Capitulo 1
Federalismo
VALERIANO COSTA '
1. 0 que é federalismo,
Antes de falarmos sobre o federalismo,
precisamos distinguir os dois significados que
atribuimos ao conceito. De um lado pode-
mos utilizar essa palavra para designar uma
ideologia politica, isto é, um conjunto de
idéias sobre como se deve governar um Esta-
do, Na verdade, existem dois tipos de ideolo-
gia federalist: para a primeira, concebida
originalmente pelos criadores do federalismo
norte-americano, 0 federalismo significa uma
forma de organizacio politica que centrali-
za, em parte, o poder num Estado resultante
da uniao de unidades politicas preexistentes,
que nio aceitam ser diss6lvidas num Estado
unitério; 4 segunda, hoje predominante, vé
no federalismo uma forma de descentralizar
‘0 poder em estados centralizados (unitérios),
como a Alemanha, a Argentina e o Br
Portanto, a mesma palavra designa idéias
muito diversas, até mesmo opostas.?
Federalismo também pode designar os
_arranjos institucionais, isto 6, o conjunto de
Teis, normas ¢ praticas que definem como um
estado federal & concretamente governado. AS
constituigdes e a legislagio ordindria de cada
estado federal so importantes elementos
para identificar a forma de organizacio fe-
derativa vigente em cada pafs. Mas, além das
leis e normas, existem regras politicas ndo
escritas que contrariam alguns preceitos
consticucionais. Para entender o funciona-
mento real do federalismo em determinado
pais, é preciso estudar suas principais insti-
tuiigdes politicas e administrativas, como os
partidos, as casas legislativas ¢ 08 6rgios exe-
cutivos em todos os ambitos da federacéo
(nacional, estadual e municipal), o Poder Ju-
diciério, a burocracia etc.
A distinggo entre a ideologia e a pratica
do federalismo € essencial para no confun-
dirmos nossas opinides ¢ desejos com a reali-
dade politica que pretendemos compreender.
A versio moderna da ideologia federalista
€ 0 primeiro Estado federal organizado sob
estes principios surgiram ao mesmo tem-
po, no final do século XVIII. O federalis-
mo foi concebido pelos “Pais Fundadores”
dos Estados Unidos da América do Norte,
James Madison, Alexander Hamilton ¢ John
Jay, como a melhor alternativa para o
impasse politico em que se encontrava a re-
cém-criada Confederag4o norve-americana.
A Confederagio era considerada um arranjo
politico instavel e frégil pelas elites politicas
1, Valeriano Mendes Ferreira Costa, autor, com Fernando Abrucio, do livro Reforma do Estado e 0 contexto
federativo brasileiro. Sio Paulo: Konrad Adenauer, 1998.
2. Essa importante distingio é desenvolvida por Preston King em seu livro Federaliem and Federation.
atde defender o pafs dos antigos colonizado-
Federalismo
economia e expandir as fronteiras para 0
Oeste, Ja as elites locais, dominantes em
cada uma das 13 colénias originais e que
sempre tiveram governos auténomos, rejei-
tavam totalmente a criagao de um Estado
soberano unitério.
T~_Naverdade, os dos ladostnham razes
para rejeitar a outra opcao. O Estado unitério
significava realmente uma grande concentra-
|| Gao de poder nas maos dos governantes; por
sua ver, as confederacées representavam uma
| falsa alternativa de organizagao politica, pois
| asunidades territoriais originais preservavam
sua soberania e, portanto, tinham o direito
\L_ de romper o pacto a qualquer momento.
‘A grande originalidade do modelo pro-
posto pelos autores d’O federalista foi a
combinacio do prinefpio da representacio
lat Gom wins diipla divisse do pode:
iim lado, dividiram o poder entre tre
6rgdos independentes: os Poderes Executi-
vo, Legislativo e Judiciério. Essa diviso
valia tanto para a Unido quanto para os es-
tados. Foi assim que nasceu o regime
presidencialista. De outro lado, distribuiramn
“Gs Fespomsabilidades de governo entre a
JZ, Unido e os estados de forma que nenhum
| deles pudesse interferir nas tarefas do outro
sem autorizacdo politica ou judicial.
fF, liesimifica que, no repime federal,
\ Bio existe dupla soberania, isto é, nenhum..
a \ estado membro da federagao tem o direito
“de renunciar unilateralmente r
res ingleses, mas, também, desenvolver 2X
que desejavam criar um Estado forte, capaz tT tico ou rejeitar uma lei emitida pelo Con-
T gresso cuja legalidade tenha sider comfifiia-
“da pela Suprema Corte, érgio_maximo-do
‘deral nio pode obrigar nenhum estado on
municipio a fazer ou permitir que a Uniao|
realize qualquer aco em seu territério semi]
autorizagao legal do Legislativo e confirma,
io da legalidade do ato pelo Judiciario.
Uma federacdo, portanto, é um tipo de/
Estado soberano que se distingue dos esta-
dos unitérios apenas pelo fato de que os 7
6rgios centrais de governo “incorporam,
em bases constitucionais, unidades regio-
nais em seu proceso decisério” (KING,
1982:75). Estes podem ser representantes
dos estados (ou provincias), eleitos direta-
mente pela sua populagdo, como os sena-
dores ou indicados pelos governantes es-
taduais — como € 0 caso dos membros do
Conselho Federal Alemao (Bundesrat), 6r-
‘g40 equivalente ao Senado.
O grau de centralizagio ou descen:
ttalizagio do poder num Estado federal de-
‘pende, portanto, da forma como é compos-
to ¢ funciona efetivamente o poder central.
‘Alguns estados federais podem ser mais
tralizados do que certos estados unitérios,
‘como é 0 caso do México,' quando compa-
rado com a Gri-Bretanba ou a Suécia, por
exemplo.
A vantagem do federalismo ndo consiste
em eliminar a possibilidade de conflitos poli-
ticos entre os estados membros, mas em griar
egras de resolugio desses conflitos. £ aro}
‘ue essas regtas podem falhaf, levando os
Poder Judicisrio. Por sia vez, 0 governo =|
*«
3. Appartir de meados dos anos 90, a escolha do presidente da Republica deixou de ser controlada pelo Poder
Execativo Federal, que manipulavasistematicamente o processo eleitoral. Apesar de formalmente uma fede-
1agio, o México foi dominado pelo PRI (Partido Revolucionério Instiuscional) durante 70 anos. A partir de
2000, com a leigio de Vicente Fox do PAN (Partido da Ago Nacional), o pluralismo partiditio foi reativado,
‘mas o poder central ainda hoje disp6e de grande influéncia sobre os governos cstaduais.
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fe
membros de um Estado federal a0 conflico
bélico, como a Guerra de Secessio norte-
americana (1861-1865) entre o sul escravista
€ 0 norte abolicionista, Da mesma forma, a
divisio inicial de competéncias entre a Unio,
08 estados e os municipios (no caso brasilei«
ro) nio impede que o exercicio dessas com-
peténcias mude bastante ao longo do tem-
po. Por exemplo, no inicio do federalismo
norte-americano, os estados tinham autono-
mia total para legislar sobre quase tudo,
menos a politica externa e guerra com ou-
tos paises, emissio de moedi-F ComéFeio
‘entre 0s estados. Ao longo dos séculos XIX
€ XX, a Unido foi expandindo suas atribui-
‘g6es sobre muitas areas, como desemprego,
Satide, educagdo, transportes, energia, segu-
ranga, meio ambiente etc.
Agora vamos ver como o federalismo foi
instituido no Brasil e como se desenvolve-
ram as relag6es intergovernamentais, isto 6,
centre 0 governo central ¢ os estados, ao lon-
0 desse periodo.
2. Historia e desenvolvimento do
federalismo no Brasil
Governar um territério do tamanho do
brasileiro (mais de 8,5 milhdes de km?) nao
€ uma tarefa fécil, Algum tipo de descen-
tralizagio politica ¢ administrativa sempre
foi necesséria. Desde 0 perfodo colonial
(1500-1822), Portugal enfrentou muitas di-
ficuldades para ocupar e manter 0 controle
politico do territério brasileiro. Nao € toa
que a metrOpole foi obrigada a dividir a nova
col6nia em yerdadeiros feudos, as capi-
__tanias hereditérias, administrados por no-
bres que se Obrigavam a fazé-lo em nome
da Coroa, O sistema de capitanias influen-
‘Y iow decisivamente o padrio de organiza-
! mitagdo das provincias, durante o Império
“, (1822-1889), transformadas em estados a
‘partir da Repablica (1889).
Apesar dos constantes esforgos de centra-
lizagio politica e administrativa, a dispersdo
da populacio e a dificuldade de estabelecer
tum controle politico direto sobre o territ6rio
obrigou 0 governo central a estabelecer pac-
tos informais com os poderes regionais. Du-
rante todo 0 primeiro século de vida inde-
pendente, a lei ea ordem no interior do pais
foram administradas efetivamente pelos po-
tentados locais, os “coronéis”.
Quando a Reptblica foi proclamada, em
1889, com ela veio, “naturalmente”, a rei-
vindicagio do federalismo. As provincias que
se haviam desenvolvido economicamente du-
rante o Segundo Reinado (1841-1889), como
Sio Paulo, Minas Gerais e Rio Grande doSul,
desejavam exercer maior influéncia direta so-
bre o governo central no novo regime.
Como sabemos, 0 exercicio da represen-
tago popular naquele periodo era bastante
restrito ¢ isso influenciou diretamente o fun-
cionamento do regime federativo. Tanto as