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Qa ae rise) GRAMATICA DO PORTUGUES BRASILEIRO MARIO A. PERINI o > Broo SUMARIO Nota po Eprror.. 15 APRESENTAGAO 17 1. A gramitica no € instrumento de aquisigao da Iingua escrita.. 7 2. preciso descrever a lingua falada. 19 3. Estudar a Iingua como ela 2 4. preciso usar nogdes gram: 21 5. A gramatica no é uma descri 22 6. A Nomenclatura Gramatical Brasileira (NGB_ 23 7. Quadro teérico. 25 8. A quem se destina este livro. 26 Capiruto Zero: PARA QUE ESTUDAR GRAMATICA?.. 29 0.1. Sobre a ciéncia e o mundo moderno.. 29 0.2. Ciéncia e educagio.. 30 0.3. O processo de analfabetizagao. 32 0.4. O que isso tem a ver com a gramitica? 33 0.5. A gramatica como disciplina cientffica.. 35 0.6. Aciéncia na escola. 37 0.7. Como fica a gramitica’ 39 0.8. Concluindo.. 41 Cariruto 1: Nossa incu: B 1.1. O portugués no mund 4B 1.2. A lingua do Brasil. 44 SUMARIO. SINTAXE DA ORACAO Cariruto 2: Construgors . 2.1. O que é uma construcao. 2.1.1, Definindo a construgao . 2.1.2, Papéis temdticos 2.2. Exemplos.. 2.3. Ordem dos termos. 2.4. Construgées oracionais ¢ suboracionai 2.5. A notagao do sujeito.. 2.6. As construgdes e a descrigao da lingua 2.7. Complementos e adjuntos 2.7.1. Dois tipos de constituintes . 2.7.2. Definindo as construgées 2.8. Ambito descritivo das construgde Capiruxo 3: Oracio. 3.1. O que é uma oragio.. .2. Sujeito 3.2.1. A nogao de 3.2.2. Identificando 0 sujeito 3.2.3. “Erros de concordancia” 3.3. SNs objetos... Capfruto 4: ORAGGES SEM SUJEITO.... 4.1. Omissao do sujeito 4.2. Imperativo..... 4.3. Verbos que raramente ocorrem com sujeito.... 4.3.1. Ter, haver, existir. 43.2. Verbos meteorolégicos 4.3.3. Ser e estar....... 4.3.4. Ir para, fazer + que CapiruLo 5: SUJEITO INDETERMINADO. CapiTuLo 6: OUTROS TERMOS DA ORAGAO .. 6.1. SN: sujeito objeto(s)... Sintagmas preposicionados. . Outros complementos do verb« 6.3.1. Sintagma adjetivo e sintagma adverbial 6.3.2. Problemas de classificagao . 6.4. Negacdo, auxiliar.. 6.5. Resumo: a estrutura da oragao simples. 6.6. A oraciio, 0 verbo e os esquemas cognitivos. GRAMATICA DO PORTUGLES BRASLERO [MLS MARIO A. PERINI LL CapfTULo 7: ALGUMAS CONSTRUGOES IMPORTANTES. 7.1, Construcées ja 7.2. E mais algumas 7.3. Construgdes complexas 74. Elipse de complemento: CapiruLo 8: ORDEM DOS TERMOS NA ORAGAO.. 8.1. Colocagao prévia 8.2, Sujeito € verbo vcore 8,3. Sintagmas preposicionados e adverbiais... 8.3.1. Liberdade de ocorrénci 8.3.2. Excegdes aparentes CaPiTuLo 9: PRONOMES OBL{QUO: 9.1, Pronomes pessoais. 9.2. Objetos pronominais. 9.3, Posigdo dos pronomes abliquos na oragai 9.3.1. Regra geral.... 9.3.2. Pronomes obliquos com preposi¢ao. 9.3.3. Resumo: forma e posigao dos pronome pessoais .. 9.3.4. O pronome tt ceo - CapiTULO 10: CONSTRUGOES INTERROGATIVAS E NEGATIVAS ..... 10.1. Interrogativas...... 10.1.1. Interrogativas fechadas (sim / nao} 10.1.2. Interrogativas abertas (interogatvar 9) 10.1.3. E que 10.1.4. Inversdo 10.1.5. Cadeé?.... 10.1.6. Interrogativasindiretas 10.1.7. Interogatias eco 10.2. Negativas ... 10.2.1. Negagdo verbal. 10.2.2. Negagdo depois do verbo. 10.2.3. Dupla negagao .. 10.2.4. Negagdo nominal e adverbial... 10.2.5. Negagao e afirmagao independents 10.2.6. Nem e seque? vn 10.2.7. Uma nota sobre a ‘prontincia de nado VALENCIA Capfruo 11: VALENCIA .... 102 103 107 107 109 112 112 113 us, 11s 115 119 119 119 120 121 123 123 124 124 125 126 126 127 127 127 127 128 128 130 131 131 132 11.1. O verbo é a chave.. 135 11.2. Distese, valéncia 137 11.3. Classes de verbos. 139 11.4. Contando verbos. 141 11.5. Diferenga entre 18 11.6. Valéncia nominal e adverbial .. 144 CapfruLo 12: PaPéis TEMATICOS .... 147 12.1. Lista dos papéis tematicos 147 12.2. Problema: 151 12.2.1. Uma lista em aberto 15] 12.2.2. Os papéis temdticos so exquematicos . 152 | PER{ODO COMPOSTO | CaPfruto 13: COORDENAGAO E SUBORDINAGAO, 157 | 13.1. Coordenagio.. 157 13.2. Subordinagao 158 13.3. Processos de jungdo gramatical. 160 13.4, Conjungées 162 | 13.5. Jungdo sem marca. 163 | Carfruto 14: ESTRUTURAS ORACIONAIS ESPECIALIZADAS 165 | 14.1. Oracées de infinitivo, gertindio e subjuntivo 165 | 14.2. Sintaxe e semantica das subordinadas especializadas 166 14.2.1. Infinitivo 166 14.2.2. Genindio 167 14.2.3. Subjuntivo 168 14.3, Resumindo: oragdes subordinadas.. 169 Capfruzo 15: CONTANDO ORAGOES. 7 15.1. Uma oragdo ou duas?. 7 15.2. Os particfpios 15.2.1. O partietpio nominal. 15.2.2. Partictpio verbal e particfpio nominal . . 15.2.3, Consequéncias para a andlise da construgdo passiva . 15.3. Infinitivo e subjuntivo livres... Capfruco 16: OMISSGES ANAFORICAS 181 16.1. Andfora, déixis e pr6-formas.. 181 182 16.2, Andfora nas estruturas coordenadas. caren Do rorucs sno ff] MARIO A PERNA BS —_eel 16.3, Anéfora nas estruturas subordinadas. nee 164. Uso dos pronomes pessoais 186 16.5. Elipse 186 Capfruto 17: ORagOES RELATIVAS (ADJETIVAS)... 17.1, Aestrutura rela 1a) 17.2. Aestrutura relat 191 17.2.1.A preposigao é mantida ey 17.2.2. A preposigdo é omitida. 192 17.2.3. Sintagmas adverbiai 192 17.2.4. Relativas livres. 193 Capiruto 18: SUBJUNTIVO E INDICATIVO NA ORAGAO SUBORDINADA COM QUE. 195 195 197 198 18.1. Um sistema complexo. 18.2. Subjuntivo de persuasio 18,3. Subjuntivo de incerteza.. 18.4. Subjuntivo de emogao 18.5. O modo nas oragdes factuais . 200 CapiTULo 19: MoDO GOVERNADO PELO CONECTIVO....... 19.1. Modo governado por conjungao 19.2. Modo em estruturas relativas. 19.3. O subjuntivo no PB Capiruto 20: Usos Do INFINITIVO 20.1. Cardter do infinitivo portugué 20.1.1. O infinitivo micleo do SN .... 20.1.2. O infinitivo com auxiliar.. 20.2. Condigées de uso do infinitivo ... 20.2.1. Querer..... . 20.2.2. Tentar 20.2.3. Ver e os verbos de percepgdo e de persuasdo 20.2.4. Altedncia livre infinitivo / subjuntivo 20.3. Outras construgées de infinitivo. 20.3.1. Dificil de le 20.3.2. O infinitivo em expressées idiomdticas..... USO DAS FORMAS VERBAIS Capfruco 21: TEMPO VERBAL: PRESENTE E FUTURO .... 219 21.1. Tempo e aspect mt 21.2. Presente.. 221 B SUMARIO, 221 21.2.1. Variedades de expressdio do present 21.2.2. O presente expressando o futuro .. 222 21.2.3. O presente expressando 0 pasado .. 222 21.2.4. O presente em expressoes de tempo decorrido 223 21.2.5. Com o verbo estar. 223 21.2.6. O presente progressive .. 223 21.3. Futuro 224 21.4. Condicional (futuro do pretérito} 224 CapiTuLo 22: TEMPO VERBAL: PASSADO ... 27 22.1. Perfeito ¢ imperfeito. 227 22.1.1. Delimitagao temporal 227 22.1.2. O imperfeito como cendrio de outros eventos. 229 22.1.3. Eventos acabados ¢ inacabados. 230 22.1.4, Eventos continuos e descontfnuos. 230 22.2. Passadlos compostos. 231 22.2.1. Tenko feito 231 22.2.2. O mais-que-perfeito composto 232 22.2.3. Outras formas compostas com ter 232 233 22.3. Formas progressivas.. Capiruto 23: TEMPO GovERNADO Capfruno 24: AUXILIARES & MODAIS 237 24.1. O que € um verbo auilia 27 24.2. Ter, ire estar... 237 24.3. Modais. 238 24.4, Auxiliares em sequéncia .. 239 240 24.5. Propriedades das construgdes com au Capfruto 25: Pessoa. 25.1. Pessoa gramatical e pessoa do discurso.. 243 25.2. Reflexivo: 245 25.2.1. Sujeito e objeto idénticos .. 245 25.2.2. Reefprocos 245 25.2.3. Verbos reflexivos 246 25.2.4. Formas enfaticas 247 SINTAGMA NOMINAL CapiruLo 26: O NCLEO DO SINTAGMA NOMINAL, 251 251 26.1. O sintagma nominal (SN)... (GRAMATICA DO PORTUGUES BRASLERO 110} (MARIO A. PERIN 26.2. Niicleo ¢ limitadores.. 253 26.2.1. Definigs ee 26.2.2. Como se identifica 0 nticleo do SN... 254 26.2.3. SNs sem niicleo explicito.. ee CapituLo 27: ORDEM Dos TERMos No SN 259 27.1. Elementos pré-nucleates... . brad 27.1.1. Predeterminante, determinante, quantificador etc. 259 27.1.2. Itens de posigao fixa (pré-nuclear) 262 27.2. Elementos pés-nucleares 263 27.2.1. Antes ou depois do nticleo. woe 263 27.2.2. Colocagao do modificador: papéis tematicos... 27.2.3. Colocacao do modificador: restritividade. 27.24. Mudancas de significado 27.2.5. Sequéneias fixas... 3. Modificadores expandidos .. 267 268 269 269 g CONCORDANCIA Capiruto 28: CONCORDANCIA VERBAL 28.1. O que éa concordaneia verbal. 28.2. A concordancia verbal no PB 273 273 277 CapfruLo 29: CONCORDANCIA NOMINAL... 29.1. O que € a concordancia nominal. 29.2. Género.... 279 279 280 29.2.1. Genero inerente e governado 280 29.2.2. Género gramatical e género natural (sexo) 281 29.3. Numero... 281 29.3.1. Singular e plural 281 29.3.2. Concordancia de ntimero no PB 282 29.4. Concordancia nominal fora do SN 283 29.5. Marcados e€ nao marcados .... 284 CLASSES DE PALAVRAS. CaPiruLo 30: CLASSIFICAGAO 30.1. Classes e fungoes... 30.2. Definindo classes 30.3. Para que classificar? 289 290 Capiruto 31: NoMINAIs .. 297 31.1, Definiggo de “nominal” 297 31.2, Tipos de nominais. 300 31.2.1. Nomes.. 31.2.2. Pronomes 301 302 303 305 Capiruxo 32: VERBOS..... 307 32.1. Identificando 0 verbo 307 32.2. Elenco de forma 307 32.2.1. Pessoas 307 32.2.2. Tempos e modos 308 309 32.3. Morfologia 32.3.1. Imperativo 32.3.2. Futuro do subjuntivo 309 32.3.3. Prontincia do infinitive 310 Capiruxo 33: ConEcTIvos 3 311 33.1.1. Preposigdes predicadoras. 311 33.1.2. Preposigdes funcionais 313, 33.2. Conjungoes. 314 33.3. Coordenadore: 315 CapiruLo 34: ADVERBIAIS .. 317 34.1. Posigao. 318 34.2. Escopo. 319 Capfruto 35: EXPRESSOES IDIOMATICAS 323 35.1. O que é uma expressio idiomatic: 323 35.2. Tipologia das expressées idiomati 325 35,3. Importancia das express6es idiomaticas na descriga 326 35.4. As expressées idiomaticas so metéforas?.. 327 DISCURSO Capiruto 36. TopicaLizagko 331 36.1. Tépico e topicalizaga 331 36.2. Tépico sintatico .. 332 332 36.2.1. Construgao de deslocamento a esquerda (GRAMATICA DO PORTUGUES BRASLERO GB MARIO A. PERINI 36.2.2. Construgao passiva... aaa 36.2.3. Construgaes clivadas. 333 36.3. Tépico discursive 333 FONOLOGIA CapiruLo 37: PRONUNCIA . 39 37.1. A promincia do portugués brasileiro. 339 37.2, Consoantes....smee 342 37.3. Vogais .. 346 37.3.1. Acento ténico.. 346 37.3.2. Acento secundri 348 37.3.3. Omissao de ¢ final. 348 37.3.4. Omissdo de o final. 349 37.3.5. Surdas e sonoras 349 CapfruLo 38: FENOMENOS NAO MARCADOS NA ORTOGRAFIA 351 38.1. Thems lexicaiis vorscssesscssseeenseense 351 38.1.1. Procliticos 351 38.1.2. O verbo (es)tar.. 352 38.1.3. A particula negativa nao 352 38.1.4. O sufixo de gertindio... 353 38.1.5. Formas de I° pessoa do plural... 353 38.1.6.Voce. 354 38.2, Fendmenos de san 354 38.2.1. Elisa 355 38.2.2. Haplologi 356 356 38.3. Contragaes.. CREDITOS .... BIBLIOGRAFIA (OBRAS CITADAS) .... fypice REMIssIvO ... suMARo APRESENTACAO Gramética do portugués brasileiro nao € uma tradugdo de minha gramética an- terior, Modem Portuguese (Perini, 2002), embora retome algumas passagens dela. Aqui tive que levar em conta, primeiro, a diferenga de piblico: em vez de estrangei- ros interessados em conhecer os fatos basicos da lingua com objetivos praticos, me dirijo primariamente a estudantes de gramdtica cujos objetivos so antes de natu- teza cientffica. E, depois, decidi incluir no texto resultados de pesquisas realizadas, ou chegadas ao meu conhecimento, desde a época em que escrevi o livro anterior. Como resultado, temos aqui um livro muito diferente e, espero, mais adaptado aos interesses e necessidades do leitor brasileiro. Esta gramitica tem objetivos diferentes das gramaticas usuais, e por isso requer alguma explicagao prévia. Os pontos de diferenga principais dizem respeito nao a andlise dos fatos da lingua, mas & atitude a assumir frente aos estudos gramaticais. Vou arrolé-los abaixo, com algum comentirio. 1. A gramatica nao é instrumento de aquisigao da lingua escrita O primeito ponto a salientar tem a ver com a suposta utilidade da gramstica como instrumento de aquisigao da lingua padrao escrita. Vamos imaginar que o autor de um livro de astronomia seja criticado porque seu texto nao serve como orientagao para a elaboragao de hordscopos. A resposta a ser dada, evidentemente, é que nao hé nenhuma evidéncia de que os planetas, 77 | APRESENTACAO estrelas e outros corpos celestes tenham influéncia sobre o destino ea personalidade dos seres humanos. O objetivo de um livro de astronomia dirigido a0 ptiblico geral é descrever (¢ em certa medida explicar) como funciona 0 cosmos: o sistema solar, as estrelas, os cometas etc. Trata-se de um livro de informagio cientifica, ¢ se justifica em parte pela importancia da ciéncia em nossos dias. O fato de que essa informagio nao leva a previsdes sobre 0 que nos pode acontecer amanhi ou dentro de vinte anos nio é relevante. Hoje, é claro, ninguém mais espera que um cientista se de- dique & confecgao de horéscopos, ¢ a astronomia tem seu lugar reconhecido entre as disciplinas que vale a pena estudar por elas mesmas. Analogamente, ninguém mais cobra dos quimicos que transformem chumbo em ouro, nem dos fisicos que construam um moto perpétuo. Quando passamos ao campo da gramitica, as coisas mudam: relativamente pou- ca gente espera estudar gramatica como parte de sua formagao cientffica. Em vez disso, esperam que o estudo da gramatica Ihes fornega meios de desenvolver seu desempenho na lingua padrdo, principalmente na escrita; para muitas pessoas, € isso 0 que justifica a presenga dos estudos gramaticais na escola. Mas estudar gramatica nao leva, nunca levou, ninguém a desenvolver suas habilidades de leitura, escrita ou fala, nem sequer seu conhecimento pritico do portugués padrdo escrito. Essas habilidades podem e devem ser adquiridas, mas 0 caminho nio é estudar gramatica. Podemos gostar disso, ou podemos néo gostar — mas é um fato. Se quisermos manter os estudos gramaticais na escola, temos que descobrir outra justificagdo para eles, e isso é discutido adiante no capitulo zero. Aqui basta dizer que a gramatica € uma disciplina cientifica, tal como a astronomia, a quimica, a histéria ou a geografia; ela deve ser estudada porque é parte da forma Gao cientifica dos alunos — formagdo essa que se torna cada dia mais indispensavel a0 cidadao do século XXI. Esperar do estudo de gramatica que leve alguém a ler ou escrever melhor & como esperar do estudo da fisiologia que melhore a digestao das pessoas. E, como evidéncia bastante clara do que estou dizendo, todos conhecemos pessoas que escrevem, lem ou falam em pitblico muito bem, e que se confessam seriamente ignorantes de gramatica. Por ora, portanto, vamos deixar claro que os estudos de gramitica oferecem uma visio da estrutura e do funcionamento da lingua, esse maravilhoso mecanismo que, ao permitir a comunicagio, possibilita a propria existéncia da complexa sociedade caawknca Do romruc.ts seasieno EB] MARIO A. PERI moderna. A gramitica no esgota nem 0 estudo da lingua, nem 0 da comunicagao humana; mas é um ingrediente fundamental dela. Assim como nenhuma socieda- de humana prescinde de comunicagdo, nenhuma existe sem uma lingua, e todas as. Iinguas tém gramitica. 2. E preciso descrever a lingua falada Vamos estudar aqui a gramética da lingua falada no Brasil por mais de 187 milhdes de pessoas. E isto nos leva a outro ponto em que este livro difere das grama- ticas comumente adotadas em nossas escolas. A lingua que falamos (nés todos, operdrios, professores, mecanicos, médicos € manicures) é bastante diferente da lingua que escrevemos (isto é, aqueles dentre nés que tém a formacio necesséria para a tarefa de escrever). Assim, na cantina dizemos me dé um quibe af, mas na lingua escrita isso seria dé-me um quibe. Note-se que se trata de duas formas de expressao igualmente adequadas, cada qual no seu contex- to. Seria bastante estranho chegarmos na cantina ¢ dizermos dé-me um quibe — 0 falante ia parecer pedante, até mesmo antipatico (“quem esse cara té pensando que €?”). Uns momentos de reflexdo devem deixar bem claro que as duas variedades! existem, vao continuar a existir e, principalmente, nao podem ser trocadas: escreve- se uma tese em portugues padrao escrito, pede-se um quibe em portugués falado. A esse portugues falado se dé em geral a designagdo de portugues falado do Brasil, ou PB?. Este livro é uma gramatica do PB’. Tanto o PB quanto o portugués padrdo tém importéncia na nossa sociedade. Tal- vez seja inconveniente essa dualidade de variedades usadas no mesmo pais, mas € um fato de que ndo podemos escapar. Vamos continuar tendo que estudar o portugués padrdo, e vamos continuar sentindo aquela sensagao de frio na barriga na hora de escrever um texto de mais responsabilidade. Mas, no que pese a relevancia de cada 7 Ha muito mais que apenas duas; estou simplificando as coisas. Mas ereio que as diversas variedades faladas, em conjunto, se opdem nitidamente & variedade padrio escrita, 0 que nos autoriza a falar do portugués falado do Brasil como uma entidade lingu‘stica razoavelmente coerente. PP" Neste livro me refiro ao portugues do Brasil como PB ou simplesmente portugués. A outra variedade principal da Iimgua falada pode ser chamada portugués europeu. YA primeira a ser publicada em portugués. Em ingles, existe meu trabalho anterior (Perini, 2002); vale a pena também citar Thomas (1969), que, embora 6 trate dos aspectos sintéticos, € um trabalho importante. BIS APRESENTACAO. uma, a variedade a que chamamos PB tem uma importancia que 0 padrao nao tem: o PB é conhecido e usado constantemente pela totalidade dos brasileiros’, ao passo que 0 padrdo é privilégio de uma pequena minoria de pessoas mais escolarizadas — e, além disso, s6 se usa em situagées especiais, relativamente raras: escrevendo textos pata publicagao, fazendo discursos de formatura, coisas ana, e na verdade é ignorado pela assim. O padrdio nunca é usado na fala coti esmagadora maioria da populacao. Eas diferencas entre os dois so bem grandes, maiores do que as vezes se pensa, ‘0 que justifica elaborar uma gramitica do PB. Mas como sempre encontramos gra- miaticas dedicadas exclusivamente & descrigo do padrao, € de se esperar que haja uma reagio de estranheza frente a uma gramatica do PB. No entanto, é urgente elaborar gramiticas do PB, para que nfo se eternize a andmala situacao de um povo que nfo estuda — na verdade, as vezes se recusa a estudar — a lingua que fala. Um povo, na verdade, que tende a negara existencia dessa lingua, como quando se diz, que a frase me dd um quibe af “nao existe”. J4 passou da hora em que deviamos abrir 0s olhos para a nossa realidade linguistica, e esta gramitica pretende ser um peque- no passo nessa direcdo. Embora ainda faltem gramiticas abrangentes do PB, j4 foram realizados tra- balhos de andlise de muita importancia; cito aqui a coletanea organizada por Castilho (1990-2002) como uma fonte importante de observagées e andllises; cer- tas obras mais antigas, como notadamente Andrade (1990, mas elaborada nos anos 1920) ¢ Amaral (1920), que mostram que a realidade linguistica do Brasil jd era reconhecida ha quase um século; os livros de Bagno (1999; 2000; 2003; 2004), que sio um veemente manifesto em favor do estudo do PBS. fi bom notar que a decisio de descrever 0 PB nao implica na crenga de que o portugués pa- dro no deva ser usado, estudado e ensinado; conforme disse, as duas variedades so parte da vida da nossa sociedade. Apenas, trata-se de enfatizar a necessidade de reconhecer a variedade que € a mais importante na pritica, e que foi até hoje muito pouco estudada. * — Excetuam-se apenas algumas comunidades indigenas ou de imigrantes recentes; essas comunidades representam menos de 1% da populagio total do pats. +. Noll (2008) tem muita informagies interessantes, principalmente no que diz respeito a historia da lingua; mas deve ser usado com cautela, porque é frequentemente incorreto em suas observagies. Quanto as origens do PB, temos um trabalho recente ¢ importante, Naro ¢ Scherre (2007). GRAMATICA DO PORTUGLES BRASLERO MARIO A. PERINI 3. Estudar a lingua como ela é O objetivo deste livro é descritivo: ou seja, pretende descrever como é 0 PB, nao prescrever formas certas e proibir formas erradas. Para ns, “certo” € aquilo que ocorre na lingua. B verdade que quase todo mundo tem suas preferéncias, detesta algumas construgées, prefere a prontincia de alguma regio etc. Mas o linguista precisa manter uma atitude cientffica, com atengdo constante as realidades da lingua e total respeito por elas. Se ele verifica que as pessoas dizem frases como se voce ver ela, fala com ela pra me telefonar, precisa reconhecer essa construgdo como legitima na lingua. Por ou- tro lado, em um texto escrito, ele provavelmente encontraria se vocé a vir, diga-lhe que me telefone, e essa construgdo igualmente precisa ser reconhecida. As duas coexistem, cada qual no seu contexto; nesta gramatica estamos estudando as formas que ocorrem no contexto falado informal — nao em textos publicados, nem em discursos formais de posse ou formatura. O linguista, cientista da linguagem, observa a lingua como ela €, ndo como algumas pessoas acham que ela deveria ser. Condenar uma construgao ‘ou uma palavra ocorrente como incorreta é mais ou menos como decretar que é “er- rado” que acontegam terremotos (nao seria melhor que nao acontecessem?). Mas eles acontecem, e um cientista ndo tem remédio sendo reconhecer os fatos*. 4. E preciso usar nogées gramaticais novas Outra caracterfstica importante deste livro, que nao deixar4 de chamar a aten- Go dos leitores, € que ele inclui, em maior medida do que as gramaticas usuais, a apresentagdo, explicagdo ¢ discussdo dos conceitos utilizados na anélise. Assim, nogées como sintagma nominal, sujeito, fungio sintatica, papel tematico, classe de palavras e outras so explicadas com certo detalhe. Discuto também, em certos pontos, 0 porqué de se utilizar esses conceitos na andlise — ¢ isso ndo aparece nas gtamaticas tradicionais. A razdo é que nao é possivel estudar gramética (nem disci- plina nenhuma) sem dominar certos conceitos bésicos; e os conceitos da gramatica tradicional sdo em grande parte inadequados. Eles precisam ser substituidos por outros que nao so do conhecimento geral Nao quero insinuar que a existéncia do PB seja uma calamidade; estou apenas fazendo uma comparagao de atitudes. Hi APRESENTACAO, Assim, apresento aqui no apenas a gramtica da Ifngua propriamente dita, mas também alguns conceitos que para o leitor podem ser novos. Nesses pontos, fi, todos os esforgos para incluir explicagdes claras ¢ objetivas, com exemplificagio suficiente, a fim de evitar aquela sensagio téo comum aos estudantes de gramitica dominam. O objetivo é levar o Ieitor a um co. de estar lidando com nogées que nhecimento consciente das estruturas da lingua, no apenas 4 memoriz conjunto de afirmagdes mais ou menos gratuitas. E a razdo do estabelecimento desse 1a deve ser uma disciplina cientéfica, igo de um, objetivo é minha convicgao de que a gramétic 5. A gramitica nao é uma descrigao completa Em geral se entende, implicitamente, que as gramaticas usuais oferecem uma descrigio completa da estrutura da lingua. Aliés, isso ajuda a explicar o fato de que elas nao variam conforme passa o tempo: a lista de t6picos é mais ou menos a mesma nas gramiticas de 1949 e nas de 2009. Desse modo, os estudos gramatic: tradicionais tendem a passar a imagem de uma disciplina basicamente “pronta”, com no maximo alguns pontos ainda controversos a acertar. Essa imagem é seriamente inadequada. A estrutura de uma lingua é muito mais complexa do que geralmente se imagina. Em primeiro lugar, muitas das nogdes uti- lizadas na descrigio esto ainda mal definidas, ¢ constituem assunto de discussdes tedricas intensas (e as vezes tensas). Posso citar coisas como: as classes de palavras; as fungGes sintiticas; a valencia dos verbos, dos nominais e dos advérbios; as relagdes semanticas entre o verbo e os complementos em uma oragao (papéis temiticos); a estrutura interna dos sintagmas (como o sintagma nominal); os princfpios que governam a ordem das palavras. Como se vé, a drea de incerteza é extremamente ampla, e é de esperar que novos resultados venham com frequéncia interferir nas gramaticas, mesmo as mais atualizadas. Isso acontece porque a lingufstica é uma ciéncia viva e em pleno desenvolvi- mento, nao um conjunto de técnicas estabelecidas h4 muito tempo e que sé temos que aplicar. Nenhuma descrigdo gramatical pode, portanto, ter a pretensiio de ser completa ou definitiva. Hoje sabemos muito mais sobre a estrutura das linguas do que se sabia em 1900, em 1950 ou em 1980. E vamos saber ainda mais em 2040. Nio existe gramatica completa ¢ definitiva de lingua nenhuma. ansrercoremat susie BB) sno a rs Essa é, aid: a situacdo nas disciplinas cientfficas em geral. No que pese 0 avango do conhecimento, nao hé nenhum final a vista, por varias razdes — muito em especial por causa da vastiddo dos fendmenos que estudamos. Por isso vou deixar bem claro que a descrigao contida neste livro nao cobre mais do que alguns aspectos da estrutura, isso porque nosso conhecimento é tario. Nisso esta gramitica no é diferente de todas as outras, tradicionais ou nao. Por outro lado, ha tragos importantes que ja podem ser explicitados, e aqui fiz. um esforgo para incluir muitos deles. inda parcial ¢ fragmen- 6. A Nomenclatura Gramatical Brasileira (NGB) Boa parte da Nomenclatura Gramatical Brasileira (NGB) precisa ser abando- nada na descrigao do PB. Isso se deve a diversos fatores, entre os quais 0 cardter assistematico da propria NGB, assim como sua pobreza conceitual frente a extrema complicagiio dos fatos. Na verdade, a NGB parece mais um compromisso politico, levando em conta inclusive os interesses imediatos do ensino, do que resultado de pesquisa linguistica. No entanto, um sistema de descrigao tem objetivos cientificos, nao primariamente pedagégicos. Em particular, nao é possivel descrever um fend- meno complexo como € a lingua através de categorias simples e pouco numerosas. Se a complexidade dos fatos dificulta o ensino, esse é evidentemente um problema aser enfrentado — mas nao ao custo de falsificar a natureza do fenémeno estudado. Mal comparando, nao podemos, em zoologia, distinguir os animais em mamiferos e aves, apenas. Enquanto existirem peixes, répteis, moluscos, insetos, aracnideos, crustaceos e anfibios, o estudo da zoologia nao tem altemativa sendo lidar com essa categorizagao telativamente complexa. O mesmo vale para a gramitica: fatos complexos requerem uma descrigdo complexa, ¢ qualquer outra safda acarreta a transmissao aos alunos de uma imagem falsa do fendmeno estudado. O que se disse acima a respeito da insuficiéncia da NGB e da gramatica tradi- cional para a descrigio do PB vale igualmente para a descrigdo do portugués padrao escrito. Ou seja, as gramiticas escolares que tratam exclusivamente do portugués es- crito (e que sio as utilizadas em nossas escolas) sao também cheias de inadequagdes extremamente sérias. Nao vou insistir nesse ponto aqui, pois ele jd foi abordado de- talhadamente em varios trabalhos para os quais remeto o leitor: por exemplo Hauy PRE APRESENTACAO, (1983), Perini (1985). Reafirmo apenas a necessidade de se elaborar igualmente uma nova gramatica para a Iingua padrao escrita. Por outro lado, esta gramitica nao tem a pretensao de substituir a NGB como dou- trina semioficial a ser adotada nas escolas. A bem dizer, a NGB foi apenas “recomen- dada” pelo MEC’, embora tenha sido interpretada nos tiltimos cinquenta anos como uma lei de fato. Mas os resultados da pesquisa cientifica nao podem ser objeto del analisados e representados os a lei no pode determinar como devem ser estudados, fenémenos que constituem o objeto da ciéncia. E, justamente por ser entendida como uma lei, a NGB teve como efeito imediato a extingaio das pesquisas em gramitica tra- dicional eo divércio entre a pesquisa linguistica e o ensino de gramética nas escolas. Uma nova gramatica é uma nova proposta, ¢ apenas isso; nao pode ser apoiada, muito menos imposta, por lei. Assim como nio existe uma astronomia oficial, assim como nio existe uma teoria bioldgica estabelecida por lei, naio pode haver uma teoria gramatical oficial. Se ha divergéncias entre os pesquisadores (¢ como hdl), elas tém que ser dirimidas através do didlogo, da argumentagio, da testagem, nunca através de recursos de ordem legal. As leis tm importincia em sua area — mas seu valor nao se estende a investigagao cientifica, que segue outros princfpios, ligados a coeréncia légica e A adequagio aos fatos observados. Assim, a NGB é mais prejudi- cial do que benéfica, e viveremos melhor sem ela. Isso dito, posso ver 0 que motivou a elaboragao da NGB nos anos 1950: a pro- liferagdo de designagdes diferentes para o que era mais ou menos a mesma coisa. Eu, por exemplo, estudei que o artigo tinha a fungao de “adjunto limitativo”, e com outro professor que era “adjunto adnominal”, e ainda com outro que era “determi- nante” etc. Essa realmente uma situagdo incémoda. Mas o problema é que uma nomenclatura nao é independente de uma teoria’, e ainda nao possuimos uma teoria suficientemente desenvolvida para isolar todas as questées de terminologia. Por ora, pelo menos, é melhor conviver com nomenclaturas divergentes, porque a alternativa € inaceitével, como nos mostrou a adogao da NGB nestes cinquenta anos: seria a definigao de uma teoria a ser adotada no ensino. Se (como acredito) 7 Portaria n° 36, de 28 de janeiro de 1959. 5 Por exemplo, segundo uma das nomenclaturas que estudei, 0 artigo era “adjunto limitativo” tum adjetivo posposto (easa amarela) era “adjunto adnominal”; segundo a NGB, ambos sio “adjuntos adnominais”. Como se vé, hd aqui uma diferenga de andlise, ndo apenas de nomenclatura. canes corinne roms a gramatica é uma disciplina cientifica, temos que assumir as responsabilidades atitudes de cientistas, estudantes ou professores de ciéncia. E em ciéncia nao ha atalhos: ou as baleias sio peixes ou nfo sio peixes, e isso se resolve através da obser- vagio e do estudo, nunca através de legislacao’. 7. Quadro teérico Uma pergunta que certamente vai ser feita a respeito desta gramatica é: que teoria foi adotada para orientar sua elaboragio? Atesposta é dupla: por um lado, tentei utilizar um corpo de categorias tedricas de aceitagio mais ou menos geral. Ao contrario do que se possa pensar, esse corpo tedrico existe, € no é nada pequeno: por exemplo, se alguém fala de “verbos”, ou de “concordancia”, ou de “preposigio”, ou de “sintagma nominal (SN)”, é imediatamente compreendido; esses termos evocam, se nao definigdes tedricas, pelo menos grupos de fenémenos bastante bem definidos. Neste livro, fiz um esforco para incluir informagao consensual, sempre que possivel. Por exemplo, se digo que em portugués temos uma construgio da forma SN - verbo - SN, na qual o primeiro SN é sujeito e tem o papel tematico de Agente, e o segundo SN tem o papel tematico de Paciente, como em 0 gato arranhou a menina, creio que ninguém negard que se trata de um fato da lingua. Por outro lado, nao € possivel, no atual estado do conhecimento, construir uma gramética inteiramente baseada em afirmagées universalmente aceitas como essa. Assim, nos casos em que se tornou indispensdvel elaborar andlises mais avan- cadas, recorri a certos princfpios que vém se impondo entre os pesquisadores de orientagao descritivista, em particular o principio da sintaxe simples (Simpler Syntax), proposto por Culicover e Jackendoff (2005). O leitor interessado deve consultar o trabalho de Culicover e Jackendoff, e também meu livro Estudos de gramdtica descritiva: as valéncias verbais (Perini, 2008), onde as bases da anilise sao detalhadamente expostas. O resultado é uma gramitica descritiva, que pro- cura explicitar a lingua realmente utilizada pelos falantes do PB, sem discutir ou 7 O faror legislaivo nessa rea pode ira extremos: Grant (2007) relata que em 1897 foi proposta uma lei no estado de Indiana (EUA) para fixar o valor de rem 3,2 (felizmente o projeto nao passou: foi derrotado por dois votos). APRESENTACAO sustentar alguma teoria em particular; e muito menos prescrever a lingua ideal que as pessoas deveriam usar. A énfase deste livro é na sintaxe e semantica da oragao. Essas sfio dreas particu- larmente carentes no momento, além de serem aquelas em que tenho trabalhado intensivamente. Tive que tratar meio de passagem duas morfologia e a fonologia — primeiro, por causa da necessidade porque existem alguns trabalhos relevan- cionar em especial Pontes (1973a), que ogia do verbo no PB; ¢ Silva discursivos, tive que ¢ inexplorada, & outras dreas importantes, a de manter este livro dentro de dimensdes razodveis; ¢, depois, tes e adequados nessa drea. Gostaria de men oferece uma descrigdo abrangente e correta da morfo (1999) para um apanhado da fonologia. Quanto aos fenémenos me limitar as construgdes de t6pico. Considero essa area largaments parte os importantes estudos de Pontes (1987). 8. A quem se destina este livro Hé uma necessidade urgente de gramaticas atualizadas em todos os niveis. O primeiro passo, entretanto, me parece o de elaborar uma descrigdo da lingua em nivel universitirio, para s6 entao produzir material dirigido ao ensino médio: grama- ticas, exercfcios e manuais utilizdveis em sala de aula. Todas essas tarefas j4 podem ser enfrentadas; ¢ esta gramética representa uma tentativa de atacar a primeira delas. Este é, portanto, um livro destinado a alunos e professores de letras, assim como a professores de Iinguas de todos os nfveis — pessoas que j4 conhecem os rudimentos da gramatica®. Em breve, espero, estardo dispontveis textos ¢ exercfcios destinados aos alunos, dentro dos objetivos que, a meu ver, se apli- imo capitulo. cam ao ensino de gramitica nesse nivel, ¢ que esto explicitados no pr Procurei, sempre que possivel, justificar as andlises propostas — isso dentro da ideia de que o estudo de gramética é uma disciplina cientifica, onde apenas apren- der uma lista de resultados nio faz sentido. O estudante deve sempre procurar saber por que se adota uma anilise e nao outra; esse € um ingrediente fundamental de sua formagdo intelectual, e néio deve nunca ser desprezado. Nao mais do que rudimentos. Aliss, suspeito q thecimento at ‘ if fo que um conhecimento profundo ¢ arraigado da gramitica tradicional é mais devntagem do que vantage, ps endea interfer com a apendagem de concets ves coninrcoremossmine BI via Aran Considerando que este € um livro destinado a estudantes € pessoas interessadas mais na lingua portuguesa do que na teoria linguistica, fui meio repetitivo em algumas passagens. Optei por esse recurso para no abusar de referéncias, facilitando a leitura fiuente; ou seja, sacrifiquei a elegancia a necessidade de clareza. E evitei entrar em longas € complexas discussdes de questdes ainda em aberto, porque afinal de contas este texto é uma gramatica, e nfio um compéndio de teoria gramatical. Assim, quando nos deparamos com essas questdes mais problematicas, remeto o leitor interessado a outras obras que tratam dos grandes problemas do momento, Essa é uma solugdo de compromisso, mas a meu ver inevitavel, dados os objetivos do presente livro. MAP. fevereiro de 2010 Cartuo J ERC) PARA QUE ESTUDAR GRAMATICA? 0.1. Sobre a ciéncia e o mundo moderno Para nosso bem, ¢ frequentemente para nosso mal, o mundo de hoje € domi- nado pela ciéncia e sua filha dileta, a tecnologia. Nao existe opgao: a propria so- brevivéncia das sociedades depende das aplicag6es da ciéncia, e cada sociedade deve desenvolver as suas, ou entio importé-las a peso de ouro. Disso dependem a satide, o bem-estar e até a alimentagio dos cidadaos — ou vocé acha que daria para alimentar 187 milhdes de brasileiros simplesmente plantando uma horta e criando tumas galinhas no quintal? Cada vez que tomamos um comprimido, falamos no telefone, entramos na internet ou comemos um filé, estamos nos valendo de coisas que hé duzentos anos ou nao existiam, ou eram privilégio exclusivo de alguns no- bres e miliondrios. Esse € 0 lado bom da ciéncia. Ela tem, como sabemos, também um lado mau: hoje sabemos matar com mui- to maior eficiéncia, os celulares também sao usados pelo crime organizado e a tele- viso pode ser usada como instrumento de desinformacio tanto quanto de informa- cao. Valeria entio perguntar: afinal de contas, a ciéncia é boa ou ma? Nem uma coisa nem outra, claro: bons ou maus so os seres humanos. Mas cteio que se pode dizer que quanto maior for o poder dominado por uma pessoa, maior sua potencialidade de fazer o bem ou o mal. E af esté a verdadeira forga da carro 0 PARA QUE ESTUDAR GRAMATICA? ciéncia, para o bem e para o mal: ela é uma fonte de poder. Digo mais ela hoe a maior fonte de poder de que dispdem os seres humanos. O pee poder Es itico estd condicionado a qualidade e quantidade da ciéncia e a tecnologia ee ee la na. cdo controla: isso explica as diferengas entre o poder politico do Japao, los Estados Unidos, da Alemanha e o de paises de extensiio e populagdo equivalentes, mas de minima expressio politica, como a Indonésia, a Nigéria e o Brasil. Digo tudo isso s6 para enfatizar que o treinamento cientifico é um componente fundamental da educago.de nossos dias. Um pais pode deixar de Prestar a devida atengao a cle, e alguns o fazem, mas € por sua conta ¢ risco. O Perigo nao é ape, nas a perda de prestigio politico: o analfabetismo cientifico generalizado também compromete coisas como o desenvolvimento econémico, a a de decisbes mesmo quanto a problemas internos e, em casos extremos, a prépria sobrevivéncia Basta observar como alguns paises procuram hoje desenvolver a tecnologia nuclear — € como outros paises tentam por todos os meios impedir que os primeiros 0 fa- cam. O que esté em jogo é 0 poder, néo a ciéncia; mas a ciéncia é o grande instru- mento do poder, logo ela esta também em jogo, afinal de contas. 0.2. Ciéncia e educagao Até 0 século XVI, a educacao formal era reservada a uma parcela minima da Populacao, ¢ se restringia a formagao literdria, humanistica e filos6fica. A ciéncia, em seus inicios, em geral estava ausente das escolas, e nao fazia parte dos curriculos, As universidades 36 tinham importancia prética por formarem advogados, tedlogos e burocratas de nivel médio. I verdade que havia escolas de medicina, mas eram ta- "as, ¢ quase sempre se limitavam a seguir a tradigao antiga Tepresentada pelas obras de Galeno, Avicena ou Averréis. A Pesquisa cientifica, em seus inicios, era praticada Por nobres curiosos (como Tycho Brahe, um dos fundadores da astronomia moder- na) € outros amadores, como Johannes Kepler, que era professor em uma escola de um cavalheiro, mas uma condigdo de desenvolvimento e instrumento basico do processo civilizat6rio. O cidadao do século XXI, mesmo que ndo seja um cientista profissional, precisa ter formacao cientifica, ou vai pagar por isso — e seu pats junto com ele. Ou seja, cada cidadao precisa ter alfabetizacao cientifica. O cidadao de hoje precisa, em um momento ou outro, ter condigées de formar io sobre afirmacées de diversas naturezas, como: (a) o aquecimento global € irreversivel, e nao se pode fazer nada para deté-lo; (b) 0 aquecimento global é um mito; (c) nao hd alternativa ao uso do petréleo como fonte de energia; (d) a Bolsa de Valores € a base e o fundamento da economia de um pais; (e) uma pessoa que erra na concordancia verbal é incompetente, ¢ nao deve ser eleita para um cargo ptiblico; () 0 criacionismo é uma teoria tio respeitavel quanto o evolucionismo para explicar a origem do homem; (g) o inglés é uma lingua mais adequada do que o portugués para a expresso da ciéncia; (h) educagdo é escola: desenvolver a educagao € construir mais escolas; (i) uma boa maneira de tratar um cancer é comparecer a um programa de TV, onde um evangelista pratica curas milagrosas; ete., ete., ete. Afirmagdes como essas (todas altamente questiondveis) podem condicionar as decisées politicas, pessoais e profissionais que cada um de nés precisa fazer de vez em quando. O homem comum do século XVI em geral nao precisava tomar de- cisdes, porque elas eram tomadas para ele pelas autoridades ou por acidentes de nascimento: lugar, classe social, sexo etc. Mas isso mudou, e 0 cidadao de hoje, pelo menos nas democracias, participa das decisdes importantes de sua comunidade. E uma das guias que nos orientam nessas decisdes € nossa alfabetizagao cientifica, O analfabeto cientffico é uma criatura indefesa, joguete da opiniao e dos interesses claros ou escusos de outras pessoas. E um problema é que grande parte da populagdo (ndo apenas no Brasil, mas também em paises do primeiro mundo) é, mesmo hoje, cientificamente analfabeta. A fildsofa ¢ historiadora americana Noretta Koertge comentou a preocupacao de educadores com camo 0 PARA QUE ESTUDAR GRAMATICA? indicagées de analfabetismo cientifico em nossa sociedade, tais como 0 may desempenho dos estudantes americanos em testes padronizados € as quantias de dinheiro gastas em procedimentos alternativos de satide extremamente duvidosos, que vio desde os remédios homeopaticos tradicionais relativa. mente anédinos até novas terapias psicolégicas para a “sindrome da memoria recuperada”, que podem ser extremamente prejudiciais. Hg também preocupagio a respeito do crescimento de mitologias antirracionais e pseudocientificas em nossa cultura (por exemple, livros de anjos, colunas de astrologia e programas de TV sobre os “mistérios inexplicados”, assim como a persisténcia e 0 sucesso do movimento “cientifico” criacionista) [Koertge, 1998: 257], Durante os tiltimos séculos, o poder de decistio se estendeu a um numero cada vez maior de pessoas — ¢ isso € bom, porque significa que, em principio, atende. se aos interesses de uma parcela cada vez maior da populacao. Mas também ha perigos: o poder, assim estendido, é colocado nas maos de pessoas cientificamente analfabetas, e portanto féceis de manipular. A democracia, para sobreviver, precisa estender a educagio politica, humanistica ¢ cientifica a toda a populagiio. Esse é uum dos grandes desafios da nossa época. Para certas pessoas e grupos no poder é bom que continue como esta. O analla- beto cientifico, como 0 analfabeto puro e simples, é uma criatura facil de enganare manobrar. Algumas pessoas parecem encontrar conforto e seguranga nessa situacao de dominio, mas para a comunidade os resultados podem ser desastrosos. 0.3. O processo de analfabetizacao Como € que pessoas que passaram longos anos estudando nas escolas ainda as- sim so analfabetos cientificos? Como € que se impede alguém de desenvolver pelo menos algum conhecimento e espitito cientifico? Acho que um dos problemas é a falta de nogiio clara do que vem a ser exatamen- te a ciéncia. Em particular, muitos estudantes (¢ alguns professores) nao sabem que aciéncia ndo é um corpo de conhecimentos e resultados; é um método de obter esses conhecimentos e resultados. Ou seja, conhecer e decorar uma grande lista de resultados da ciéncia nao tem nada a ver com a alfabetizagao cientifica. (GRAMATICA DO PORTUCLES BRASLERO & (MARIO A. PERINI Eu costumo usar um exemplo (fictfcio!) para enfatizar esse ponto. Digamos que um professor de matemitica ensinasse as quatro operagées segundo um procedi- mento novo: ele dava no quadro uma série de contas (de multiplicar, digamos) que deveriam ser aprendidas. Assim, na primeira aula ele dava: 3x4=12 31x 6 = 186 14x 11 = 154 ¢ mais uma ou duas. Os alunos aprendiam as parcelas ¢ 0 resultado, e essas eram as contas que iam cair na prova. No final do ano, teriam memorizado dessa maneira um total de 400 contas — as duas parcelas ¢ o resultado. Mas nunca se falava de como se faz uma multiplicagio; 0 ensino se resumia a memorizagao de contas in- dividuais, de maneira que se eu pedisse a um aluno que me dissesse quando da 13 x 40, ele poderia responder que “essa conta o professor nao deu”, Vocés acham que esses alunos aprenderam matemitica? Vocés acham que eles estudaram matemitica? E claro que nao. A matemitica (a aritmética, no caso) ndo € um conjunto de contas com seus resultados — é um método para a obtencaio de resultados a partir de parcelas dadas. Ora, isso se pode dizer de toda a atividade cientifica. E claro que os resultados s4o importantes, ¢ (quase) todo mundo se dedica a ciéncia com vistas a obter resul- tados. Mas os resultados nao sao a ciéncia: a ciéncia é o caminho, nao o ponto de chegada. Os alunos mencionados acima, portanto, passaram um ano tendo aulas de matemitica, fazendo provas de matemitica, mas simplesmente safram do curso tdo analfabetos em matemitica quanto eram no primeiro dia. O método utilizado garantiu que os alunos continuariam analfabetos. 0.4. O que isso tem a ver com a gramatica? Mas, dird 0 leitor, o método de ensino desse professor de matematica € absurdo. Nunca ninguém, em matéria nenhuma, vai adotar coisa parecida, porque € eviden- te que nao tem a menor possibilidade de dar aos alunos uma formagio adequada. Infelizmente, o método ilustrado acima, ou uma variante muito parecida, é ain- da popular em uma drea do conhecimento: justamente a gramatica. Nas aulas de cartmuto 0 BBA PARA QUE ESTUDAR GRAMATICA? gramitica, aprendemos que sempre é um advérbio; ndo € um advérbio; gravemente 6 um advérbio. Mas nunca perguntamos: — por que essas palavras so advérbios? — porque precisamos diviir as palavras em classes? Nao seria mais convenien, te ter uma classe tinica para todas as p: para que tudo isso? O que é que a gramética esti tentandy valavras? — afinal de contas, nos dizer sobre a lingua? somos convidados a aprender, e muitas vezes decora, Nas aulas de gramatica, ¢ levou a obtengiio desses resultados'. A aula resultados; nao se cogita do método qu de gramitica tfpica ndo comporta perguntas embarat qués que no constam do livio adotado, O professor nunca precisa justficara an lise que ensina, tem apenas que reproduzila tal como a encontrou na bibliografa O resultado € que nas aulas de gramética ndo se aprende gramética, nem sequer se estuda gramética, Nao é de espantar que os alunos (e os professores, que também sio vitimas do sistema) no saibam gramatica, nao se interessem por gramiatica ¢, para resumir tudo, detestem a gramatica. cosas, referentes a comos e por Alguns professores e alunos conhecem exatamente 0 que esti em cada pégina das graméticas usuais. Mas isso no é saber gramatica, por muitas razdes: primeito, porque os livros que chamamos “gramiticas” contém resultados, mas nunca dizem, nem perguntam, como é que se chegou a eles. Segundo, porque as vezes nos dizem no como a Iingua é, mas como a lingua deveria ser. E, terceiro, porque nos pedem para crer no que esté ali — nunca questionar, nunca duvidar, nunca fazer perguntas embaracosas como as que dei acima. ‘Temos que concluir que o estudo de gramatica, tal como praticado atualmente, contribui para a analfabetizacio cientifica dos estudantes: por fornecer resultados sem focalizar os métodos de obté-los; por, muitas vezes, lidar com dados ficticios (como quando se diz que a frase me dé ele af “no existe”)’; por desencorajar a 7 Bisa €a tradigdo; sei que & injustiga dizer isso de todos os professores de gramiica, mas certamente ainda € a regra, 2 Tive recentemente uma experiéneia pessoal da rejeigdo que muitos professores tém para com fatos da lingua falada: publiquei (em inglés) uma gramética do portugués falado do Brasil (Perini, 2002) e recebi muita erftcas, algumas favordveis, outras desfavordveis, O interessante é que destas altimas nenhuma {questionou propriamente a qualidade do livo: todas as eriticas se dirigitam a minha decisio de descrever a lingua falada dos brasileitos, que acabou tachada de “linguagem de favela”, “portugués inculto” ete. Ora, cmireasorsmas esse EB) At arene divida e 0 questionamento; em uma palavra, por encorajar a crenga acritica em doutrinas aprendidas, mas nio justificadas. 0.5. A gramatica como disciplina cientifica Para justificar a presenga da gramitica no curriculo, diz-se que preciso estudar gramatica para se falar ou escrever melhor (leia-se: no portugués padrdo). Nenhum linguista questiona a necessidade de se adquirir competéncia em portugués padrao, aquela lingua escrita que € tio diferente da que realmente se fala. A questao € se estudar gramatica € o caminho para se adquirir essa competéncia. E toda a evidéncia indica que no é. Nao vou desenvolver aqui esse ponto, que jé foi suficientemente argumen- tado em trabalhos de autores que vao de linguistas profissionais como Sirio Possenti a escritores como Luis Fernando Verissimo: saber gramatica nao € condigao para o bom uso da lingua padrdo, nem 0 estudo de gramética € 0 caminho para chegar Ié. Entdo, o que € que a gramitica poderia fazer enquanto disciplina escolar? Mi- nha resposta € que a gramatica € uma disciplina cientifica, tal como a quimica, a geografia e a biologia. Assim como a biologia estuda os seres vivos (sua forma, fisio- logia, habitos etc.) e a quimica estuda os elementos e suas combinagées, a gramatica estuda um aspecto da linguagem — um fendmeno tio presente em nossas vidas quanto os seres vivos ou os elementos quimicos’. Quem perderia tempo aprendendo os elementos quimicos, seus pesos atémicos e suas valéncias, sem saber para que tudo isso foi inventado? Faz parte do estudo de quimica saber que as valéncias exprimem as possibilidades de combinagao dos elementos, ¢ que estas explicam as substncias realmente encontradas na natureza. Explicam, por exemplo, por que encontramos compostos de hidrogénio, enxofre oxigénio em determinadas proporgées, mas nunca compostos de hélio ¢ hidrogénio (nem de hélio mais nenhum outro elemento, porque 0 hélio nao se combina). Em coutras palavras, as valéncias dos elementos nos levam, no final das contas, a explicar certos aspectos do mundo real. ‘expresses como me dé ele af e eu fui na formatura nao sfo da linguagem inculta, sendo utilizadas por praticamente todos os brasileiros, quando falam (quando se escreve a histéria ¢ outra, claro). ¥'Relembro que a gramatica nao estuda todo o fendmeno da linguagem; mas estuda um componente bésico, que € sua estrutura formal e semantica. carrito 0 RBI} PARA QUE ESTUDAR GRAMATICA? | Vamos passar agora 4 graméatica: para que, por exemplo, temos que lidar com diversas classes de palavras? Acontece que hé boas razes para isso. Vamos primeiro examinar alguns fatos do portugués. Os sintagmas seguintes si todos bem forma- dos, e podem ser usados normalmente: [1] Um outro gato [2] Aqueles dois chapéus [3] A nova professora mas as sequéncias seguintes nao formam sintagmas: [4] * Outro um gato* [5]* Dois aqueles chapéus [6]* Nova a professora Qual é a explicagdo para isso? As palavras um, os ¢ aquela aparecem sempre no a’, tendo precedéncia sobre palavras como outro, dois e nova, que s6 se nao houver nenhuma das palavras do primeiro grupo. Ouseja, em a uma classe ¢ outro, dois e nova pertencem a outra classe. jorque elas ndo se compor- inicio do sintagm aparecem no infcio um, os ¢ aquela pertenc E por isso que precisamos dividir as palavras em class tam todas da mesma maneira, Se todas as palavras pertencessem A mestha classe (ou seja, se nao houvesse classes de palavras) nao seria possivel descrever a aceitabilidade de [1), (2} ¢ [3] frente a inaceitabilidade de [4], [5] e [6]. Assim, definir as classes de palavras nao é, para o estudioso da Ifngua, uma perda de tempo. Na verdade, as classes de palavras constituern uma boa parte da estrutura de uma lingua. Quero mostrar, com esse exemplo, que a gramética é 0 estudo de certos fendme- nos da vida real: no caso, a ordenagdo mais ou menos fixa das palavras em sintagmas como os de [1] a [6]. Esse € um fato, embora nao possa ser observado com os olhos (co nariz!) como as substincias quimicas; mas pode ser observado consultando as reagdes dos falantes do portugués. O conhecimento de uma lingua é uma parte do nosso conhecimento do mundo, programado no nosso cérebro, e acessivel a obser- vagio através do comportamento e dos julgamentos dos falantes. E a gramatica é uma disciplina que estuda uma parte importante desse sistema de conhecimentos. Usa-se o asterisco, *, para marear frases e sintagmas inaceitaveis. Essa afitmagio ndo 6 estitamente verdadeira, por causa da palavra todos, que pode aparecer antes: todos os dois chapéus, por exemplo. Mas serve para os exemplos vistos. (GRAMATICA DO PORTUGUES BRASLERO fa MARIO A. PERINI Concluind gramética € uma disciplina cientifica, pois tem como finalidade o estudo, a descrigdo e a explicagao de fendmenos do mundo real, 0.6. A ciéncia na escola J4 sabemos que nfo ¢ estudando gramética que vamos aprender a usar melhor a Iingua, escrita ou falada. E claro que de vez em quando uma pessoa que jé sabe escrever pode ter uma dtivida. Af consulta uma gramitica e (tendo sorte) consegue resolver a dtivida. Mas, primeiro, isso nao acontece a toda hora; e, principalmente, ndo € assim que se adquire o uso da lingua. A gente aprende a escrever lendo e es- crevendo, € 0 recurso a gramética é, na melhor das hipéteses, uma coisa marginal. Podemos entao concluir que a gramatica no serve para nada e advogar (como fazem alguns) a supressio de seu estudo na escola? Eu acho que no; para justifi- car minha posigdo, vou fazer algumas consideragées sobre a presenga das disciplinas cientificas na escola. Para que € que foram inclufdas no curriculo escolar disciplinas como a quimica, a geografia, a hist6ria e a biologia? Alguns diriam que essas disciplinas so impor- tantes para a formagio profissional dos alunos. Mas a justificativa nao se sustenta: consideremos uma classe de oitava série, por exemplo. Temos ali 30 ou 40 jovens de seus 13 anos, e ninguém, mas ninguém mesmo (nem os préprios jovens) sabe que carreira cada um deles vai seguir — dali podem sair médicos (que nao vao precisar de geografia), empresdrios do ramo hoteleiro (que vao dispensar a biologia), profes- sores de educacio fisica (que nao vao utilizar a histéria), talvez até algum linguista (que nao vai ver utilidade na quimica). A questio no € nem mesmo a de planejar um curriculo que atenda a todas essas carreiras futuras — a questo € que nao sabe- mos 0 que vai ser de cada um, logo nao vale a pena tentar fazer esse planejamento. E verdade que hé certas coisas que vao ser titeis a todos: ler e escrever, assim como alguma matematica bésica. Mas seré que deverfamos reduzir 0 curriculo es- colar a essas matérias “‘iteis”? Nao creio que alguém defenda essa drdstica redugdo no contetido dos curriculos. Quem estaria disposto a matricular seus filhos em uma escola que s6 ensinasse leitura, escrita e matemética? Que opinio terfamos de uma escola que deixasse sair alunos, no final de 8° série, sem saber qual € a capital de Alagoas, sem saber que a terra gira em volta do sol, € nao 0 contrério, sem saber como se classificam os seres vivos, sem saber 0 que € um verbo? catruo0 Bg) Para Que esTUDAR GRAMATICA? oN Acontece que a escola nio tem como fungio tinica a preparagao de joven Paty eventuais earreias profissionais. A escola — ou melhor, a educagio — tem tivos muito mais amplos e muito mais importantes para a comunidade e para yy, membros. Existem disciplinas de valor pritco imediato (a leitura, elements 4, matematica, a escrita). Mas existem disciplinas que formam um componente, digg 5, “cultural”, e cuja presenga no curriculo ninguém pensaria em question, gcografia, a biologi, a histéria, a fisca etc. Cada uma dessasdisciplinas pode vr, ser ttl para alguns alunos, mas apenas para uma minoria. Sao elas que basciam alfabetizacao cientifica a que me refiro neste capitulo. E é entre elas que a gramat. ca encontra (ou vai ter que encontrar) o seu lugar, Uma das fungées de um professor é a de abrir janelas: revelar ao aluno aspectos do conhecimento que poderao interessé-lo, as vezes a ponto de esse aluno resolver dedicar sua vida profissional ao estudo de uma disciplina. Um jovem de 10 ow 15 anos é perfeitamente capaz de curiosidade cientifica, e é nessa época que nascem muitas vocagées. Facilitar esse processo é uma das fungdes mais importantes de uma escola. E muitos alunos se interessam o suficiente para procurar informa — e€ mesmo formago — em disciplinas cientificas sem relevancia direta para sua eventual atividade profissional. Esses sio componentes essenciais de uma educagio intelectualmente rica, algo que deveria ser um dos objetivos de qualquer sistema educacional. O fato de que muitos desses sistemas fracassam lamentavelmente nes se particular nao é argumento para que ndo se continue tentando. Mas para isso ¢ importante que as janelas sejam realmente abertas. O jovem procura aquilo que o interessa, nao aquilo que os mais velhos Ihe dizem que “ai ser importante na vida". E o jovem (a julgar por minha experiéncia ja longa de pro- fessor) se interessa por aquilo de que participa; simplesmente receber informacio geralmente nao o motiva. Em um painel de que Participei, hd anos, a respeito do ensino de gramatica, dois grupos de alunos bem diferentes¢ deram a mesma mensi- gem: ndo conseguiam se interessar por gramdtica porque nao participavam da cria- a0 ¢ justificagao do conhecimento. Recebiam a “verdade”, aprendiam e devolviam na hora da prova. sabiam por que as coisas eram daquele jeito, nem o que, ex tamente, se queria com aquele estudo. Eles tratavam a gramatica — corretamente ‘Um grupo proveniente da 8¢ série de um colégio de classe mésa baixa, outro do 3° do ensino m6 de tma escola de elite. painel se realizou na Faculdade de Educagao da UFMG, por diretora, prof Magda Soares, nos anos 1980; tio iciativa da entio creio que a situagao tenha mudado muito desde ent. (GRAMATICA DO PoRTUCUES mtasteRo [BE] MARIO A. PERINI — como uma disciplina cientifica; mas safam decepcionados porque 0 tratamento dado a matéria no era cientffico. Em uma palavra, ndo viam na gramatica nem utilidade prdtica, nem contribuigao relevante para sua alfabetizagao cientifica. E minha tese que a gramitica pode contribuir para a alfabetizacao cientifica, se a tratarmos da maneira adequada. E a maneira adequada nos é indicada pelas demais disciplinas cientificas: nao basta aprender ciéncia, é essencial também fazer um pouco de ciéncia. Isso faz da disciplina cientifica ndo apenas uma fonte de in- formagées sobre 0 mundo, mas um campo de treino do pensamento independente, da observacio isenta e cuidadosa, do respeito aos fatos — habilidades preciosas, cada vez mais necessérias, mas que brilham pela auséncia no ensino tradicional de gramitica, Sdo essas habilidades que nos instrumentam para avaliar (e se for 0 caso rejeitar) afirmagdes como as que vimos acima em (a) — (i). Sao elas que compen o que chamo aqui “alfabetizacao cientffica”. 0.7. Como fica a gramatica? Para atingir esses objetivos, acredito, é preciso trabalhar com gramatica como se trabalha com as ciéncias em geral. Apenas como infcio, sugiro a adogao de objetivos como os seguintes: a) Abandonar de vez as falsas promessas, como a de que estudar gramitica € 0 ca- minho para desenvolver o desempenho na lingua escrita. Ou seja, reformular 05 objetivos do estudo de gramatica, reposicionando-o e redimensionando-o de acordo com esses objetivos. Por exemplo, nao faz sentido insistir no ensino de gramética a alunos que nem sequer tém dominio basico da lingua padrao. Assumnir uma atitude cientifica frente ao fenémeno da linguagem. Isso sig- nifica admitir 0 questionamento, aceitar a necessidade de justificar as afir- magées feitas e dar lugar 4 duivida sistematica, ¢ nao a vontade de crer (que 6a maior inimiga do espfrito cientifico). Trabalhamos com fatos e teorias, € b) nao com crengas ¢ dogmas. Procurar atividades que envolvam a observagio e eventual manipulagio de fatos da lingua, com o objetivo de construir hipéteses a respeito deles. Aqui nosso modelo € o laboratério de outras disciplinas — por exemplo, o aluno de fisica nao apenas é informado de que os corpos se dilatam com o calor, °) canTuLO 0 PARA QUE ESTUDAR GRAMATICA? mas é encorajado a verificar isso por si mesmo, esquentando uma bola de metal ¢ passando-a por um anel d) Abandonar a ideia de que posstvel réalizar 0 estudo completo de uma ln. matica portuguesa € um sistema plenamente conhecido, pronta e relatada na literatura do assunto. Dar e ns, mé para outros, mas verdadeira) de que ta, Uma boa maneira de se convencer como eu fiz. durante alguns anos), gua, de que a gra e de que sua descrigiio estd enfatizar a noticia (boa para algu’ a gramitica portuguesa ndo estd pron disso 6 ensinar portugués a estrangeiros ( Quando se ensina gramatica a brasileiros, menos; se eles nao aprenderem, nio vai fazer gran' um estudante estrangeiro pergunta quando € que se usa se usa fazia, vocé precisa ter uma resposta. e) Apresentar a ideia, revoluciondria para alguns, tudar os fatos da lingua, e no construir um cédigo de proibig Esta tarefa é, de Jonge, a mais di- a aprendizagem € questao de so- de diferenga. Mas quando fiz e quando € que de que fazer gramética é es- s para dirigir 0 comportamento linguistico das pessoas. ficil de programar — muitas pessoas parecem resistir a isso com obstinagao fandtica (ver minha observagio na nota 2). Mas € a mais importante, e se nao for vencida as outras vao cair no vazio. H4, naturalmente, muitas maneiras de levar a efeito as tarefas sugeridas acima. Minha opeio € comegar mostrando que ndo é verdade que o pov fala “de qualquer , isto é, que é perfeitamente possivel elaborar uma gramatica da lingua falada jeito”, ‘ae complexa, ¢ to interessante, quanto a da lingua — e que essa gramitica ¢ tao ric ado, Por exemplo, vamos ver algumas frases realmente erradas: 71* Eu vamos te ajudar. [8]* Mamie veio ao baile sem meias e eu vim com. [9] * Ela t6 namorando um baixo. (cf. ..um baixinho) [10] * Ele é um ruim dentista. (cf. .um mau dentista) Note que ninguém nos ensinou isso: essas frases no sfio erros que as criangas CO metem, nem sao proibidas pelas gramiticas escolares — mas, mesmo assim, nés todos acabamos aprendendo a no falar desse jeito. Ou seja: existem regras que definem como se pode falar, e estas esto programadas no nosso cérebro (nao foram inventadas pelos gramiticos). Donde uma série de perguntas interessantes, como por exemplo: — que regras so essas — as regras verdadeiras que nés temos na cabega, nao as que foram inventadas pelos graméticos? cmnersorsnasmane EM] woo ran — como € que a gente aprende essas regras, se elas no so ensinadas? (sdo aprendidas, mas isso nao quer dizer que sejam ensinadas!) Perguntas como essas so um bom ponto de partida para o estudo de gramatica. Note-se que estamos partindo de observacées e perguntas, e nao de afirmagées ca- tegdricas que nos expdem a verdade final e absoluta, 0.8. Concluindo Em vez de eliminar pura e simplesmente o estudo de gramatica na escola (com o que estariamos fechando uma janela), é preciso redefini-la em termos de formagao cientifica. $6 assim essa disciplina — parte essencial do estudo da linguagem, o mais importante dos fenémenos sociais — poderd dar sua contribuicao a alfabetizagao cientifica nossa e de nossos alunos. Falei acima da educagao cientifica como um campo de treino do pensamento independente, da observagio isenta ¢ cuidadosa e do respeito aos fatos. A gramatica pode ser exatamente isso, no seu campo especial de atuagao que é a estrutura da lingua; mas s6 se adotarmos a perspectiva adequada, vendo-a como mais uma das disciplinas cientfficas do curriculo. Parece-muita coisa a fazer, e é; parece dificil, e é; e talvez fique caro. Mas edu- cago nao se faz com solugées faceis e baratas. canto. 0 41 | PARA QUE ESTUDAR GRAMATICA? VALENCIA cuirao || VALENCIA 11.1. O verbo é a chave Se existe uma chave para a sintaxe do portugués, € 0 verbo. Quando conhece- mos o verbo de uma oragio — isto é, seu significado e os complementos com que ele co-ocorre — podemos determinar boa parte da estrutura das oragdes em que ele figura. Por exemplo, digamos que o verbo da oragao é confiar: a partir dessa infor- macio podemos prever que haverd um sujeito com o papel tematico de Experien- ciador; ¢ que haveré um complemento governado pela preposi¢ao em, com o papel de Causador de experiéncia, como em [1] A menina confia em vocé. Como sabemos, [1] se analisa como elaboraciio de uma construgio. E 0 con- junto das construgées nos fornece grande parte da estrutura gramatical da Iigua'. As construgdes sio descritas em termos dos complementos compativeis com cada verbo: sua forma sintatica e seus papéis tematicos. Cada verbo pode ocorrer em um conjunto bem delimitado de construges, € esse conjunto de construgdes é 0 que chamamos a valéncia do verbo. A primeira observagio a fazer que um verbo pode ocorrer em mais de uma construgio, Confiar, que vimos acima, é relativamente simples; mas 0 verbo engor- dar pode ocorrer em pelo menos trés construgées bem distintas, a saber: \Apenas grande parte, nao tudo. Ha muitos aspectos da estrutura gramatical que precisam ser descritos fora da lista de construgdes; mas esta é um passo indispensivel. [2] O fazendeiro engordou o frango. (construgao transitiva) [3] Pizza engorda. (construcdo transitiva de objeto eliptico) [4] A menina engordou. (construcao ergativa)? Esses fatos sugerem imediatamente duas tarefas a serem realizadas dent ——— k descrigdo da lingua: (a) uma lista das construgdes possiveis; (b) uma lista dos verbos da Iingua, cada um deles associado &s construgds que ocorre. Uma vez realizadas essas duas tarefas, teremos em mios boa parte da estrutu da orago portuguesa. Nao se trata de conhecimento puramente te6rico: a valencis de um verbo representa parte do conhecimento que todo falante precisa ter para po. der usar esse verbo corretamente. Qualquer falante do portugués sabe que engordar pode ocorrer nas construges exemplificadas em [2], [3] ¢ [4], mas nao em [5]* O fazendeiro engordou no frango. sendo 0 fazendeiro Agente e no frango Paciente. Ja bater caberia ai: [6] O fazendeiro bateuno frango. ‘Agente Paciente Estamos falando, portanto, nao meramente de especulagées tedricas, mas da de crigdo de um conhecimento que existe na meméria de todos os falantes do portugués Por outro lado, nem tudo na oragdio depende do verbo. Ha elementos de int ducdo sintaticamente livre, que podem ocorrer com a mesma forma ¢ 0 mesmo significado, seja qual for o verbo. Vimos no capitulo 2 que esses elementos sio de nominados adjuntos — em contraste com os complementos, cuja forma sintética ¢ papel tematico dependem do verbo de alguma maneira. Um exemplo de adit! 6 uma expressiio de Causa da forma por causa de SN. Note-se como se pode act centar um sintagma dessa forma e papel temitico as frases acima: (7A menina confia em vocé por causa do professor. [6] O fazendeiro engordou o frango por causa do Natal. [9] Pizza engorda por causa dos carboidratos. [10] A menina engordou por causa do excesso de pizza. 7 ¥ $6 para relembrara diferenga de andlise entre [3] ¢ [4] [3] € um exemplo da construgo as objeto eliptico porque o sujeito & Agente; e [4] ilustra a ergativa porque tem sujeito Paciente. ide Shrtaeh dat susan ran —— | a Osfiatores que governam a ocorréncia desses sintagmas de causa so semanticos, ou 4, elesocortem onde quer que sejam semanticamente adequados. A frase [11] ¢ estra- sea . . a nfo por sua estrutura gramatical, mas porque diz alguma coisa que ndo faz sentido: a m+ A menina confia em voce por causa do excesso de pizza. Compare-se essa situagZo com a do complemento com a preposigio em que corre com confiar. Se somente levarmos em conta a semntica, eu poderia dizer a)" A menina confia a mae. ou entdio [3]* A menina confia da mae. eseria possivel compreender 0 que o falante quer dizer. No entanto, essas frases si snaceitiveis porque a preposigdo estd errada; com o verbo confiar, precisa ser em. 11.2. Didtese, valéncia Vamos considerar agora 0 verbo e seus complementos. Vimos que cada constru- ao admite certos verbos e rejeita outros. Por exemplo, na construcao ergativa, isto é, t4) H Vv Paciente. cabem 0s verbos engordar, encher, desanimar ¢ muitos outros: 115] Voc8 engordou. 116] O tanque encheu. (WIA turma desanimou. Mas muitos outros verbos ndo cabem nessa construgao. Assim, podemos ter co- ‘mer com sujeito e sem outro SN, mas 0 sujeito é sempre Agente, nunca Paciente: (18) Eu Agente ii comi be Outros verbos que ndo cabem na construgdo ergativa sio matar, ler, estudar, liscar ete, Isso significa que temos aqui dois grupos de verbos: os que cabem na = : nstrugdo ergativa e os que nao cabem. a divide os verbos da lingua em di, Em outras palavras, a construgdo ergativa u Uma construcao que tem fo podem ocorrer nela. Jtese. Existem muitas diteses em portugug, jo transitiva € tambéy grupos: os que podem @ 08 que essa propriedade se denomina uma di as. Por exemplo, a constru — niio se sabe ao certo quant: verbo comer pode ocorter na construcao transitiva, como em uma didtese. Assim, 0 fig] Eu —-comi_ os pastéis. Agente Pacente mas o verbo acontecer nao pode, porque nunca aparece com sujeito Agente e objeto Paciente. Parece que a maioria dos verbos pode ocorrer em mais de uma didtese. Por exemplo, engordar, que ocorte na didtese ergativa, também ocorre na transitva: comparar [2] com [20] O fazendeiro engordou trés porcos. Agente Paciente O conjunto de todas as didteses em que um verbo pode ocorrer € a valéncia des- se verbo; a valéncia de engordar inclui a distese transitiva, a ergativa ¢ pelo menos mais uma, a transitiva de objeto eliptico, como no ex. [3]. Algumas disteses s6 valem para um pequeno mimero de verbos. Por exemplo, a didtese denominada de paciente com em tem um sujeito Agente e um Paciente expresso por sintagma preposicionado com a preposigao em: [21] O Alex bateu na Valéria. Essa didtese s6 vale para o verbo bater, e para nenhum outro. Jé a didtese transi- tiva, exemplificada em [19] e [20], vale para milhares de verbos. © conhecimento das valéncias dos verbos é uma parte essencial do conheci- mento que um falante tem de sua lingua. Ou seja, nao € possivel falar uma lingua corretamente — e mesmo inteligivelmente — sem dominar as valéncias de grande numero de verbos. E qualquer falante fluente do portugués sabe pelo menos alguns milhares de verbos, todos eles com suas respectivas valéncias*. r Fi O niimero dos verbos usados correntemente no earcaicos) é estimado em cerca de 6.000. Portugués atual (sem contar termos técnicos, regionals ‘GRAMATICA DO PORTUGLES BRASLERO Peconic cas S39] MARIO A. PERIN 11.3. Classes de verbos Vimos que a didtese € um tipo de construgao, Cada didtese divide os verbos da lingua em duas classes: os que podem e os que ndo podem ocorrer nela. Por exem- plo, nossa conhecida construcdo transitiva distingue os verbos que a aceitam, como comer, matar € escrever dos que nao a aceitam, como ser, aparecer e cair: [22] A Carol comeu a pizza / matou o rato / escreveu um ivro. [23] * A Carol apareceu uma pizza. [24]* A Carol caiu 0 livro no cho. E verdade que podemos dizer [25] A Carol & a esposa do Jorge. mas aqui no temos a construgdo transitiva porque o sujeito nao é Agente, nem o objeto, Paciente. Assim se classificam os verbos quanto a sua valéncia. Mas nio se trata de uma subclassificagao progressiva, segundo a qual os verbos se dividem em duas classes, A e B; a classe A se subdivide em C e D; a classe B em E e F etc. Cada didtese divide 0 todo dos verbos em duas classes, sem consideragao do que resultou da aco de outras diteses, de maneira que a classificagao acaba sendo complexa. Para exempli- ficar, vamos pegar um grupo de cinco verbos: bater, comer, decepcionar, fazer, morrer Vamos classificar esses verbos usando quatro didteses, a saber, a transitiva, a ergativa, a transitiva de objeto eliptico e a de paciente com em; todas foram defini- das anteriormente. Vamos ver como cada uma delas subdivide esse grupo de quatro verbos, e depois vamos avaliar os resultados globais. A didtese transitiva se aplica a bater (a Nadia bateu o carro), comer, decepcionar ¢ fazer, mas nao a morrer, porque nao se pode dizer [26] * A cobra morreu o cavalo. Jé.a exgativa vale para decepcionar e momrer, mas néo para bater, comer ou fazer; por exemplo, a frase (271A Daniela j6 comeu. nao é exgativa porque o sujeito ndo é Paciente. Jé em [28] A turma decepcionou. temos uma ergativa, porque 4 turma € Paciente*. ‘A transitiva de objeto eliptico vale para hater, comer e decepcionar, mas 0 pag fazer nem para morrer. Por exemplo, a frase [29] * O menino fez. nijo € aceitavel. Mas podemos dizer [B0} Esse jogador bate demas. ‘Ade paciente com em 86 vale para bater: [31] O sujeito batia nos filhos. .m ser resumidas em um quadro, que permite uma visig bos. No quadro abaixo, “+” quer dizer dizer que nao pode. Essas observagdes pode geral da validade das diateses para 0s cinco vel le ocorrer naquela didtese, € “_? quer que 0 verbo pod Verbos bate ‘SUBCLASSIFICAGKO DE CINCO VERBOS SEGUNDO QUATRO DIATESES Como se v6 no hé dois verbos iguais — cada um desses verbos tem uma val dir esses cinco verbos em dus cia diferente da dos outros quatro. Nem é possfvel di classes “principais”, que depois se subdividem, e assim por diante. Se observarmos? didtese transitiva, temos dois grupos: bater, comer, decepcionar ¢ fazer admitem essa visio vai set construgiio, morrer nao admite. Mas se considerarmos a ergativa, a di entre hater, comer e fazer, que nao a admitem, e decepcionar e morrer, que admitem- Uma classificagao interfere na outra, impedindo a postulago de classes € subclas- wa js is exratamente, pode ser Paciente, porque decepcionar também ocorte na transitva de objeto clipe” MARIO A. PERINI ses 8 maneira tradicional: decepcionar fica junto com bater, comer e fazer segundo um critério, mas fica junto com morrer segundo outro. E ambos os critérios sio importantes, porque qualquer falante da lingua conhece as construgoes transitiva e exgativa, e sabe quais verbos cabem em cada uma, Por enquanto, temos simplesmente cinco classes, cada uma com um verbo. Quando se amplia essa classificagao para mais verbos ¢ mais didteses, acabam apa- recendo grupos de verbos de valéncia idéntica; por exemplo, considerando apenas as quatro didteses acima, encher tem valencia igual a de decepcionar, e desaparecer tem valéncia igual a de morrer. Mas ainda assim o ntimero de classes de verbos € muito grande — pelo menos dezenas, mas mais provavelmente centenas. Mapear 0 léxico para estabelecer essas classes de verbos € um trabalho ainda a realizar. Por ora, vamos nos contentar com princfpios gerais. Os verbos da lingua se classificam segundo as didteses em que cada um pode ocorrer; ou seja, segundo a valéncia de cada um. A valéncia de decepeionar, por exemplo, inclui as diteses transitiva, ergativa e transitiva de objeto eliptico: [32] O professor decepcionou os alunos. (transitiva) [33] Os alunos decepcionaram. (ergativa)® [B4] Esse professor decepciona. (transitiva de objeto eliptico) A valéncia dos verbos é parte essencial do conhecimento gramatical que nos permite usar a lingua, construindo e interpretando frases corretamente. Por isso € tdo importante estudar as valéncias, que subclassificam os verbos em muitos grupos, cada um com seu comportamento gramatical préprio. 11.4. Contando verbos Um problema que precisa ser resolvido é o seguinte: quando temos um verbo com dois ou mais significados muito diferentes, temos na verdade um verbo ou mais de um? Um caso tipico € o de pintar, como em [35] Leonardo pintou a janela. [36] Leonardo pintou [4 em casa. Em um registro mais formal, usa-se outra construciio, com se: 08 alunos se decepcionaram, No PB, & mais comum a construgio ergativa (sem se). conuo f wtan Ou seja, pintar ocorre com dois significados nitidamente diferentes, corre dendo a valéncias também diferentes. A pergunta € se devemos distinguir agyj fi verbos pintar, ou apenas um. Para adiantar, digo logo que pintar é um tinico verbo, embora tenha duas acep. 66es tao diferentes. [gualmente, consideramos apanhar como um tinico verbo, em, bora tenha pelo menos dois significados bem distintos: “ser espancado” (ele any da mulher) e “pegat” (eu apanhei o brinquedo no chdo); 0 mesmo para perder, ny significados de “extraviar” (eu perdi o meu rel6gio) e “apodrecer” (0 leit perdeu po causa do calor). As unidades gramaticais se definem em termos formais, pelo menos em um primeiro momento. Assim, ir € 0 mesmo verbo nas frases [37] Eu you a Porto Alegre a semana que vem. [38] Acho que vai chover. Isso nao significa que as evidentes diferengas de significado e de uso sintético nao sejam levadas em conta na gramitica. Trata-se apenas da opgao de se dizer “o verbo ir tem diferentes significados e diferentes propriedades sintaticas”, e nao “hi varios verbos ir em portugués, e cada um deles tem um significado”. Hé boas raz6es para isso. Um dos principios basicos da descrigéio gramatical éo de que temos que estabelecer uma relagao entre formas (tais como percebidas pelo receptor) e significados. As formas sao o ponto de partida necess4rio para a inter- pretagao, e precisam estar registradas na meméria do falante. Ao ouvir [35] ou [36], © que ele tem é um verbo com a forma pintar*. B tarefa do receptor atribuir a esst forma o significado “cobrir de tinta” ou “aparecer”, com base no contexto da senter- a. Ora, parte desse contexto é justamente o entorno sintatico — a construgio em que a forma ocorre. Se pintar tem sujeito’ e é seguido de um SN, ou seja, se ocorte na construcao transitiva, s6 pode ter a primeira das acepgGes acima. Se quisermos relacionar a descrigdo da lingua com seu uso — 0 que é um dos objetivos da linguistica — teremos que descrever 0 processo que, a partir de ue sinal formal, atribui significados aos enunciados. I claro que precisamos distinguit em algum momento, 0 item pintar que ocorre em [35] do que ocorre em [36h mas isso € resultado de um processamento, no um ponto de partida. No prime $ Ou, mais exatamente, pintou, que se associa com um lexema que inelui pintar ete. 7 Blow sufixo de pessoa-ntimero, ou seja, “H”, GRAMATICA DO PORTUGUES BRASLERO FEA MARIO A. PERINI momento, pintou é uma forma fonol6gica a ser associada a determinados tragos morfolégicos, sintéticos, semanticos com base no contexto em que ocorre — basi- camente, no que nos interessa, no contexto morfossintitico. Essa pratica vale para todas as formas gramaticais; assim, dizemos que a palavra que tem usos sintaticos e significados diferentes em [39] © cachorro que eu comprei [40] Que cachorro & esse? [41] Ba acha que vai chover. etc. E dizemos que a palavra papel tem significados diferentes em [42] Pega uma toalha de papel para mim. [43] O Rodrigo vai fazer papel de avé no teatro da escola. 11.5. Diferenga entre “construgao” e “didtese” E a nogao de valéncia que nos leva a diferenciar dois termos que & primeira vista podem parecer sinénimos, mas nao sao: construgio e didtese. Como ja se disse em 11.3, cada didtese divide os verbos da lingua em duas clas- ses: 0s que podem e os que nao podem ocorrer nela. Assim, a didtese ergativa dis- tingue os verbos que a aceitam (morrer, engordar, encher...) ¢ os que ndo a aceitam (comer, matar, bater...). Ent&o dizemos que essa construgao é uma diatese. Ou seja, toda didtese € uma construgao. Mas nem toda construgdo é uma didtese, porque hé construgdes que nao divi- dem os verbos em classes da maneira indicada acima. Por exemplo, a construgao de objeto topicalizado, que consiste em colocar um objeto no infcio da sentenga, vale para todos os verbos que tém objeto: 44] Cerveja eu no bebo. 145] Essa gaveta eu vou encher de dinheiro. Assim, no se coloca a possibilidade de topicalizar um objeto na valéncia de nenhum verbo, porque essa possibilidade nao depende do verbo, mas de fatores, estruturais como a presenga de um objeto. Encher pode ter objeto (€ isso ja esté explicitado em sua valéncia, porque ele pode aparecer na didtese transitiva); ¢ esse carton MERE VALENCIA | objeto pode ser topcalizado — mas iso ndo éearacteitica do verbo ent , de todos os verbos que podem ter objeto. Assim, podemos dizer a construgio transitiva ou a didtese transitiva, Porgy toda distese é uma construgdo. Mas niio é correto chamar a construgio de objay topicalizado de didtese, porque nem toda construgao € didtese, e essa nio ¢, Una didtese, em resumo, é uma construgdo onde sé cabe uma parte dos verbos da Tingu em virtude de suas propriedades lexicais. Correspondentemente, podese sempre determinar de que verbos uma construgao € didtese (por exemplo, a construgig transitiva é didtese dos verbos encher, comer, matar, mas nao de morrer). 11.6. Valéncia nominal e adverbial A valéncia nao é uma caracteristica exclusiva dos verbos. Os nominais ¢ os ad- vérbios também muitas vezes tomam complementos. Por exemplo, o nominal amor pode ser acompanhado por um complement introduzido pela preposicao por: [46] Eles tém um grande amor pela escola. Medo requer a preposicao de: [47] Todo mundo anda com medo das enchentes. Favordvel requer a preposigao a: [48] A decisao foi favorével ao marido, E 0 advérbio favoravelmente também exige a: [49] O tribunal decidiu favoravelmente ao marido. O papel tematico desses complementos também precisa ser estipulado na v Tencia dos diferentes itens. Por exemplo, o complemento pode ser um Paciente, como em 150] A demoli¢éo do mura ficou a cargo da minha empresa. ou um Agente: [SII A decisio da ditetoria foi muito contestada. a: . . ém ie Assim, 0 item lexical correspondente a esses nominais ¢ advérbios também Ne ere . «oe oc cluia lista das diateses em que eles aparecem. O complemento dos nominais 0° canna 00 romucts arsine AREY MARio a rR ale ‘co mais das vezes com preposicao, como nos ex | , emplos acima; 7 so também por um nominal, como em plos acima; mas as vezes € expres [52] Destrui¢do ambiental. (Paciente) [53] A decisdo presidencial. (Agente) E bom nae que, a0 contaD dos verbos, muitos nominais e advérbios, talvez a isons me tém valéncia prépria; por exemplo, casa pode ter adjuntos, mas estes sdo definidos por regras gerais, nao condicior i ‘ , madas lexicalmente: minh: ; : a de madeira etc. mnens cation BEE vALeNCA cuiro | 2 PAPEIS TEMATICOS 12.1. Lista dos papéis tematicos Papel tematico é a relagdo semntica que existe entre o verbo! e os diversos sintagmas que co-ocorrem com ele na oracao. O papel tematico € uma fungao semantica; ou seja, assim como 0 SN a dona Teresa pode ter varias fungées sintaticas — pode ser sujeito ou objeto, por exemplo — também pode ter varias fungSes semAnticas (papéis tematicos), como Agente, Pa- ciente, Causador de experiéncia etc. Os papéis tematicos séo importantes na descri- ‘¢do gramatical porque ela procura, em tiltima andlise, explicitar a relagao que existe entre a forma ¢ o significado das express6es linguisticas. Assim, ao ouvir a frase A dona Teresa foi para Belém. © receptor precisa ter condigdes de saber que a dona Teresa representa o Tema (0 _ elemento que se movimenta de um lugar para outro) ¢ Belém a Meta desse movi- __ mento. Esses so ingredientes essenciais do significado total da frase’. O usuario da -_ Itngua sabe, portanto, associar os diversos complementos e adjuntos de uma oragao cada um a seu papel temitico. J4 vimos que esse processo de associagao entre complementos ou adjuntos Papéis tematicos nao tem nada de simples. Em [1], a dona Teresa é Tema porque Ou também o nominal, ou ainda 0 advérbio, como vimos no capttulo 11. ‘Mas nio, vamos repetir, todo o significado; hé ainda um grande mimero de elementos seminticos que Paptistemiéticos nfo exprimem. camuo 2 [Eg raraistemAncos € sujeito da oragio e porque o verbo é oi (7) em outta palavra, porque esa | realiza a construgio de Tema e Meta, que é uma das diateses do verbo ir: | Construgdo de Tema e Meta: v para SN Entre os papéis tematicos mais frequentes temos o Agente e 0 Paciente, jé vistos, € ainda os seguintes: @ APRESENTANDO E 0 elemento cuja existéncia se afirma, como em [2] Tem quatro carros na garagem. @ Causa 13) Até hoje a Claudia chora por causa do Abrlio. @ Causapor DE EXPERIENCIA E 0 desencadeador de um estado interno, como em [4] Jorge ama a Célia. e também em 15] Jorge viu a Célia. 1 Desicnagao E onome que se dé a algo ou alguém: [6] O menino vai chamar Leonel. @ DEsIGNANDO. E a coisa ou pessoa a qual se dé nome: {6 O menino vai chamar Leonel. GRAMATICA DO PORTUGUES BRASLERO FILES] MARIO A. PERINI @ EXPERIENCIADOR E 0 elemento que experimenta um fendmeno interno, como em [4] Jorge ama a Célia. e também em (5) Jorge vu a Céia. @ FonrE E 0 infcio de um movimento: TA dona Teresa veio de Belém. @ INSTRUMENTO [8] Quebrei a janela com um tijolo. @ Locatizanpo E o elemento cuja localizagao é asserida: [9] Essas Arvores ficam na praca. @ Lucar [9] Essas drvores ficam na praca. @ Mepis E a referéncia de uma medida de tempo, tamanho, peso, prego etc.: NO] He pesava mais de cem quilos. IH A festa durou quase quatro horas. Mem E 0 final de um movimento: [2] Finalmente eu cheguei em Sao Lufs. captruo 2 ERIE papéis TEMATICOS @ OpinaDor E o agente de uma agdo mental: 113] Eu considero © Guga o maior tenista do mundo. @ Possuipo E 0 elemento que se afirma como sendo posse de alguém: 14] A minha prima tem dois carros. @ Possurpor 4] A minha prima tem dois carros. @ PRS Ou seja, participante de relago social: [15] A Helena namorou com 0 Paulo, @ QuaLiFicando E 0 elemento ao qual se atribui uma qualidade: 116] A Leticia é muito bonita. @ Quatipape 106] A Leticia é muito bonita. @ Tema E 0 elemento que se movimenta, voluntariamente ou nao: 171 A dona Teresa foi para Belém. Mo Rer E cada um dos termos de uma igualdade afirmad: stico ve™ la (este papel temitico ¥° sempre em pares): GRamAnca Do PoRTUGES ars BOD MARIO A, PERINI [18] © Daniel é 0 nosso professor de quimica. Hi muitos outros, mas com essa lista jé € posstvel analisar boa parte das oragdes | da lingua 12.2. Problemas 12.2.1. Uma lista em aberto HA muita incerteza quanto a lista dos papéis temdticos necessdrios para descrever a Iingua, e também quanto a forma de representé-los. Nesta gramatica nao podemos en- trar nessa discussdo, que € muito viva no momento’. Aqui nos limitamos a um pequeno elenco de papéis tematicos mais ou menos aceitos na literatura em geral; em edigdes futuras deste livro certamente vai ser possfvel dar um quadro mais satisfatério. O maior problema é que os papéis tematicos sao parte da interface entre a lfn- gua € 0 nosso conhecimento do mundo; ao contrario das fungées sintaticas, eles nao podem se dar o luxo de serem poucos e simples. Precisamos de relagdes semanticas para caracterizar uma variedade imensa de relagdes cognitivas. A sintaxe pode se contentar com sujeito e objeto para os SNs; mas na semAntica temos que distinguir, por exemple, se 0 sujeito é: MW AGENTE: [19] O professor apagou o quadro. W PActeNTE: [20] O professor engordou bastante. @ Tema: 111A dona Teresa foi para Belém. —— *Remeto o leitor interessado ao meu livro (Perini, 2008) e principalmente as referéncias ali ‘mencionadas. catruo > PAPEiS TEMATICOS 1 LocaLizANDo: [211 As torradas estdo na caixa de metal. 1 EXPERIENCIADOR: [22] O rapaz sentiu uma pontada. @ Meta: [23] © Ronaldo recebeu uma carta. @ Possurwor: [4] A minha prima tem dois carros. @ PRS: [15] A Helena namorou com o Paulo. e assim por diante. 12.2.2. Os papéis temdticos sao esquemdticos Isso ndo quer dizer que precisamos de um papel temitico para cada relagio cognitiva possivel; as relagdes cognitivas sio em ntimero indeterminado, pois noss4 experiéncia do mundo nao tem limites precisos*, mas os papéis tematicos jé rep" sentam o resultado de um processo de esquematizagao. Para dar um exemplo, 0 sujeito das duas frases abaixo é Agente: 119] O professor apagou o quadro. [24] O professor comeu uma empada. E evidente que nao se trata exatamente da mesma relagdo: uma coisa é apagit yent0s quadro, outra coisa, bem claramente diferente, é comer uma empada. Os movit™ enwvolvidos ndo so os mesmos; os 6rgosutlizados no so os mesmos; os objets +E talvez nfo tenham limite nenhum, em prinefpio, & que precisamos estar armacdos para comprer™ situagdes novas e inéditas em nossa experiéncia CGRAMATICA DO PORTUGLES HRASLERO MARIO A. PERI ae agi no soos mesmos. Mas 0 que nos interessa€ que a Iingua identifica essas duas sarpies pra ets de codifcagdo. Ou sea, podemos considerar [19] ¢ [24] como realizagoes da mesma construgao, porque o que vale aqui sao as semelhangas entre | wr hasrelagdes cognitivas:tratase, nos ois casos, de um desencadeador da agio (de comer ou apagar, segundo 0 caso), que provoca o evento de maneira voluntéria. I Assim, definir um papel tematico nao é simplesmente observar uma relacao. cognitiva observada diretamente. E preciso apurar como é que a lingua organiza ceqa relagao: que relagdes, parcialmente diferentes, a lingua identifica para efeitos decodificagio gramatical. Por exemplo, o portugues nao diferencia as duas relagbes que osintagma 0 professor assume nas frases [19] ¢ [24] acima, muito embora elas sejam diferentes. Essa € que € a questio principal, ainda nao resolvida satisfatoria- mente, € que € objeto de discussdes até hoje. Tem havido muito progresso, mas ainda estamos bastante longe de uma lista segura dos papéis temdticos necessérios para descrever a lingua portuguesa (ou qualquer outra lingua).

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