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(LE oUTRAS POETICAS PoLITiCAS 6 EDICAO _AUGUSTO BOAL TEATRO DO OPRIMIDO E OUTRAS POETICAS POLITICAS ‘Augusto Boal — sabem-no to- dos — & personalidade marcante como autor ¢ diretor teatral, ten- do se empenhado, ao longo de sua carreira, na tenovagdo da cena brasileira, buscando reformular- -Ihe 0 conteddo ¢ transformar o espetéculo num ato de comunhio popular. Teatro para ele sempre esteve vinculado ao povo. Teatro do oprimido € otras potticas politicas € livro em que Augusto Boal expe, com entu- siasmo criativo ¢ lucidez exegéti- ca, o seu idedrio de teatrdlogo ¢ metteur en scone. Mas no livro o autor niio se limita a debater teorias — o que fax com raro brilho eficdcia — ow a expor criticamente as trans- formagdes fundamentais pot que © teatro passou no decorrer dos ‘tempos, ou seja, do sistema trigi- © coercitivo de Aristételes ¢ da poética da virtii, de Maquiavel, até chegar as colocagies propos- tas pelas coordenadas hegelianas © brechtianas. Boal avanga até o que chama poética do oprimido, ‘onde mostra “alguns dos caminhos pelos quais o povo reassume sua fungSo protaginica no teatro ¢ ma Sociedade.” Os escritos de Augusto Boal niio sdo fruto apenas de leituras, resultados eruditos de uma vida compromissada com o estudo, a meditagiio © a pesquisa. Slo, an- tes, produtos de uma vivéncia, Permanente e incansdvel, de um continuo trabalho com a matéria viva dos textos, dos palcos, das arenas, dos picadeiros ¢ de outros locais em que se exerga o oficio artistico — officio que aspira seja encaminhado de modo a que o teatro reencontre a atmosfera de liberdade que lhe é vital. © livro de Boal é polémico, discutidor, como convém a uma obra em que as idéias s3o 0 seu Principal conteiido. Idéias foram feitas para sofrerem, nfo perse- guigdes, mas o mais amplo, vee- mente, candente e caloroso deba- te. A fung&o do leitor, diante deste livro, é discutir também com © autor, ‘Os ensaios de Teatro do opri- mido e outras poéticas politicas foram escritos, com diferentes propésitos, — diz Boal — desde 1962, em Sio Paulo, até fins de 1973, em Buenos Aires, relatan- do experiéncias realizadas no Bra- sil, na Argentina, no Peru, na Venezuela e em varios paises lati- no-americanos. Epirora CIVILIZAGAO BRASILEIRA Teatro do Oprimido e Outras Poéticas Politicas Augusto Boal Teatro do Oprimido e Outras Poéticas Politicas 6° Edicao ene tl "Tat civilizagao brasileira Desenho de capa: pouné Diagramago: Léa CAULLIRAUX Impresso no Brasil Printed in Brazil 1991 Direitos desta edigdo reservados & EDITORA CIVILL O BRASILEIRA S.A. Av. Rio Branco, 99 - fear Centro 20040 - Rio de Janeiro - Tel: (O21) 263-2082 Telex: aly 33798 Fax: (021) 263-6112 Caixa Postal 2356 20.010 - Rio de Janeiro Para meu filho FABIAN ‘© Autor manifesta o seu profundo agradecimento a Enio Silveira que, através da edigio deste livro, concretizou o seu retorno ao Pais, depois de tantos anos. Sumario Explicagio 13 1. O Sistema Trigico Coercitivo de Aristdteles 15 Introdugio 17 A arte imita a natureza 19 Pequeno diciondrio de palavras simples 48 Como funciona o sistema trégico coercitivo de Aristételes 50 Distintos tipos de conflito: harmatia x ethos social 54 Conclusio 62 Notas 65 2. Maquiavel e a Poéiica da Virti 69 I — A abstragio medieval 71 Tl — A concregiio burguesa 78 TIT — Maquiavel © A Mandrdgora 86 TV — Modemas reduges da virtii 94 3. Hegel ¢ Brecht: Personagem-Sujeito ou Personagem-Objeto? 103 4. Poética do Oprimido 133 — A — Uma experiéncia de teatro popular no Peru 136 Conclusto: “‘espectador”, que palavra feia! 180 — B — O sistema coringa 185 I — Etapas do Teatro de Arena de Sho Paulo 185 Tl — A necessidade do coringa 198 Il — As metas do coringa 205 IV — As estruturas do coringa 213 ‘V — Tiradentes: quest6es preliminares 221 ‘VI — Quixotes ¢ heréis 230 Explicagao STE Livro(*) procura mostrar que |todo teatro € neces- Etitaments politico, porque politicas sfio todas as ativida- des do homem, e 0 teatro é uma delas.) Os que pretendem separar o teatro da politica, pretendem conduzir-nos ao erro — ¢ esta é uma atitude politica, Neste livro pretendo igualmente oferecer algumas provas de que o teatro é uma arma, Uma arma muito eficiente. Por isso, é ne- cessdrio lutar por ele. Por isso, as classes dominantes perma- nentemente tentam apropriar-se do teatro € utilizé-lo como instrumento de dominagao. Ao fazé-lo, modificam o préprio conceito do que scja o “teatro”. Mas o teatro pode igualmente ser uma arma de liberacdo, Para isso é necessdrio criar as for- mas teatrais correspondentes. E necessdrio transformar. _* Este livro redne ensaios que foram escritos com diferentes pro- Pésitos, desde 1962 em Sio Paulo, até fins de 1973 em Buenos Telatando experiéncias realizadas no Brasil, na Argentina, no Peru, na Venezuela e em varios outros paises latino-americanos. Alguns foram Originalmente escritos em portugués, outros em espanbol Creio que isto explica a diferenga de estilos, bem como possiveis reiteragées de certas idéias © temas, 13 Este livro mostra algumas destas transformagSes funda- )_mentais. “Teatro” era o povo cantando livremente ao ar livre: 9 povo era o criador eo destinatério do espeticulo teatral, que se podia entiio chamar “canto ditirambico”. Era uma festa em que podiam todos livremente participar. Veio a aristocracia - ¢ estabeleceu divisées: algumas pessoas iriam ao palco ¢ 9} elas poderiam representar enquanto que todas as outras per- maneceriam sentadas, receptivas, passivas: estes scriam 0s espectadores, a massa, o povo. E para que o espetdiculo pudes- s¢ refletir eficientemente a ideologia dominante, a aristocracia \ estabeleceu uma nova divisfo: alguns atores seriam os prota- gonistas (aristocratas) e os demais seriam o coro, de uma forma ou dé outra simbolizando a massa. “O Sistema Trigico Coercitivo de Aristteles” nos ensina o funcionamento deste tipo de teatro. — ! Veio depois a burguesia ¢ transformou estes protagonistas: deixaram de ser objetos de valores morais, superestruturais, e passaram a ser sujeitos multidimensionais, individuos exeep- i) cionais, igualmente afastados do povo, como novos aristocra- tas — esta é a “Poética da Virti'' de Maquiavel. Bertolt Brecht responde a estas cas e@ converte o personagem teorizado por Hegel de sujeito-absoluto outra vez €2\em objeto, mas agora se trata de objeto de forgas sociais, nfo mais dos valores das superestruturas. O “ser social de- ‘termina o pensamento” e nilo vice-versa. Para completar o ciclo, faltava o que est atualmente ‘ocorrendo em tantos paises da América Latina: a destruigao das barreiras criadas pelas classes dominantes. Primeiro se des- tréi_ a barreira entre atores e espectadores: todos devem re- presentar, todos devem protagonizar as necessirias transfor- mages da sociedade. E o que conta “Uma Experiéncia de Teatro Popular no Peru". Depois, destrdi-se a barreira entre 03 protagonistas ¢ o Coro: todos devem ser, ao mesmo tempo, coro € protagonistas — é o “Sistema Coringa”. Assim tem que ser a “Podtica do Oprimido”: a conquista dos meios de [MARX] - Buenos Aires, Junho 1974 eo Augusto Boal 1 O Sistema Tragico Coercitivo de Aristételes tragédia é a criagio mais caracteristica da democracia ateniense} em nenhuma outra forma artistica os conflitos interiores da estrutura social estio mais clara ¢ diretamente apresentados. Os aspectos exteriores do espetéculo teatral para as massas ¢ram, sem ddvida, democriticos. Mas o contetido era aristocrdtico. Exaltava-se o individuo excepcional, rente de todos os demais mortais: isto é, © aristocrata. O Gnico progresso feito pela democracia ateniense foi o de substituir gradual- mente a aristocracia de sangue pela aristocracia do dinheiro, Atenas era uma democracia imperialista € as suas guerras traziam beneficios apenas para a parte dominante da sociedade. A prépria separagiio do protagonista do resto do coro demonstra a im- ularidade tematica do teatro grego. A tragédia € francamente tendenciosa. O Estado ¢ os fowem Ti pagavam as produgdes e naturalmente nao permitiams a encenagio de pegas de conteido contririo ao regime vigente”. Anold Hauser, Histdria Social da Literatura e da Arte.

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