com o trabalho bioe-
cionada e retomada. Ao explorar uma seqüência demovimentos, o nergético, a bio-imagem se torna uma imagem sentida, cinestesica-
cliente pode ser conduzido, de forma não verbal, de um corpo-sombra mente lembrada e vivenciada. A transição para uma imagem sentida
a um corpo liberado, que se posiciona de maneira convincente no dá ao cliente uma alternativa para dominar a imagem que o determi-
mundo. na e levá-la a uma consciência total.
Muitas vezes ficamos prensados entre a imagem de nosso corpo- Tive um cliente - "George" - que quando criança fora ridi-
sombra que, por exemplo, pode nos parecer obeso e feio, e a ima- cularizado e menosprezado por sua sensibilidade, tida como sinal de
gem corporal ideal, que só pode ser alcançada com dietas continuas, fraqueza. Fora discriminado e rejeitado pelo pai, que negava seu pró-
rigorosas e muito treinamento físico. A oscilação entre esses opos- prio lado feminino. Mais tarde, George não só passou a achar que
tos promove um desespero cínico. Num gesto fútil, tentamos supe- era um "maricas" mas também "pervertido". Ergueu uma couraça
rar ou negar o corpo-sombra. Este, geralmente, abriga imagens de contra essas imagens devastadoras. Seu rosto e seu corpo ficaram acha-
nosso Self sexual e contrassexual, que tememos e queremos derro- tados e duros, seus olhos estreitos, como frestas evasivas numa forta-
tar. Esses elementos da sombra não reconhecidos têm poder e gra- leza assediada, seu humor irônico e amargo. Meu trabalho direto na
diente de humanidade que não podemos perder, mesmo que não te- couraça corporal foi facilmente interpretado como ataque e provo-
nhamos a coragem e a compreensão necessárias para sua plena acei- cou na couraça uma resistência silenciosa. Por outro lado, a aborda-
tação. A imagem do corpo ideal pode nos dar sustentação em nossa gem verbal de sua sombra (o "maricas", o "pervertido") - torná-la
vacilante imagem de masculinidade ou feminilidade, mas a um custo presente, reconhecida, destacá-la - afrouxou a couraça, que em parte
excessivo. A luta deve ser enfrentada no nível das imagens interio- fora erguida para negá-la. George tendia a ter como amigos pessoas
res. Com freqüência, nossas imagens interiores são um emaranhado extrovertidas, e suas imagens complementavam a dele, compensando
de mensagens malcompreendidas e malpercebidas. mensagens do pas- seu recuo. Tornou-se importante para ele incorporar a imagem extro-
sado, em contradição flagrante com o modo como os outros nos per- vertida dos amigos, ativa e conscientemente.
. cebem no presente. "- ) Num determiriado exercício, fiz com que George se colocasse em
Antes que o corpo-sombra possa ser invocado, talvez precise- seu corpo-sombra e, depois, lhe pedi que fizesse alguns movimentos
mos desenredar a sombra e identificar e distinguir nossa natureza mas- que poderiam levá-lo a um corpo mais liberto. Ele ainda não tinha
culina e feminina. A couraça costuma ser usada para negar ou supe- uma imagem física de libertação. Sua postura ereta era fincada nos
rar o Self contrassexual. O corpo liberado é uma meta mais sadia calcanhares, recuada, tensa. Seus olhos, que não me encaravam, des-
do que um corpo ideal, que, em muitos casos, não é mais do que viavam-se para a esquerda. Seu movimento seguinte trouxe todo seu
uma coleção de estereótipos culturais impessoais. Devemos encon- peso para a frente, um punho arremessado 'para diante e ele gritou -
_trar imagens que promovam nossa liberação e abnYinão daquelas um movimento de caratê. Depois colocou os pés paralelos e abriu bem
iíriãgens que promovem o corpo ideal. O corpo liberado é gracioso os braços. Seu coração e rosto abriram. A parte de baixo de seu corpo
porque não está mais se esforçando por aparência externa, mas re- ainda não havia participado de verdade, mas a dança tinha começado.
presenta a aceitação do elemento sombra e uma libertação de seu do- As imagens são uma linguagem universal. Algumas pessoas são
mínio inconsciente. Devemos apreciar nosso corpo-sombra. Narciso capazes de comunicar imagens com sua clareza interior de intenção
não conseguiu ver sua imagem-sombra e, por isso, afogou-se nela. que transcende as palavras. Quando viajávamos pela Itália, minha
No nível físico, posso fazer o cliente se colocar, por assim di- esposa e eu pedimos a uma mulher italiana que nos desse indicações
zer, iiõseuc-oI'Im;sombra; Então o' instruo para colocar-se no seu de um certo lu~ar. Sem conhecer nossa língua, ela nos deu a infor-
corpo ideal. Depois de ancorar conscientemente essas atitudes cor- mação, em italiano, e nós entendemos, sem conhecer italiano. Hou-
,porais, instruo-o para que faça uma série de movimentos que o le~ ve então algo mais do que gestos corporais ou palavras com raízes
vem do corpo-sombra ao corpo ideal. Esse processo dá a ele um cer~ comuns. De algum modo, nós "captamos" dela as imagens. A maioria
to domínio palpável sobre as imagens que inconscientemente o vêm das pessoas, no entanto, é uma contradição de imagens e falta-nos
determinando e, a mim, abundantes observações físicas e psicológi- a simplicidade da expressão consonante. Tivemos um convidado que

176 177
ficou hospedado no andar superior de nossa casa, enquanto estáva- poderosas imagens para substituir as imagens nega~ivas in~esejadas
mos em férias. Certa vez, ele se lembrou de ter sido poderosamente 'que promovemos inconscientemente~ Um rapaz cUJa energia estav.a
atraído até a janela que dava para o quintal. Lá viu dois gatos, olhan- 'recuada para longe de seus genitais e pelve foi solicitado a repetir
do fixamente para sua janela. Ele esquecera de alimentá-los. Os ani- "Sou homem" enquanto pisoteava com força o chão. A expressão
mais, como as crianças pequenas, conseguem s(~ comunicar direta- gestual passou do protesto petulante e incrédulo de um menininho
mente através de imagens e, desde que tenham uma audiência recep- à afirmação vigorosa e irada do homem.
tiva, suas intenções básicas podem ser conhecidas. Como terapeuta, Às vezes a imagem determinante aparece num sonho. Um de
pergunto-me que imagem está por trás de um ombro caído. É uma meus clientes ~ "Jim" - sonhou que era um barão assaltante e que,
'imagem da sombra? Uma imagem da couraça? Uma imitação de uma enquanto dormia, seu serviçal envolveu seu corpo num casulo de ar-
imagem ideal? Não só a energia do corpo deve ser liberada, mas tam- gila, de modo que quando despertou mal podia se mexer. Jim acha-
'bém a imagem que dá alma à expressão corporal. va que isso era uma ameaça à sua vida. Seu corpo era r~chonchudo
,Muitas vezes, devemos abordar diretamente a image!ll subjacente. e subdesenvolvido. O sonho lhe trouxe, com força, a Imagem que
Talvez a imagem mais conveniente para despertar nossos corpos e determinara sua conformação corporal. Ele alcançara um certo bem-
neles despertar uma fármamais leve e livre da mitologfa 'de nossa' estar material como profissional e, deliberadamente, evitara qual-
cultura - por exemplo, uma personalidade marcante de um filme: quer trabalho com seu desenvolvimento físico, área em que seu pai
'Assim como as crianças imitam heróis e heroínas, nós, adultos, tam- se destacava. A imagem onírica foi um instrumento para um domí-
bém criamos diariamente nossos corpos de acordo com a imagem nio maior da expressão física.
que alimentamos. Após nos tornarmos fisicamente adultos, vemos Uma mulher de 24 anos - "Alice" - começou análise bioe-
com surpresa que nosso corpo se modifique todo. A idade vem ines- nergética num estado de grande agitação. Tinha dificuldade p~a man-
peradamente, sem resistência, diante de nossa ignórância. Com a ida- ter o contato era inquieta e preferia estar em constante mOVImento.
de, esperamos as lesões, as doenças e a incapacidade e, desse modo, Descobri co~ o tempo que'havia abusado das drogas. Por vários anos,
assistimos ao nosso declínio. A imagem mais coerente pode ser erro- a tensão de Alice diminuiu, ela pôde entrar em contato, parou de
n'eamente implantada no terror. O corpo, atolado no reino das ima- usar drogas. Mas sentia-se assexuada, embora fosse claramente uma
gens, fica, até certo ponto, alheio e sem sentido, facilmente vítima mulher atraente; com energia sexual e até certo ponto disponível. O
de imagens de medo. trabalho bioenergético de longo prazo lhe proporcionou relaxamen-
Um dos grandes problemas da, mudança e do envelhecimento to e abertura da caixa torácica e pelve; mas uma mudança significa-
é que nós não temos uma imagem vital alternativa. O terapeuta des- tiva aconteceu após uma sessão em que utilizamos imaginação ativa
perta a imaginação. Às vezes, uma auto-imagem saudável é impossí- com uma figura onírica. Nesse sonho, uma "menina má", que ela
vel para um cliente; a presença do terapeuta numa terapia de longo sabia ser ela mesma (saltos altos, minissaia justa, desesperada, vi-
prazo torna-se a imagem interna incorporada. O corpo, em adapta- ciada em drogas, sexuada), aconselha a irmã boazinha a não levar
ção constante, tende na direçãc da imagem qúe assume como sua. essa vida. O sonho sugeria que o uso de drogas, para Alice, não era
'Se a imagem determinante for imprópria, o terapeuta deve alcançar tão periférico como eu havia suposto. Ela voltara às drogas e tinha
essa imagem, interrompê-la e substituí-la. Numa intervenção imagé~ vergonha de me dizer. Só no diálogo com essa imagem feminina mais
, tica, certo cliente se viu como hindu de elevada estatura, e essa ima- primitiva e sua gradual integração sua energia corporal ficou livre
gem automaticamente produziu um alongamento do seu pescoço e para adotar uma expressão feminina mais integral. Sua sexualidade
um relaxamento nos ombros. O uso direto da hipnose pode servir estivera contida pelo vício, numa desventurada tentativa de resolver
para expor bio-imagens ou para implantar novas imagens de libera- questões edipianas.
ção corporal; mas, mais freqüentemente, a mera consciência dos es- A atenção,às imagens é um dos aspectos do trabalh~ terapêuti-
,tados de transe"eda sugestão hipnótica servem adequadamente. Afir- co jUIlguiano-reichiano; a atenção à energia é o outro. As vezes, é
mações,acõmpanhadas ou não por gestos, são uma técnica valiosa mais importante ser testemunha silenciosa do movimento corporal,
para convocar os arquétipos e programar novas imagens, ao mesmo com a pessoa em pé ou deitada, do que indagar com palavras. Quando'
tempo em que trazem novamente à cqnsciência as imagens negativas 'sentamos ao lado de um cliente reclinado, podemos estar pescando
que devem substituir. ,A repetição das afirmações introduz novas e num lago tranqüilo e parad(), atentos ao que está sob a superfície,

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observando o que a agita, com respeito lleJaJjll:g..!!~em corporal, que couraçada, e, apesar disso, pode construir todo um vocabulário de
nunca deve ser reduzida a palavras. O símbolo, que miadveitência libertação e mudança de um estado físico-psíquico para outro. Pode
de Jung é intraduzível, é sua próp·ria e suficiente expressão; a ener- ser que, às vezes, ele sinta vontade de recuar para dentro da casca,
.. glªA.º_c~rpo, seu movimento e som profundos, também devem ser porque tem movimentos que lhe dão escolha. O lado escuro e instin-
ouvidos e reconhecidos por si mesmOs. O trabalho final de Reich fOI tivo pode dominar a postura corporal, sem ameaçar nossa liberdade .
caracterizado por esta atenção paciente e silenciosa ao movimento . Às vezes, os conflitos infantis são tão brutais e lesivos que as
natural da energia do corpo, à associação corporal livre. As pala- palavras nãoajudam a escapar da prisão psicológica depois de estar
vras, segundo ele, atrapalham o esforço do corpo para afirmar e res- lá dentro. A relação de uma cliente com a mãe alcoólica levava-a
taurar seus próprios ritmos saudáveis. repetidamente a uma situação de conflito insolúvel, como filha lesa-
Com um cliente novo, gosto de observar aquilo que chamo de da. Ela também tinha construído uma imagem de criança livre e efi-
assinatura individual do corpo, os trejeitos enfáticos do corpo que ciente, que se desenvolvera com independência na escola. Embora
está em pé à minha frente. Observo suas predisposições, sua postura emocionalmente seus recursos fossem insuficientes para sair do seu
geral, suas tendências. Fico atento ~os gestos, sem ter que forçar um estado conflituoso, desenvolveu uma seqüência de movimentos que
significado. Pôr-se em pé pode funcionar como associação livre do levou seu corpo, do alinhamento com o corpo-sombra da criança con-
corpo, na qual os estados de ânimo se instalam e se dissolvem tão flituosa, para o corpo liberto da criança livre. Ela pôde sair do con-
prontamente quanto as imagens da superfície da consciência. O des- flito no nível físico.
file desses sutis movimentos pode levar a uma atenção corporal mais A vida como um constructo de simples rituais físicos pode ser
profunda, conforme a ambivalência e a confusão forem se resolven- vivida com vitalidade ou ser submersa na depressão; e a atenção ao
do fisicamente num novo alinhamento através da meditação em pé. âmbito da simples atividade humana é, mais especificamente, o ter-
O complexo desafio de ficar em pé evoca nossos mais precoces es- ritório de uma psicologia corporal. Quando o âmbito do movimen-
forços de mobilidade e independência, questões em geral não resol- . to é constringido, nossa experiência também flCii-empó6récida. ln:'
vidas. Se ficamos atentos e sem interromper quando estamos em pé, . conscientemente trancados no corpo-família, repetimos gestos e pos-
pode~emos nos reorganizar e atingir um equilíbrio mais elegante. turas de nossos pais, e reencenamos suas doenças. Nossas imagina-
As vezes, peço ao cliente em pé que explore movimentos que dão ções e nossos corações são programados para ir mais longe do que
prazer, enquanto observo em silêncio. Incentivo-o a ficar de olhos nossos braços podem alcançar. Quer gostemos ou não, somos mui-
fechados parte do tempo, para conduzir sua atenção mais plenamente .tas e muitas vezes contidos por uma·consciêriCia estreita, inconscien-
para seu processo corporal. Muitas vezes, a dança que ocorre como temente restringida por nossa ignorância corporal. Damos voltas den-
brincad~ira d: c.r~ança, leva diretamente às questões centrais. 'A rigi- tro de nossa estreita gaiola, sem sequer reconhecer isso. Repetimo-
dez e a mflexlblhdade tornam-se aparentes para o cliente e para o nos sem qualquer graça. Se deixamos para trás nosso ego defensivo,
observador-terapeuta. O restrito vocabulário do movimento é pron- devemos explorar o movimento corporal que nos define e avançar
tamente identificável. O prazer é geralmente vivido em movimentos na direção do potencial, de nosso corpo liberto e individuado.
de alongamento e expansão. O corpo tem sua própria linguagem, que , Reunir Reich e Jung num único trabalho não foi tarefa fácil.
também merece a mais respeitosa atenção. E impossível representar uma técnica reichiana sem negligenciar uma
.Quando o cliente se coloca conscientemente em seu corpo-sombra alternativa junguiana. De maneiras significativas, esses dois homens
e .se move para um corpo liberto, cria um diálogo, uma ponte de mo- não podem ser comparados com êxito, mas erguem-se sozinhos, co-
VImento para seu futuro, uma dança. Por exemplo, tenho um clien-=- mo grandes árvores que dominam seu espaço e sua sombra. Colocá-
te que tende a contrair a nuca. Como uma tartaruga, ele recua para los numa relação que nunca usufruíram em suas vidas pode parecer
dentro do corpo, com medo de esticar o pescoço para fora, e seu presunçoso, m.as praticar seus ensinamentos de maneira dissociada
queixo levanta, criando uma distância aparente. O corpo-sombra re- t~bém é insustentável. Não podemos mais mantê-los separados, des-
flete recuo, carência, impotência. Um pequeno movimento de dan- vmculados. Como terapeuta, sugeri neste capítulo um modo de har-
ça é criado pela extensão do pescoço, pela inclinação descendente monizar seus respectivos trabalhos sob o :nesmo teto, mas sua gran-
de sua cabeça; os ombros abaixam e o corpo busca sua própria solu- diosidade se impõe implacavelmente a essa solução de compromis-
ção. O cliente não precisa erradicar sua postura distanciadora e en- so. Enquanto suas semelhanças nos incentivam, suas perspectivas di-

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vergentes (por exemplo, sobre o papel do mal) são profundamente
tido caso ele tivesse abandonado seus proJetos por um estado corpo-
perturbadoras e promovem uma acirrada disputa. ral de ideal bem-aventurança. Reich não viveu uma visão ingênua,
Jung estaria certo ao considerar a escuridão uma inseparável po- e nem teve a intenção de efetuar uma supersimplificação de seu tra-
laridade da luz, estendendo-se do mais íntimo recesso do ser? O con- balho. Ele sabia que, para chegar à totalidade, a pessoa enfrenta o
ceito reichiano de um paraíso genital na manifestação irrestrita de inferno. As enfermidades físicas podem representar mais do que um
nosso cerne natural nos mantém anelantes diante dos portões do céu, fracasso fragoroso, elas assinalam até onde evoluímos, conforme va-
e o acesso será obtido mediante a dissolução da couraça e da dádiva mos sendo testados no fogo central de nossas vidas. Nosso cresci-
de um reflexo orgástico puro. Mas a pureza é fugidia e ninguém po- mento leva-nos a expor nossa ferida, e o desmascaramento da dor
de ingressar no céu reichiano, nem mesmo Reich. Poucas semanas pode ser acompanhado de um grande desequilíbrio físico. O proces-
depois do nascimento, senão antes, a criança já começa a desenvol- so reichiano faz sentido como parte de um esforço contínuo na luz
ver os primórdios da couraça. A natureza imaculada tem sua graça, e na sombra de nosso centro. Não obstante, resta saber se as trevas
mas a visão existencial e evolucionária do mundo considera a queda nos acompanham até o nosso centro mais profundo. A questão não
do homem como o processo que tem por fim desenvolver sua cons- se resolve de imediato favoravelmente a Jung. Reich tinha conheci-
ciência. Embora, de fato, a saudável espontaneidade biológica nos mento da inocência e da saúde, de uma divindade natural e despre-
proporcione um vislumbre da "natureza do cerne" segundo Reich, tensiosa, da pureza que, presumivelmente, Jesus compreendeu. Reich
essa imagem se torna uma meta inatingível, em sua forma mais pu- tinha fé nas crianças do futuro. Em sua crença no cerne amoroso
ra. O cerne só tem valor em ::;eu diálogo com a couraça e a sombra. e saudável, exemplificado por Jesus, ele endossou o ensinamento cris-
A libertação do homem não está divorciada do coração das trevas, tão que proclama que a luz está separada da escuridão e é livre dela,
que estão nele e em torno dele. As imagens de Michelangelo, em sua visão realmente revolucionária, que vem desde Jesus. O autor da Pri-
luta contra a rocha, não lutam contra a couraça, mas contra a natu- meira Epístola de S. João escreveu: "Esta é a mensagem que dele
reza não desenvolvida, o Self não vivido, sem uma imagem. Na na- (Jesus) ouvimos e que vos anunciamos: que Deus é luz, e não há nele
. tureza não desenvolvida não há nirvana e nós precisamos do diálogo treva nenhuma" (João 1, 1:5).
com a sombra em nosso cerne para nossa individuação. A imagem Nós defendemos uma consciência evolutiva por meio de nossa
que Reich tinha de Jesus era de uma natureza espontânea em toda vigilância, nosso incessante diálogo com nossas sombras e com to-
sua poderosa pureza; Reich projetou a sombra numa autoridade ig- das as inúmeras vozes e imagens que nos desafiam, e pelo esclareci-
norante e ardilosa que crucificou Jesus. mento de nossas imagens e energia. Nos níveis mais profundos, deve
Se relegamos o diabo a um nível secundário, impossibilitamos haver significado e intenção, caso contrário, afundamos nas imagens
o contínuo e profundo esforço em nossa psique, não há alquimia na determinantes que nos dirigem inconscientemente, imagens que, por
qual somos testados e submetidos a provas, no cerne mesmo do fo- sua natureza, nem sempre são benignas. Sem intenções esclarecidas
go do inferno. Com todos seus brilhantes insights sobre a natureza e imagens positivas da corporalidade, somos impotentemente traga-
subjacente da energia vital do universo, Reich não chegou a apoderar- dos pelas ações coletivas enquanto rascunhamos nossas vãs esperan-
se de sua sombra e, por isso, não pôde apreender sua luta interior. ças num pedaço de papel que, dentro da garrafa, lançamos ao mar.
"EilCVêZ disso, projetou-a no exterior e teve que criar sua própria cru-
cifixão externa. A crucifixão é uma imagem que nos serve bem me-
lhor como modelo interior para a noite escura da alma. Em nosso
-cerne, devemos ser conscientes e ter escolha. Estimular a espontânea
emergência da natureza, o desbloqueamento da irreprimível vida na-
tural em nossos corpos, não é a resposta final, última.
Na fantasia, deveríamos estar todos tendo orgasmos melhores
e uma vida menos desgastante, de preferência num ambiente bucóli-
co. Talvez o Taiti possa nos pôr mais completamente em contato com
nossa vida corporal, mas nossa vida criativa não estaria sendo aten-
dida. Escrever livros colocou para Reich tensões que não teriam exis-

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