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Por uma critica da multiplicidade nos estudos literarios' For a review of the multiplicity in literary studies Fabio Axcetaup Durio * RESUMO: O PRESENTE ENSAIO DESENVOLVE ALGUMAS REFLEKOES SOBRE O FUNCIONAMENTO OA IDEIA DE MULTIPLICIDADE NOS ESTUDOS LITERARIOS NO BRASIL HOJE. CONSIDERADA © MAIOR LUGAR COMUM DO CAMPO, A ASSOCIAGAO DA LITERATURA COM © MULTIPLO COMBINA-SE COM UMA CRENCA DE QUE AQUELA ESTALIGADA AO BEM € QUE O PLURAL € INERENTEMENTE DEMOCRATICO, ETICAMENTE POSITIVO. ISSO TRAZ EFEITOS EMPOBRECEDORES PARA O PROCESSO INTERPRETATIVO £ £4 ULTIMA INSTANCIA FAZ ASSEMELHAREM.SE © ESTUDO DAS LETRAS COM A FORMA IRCULACAO DE MERCADORIAS DO CAPITALISMO ATUAL. ABSTRACT: THIS SHORT PAPER REFLECTS ON HOW THE IDEA OF MULTIPLICITY AFFECTS LITERARY STU: DIES IN BRAZIL TODAY. TAKEN AS THE STRONGEST COMMON PLACE OF THE FIELD, THE ASSOCIATION BETWEEN LITERATURE WITH THE MULTIPLE IS COMBINED WITH A BELIEF THAT THE FORMER IS INHEREN GOOD, AND THAT THE PLURAL IS INHERENTLY DEMOCRATIC, ETHICALLY POSITIVE. THIS GENERATES EFFECTS THAT IMPOVERISH THE INTERPRETATIVE PROCESS AND ULTIMATELY MAKE THE STUDY OF LITE RATURE RESEMBLE THE FORM OF COMMODITY CIRCULATION IN TODAY'S CAPITALISM, PALAVRAS-CHAVE: LITERATURA, MULTIPLICIDADE, INTERPRETACAO. EYWORDS: LITERATURE, MULTIPLICITY, INTERPRETATION. 1. presente trabalho foi inicialmente spresentado como uma palestra no III Sinpéiio de Pés Gradua- io om Ciéncia da Literatura. Agradego a Flavia Trocoli ¢ Alberto Pucheu, pelo convite, ¢ 2 Joo Camillo Penna pela mediagio da mesa. Alguns tracos oais foram mantidos no manuserito, * Departamento de Teoria Literria, Unicamp. Via Atlantes 29.ndd_ 78 2nev2014 085256 76 w VINATLANTICA, SAO PAULO, N. 23, 75-83, JUN/2013 realmente irnico que um ensaio que pretende abordar criticamente o funcio- namefito do conccito de multiplicidade nos estudes literarios no Brasil, hoje, deva comecar observando que se trata de uma questéo ela mesma multiface- tada, Cém cfeito, o fenémeno possui ramificagdes em diversos campos do sa- ber, ressonancias institucionais, implicagées sociais ¢ reverberagdes em varios aspectos daquilo que seria o espirito de nosso tempo. Englobé-lo como uma coisa s6, a partir de uma visada absolutamente extrinseca, teria algo de redutor ¢ poderia (enfim!) corresponder ao esteredtipo de totalitarismo por meio do qual muitos dos defensores da multiplicidade procuram tirar sua existéncia, Ao de aniquilar seu objeto, uma critica da multiplicidade deveria atentar para a ambiguidade do genitivo ¢ deixar antever a possibilidade de algo verdadeira- mente diferente, mas isso s6 pode ser acontecer a partir do olhar que encara o negativo da multiplicidade como cla se apresenta de fato. Relacionado a esse problema metodolégico ~ criticar a multiplicidade em seu proprio nome — ha outro, que diz respeito & sua forma de existéncia. Como 0 objeto a ser descrito abaixo (¢ este jé € uma primeira ideia) s6 existe como uma grande massa textual indiferenciada, qualquer exemplo, por sua propria natureza, j4 traria em sium principio de individuagao em desacordo com sua esséncia. Ao invés de ilustrar 08 argumentos com casos especificos, sera mais frutifero apelar para a experi- éncia do leitor, que, sem diivida, nao tera dificuldade para encontrar inimeras instancias de corroboragio no cotidiano da vida das Letras na universidade. ‘Talvez a maneira mais segura de comecar seja por meio de uma constatacio abrangente: a de que o miiltiplo tem sido um dos focos centrais da filosofia nos iiltimos quarenta ou cinquenta anos ¢ que essa preocupagao transferiu para os estudos literérios, aqui encontrando um solo fértil — porém menos para sua reflexdio ou desenvolvimento, do que para sua aceitacio ¢ aplicagio em obras de ficgio determinadas. Isso nao € algo que desmereca o campo das Letras, pois a formagio de conceitos em abstrato nfo é de sua alcada. A fabricacao de conceitos ocorre, neste caso, ndo em abstrato, nem reivindican- do uma validade irrestrita, mas tdio-somente em vista de artefatos literatios ¢ objetos da cultura em seu carter de significagao. O importante é notar que essa dindmica de transposigio ¢ expanso converteu a diferenga, um parente da multiplicidade, em algo de banal. Vem dai o primeiro ponto que mereceria ser enfatizado, a saber, que a ideia de que “o texto é mithiplo” é hoje 0 maior Ingar- -comum, a mais difundida mistficacao, dos estudos literévios, nao apenas no Brasil, mas Via Atlantes 28.ndd. 78 2nev2014 085256 VIA ATLANTICA, SAO PAULO, N23, 75-83, JUN2013 @ 77. especialmente agui. Sem divida, essa mitologia nao precisa colocar-se explicita e veementemente como tal, como uma bandeira a ser defendida; por vezes, nao é nem mesmo necessétio que ela seja pronunciada, Pelo contrario, sua forga ¢ natutalizou, de come vem justamente do quanto ja tornou transparente, a ponto de ser praticamente invisivel. E.é justamente por se furtar facilmente a0 campo de visio que o mito da multiplicidade pode ter consequéncias tao diretas para 0 processo interpretative. A transferéncia da multiplicidade da filosofia para a critica se deu com o ad- vento da ‘Teoria, uma nova formacio discursiva, tipicamente norte-americana, altamente contraditéria, ¢ que nao apenas traz diversos desafios para aquilo que seria © campo de estudo da literatura, mas o langa em uma crise da qual parecemos ter pouca consciéncia®. Com efeito, se pensarmos que a diferenga implica um tipo de multiplicidade, o mimero das chamadas “vertentes tedri- cas” que, de uma mancita ou de outra, se envolvem com ela é extenso, ¢ os exemplos vio desde os mais 6bvios como o deleuzianismo, a desconstruc: pluralidade do texto barthesiano; passam pelas ambiguidades da semistica ou 0 infinito da semiose, as indeterminacées da estética da recepgio, as estratégias de resisténcia de grupos oprimidos, de acordo com os Estudos Culturais, 0 hibridismo pés-colonial, a instabilidade das identidades ¢ a performatividade De dos queer studies; para chegar naquilo que talvez seja a manifestago suprema, © paroxismo do maltiplo, a saber, dialogismo bakhtiniano, uma verdadeita ge- leia geral que parece simplesmente nao conceber um outro da multiplicidade? Nao € 0 intuito aqui abordar diretamente essas teorias; seria, porém, vantajoso apontar pata trés peculiaridades presentes naquelas que so fortes ¢ que valem a pena, Em primeiro lugar, a multiplicidade enfittica s6 ocorre a posteriori; ela é 0 resultado do processo interpretativo e nfio o seu ponto de partida. De fato, posicao no discurso eritico contribui em grande medida para o destino que tera: a multiplicidade de antemao dificilmente nao sera abstrata, ¢ dificilmente nao a adquiriré um aspecto invocatério, avesso 4 demonstragio ¢ A argumentagao. segundo lugar, a diferenga nao é um mero contetido conceitual, mas esta inscrita na propria organizacio formal dos textos nos quais realmente existe. 2, Remeto aqui para o meu Teoria fliteréri) americana (Campinas: Autores Asociados, 2011) 3. Quase como uma piada, seria possivel sugeri uma nova definigao de monologismo: “monoligico & 6 texto que eu nao estou lendo”. Para uma eritic gismo de lo mile ‘ecepeio de Bakhtin no Brasil, ef 0 meu “Monolo- le” Topas del Seminare, 21 Eneto-junio 2009, pp. 25-46, Disponivel no Scielo. Via Atantes 29.ndd. 77 2nev2014 085256 78 w VIAATLANTICA, SAO PAULO, N. 23, 75-83, JUN/2013 Para dizer sucintamente, a palavra “‘diferenca” nfo é diferente ¢ invocar ter- mo nio é suficiente para fazé-lo acontecer. No limite, haveria aqui quase um pa radoxo enunciativo: ao pronuncié-lo, jé se estaria fora dele. (O mesmo vale para outros conccitos fortes como “dialética” ou “interpretacao imanente” — dizer algo como “€ preciso fazer uma leitura imanente”, ja € nao fazé-lo. Isso langa as speita de que aqueles textos que produzem uma multiplicidade de verdade so os que menos usam a palavra) Finalmente, é interessante perceber que a diferenga torna- is veemente quando se alia a um elemento performativo, Porque vale a pena observar que a leitura de um Derrida ou de um Adorno é uma escrita, ela mesma uma interpretagio — por motivos obviamente, sem mais davida. Em Adorno, os campos de tensfio que compdem a tessitura de seu pen- samento estio imbuidos de uma historicidade 4 qual se deve prestar atengiio — para dar um cxemplo: em “O ensaio como forma” sua peca mais conhecida na area de Letras, justamente por aparentemente louvar a multiplicidade do ensaio, é necessatio perceber como cle facilmente compartilha da légica da industria cultural, Isso é algo para o qual Adorno aponta no segundo pardgrafo do ensaio sobre o ensaio, mas nfio com a devida énfase. Para ser polémico, seria possfvel dizer que a oposigio, hoje, ndo € mais, como em “O ensaio como forma”, entre 0 tratado ¢ © ensaio, mas entre 0 ensaio ¢ cle mesmo, ou seja, entre o ensaio de verdade, ¢ 6 ensaio como invélucro do fast feed paper, um produto burocritico € feito as pressas. No caso de Derrida, a compreensio de seus textos pressupde um entrelagamento de seus diversos fios argumentativos, uma costura fadada a deixar elementos de fora — algo que em Lacan talvez seja mais acentuado ainda, A suspeita muito comum aos leitores de Derrida, de que 0 texto nfio faz senti- do, vem disso. Em suma: tanto para Adorno quanto para Derrida, decodificar © pensamento é impraticdvel e ler propriamente jé é estar comentando. Com isso, € possivel mencionar uma segunda ideia central, a saber, que a multiplicidade possui um apelo especial para a drea de Letras por causa da associagao da literatura com 0 Bem. Ao contrario do que possa parecer, isso nao € algo natural, mas 0 resultado de um proceso histético e social que, ao construir o concei- to de literatura como 0 entendemos hoje, retirou a relevancia social daqueles escritos que passaram a receber esse nome. A literatura passou a designar algo sem uma finalidade aparente; o Bem s6 pode surgit, aqui, porque é resultado de uma neutralizagao, de falta de impacto social, de participagdo naquilo que é decisive. Nao ocorreria a ninguém dizer que a propaganda é inerentemente Via Atlantes 29.ndd_ 78 2nev2014 085256 VIA ATLANTICA, SAO PAULO, N.23, 75-83, JUN2013 79 boa, embora sua proximidade com a ficcéo seja cada vex maior, enquanto a literatura cada vez mais se alimenta do absurdo do que realmente existe. (Va- leria a pena pensar mais sobre essa tensio na ficcionalidade, sua exacerbagio no mundo das mercadorias ¢ precarizagio na literatura.) O afastamento di preocupacées do dia-a-dia, daquilo que realmente é vital para a economia ¢ a sobrevivéncia dos individuos em uma sociedade antagonistica, converte a literatura em uma promessa de transcendéncia. Tal promessa contém os con: trétios dentro de si, pois se de um lado é algo de precioso em relagéo Aquilo que meramente existe; por outro, ela se presta a adotar a forma desse belo edulcorado que nos é tao familiar, esse romantismo pervertido e degradado que € 0 magnum opus da indistria cultural. No entanto, a profissionalizacio do campo dos Estudos Literérios assegura que essa representagio da literatura como dogura tenha uma vida bem curta. A secundarista que entra para a fa- culdade de Letras porque acha a literatura “linda”, ou porque escreve versos em um diério quer expressar seu “eu interior profundo” por certo leva um choque ja no primeiro semestre, quando aprende (se a faculdade for boa) que a intengao do autor nao é decisiva para o sentido final da obra, que a estrutu- ra é fundamental, que o que importa so as palavras na pagina. O estudo da literatura deve, portanto, compartilhar de algo da ciéncia. A fixagio no texto facilita que se detecte ambiguidades, polissemias, indeterminacdes e incerte- zas que por sua vez deixam entrever uma multiplicidade de sentidos. Isso gera vitios efeitos colaterais Em primeiro lugar, por ser capaz de conter tantas possibilidades, mantém-se a representacao da literatura como algo transcen- dente, em iiltima instincia participante no indiziv Se antes ela era divina porque traduzia perfeitamente uma subjetividade especial, que tinha coisas sublimes a dizer sobre a experiéncia humana como um todo, hoje ela é inefa- vel porque ser humano algum poderia estar 4 altura de sua riqueza, que agora pode residir tanto na capacidade composicional do autor, quanto no poten- cial intrinseco da linguagem, frequentemente como uma mistura de ambos. curioso observar, em relacao a isso, que essa multiplicidade 4 qual estou me referindo, esse lugar-comum do campo das Letras, concilia sem problemas caracteristicas tipicas tanto da Nova Critica quando do Estruturalismo, ten- déncias tedricas normalmente tidas como incompativeis. O New Criticism via no poema uma organicidade inexistente fora dele, na sociedade de massas ¢ do individualismo. Em oposi¢io a um mundo filisteu, regido pelo egoismo Via Atlantes 29.ndd 78 2nev2014 085256 80 m VIAATLANTICA, SAO PAULO, N. 23, 75-83, JUN2013, € auto-interesse, um mundo de uma linguagem totalmente comunicacional € informativa, a lirica oferecia uma densidade verbal, na qual indeterminagd de sentido, ambiguidades ¢ ironias, testemunhavam a tiqueza da experiencia humana. O Estruturalismo cra avi SO a ci c investimento antropomérfico no sentido, mas sua concepgao de sistema também incentivava ¢ valorizava possibilidades de sentido, d oriundas da riqueza da lingua em suas combinagées internas, permutacdes e conotacdes. Essa proximidade com o Bem, que permite ciliagdo entre técnica € religiao, possui igualmente ma dimensio ético-politica, A pluralidade da a impressio de tolerancia e respeito pela alteridade; ela parece ta ver enfatizo de novo — uma con- acolher a democracia ao deixar implicito que todos teriam direito a voz, que nao haveria censura na danca dos sentidos. Note-se o papel da igualdade, aqui. Como os sujcitos da democracia representativa burguesa, os diversos sentidos de um texto so colocados lado-a-lado, abstratamente; eles so vis tos como fungfveis, intercambiaveis entre si, e sua mera existéncia parece justificar sua validade. A ideologia da igualdade desconsidera que as diversas vozes, opiniées ou pontos de vista possuem pesos diferentes e encontram-se em campos de forca especificos. O reflexo disso na interpretacio de texto pode tomar dois rumos opostos. Por um lado, ha o que poderia ser chamado de multiplicidade militante, que chama a aten¢do para o quanto o “um” é opressor e miltiplo portador da liberdade. Como veremos a seguir, essa pos- tura ignora que a retérica da abundancia estd no centro do desenvolvimento do capitalismo atual e que para setores de ponta da producio de mercadorias (pense-se na moda, nas campanhas da Beneton) se movem por um principio de diferenca‘, A segunda postura da politica da multiplicidade vai em uma di reco contraria. Ao invés de peremptoriamente defender uma ideia de multi- plicidade que, por ser abstrata, acaba por mostrar-se ela mesma una, cla adota uma posicio de total tolerincia ¢ aceitagio. Todos sio bem vindos, Como consequéncia disso, © sujeito do discurso da multiplicidade nao precisa reali- zar escolhas. Ao acolher igualmente tudo e todos, ele nao apenas passa a jogar no time do status quo, mas tende a gerar, mesmo que inconscientemente, um 4. Lissa ideia nfo é nova ¢ pode ser encontrada em livros de ampla divulgagio no Brasil, como Condigio da Pés-Modernidade, de David Harvey, ¢ 0 Inpéri, de Toni Negri & Michael Hardt. Impressiona, portanto, que cla tenha uma vigéncia tao restrita — algo que da multiplicidade, sta ainda outra vez a forca dos discursos Via Atlantes 29.ndd 0 2nev2014 085256 VIA ATLANTICA, SAO PAULO, N23, 75-83, JUN2013 = 81 recalque do confronto: se todo escrito argumentativo é obrigado a priori a delinear os contornos de um antagonista, entio o discurso da multiplicidade extrema colocara o préptio antagonismo nesse lugar. E como a oposicio entre amigos c inimigos fica borrada no papel, a politica pode sair da esfera textual, transferindo-se para outros ambitos da vida intelectual ¢ académica. De um ponto de vista mais interno, é possivel defender que, quando a mul- liplicidade cristaliza-se em um a priori, ela funciona como um lastro para a realizacéo da interpretarao. Hla ataa como uma espécie de garantia de sentido que evita a an- gustia do estudante ou do critico de nao ter o que dizer sobre o texto, aquele pinico diante da pégina em branco do ensaio que vocé tem que escrever, da tese ou mesmo da prova. Como a multiplicidade é dada de antemio, nao é ne- cessirio que se faca um esforgo para se formular um problema especifico, que intertextual que cla se singularize a obra ca torne algo fechado em si, por mais pretenda ser. Basta que se identifique alguns poucos pontos de indeterminagio, para que a ideia subjacente ou © pressuposto flutuante da multiplicidade seja comprovado. Aparece, assim, mais um componente do conceito. Porque nao € apenas o caso que a multiplicidade esteja relacionada ao Bem, que ela seja posta como um valor eticamente positivo, inerentemente democritico. Mais do que isso, cla funciona como um lubrificante da maquina de produgio académica, O astro do miltiplo facilita a publicagao répida ¢ abundante de qualquer coisa. A multiplicidade faz. que se prescinda do estudo demorado, da absorcio da fortu- na critica da obra, de sua localizagio no corpus do autor ou na continuidade da tradicao. Ela coloca-se como um solo firme a partir do qual qualquer material verbal pode ser decodificado, Com isso enfraquece-se aquilo que ¢ 0 inimigo mortal da multiplicidade abstrata: a forma, Pois a forma nada mais é do que © principio de auto-delimitagio da obra, que Ihe confere profundidade ¢ que impede que ela possa significar o que quer que seja.* E interessante notar que o descentramento intrinseco & multiplicidade adé- qua-se perfeitamente ao funcionamento da universidade produtivista. Em A 5, O exemplo mais didético disso talvez seja 0 4°33”, de John Cage, sua famosa peca silenciosa. O que cla tematiza é o gesto inicial ¢ final de sua delimitagio, Para que cada um dos trés movimentos com- postos de siléncio possa ocorrer, faga um ruido marcante, que funciona como 0 ecessitio que s 1a © estabelecimento da forma. Para uma averiguagio dos impasses gerados rigorosamente minimo pr por essa composicio polémica, ef. o meu “Duas formas de se ouvir o siléncio: revisitando 4°33”, em Kriterion vol.46 no.112, Belo Horizonte, 2005. Disponivel no Scielo, Via Atlantes 28.ndd 81 2nev2014 085256 82 m VIAATLANTICA, SAO PAULO, N. 23, 75-83, JUN2013, Universidade ent Ruinas’, Bill Readings discute o conceito de exceléncia, argumen- tando que, diferentemente das idéias reguladoras anteriores de universidade (a Razio, no século XVIII ¢ a Cultura, no sentido de Bildmg, no XIX), a excelén- cia nfo possui referente algum. Com o declinio do Estado-Nagio ¢ 0 advento de uma indiistria cultural transnacional, a cultura tem enfraquecido seu papel como justificadora de projetos nacionais; cla torna-se desprovida de uma orien- taco outra que nao a do mercado, ¢ essa falta de direcio, e centro, favorece abordagens que valorizem o marginal ¢ o miltiplo, que agora se mostram com um principio de organizag&o adequado para uma cultura sem finalidade. Isso nos remete a relacio com a industria cultural. E de causar espanto que o pressuposto da multiplicidade, a multiplicidade, de novo, como algo dado, um a priori, possa ter sido tio amplamente aceita, tio universalizada nos cstudos literarios na universidade, quando na realidade € 0 scu oposto que impera na vida extra-muros. Nao deveria ser necessario argumentar que © princfpio da obtengio de lucro faz com que os produtos culturais (note-s © desconforto da expresso) tendam 4 repeti¢ao, que a cultura de massa é re gida por padrées estabelecidos e formas pré-determinadas. No entanto, é tio grande a forca da divisio social do trabalho, ineluindo aguela dentro do individuo, que separa trabalho e diversio, que a diferenca abissal entre um mundo de diferenca nas letras ¢ um de repeti¢ao ad nauseam na industria da cultura passa facilmente desapercebida. Ou o que € pior: os mecanismos de interpretagio desenvolvides para o mbito da literatura, principalmente a leitura microlé- gica, sio aplicados 4 chamada cultura popular para que lé se encontre uma pluralidade de sentidos totalmente estranha a vivéncia concreta que o piiblico tem deles. Pense como sio diferentes os objetos oriundos da mesma cois por um lado, um filme ou uma cang&o analisado com uma minticia quas obsessiva, que mobiliza todo o potencial do material significante disponivel € que os relaciona aos construtos conceituais mais sofisticados; ¢ por outro, 0 mesmo filme ou cangao como visto ou ouvido por milhdes de pessoas, fugi- dia ¢ irrefletidamente. Nos casos mais extremos, como em algumas anélises dos Estudos Culturais em seus piores momentos, elas podem servir, quase que imediatamente, como propaganda dos produtos, sobre os quais se debru- cam. O paroxismo ocorte quando a propaganda assume a forma de denin- 6. ‘The University in Ruins (Havard: Havard UP, 1997). Via Atlantes 29.ndd 2 2nev2014 085256 VIA ATLANTICA, SAO PAULO, N23, 75-83, JUN2013 = 83 cia, quando a fabrica de papel ultraja-se com o desperdicio das arvores, ou a literatura autopromocional critica o cénone. (Isto é algo que vale a pena ter mente: como os estudos de cultura mais avaneados, que lidam com objetos mais novos ¢ mais arrojados tio mais facilmente se misturam com o mundo da propaganda) Porém isso deixa de causar espanto quando se aproxima a retérica da abun- dancia, da qual a multiplicidade faz parte, ¢ 0 discurso das mercadorias sobre si mesmas. Seria 0 caso de perguntar se nao haveria sna afinidade eletiva entre as duas esferas. Sem divida, a propaganda é superior, porque formalmente mais rigorosa, do que o discurso da multiplicidade (pois ela tem que explorar ao méximo o mundo imaginative de seu produto em um universo espaco-tem- poral exiguo); no entanto, quando tomado em seu conjunto, ¢ no no caso de comerciais isolados, o discurso das mercadorias também projeta a imagem de uma multiplicidade de sentidos, do inexaurivel do mundo das coisas. Nos dois ambitos, portanto, haveria uma dialética em jogo entre uma promessa de variedade ¢ diferenga que gera uma incontornavel mesmice devido 4 sua propria repeticio. Nao ha nada mais monétono do que a repeticao de “isso é diferente” ou “isso é miltiplo”. O que ha de infernal nisso é que a multi: plicidade ou a diferenga para valer acabam perdendo o sentido no mantra de sua presenca. Por fim, vale mencionar que esse discurso da multiplicidade, essa logica a retérica da abundancia so marcas bem amplas do espirito do nosso tempo, que o termo pés-modernismo define problematicamente. do excesso, Nao é possivel entrar aqui em uma polémica sobre um conceito tio contro- verso — € que to rapidamente caiu em desuso. Gostaria apenas de apontar para o quanto aquilo que parecia apenas um singelo exercicio interpretativo, uma pratica técnica especializada realizada em um sistema universitirio cuja precariedade é conhecida de todos — como isso pode estar to afinado com nosso Zeifgeisé# em um sentido mais amplo. A tinica ressalva € que isso nao € 14 um motivo de orgulho. Via Atlantes 29.ndd 8 2nev2014 085256

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