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MANA 19(1): 181-199, 2013

ENTREVISTA

Palavras Ditas e Escutadas

Bartomeu Melià

Bartomeu Melià, linguista e antropólogo Pai-tavyterã. Seu consistente e duradouro


jesuíta, é célebre por seus trabalhos trabalho indigenista foi agraciado, em
sobre povos guarani, cuja contribuição 2010, com o respeitado prêmio Bartolomé
para a etno-história, a linguística e a de las Casas, premiação anual voltada
antropologia é de valor inestimável. para pessoas e instituições que lutam pelas
Nascido em Mallorca, Espanha, radicou- causas dos povos indígenas nas Américas.
se no Paraguai em 1954, onde deu início É também um participante ativo dos mais
aos estudos da língua guarani. É doutor variados programas de educação bilíngue
pela Universidade de Estrasburgo (França), que contemplam comunidades indígenas
com uma tese a respeito dos processos localizadas no Paraguai, Brasil, Bolívia e
de tradução e de conversão linguístico- Argentina.
culturais nas reduções guarani do Paraguai. Em sua vasta produção acadêmica,
Foi docente na Universidade Católica de destacam-se: Educación indígena y
Assunção, professor visitante na USP, na alfabetización; El guaraní conquistado y
UNICAMP e na UNISINOS, dentre outras reducido. Ensayos de etnohistoria; La lengua
instituições de ensino e pesquisa. No Brasil, guaraní del Paraguay: historia, sociedad y
alternou investigações científicas, trabalhos literatura; Los Pai-Tavyterã; e El Guaraní:
indigenistas e missionários em diferentes experiencia religiosa. Seus trabalhos, com
grupos indígenas, como os Enawenê-nawê, admirável solidez linguística, etnológica
os Caingangue e algumas comunidades e histórica, constituem uma base
guarani. Atualmente, no Paraguai, dirige indispensável para qualquer interessado
o projeto “Koravarepa – Korpus Avañe’ê em entender a língua, o modo de ser e a
Rembiasa Paraguaipegua”, que visa resgatar história de diversos grupos guarani.
e publicar textos-patrimônios da língua A maior parte desta entrevista foi
guarani, além de dar continuidade às realizada no gabinete de trabalho de
investigações etno-históricas e linguísticas, Bartomeu Melià (no Instituto Superior de
como pesquisador do Centro de Pós- Estudos Humanísticos e Filosóficos, em
graduação e Pesquisa da Universidade Assunção, Paraguai), no dia 20 de fevereiro
Católica de Assunção (Avakotepa). de 2013, por Kleyton Rattes. Pequenos
Bartomeu Melià é um dos principais excertos foram acrescidos posteriormente,
intelectuais dos anseios indígenas no a partir de uma segunda entrevista breve
Paraguai, tendo relações bem próximas e pontual, realizada no dia 13 de março de
com os Mbyá-Guarani, os Avá-Guarani e os 2013, via internet.
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Kleyton Rattes – Professor, poderíamos Quando foi isto?


começar falando um pouquinho sobre a
sua trajetória, sua formação na Espanha, Isto deve ter sido quando eu tinha uns 13
sua entrada no colégio jesuíta... anos [1945]. Eu estudei neste colégio por
quatro anos. A formação dos jesuítas é de
Bartolomeu Melià – Eu vou ser breve. Nasci dois anos de oração, de leitura – de livros de
em 1932, em uma cidade pequena, Porre- ordem religiosa muito tradicionais na épo-
res,1 de 4.500 habitantes, fundada em 1260. ca. Agora já não são tão tradicionais. Havia
A família da minha mãe foi fundadora desta regras bastante rígidas, mas éramos felizes
pequena cidade, que anteriormente, não lá, com aquelas provas, com as peregrina-
como cidade, foi habitada pelos árabes. Eles ções, com os meses servindo no hospital, e
vinham do reino da Catalunha. Então, há um pouquinho de estudo, muito pouco.
uma relativa tradição, pequenas joias do sé-
culo XIV. Talvez o mais importante a relatar E estes estudos? Eram de que?
seja o fato de que meu avô era metalúrgico
e agricultor e, assim, também meu pai, que Sempre um pouco de espanhol, muito
depois entrou para o ramo dos negócios e se pouco, e latim. Depois disso, passávamos
tornou um comerciante bem-sucedido. Ain- para outra fase educacional, chamada ju-
da assim, ele manteve a antiga atividade – niorado, que consiste fundamentalmente
a metalurgia – trabalhando como forjador em uma educação humanista, a saber,
de ferro, embora, no meu tempo, ele já não sobretudo o estudo de línguas, como o
fizesse nada disto. latim e o grego, e de literatura. Havia
O mais importante a destacar é o fato também um pouco de música, mas eu
de que sempre tive uma ligação muito nunca entendi muito disso. Eu não tive
forte com a família e até com as brigas da esta formação enciclopédica dos alunos
família. Outro fator importante foi a lín- atuais, que chegam a ter dez, 15, ou
gua, que é um dialeto catalão, o mallor- mesmo 19 matérias!
quín que, de fato, ficou mais arcaico que Era simplesmente ler, escrever e can-
o próprio catalão, pois Mallorca se abriu tar. Ou seja, ler, entender o que lemos (o
para o turismo entre 1950 e 1960. que não é tão fácil). Escrever, o exercício
da escrita. É por isto que há vários escri-
O mallorquín continua sendo o primeiro tores jesuítas, embora muito menos do
idioma na região? que deveria haver. E, por fim, cantar, isto
é, no sentido estético da comunicação.
Sim. Nas cidadezinhas, toda a população Saber ler poesia, saber ler um romance.
o fala. Somos todos “monolíngues”, em- Enfim, a oratória, que atualmente está
bora conheçamos também o espanhol. muito descuidada. Depois disso, eu vim
Atualmente, quase todo mundo conhece para Assunção, em 1954.
o espanhol. Mas a educação primária
continua sendo neste dialeto catalão, ou Antes do senhor falar sobre a chegada no
melhor, voltou a ser feita em mallorquín, Paraguai, gostaria de entender um pouco
porque houve um curto período em que o como foi a sua entrada para a escola
ensino ocorreu em espanhol, entre 1939 e jesuíta, a influência da sua família, do
1976, na época da ditadura de Franco. contexto de Porreres...
Passado um tempo, eu fui levado ao
colégio da cidade, em Palma de Mallorca, Para os parâmetros da cidadezinha, a
um colégio jesuíta. minha família não era muito religiosa.
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Embora o fato de dizer “não muito religio- as experiências estéticas, da beleza, são
sa”, neste contexto, signifique que todos fundamentais na formação das pessoas.
frequentávamos as missas regularmen-
te, todos os domingos; participávamos Ainda mais no caso jesuíta, a exemplo
dos cultos, das procissões, das festas das missões na Ásia e na América Latina,
religiosas. em que os processos de evangelização
Algumas coisas eu mantenho até hoje. foram significativamente pautados por
Por exemplo, não celebro o meu aniver- todo um complexo de práticas e ideias
sário de nascimento, e sim, o dia de São sobre o estético...
Bartolomeu – santo cujo nome herdei.
É necessário observar certas críticas, com
Quando é o dia de São Bartolomeu? seus fundamentos, e eu sou o primeiro
a fazê-las, no caso das missões. Houve
24 de agosto. problemas. Os jesuítas nunca promove-
ram, entre os Guarani, os interesses dos
Poderíamos chamar sua entrada para o próprios índios – por exemplo, a “religião
colégio jesuíta de “conversão”? guarani”. Houve toda uma série de subs-
tituições. Não obstante, nas missões, os
Não. Não é uma conversão! É uma pas- jesuítas substituíram os interesses nati-
sagem para este modo de vida. Porque vos, por exemplo, pela música barroca,
há um significado, um sentido de ser primeiro a espanhola, depois a italiana
missionário. Há a figura de São Fran- e a centro-europeia. A ponto de, em um
cisco Xavier, as missões exteriores. Meu dado momento histórico, alguns nativos
pai teve um desgosto enorme, já minha gostarem mais destas músicas do que
mãe suportou melhor. Meu pai dizia, das tradicionais. Um superior jesuíta
“vou te deserdar”, mas eu já sabia que geral chegou a falar com os missionários,
estava deserdado, no momento mesmo “olha, sejam mais ecléticos”. Porém, o
em que optei por ingressar no colégio fato é que os índios realmente gostaram
jesuíta, justamente pelo fato de que a daquela música. Quando se fala em um
herança não significava nada para mim. Estado, e mais, em um Estado musical
Contudo, o desgosto do meu pai durou colonial, sim, é verdade se quiserem,
apenas alguns meses. mas era música barroca. Nas missões,
os índios substituíram certas coisas por
E o Paraguai, que motivações o trouxeram outras que são também relevantes. E as
ao país? igrejas das missões eram as mais belas
de toda a região.
Foi um processo natural. Por exemplo,
fiz o noviciado em um antigo mosteiro Quando o senhor veio para o Paraguai,
do século XII, o mosteiro de Veruela, em que ideias trazia consigo sobre a América
Zaragoza. Há a beleza das construções, Latina, as populações indígenas? O que o
das pedras, do claustro gótico (que é senhor esperava e o que encontrou?
extra­ordinário), da sala capitular, da
mistura de estilos (uma parte tipicamente Neste aspecto, é importante falar sobre
romana, outra gótica). Foi uma experiên- as vocações. Nós éramos seminaristas,
cia marcante, logo esta é uma visão que mas nunca nos chamávamos assim, pois
nos impregna. Algo muito importante. era uma expressão mais usada para os
Eu quero enfatizar este aspecto, já que padres do clero secular. Éramos orienta-
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dos a ser padres mas, naquela época, na França, onde estudei filosofia. Parte dos
década de 1950, a grande preocupação estudos teológicos foi realizada na Es-
da Igreja (um pouco da “Igreja univer- panha (a propósito, a teologia é bastante
sal”) recaía sobre as ameaças à América ruim por lá). Na França, o aprendizado
Latina, tidas como o protestantismo e o foi excelente. Eu lia em latim, quando os
comunismo. textos de filosofia clássica eram em latim;
Na Europa e, de modo mais concreto, o mesmo para os textos dos filósofos gre-
na Espanha, as vocações eram muitas. gos estudados que, grosso modo, eram de
Havia, portanto, todo um material hu- Aristóteles e Platão. Algumas traduções
mano disponível e disposto. A Espanha até me ajudavam, mas eu seguia os tex-
tinha como foco ajudar uma parte da tos originais. Atualmente, não sou mais
América, e a província da Catalunha re- capaz de fazer isto.
cebeu a incumbência de ajudar a Bolívia A Universidade de Estrasburgo era
e o Paraguai. Neste período, a cada ano, muita moderna, era bastante hegeliana,
em média, quatro jesuítas vinham para na época. Tínhamos uma formação ampla,
o Paraguai. Na minha época, com o meu isto é, filosofia antiga, medieval, moder-
grupo, eu e mais três, quando chegamos na, contemporânea. Líamos quase tudo,
aqui, passamos o primeiro ano inteiro São Tomás de Aquino, Dionísio, Santo
estudando a língua guarani. Agostinho, Descartes, Kant, Hobbes,
Espinoza e, claro, Hegel, dentre outros.
Isto foi quando mesmo? Por lá haviam passado professores no-
táveis.
Em 1954. O Paraguai tinha uma popu-
lação de dois milhões de habitantes. Como por exemplo...
O asfalto era escasso, chegava até Eu-
zébio Ayala, uns 72 km no total, pratica- Por exemplo, Jean-Yves Calvez, grande
mente o único asfalto em todo o país. Era teórico do comunismo. Era um ambiente
um país muito tradicional, pouco moder- acadêmico não muito existencialista, mas
no. A luz elétrica, por exemplo, só existia se conhecia a fenomenologia de Merleau-
em nossa casa. O próprio governador de -Ponty, lia-se Henri Bergson. Foi quando
Assunção não tinha luz elétrica. comecei a ter um contato mais direto com
Estudava-se, em média, um ano e os “estudos de cultura”. Tínhamos um
meio de guarani. Em seguida, continua- professor que havia estado na África e
vam-se os estudos na Europa, especifica- adorava falar de kultur e civilisation. Ele
mente, em filosofia. Porém, eu fiquei um lecionava muito desta perspectiva, não
tempo maior por aqui, primeiro porque era um curso propriamente de antropo-
pretendia ser professor de latim no se- logia, era mais uma espécie de “teoria
minário (o que não aconteceu). Lecionei cultural”, ou coisa do tipo.
no colégio cristão, ao mesmo tempo em
que chegaram colegas para aprender a Deixe-me só retroceder um pouquinho,
língua guarani, o que implicou a cons- voltar para um elemento que me parece
trução de uma pequena gramática da importante. Nos seus primeiros quatro
língua. Assim, eu fiquei no Paraguai anos no Paraguai, havia um mentor
até 1958. intelectual?
A “Cia de Jesus” francesa, que tinha
maior poderio econômico na época, ge- Meu professor era Antonio Guasch. Eu
nerosamente bancou os meus estudos na ainda tenho os cadernos dele!
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Ele foi seu pai intelectual adotivo aqui? ajuda e com os parceiros com os quais
me deparei (facilidade de acesso aos
Sim, embora viajasse muito e, de fato, arquivos, fotocópias, microfilmes).
foram poucas as aulas que tive com ele. Durante a pesquisa, fiz três viagens
Ele faleceu na Espanha, em 1965, pre- importantes. Estive por um mês em Ma-
parando a edição de um livro que não dri, perto da eclosão de maio de 1968 e,
foi publicado. curioso, fui para Roma momentos antes
da explosão do movimento (ficamos sem
Sua tese sobre a língua cristã-guarani, nas transporte, sem trem, só regularizado
missões jesuítas no Paraguai, é de 1969... após um tempo). Com relativa frequên-
cia, eu ia trabalhar no Ibero-Amerikanis-
Sim. Minha tese é de 1969, La création ches Institut de Berlim, um instituto, por
d’un langage chrétien dans les Réduc- sinal, que ainda frequento – nos últimos
tions de Guarani au Paraguay. Depois anos, bem menos, é verdade – ainda
dos estudos de teologia, que duram visito porque dispõe de uma biblioteca
quatro anos, temos novamente uma muito rica sobre a América Latina.
espécie de noviciado, que chamamos de A ideia central do meu trabalho não
“terceira provação”, com mais um ano de era “original” mas, ao mesmo tempo, foi
estudos, sobretudo de espiritualidade, e relativamente original o fato de eu ter
um mês de exercícios espirituais. Estive levado bem a sério aquela intuição: a de
na Áustria, por dois meses, no hospital que, diante do contato, as línguas mudam,
da Imperatriz Sissi. Depois disso, passei porém sobretudo em determinados cam-
um mês e meio com os trabalhadores es- pos semânticos. Todavia, para tanto, era e
panhóis na Alemanha (nos últimos anos, é necessário um trabalho exaustivo, para
observa-se novamente a migração de tra- o qual eu recolhi bastante documentação
balhadores espanhóis para a Alemanha, – que, por sinal, ainda hoje não é muito
porém, agora, a maior parte deles é de explorada. Posso afirmar que eu mesmo
intelectuais). Eu estudava alemão e lia não aproveitei, não analisei sequer a terça
muito. Foi um período muito tranquilo, parte do material que coletei.
durante o qual pude passar dois meses Com frequência me perguntam de
em Viena e outro em Hanôver. onde surgiu esta “originalidade”, mais
Logo em seguida, eu comecei a tese. suposta do que real, na abordagem
Acho que não é vaidade dizer que é uma semântica do guarani dos tempos das
boa tese. O trabalho saiu em menos de reduções. Acredito que tenha nascido
dois anos. Eu frequentava todos os dias do fato de eu considerar a colônia como
a biblioteca de Estrasburgo. Em geral, um vasto processo de transformação
eu era o primeiro a entrar e trabalhava e de conversão linguística. Constituiu
até o meio dia, quando voltava para casa. também, integralmente, uma ampla e
Raramente eu ia à biblioteca no período profunda tarefa de tradução, a tradução
da tarde. A tese, de fato, é uma intro- de símbolos e o manejo de recursos da
dução a todo o trabalho que eu venho linguagem, realizados pelos jesuítas por
desenvolvendo até hoje. Os documentos meio de um sistema bastante coerente
que analiso, os artigos e os livros que e constante, que caminhava na direção
escrevo, são uma espécie de ruminação e da normalização da nova linguagem em
continuidade da tese, é a minha herança. processo de gestação. Os jesuítas tradu-
Eu recolhia documentações com uma fa- ziam a si próprios, na medida em que
cilidade espantosa. Tive sorte com tanta eram traduzidos pelos Guarani. Como
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Fotografia: Martín Prieto


disse Augusto Roa Bastos, o grande es- Na França, eu não tive contato com a
critor paraguaio do último terço do século antropologia, pois o doutorado que fiz
XX, “evangelizavam na medida em que não era o Doctorat d’État. Naquele tempo,
eram evangelizados”. Os jesuítas com- na França, havia um tipo de doutorado
preenderam, mas paralisaram o sistema que era uma espécie de “pequena tese”
econômico guarani. O mesmo pode ser de uma “grande tese” posterior. Por
dito a respeito da língua indígena e de exemplo, a “pequena tese” de Claude
seu forte viés espiritual. Todavia também Lévi-Strauss é La vie familiale et sociale
é necessário mencionar, de modo compa- des indiens Nambikwara (Família e vida
rativo, que a vontade e a capacidade de social dos índios Nambikwara), sua gran-
escuta dos antropólogos atuais seriam de tese Les structures élémentaires de la
muito inferiores. Houve um avant la parenté (As estruturas elementares do
lettre, uma interculturalidade com os parentesco)”. Os doutores tinham mais
outros que não voltou a acontecer com a de 40 anos quando finalizavam o Doctorat
mesma intensidade, exceto em Montoya, d’État, o que atrapalhava muito a vida das
Nimuendajú e Cadogan.2 pessoas, assim como a própria atividade
A tese foi defendida em 11 de janeiro de ensino. Por esta razão, a França es-
de 1969 e, já no dia 13 do mesmo mês, tabeleceu este “doutorado menor”, que
eu peguei um avião para a América La- seria quase um mestrado, ou melhor, um
tina. Fiquei alguns dias em Lima, Peru pouco mais que um mestrado e um pouco
com amigos e, em seguida, vim para o menos que um doutorado.
Paraguai. A faculdade eclesiástica que é, ao
mesmo tempo, católica e protestante,
Neste período, como era o contato, o diá- na Universidade de Estrasburgo, foi
logo do senhor com a antropologia, com vantajosa para mim. É a única existente,
a etno-história? com uma regulamentação do tempo de
188 ENTREVISTA

Napoleão. Estes dois núcleos eram ge- em seguida, teorizei um pouco no livro
renciados pela mesma administração e O mundo guarani (2011). A saber, após
secretariado, com professores católicos e o contato tem-se: (1) destruição, (2)
protestantes (luteranos em sua maioria), vontade de substituição, ou vontade de
mas os alunos tinham toda a liberdade de encobrimento e, às vezes, (3) acontece
assistir – e mesmo mesclar – às aulas (as uma transformação; em alguns casos, há
de teologia católica e protestante). um germe, uma plantinha, que engendra
Eu era muito livre. O meu orientador uma verdadeira criação. É sempre assim.
teve grandes dúvidas, antes de aceitar me Porém, não é tão simples assim, uma vez
orientar. Na ocasião, ele me disse, “olha, é que você precisa comprovar, reunir ele-
a primeira vez que escuto esta palavra: mentos e materiais para demonstrar. Pelo
‘guarani’”. Ele não sabia nada a respeito... menos está documentado! Bem, como se
sabe, por outro lado, toda documentação
Ele era especialista em quê? é uma seleção, é verdade...
Pelo que as pessoas dizem – e até acre-
Ele era especialista na obra do papa dito – tenho um estilo de escrita e de ar-
Leão Magno, que transformou o latim da gumentação que não é complicado. Uma
sociedade romana, pagã se quiser, para editora com a qual trabalhei, já falecida,
que fosse capaz de expressar conceitos me dizia, “você fala de coisas muito pro-
cristãos. Ou seja, também converteu a fundas, de modo muito fácil”. E, de fato...
língua em função desta “nova religião”. É verdade que, às vezes, eu procuro uma
O meu orientador era um grande espe- palavra – uma palavra – mais rebuscada,
cialista no tema. mas faço um uso parcimonioso, pois o
espanhol não é minha língua materna –
Desculpe-me, qual o nome dele? o que é outro ponto importante, como
já mencionado, minha experiência em
Chavasse.3 Ele me dava algumas indi- Porreres. O fato do espanhol não ser mi-
cações, porém, desde o primeiro dia, eu nha língua materna me deu uma grande
sabia o caminho que tinha a seguir. Tive vantagem, em conjunto com todo o meu
poucas dúvidas. Por isto a minha tese co- processo de formação, anos a fio, durante
meça sem preâmbulo. Por exemplo, não os quais aprendi outras línguas.
há explicações sobre marco teórico (os ar- Na tese, argumentei em favor da ideia
gentinos gastam páginas e páginas com de “criação” na língua das missões. Sim,
seus marcos teóricos). Ora, começam a houve uma “criação”, de certo modo, ao
caminhar, se não sabem aonde ir, vêm mesmo tempo em que houve uma “conver-
com esta de marco teórico! Por mais que são”. Algumas palavras foram substituídas,
você tenha muitos mapas, se você não ou seja, mortas de fato. Há palavras da mi-
caminha, não caminhou. Eu tinha esta tologia que, praticamente, não apareceram
vantagem inicial, já sabia qual caminho nunca mais. Muitos conceitos-chave da
percorrer e trabalhava. “religião guarani” foram transformados.
Qual ideia eu defendia? Como dis- Porém, eu sabia que havia ocorrido uma
se antes, é uma argumentação muito conversão, uma transformação, na filosofia,
simples, que aplico continuamente até na mitologia clássica. Eram claras as mu-
hoje. No encontro entre as línguas, o danças ocorridas em termos, expressões.
contato se faz – dependendo do tipo de Ou seja, uma passagem, transformação.
colonização – por áreas semânticas. Daí Eu claramente via os resultados, porém
surgiu o célebre esquema que elaborei e, não sabia de onde viam.
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É aí que entra a conjuntura indígena do controlar possíveis deslizes semânticos,


Paraguai contemporâneo? Falemos um quando nos deparamos com horizontes
pouquinho do contexto paraguaio, no mo- aparentemente similares?
mento em que o senhor voltou para cá...
O contato colonial somente se dá atra-
Isto. Então, continuando, refleti, “e vés da extirpação das línguas, incluindo
se pudéssemos entrar no século XVI, aquela dos ritos e mitos religiosos – que
quando aqui chegaram os jesuítas?”. apresentam notáveis diferenças formais
E me dei conta: “Claro que podemos e semânticas quando comparadas ao uso
entrar! Voltando ao Paraguai onde há cotidiano das línguas – e suas transfor-
índios que ainda vivem na floresta – que mações. Os missionários, em seu afã de
naturalmente têm sua história, suas conversão dos povos a uma nova religião
transformações sociais, culturais, políti- e, especialmente, os jesuítas não podiam
cas...” Porém, de modo contundente, nos evitar esta problemática que tem várias
anos em que voltei, a partir de 1969, os arestas: a adoção de hispanismos, a cria-
indígenas que aqui estavam eram “fiéis” ção de neologismos, a ressemantização de
àqueles que conhecemos nos escritos dos palavras aparentemente sinônimas, ainda
séculos XVI e XVII. Eles não haviam sido que distanciadas culturalmente. A colônia
“descobertos”. tenta traduzir-se nas palavras do outro, em-
Claro que são populações que passa- bora nem sempre consiga falar a língua do
ram por diversas transformações como, outro. Há traduções que usam as palavras
para dar um exemplo mais imediato, nas da língua sem a língua, muitas traduções
vestimentas. Porém, mesmo no vestuário, da bíblia são atrevidamente aculturais.
a coisa é muito nuançada. Em público, Tomar a palavra Tupã, do mundo
vestiam-se muito à moda “não indígena”, tupi e também guarani, para significar
mas as mulheres dentro das casas só usa- o Deus cristão, é um caso emblemático.
vam saia e mais nada, algo muito normal Tupã, que é o deus do trovão, não é o
nas comunidades em que eu chegava. único, nem o primeiro e, muito menos, o
Os homens saíam para trabalhar, mas principal da mitologia guarani, mas veio
muito ocasionalmente. As festas surgiam a traduzir o Zeus grego e Júpiter romano.
para mim como vestígios, rastros do que E é interessante notar que o Zeus grego,
falam os documentos históricos, mas por sua vez, já havia substituído o Jeová
não só eles... É o mesmo que nos diz judeu. A ressemantização é um jogo
a antropologia do século XX. Naquele perigoso, mas chega a impor seu novo
tempo, eu passei a ter um contato mais sentido com o uso cotidiano e constante.
direto com a antropologia e comecei a Há neologismos ousados, como quando
desenvolver o trabalho sobre as “Redu- se diz que “comungar” é “comer a carne
ções guarani”, já não mais para a tese, de Deus” à moda antropofágica; ou aque-
apenas por curiosidade. le que toma o “batizar-se” por “fazer-se
xamã” mas, neste caso, os portugueses
Professor, gostaria de ouvi-lo sobre um e os espanhóis haviam sido percebidos
tópico específico das traduções e das como xamãs e magos, na medida em que
conversões. É recorrente encontrarmos chegavam pelas águas. Há, nos últimos
muitas reflexões metafísico-filosóficas, anos, várias teses que abordaram o tema
em diferentes comunidades guarani, nas com mais detalhe, além destas ligeiras
quais alguns conceitos se assemelham a notas. No fim, em graus variados, trata-se
temas da metafísica judaico-cristã. Como da seguinte assertiva: as línguas não são
190 ENTREVISTA

somente o que foram, mas antes o que Outra coisa que eu já disse há muito
virão a ser pelo uso em uma comunidade tempo: a etnografia histórica dos Gua-
de falantes, de comunicação. rani está no Montoya.4 Escrevi algumas
coisas breves sobre isto, atualmente há
Foi neste retorno ao Paraguai que o se- trabalhos maiores, teses. Há algumas
nhor conheceu León Cadogan? boas: a da Graciela Chamorro, para a
parte religiosa, a da Angelica Otazú e
Fui visitar León Cadogan – eu já havia também o estudo de Antonio Caballos
me correspondido com ele duas ou três (Cf. Otazú 2006; Chamorro 2008a;
vezes. Ele era muito amigo do padre Caballos 2011). Não há mais muita coisa
Antonio Guasch. Cadogan gostava muito além disso, e estão quase todos nesta
dos jesuítas. E foi amor à primeira vista: linha do Montoya, ou seja, são pesquisa-
ele me adotou imediatamente. Cadogan dores com uma experiência etnográfica
confiava enormemente nos acadêmicos que têm lido Montoya, especialmente
e quase todos estrangeiros, após conse- Chamorro e Caballos.
guirem elementos para sua tese, sumiam. No meu retorno – cheguei aqui sendo
Não era má vontade mas, para citar um jesuíta – tinha que ser professor, “ganhar
caso célebre, Pierre Clastres (1972; 1974) a vida”, trabalhar na universidade. Nesta
aproveitou todo conhecimento coletado e conjuntura, numa visita a Cadogan, eu
acumulado por León Cadogan e foi embo- lhe disse: “Gostaria de visitar os índios”.
ra. Simplesmente partiu. Helenè Clastres Aí ele pensou: “Ah, este eu vou pegar
(1975) também: ela ficou apaixonada pelo na armadilha...”. Ele era um artista
trabalho de Cadogan, porém, não deu nesta arte. Cadogan era muito socrático –
continuidade ao trabalho entre os Guara- já falei sobre isto em outra ocasião –
ni. Os acadêmicos partem e vão estudar quer dizer, nunca dava uma resposta
a “história das mentalidades”. E assim direta, você sempre tinha que decifrá-la.
também são os outros. O próprio Miguel E, algumas vezes, acredito, falei coisas
Angel Bartolomé, que está no México. que ele ignorava. Nos últimos anos de
Quando eu faço este julgamento, não sua vida, entre nós havia um convívio
é um julgamento de menosprezo. O que mais frequente.
quero ressaltar é o efeito disto, a saber,
o fato é que, após estes esforços iniciais Ele já estava doente?
destes etnógrafos modernos guarani, não
há uma “antropologia guarani”. Nos úl- Estava. Mas não era tão doente. Ele se
timos anos, não quero nomear, são muito cansava, mas não tanto. Nesta época
poucos os pesquisadores e intelectuais houve ainda algumas obras dele, das
que continuam este legado. Por desgraça, quais eu fui editor. Yvyra Ñe’ery. Fluye del
eu sou quase o único. árbol la palavra (1971). Ayvu Rapyta tam-
Na antropologia do século XX, nós bém editei, mas a nova edição, em 1992,
temos apenas três etnógrafos guarani. com ele já falecido. Ele me chamava con-
Notadamente, há pequenas descrições, tinuamente. Eu era também um pequeno
um pouquinho aqui, um pouquinho aco- escravo. Quando ia para o mato, voltava
lá, mas os antropólogos do século XX são e narrava para ele toda experiência. Ele
simplesmente: Curt Nimuendajú, León confirmando seus trabalhos...
Cadogan e Egon Schaden. Surgiram ou-
tros depois, mas não como estas figuras Nimuendajú e Cadogan realizaram, para
emblemáticas. usar uma expressão empregada pelo se-
Palavras Ditas e Escutadas 191

nhor, “etnografias da palavra” guarani. uma palavra sonhada em sua concepção,


Como o senhor pensa este legado deixado e feita carne e história em sua vida; o
por eles? Guarani é a história de sua palavra.
Os grandes etnógrafos dos Guarani,
A melhor antropologia guarani é a que Montoya (1639), Nimuendajú (1914)
se funda em uma etnografia da palavra. e Cadogan (1959), são etnógrafos da
Já em 1639, o jesuíta Antonio Ruiz de palavra guarani. Somente a partir deste
Montoya caracterizou os Guarani como horizonte se pode construir uma etno-
“senhores da palavra”. Quase todas as logia guarani aceitável. Infelizmente as
fontes que relatam os primeiros contatos novas contribuições, neste campo, são
no século XVI falam sobre seus cantos um pouco precárias, ainda que com exce-
e danças. Estas características são mais ções significativas. Simplesmente, para
acentuadas entres os Avá-Katú (Nhande- fazer etnografia guarani, é necessário
va), os Pãi (Kaiowá) atuais – e alcançam escutar a palavra. E é preciso advertir
níveis absolutamente notáveis entre os que os paraguaios que falam guarani
Mbyá. León Cadogan, há alguns anos não têm a capacidade de entender esta
(1959:7), os qualificava como poetas e palavra guarani indígena, isto é, a não
teólogos, verdadeiros “profetas da sel- colonizada.
va”, expressão retomada e divulgada Isto leva às grandes traições das tra-
por Pierre Clastres, alguns anos depois duções que você mencionou. Somente as
(1974:137-ss). traduções realizadas por Nimuendajú e
O livro de León Cadogan, Ayvu Ra- Cadogan – ainda que, às vezes, com um
pyta (1959), título que pode ser traduzido estilo árduo – podem ser consideradas
como “palavra fundamental” ou “funda- fiéis, uma vez que levam em conta o
mento da palavra”, no qual há textos mí- sistema de vida, o teko (“modo de ser”)
ticos coletados, transcritos e traduzidos guarani. É um problema sério traduzir
dos Mbyá do Guairá, oferece exemplos o guarani Mbyá sem estar imerso, por
extraordinários da arte da palavra entre exemplo, em sua economia e em seu
estes Guarani. Hinos, rezas, comentários modo de ser. É neste sentido que a etno-
teológicos, como também leis do código logia guarani passa, necessariamente,
penal, preceitos sobre o casamento e pela etnografia de sua palavra.
a educação dos filhos, regras de agri-
cultura, profecias messiânicas – toda e Como foram suas experiências com as
qualquer palavra vem impregnada de po- diferentes comunidades guarani?
esia. O Mbyá manifesta-se como alguém
que está em tensão num mundo cheio Um elemento muito importante é que fiz
de coisas nefastas e imperfeitas, e só a uma espécie de noviciado de escuta, de
palavra redimida e boa poderá superá-lo, prática e de aprendizado. Por exemplo,
transcendê-lo: o valor e a força vêm com eu não sabia nem manipular um cani-
as palavras inspiradas. vete, nunca soube pendurar uma rede...
Tratei repetidamente deste tema, Neste caso, acho que os índios, ao verem
porque me parece central. É necessário alguém tão desamparado, pensavam:
ter passado longas e repetidas noites de “Vamos ajudá-lo, e seja o que Deus qui-
palavras ditas e escutadas para sentir, de ser”. Eu era professor aqui em Assunção.
alguma maneira que, para os Guarani, Então, ia para lá durante os fins de se-
a palavra é o todo e o todo é a palavra. mana, ou em feriados prolongados, nas
Não é exagerado dizer que o Guarani é férias. Eu também era editor de revista.
192 ENTREVISTA

Às vezes, após o expediente, ia para o sobre isto, de Silvio Coelho dos Santos
mato, pois as primeiras comunidades que (1975), que não era propriamente um
eu visitava não eram de difícil acesso. trabalho acadêmico, era mais uma es-
pécie de informe. No Brasil, não havia
Eram quais comunidades? Mbyá, Kaiowá? um livro específico sobre educação
indígena. Havia o Florestan Fernandes,
Primeiro foram comunidades mbyá. com aqueles artigos fabulosos sobre a
Minha entrada ocorreu graças à ajuda educação tupinambá (1964; 1975), umas
do Cadogan. Posteriormente, o caminho coisas também do Egon Schaden (1976),
ficou mais fácil, nas visitas a comunida- mas bem pouco.
des localizadas na área dos “padres do Educação indígena e alfabetização
verbo divino”.5 Foi quando tive maior é um livro que surge de um trabalho de
contato com os Ava-Guarani, mas quase mutirão.
não tenho anotações oriundas destas
experiências, nunca levei um diário de A equipe, se podemos chamar assim, era
campo. Todo o material resume-se ao que composta por quais pessoas, quantas
ficava impregnado em minha memória, pessoas?
que eu usava para escrever alguma coisa.
O meu primeiro artigo resultante disto Missionários, freiras, boa parte do Mato
foi “Quando o jacaré come a borboleta”, Grosso, era por volta de 1978. Tivemos
uma espécie de ensaio poético mesclado a sorte de contar com o padre Moura,
com um pouco de etnografia. Só depois, um exímio datilógrafo. Ele foi uma peça
a partir do início de 1972, comecei o fundamental para a realização do livro.
trabalho mais sistemático com os Paí- Gerou um trabalho, embora rápido, mui-
Tavyterã, graças ao auxílio dos etnólogos to eficaz, e que muito tem inspirado os
Friedl e George Grunberg (Melià et alli estudos de educação indígena. Embora,
1976). O Grunberg era professor clássico atualmente, eu não encontre muita coi-
de Viena... sa relevante sobre a questão. Acho que
as pesquisas sobre educação indígena
O senhor já o conhecia? estão se enveredando por dois falsos
caminhos!
Não. Eu o conheci aqui. Mas, no início Um deles é uma tese muita própria
de 1970, ele já havia trabalhado com os do Estado, a saber, a do bilinguismo.
Chiriguanos. Depois, em 1971, como eu O bilinguismo é uma armadilha porque,
era presidente do Centro de Estudos Antro- de fato, este bilinguismo – para usar uma
pológicos,6 nos conhecemos pessoalmente. metáfora – é uma ponte pela qual você
Houve, para usar a expressão de Goethe, caminha, passa, mas depois de atraves-
uma “afinidade eletiva” entre nós. A parte sada, é uma ponte destruída, e não se
mais acadêmica, mais antropológica, eu pode mais voltar (que é o que acontece
realizei em conjunto com o casal Grunberg, com as novas gerações).
abordando temas como: terra, saúde, eco- O outro caminho é ainda pior: o da
nomia, língua e religião. “interculturalidade”.
Houve também um projeto peda-
gógico, que resultou no livro Educação Por quê?
indígena e alfabetização. Engraçado,
trata-se de um livro pioneiro a respeito Todo mundo fala em interculturalidade,
no Brasil. Só existia um livro específico mas o século passado (e o atual) foi o
Palavras Ditas e Escutadas 193

século em que menos tivemos intercul- Por sorte, Cadogan não negou tempo,
turalidade. Foi a negação de todas as cul- nem esforço a quem dele se aproxima-
turas, potencializada com a globalização va – a Pierre Clastres, a Miguel Ángel
etc... Por exemplo, no caso de contextos Bartolomé, a Mark Münzel. Eu mesmo
indígenas, se você aceita a ideia – a me beneficiei enormemente de sua paci-
mais razoável – de economia indígena, ência e maiêutica socrática. Fazia-me ir
ficam nítidos os problemas. Quando se à selva, como mencionei anteriormente,
observam dois territórios que estão em para perguntar coisas que ele próprio já
sistema de não propriedade privada, sabia, porque, na verdade, queria que
fica evidente que são formas sociais que eu as escutasse de viva voz dos próprios
perdurarão, pois trata-se de comunidades Guarani.
que mantêm o sistema de reciprocidade Clastres podia sentir-se seguro ao es-
e sua ideia correlata de território. Já os crever a Chronique des indiens Guayaki
Estados – sabe-se lá o porquê, isto já (1972), graças ao suporte etnográfico
foi superado com Francisco de Vitória interno que lhe proporcionava o Diccio-
em 1540 7 – quando reconhecem um nario guayakí de Cadogan. Em contra-
território, não reconhecem o solo, não partida, Clastres teve a delicadeza de
reconhecem que há, neste território, tornar possível a publicação do dicionário
um sistema de economia próprio, mais na Societé des Américanistes de Paris.
funcional para a conjuntura. O livro Le grand parler, de Pierre Clastres
Os indígenas são ilhas, e estas ilhas (1974), é de fato uma versão em francês
são o futuro, isto é, as línguas e o sistema do texto em castelhano, de alguns capí-
educativo indígenas. O nosso sistema tulos de Ayvu Rapyta (Cadogan 1959).
educativo, por outro lado, não é melhor. E o próprio poema mbyá coletado por
Em nossa sociedade, não há uma só fa- Clastres, presente no Le grand parler,
mília que seja capaz de educar, é sempre que é uma boa contribuição, foi traduzido
uma educação terceirizada. Mesmo as por Cadogan.
famílias cultas não se sentem capacita- A questão da “terra sem mal” – yvy
das para educar. E, no fim, quem educa? marane’ỹ – é um caso de extrapolação
A rua, a propaganda, o shopping e o co- de um dado etnográfico particular, es-
légio. E educam com coisas que os pais tendido por meio de uma generalização
não entendem – os filhos, nada bobos, etnológica a todo o mundo guarani.
sabem que os pais não entendem. É certo que a “terra sem mal” é um con-
Eu fico meio bravo quando usamos ceito bastante moderno, dada a existência
termos que podem ser escolhidos para da terra dos males, historicamente criada
enganar, como é o caso da interculturali- por nós, brancos. O fato de Nimuendajú
dade. As pessoas querem a confusão. já ter aplicado a expressão, escutada
entre os Apapokúva (Nhandeva), a uma
Gostaria de ouvi-lo sobre um tema algo experiência mística de migração de uma
controverso. A saber, os usos (e abusos?) dúzia de “índios paraguaios” – que, na
de um conjunto de reflexões guarani, sob ocasião, ele ignorava que fossem Mbyá
a chancela da expressão yvy marane’ỹ – deu margem para que Alfred Métraux
(“terra sem mal”). estendesse a noção ao conjunto de Gua-
rani históricos e contemporâneos, me-
Todos nós que temos feito algo de antro- diante uma generalização e transposição
pologia guarani precisamos nos agarrar de sentido que ignora o uso comum e a
aos indígenas como tábua de salvação. semântica guarani de contextos culturais
194 ENTREVISTA

e econômicos muito diversos. À “terra Edward B. Tylor (1871). Teko porã é um


sem mal” será conferido um sentido de bom modo de ser, um bom estado de vida,
paraíso na Terra, de ressonâncias quase é um “bem viver ” e um “viver bem”.
bíblicas, quando, para os Guarani, esta É um estado de ventura, de alegria e de
terra é um lugar onde se dão as condições satisfação; um estado feliz e prazeroso,
de uma autêntica economia de reciproci- aprazível e tranquilo. Há um bem viver
dade, que permite o dom e a igualdade. quando existe harmonia com a natureza e
Por outro lado, há o fato de, entre com os membros da comunidade, quando
os Mbyá, a expressão “terra sem mal” existe alimentação suficiente, saúde e
ser inexistente, sendo atribuída a uma tranquilidade, quando a “divina abun-
invenção irreal. É um caso típico que dância” – que Ulrico Schmídel encontrou
nos permite ver a complexidade das entre os Guarani em 1537 (Cf. Schmídel
leituras descentradas, dos perigos dos 2003) – permite a economia da recipro-
paralelismos fáceis, a que você se referiu cidade, o jopói, isto é, “mãos abertas”
anteriormente. A economia de recipro- de um para o outro. Para existir, o teko
cidade é tão distante da nossa cultura porã necessita de um tekoha, um lugar
econômica que dificilmente podemos onde somos o que somos, um território –
experimentar a realidade quando ela floresta, campo de cultivos, rios... Não
ocorre. Etnologia sem etnografia é “casca se pode pensar somente em um “pedaço
de banana” que leva a deslizamentos de terra”, trata-se de um conceito mais
inesperados e quedas, cuja fratura dos complexo e amplo.
ossos, no mais das vezes, é irreversível. A “colônia” – antiga e atual – vem se
A modernidade dos Guarani faz deles empenhando em destruir de modo sis-
comunidades muito acessíveis, porém só temático –mediante usurpação de terras
de modo aparente, porque seguem sendo e destruição ambiental e econômica – o
quase impenetráveis. Sua palavra é sua tekoha, o território do “bem viver”.
luz, porém também o seu refúgio. Tekoha’ỹre ndaipóri teko, ndaipóri
avei teko porã. Sem tekoha não há teko,
No escopo do seu trabalho, há uma gran- e sem teko não há teko porã.
de contribuição para a “guaraninologia”,
qual seja, o fato de que os temas guarani Falemos um pouquinho do seu período no
teko porã (“bem viver”) e tekoha (“lugar / Brasil, de sua expulsão do Paraguai pelo
território”) tenham passado a ser um re- general Alfredo Stroessner...
ferencial importante nas pesquisas, uma
espécie de conceito-chave do pensamento Durante o período ditatorial no Paraguai,
e das práticas guarani. O senhor chegou curiosamente, havia artigos muito fortes
a ser, até mesmo, acusado de inventar, de contra a ditadura em nossa revista, Acción.9
superestimar esta centralidade8... O próprio Stroessner, na ocasião, chamou
o nosso provinciado para uma reunião.
O teko porã é um conceito que atravessa a Ele abriu uma caixa, que estava em cima
experiência de vida de todos os Guarani. da mesa, e disse: “Que me falem sobre
Teko, palavra que Montoya já registrara, isto!”. Eram três números da revista
em 1639, em seu Tesoro de la lengua e um deles sobre educação, bastante
guaraní, significa “ser, estado de vida, crítico. É interessante notar que poderí-
condição, estar, costume, lei, hábito”. amos escrever as mesmas coisas, sobre
É a cultura, tal como a definiria mais educação, para a conjuntura atual do
tarde, quase com as mesmas palavras, Paraguai. Naquele tempo, também já
Palavras Ditas e Escutadas 195

haviam sido publicados uns poemas den, Lux Vidal, Thekla Hartmann, Vera
nossos, que ficaram famosos – não são Penteado Coelho e Renate B. Viertler.
bons poemas – aqueles Tiempos de paz Entre os participantes estavam também
(Martinez 2005). Agora sairá num filme, Dominique Gallois, que ficou famosa por
este poema. Por estes motivos, dentre seus estudos sobre os Oyampí, e Regina
outros, fomos expulsos. Polo Müller, que se especializou, poste-
Teve outro fato importante. Eu entrei riormente, em arte indígena. Dos outros
na defesa dos Ache-Guayaki, que vinham não me recordo bem. O grupo não era
sofrendo ataques incessantes. A questão numeroso. Eu não me sentia um docente,
virou um problema internacional, che- e sim um aprendiz entre tantos mestres,
gando aos Estados Unidos (ao congresso tantos professores. O seminário me obri-
norte-americano). Os Estados Unidos gou a colocar em ordem minha experiên-
cobraram explicações do Stroessner. Dez cia com os Guarani, e as perguntas me
jesuítas foram expulsos, e eu fui nesta abriam perspectivas insuspeitas. Foi uma
leva. Saí porque, de fato, a ordem do exí- experiência para além da de docência.
lio foi transmitida pelo provinciado. Saí Na verdade, sentia-me um tanto quanto
com relativa segurança, não fui levado intimidado, mas ao mesmo tempo ani­
como alguns outros. De fato, passei pela mado, devido aos participantes, a maioria
expulsão do país. Os jesuítas são mestres com experiência etnográfica no mundo
em expulsões. Eu desci rio abaixo e che- tupi-guarani.
guei a Corrientes. Era o único passageiro No ano seguinte, fui professor vi-
de um enorme barco, que se chamava sitante em Campinas, onde nasceu e
“Presidente Stroessner ”. Fiquei lá por cresceu minha amizade com o doutor
um tempo. Eu tinha um compromisso, Aryon Dall’Igna Rodrigues, que sem-
neste ano, 1976, no Congresso dos pre me ajudou nos trabalhos sobre as
Americanistas em Paris (o congresso do línguas guarani. Foi neste período, em
centenário da associação) e, de lá, fui uma pizzaria da Rua Consolação, que
para Roma. um companheiro jesuíta me propôs a ir
Em Roma eu não tinha nada o que trabalhar com os Salumã, recém-contata-
fazer, pois é um lugar em que há muitos dos, e cuja autodenominação era, na ver-
padres. Por exemplo, nunca fui convida- dade, Enawenê-Nawê. Com eles estava
do a celebrar uma missa para o público, o irmão Vicente Cañas, assassinado em
nunca, nunca. Nem sequer para freiras... 1987, presumivelmente por fazendeiros
Eu estava em uma comunidade religiosa, da região, e novos colonos de Juína, na
com suas práticas, na casa de escritores, região do alto Juruena.
muito próximo ao Vaticano. Foi uma Eu encaro todas estas aventuras, sem
ótima ocasião, pois pude frequentar o medir muito as minhas possibilidades,
arquivo do Vaticano todos os dias. Abri os pois, como disse, eu não tenho habilidade
documentos de todo o período de 1870. prática nenhuma, só boa vontade.
Fui o primeiro a abrir a documentação do Voltei para Roma, peguei as minhas
Vaticano sobre a guerra do Brasil, Argen- coisas e fui para a aldeia. O período
tina e Uruguai contra o Paraguai. entre os Enawenê-Nawê, entre 1978 e
Em setembro-outubro de 1977, ainda 1980, foi para escutar, aprender, marcar
exilado em Roma, fui convidado a dar um presença, mas sem muito proveito para
seminário, como professor visitante, no um trabalho acadêmico. Eu não tinha
curso de antropologia da USP. Ao seminá- um plano definido, não cheguei a fechar
rio assistiam os professores Egon Scha- nada, embora eu tenha tomado muitas
196 ENTREVISTA

notas. O que ficou foram as fotografias era coordenador das quatro dioceses.
daquele tempo, eu tenho muitas. Eu os visitava. Eu morava em Miraguaí,
Por exemplo, vi as transformações na no Rio Grande do Sul. Quando os índios
produção das canoas. Também as ane- iam para as paróquias, nós, padres,
dotas... A primeira vez que os indígenas procurávamos atendê-los. Se eles pe-
viram uma vaca na área deles – não se dissem o batismo, batizávamos, se não,
sabe de onde veio, provavelmente de uma tudo bem.
fazenda que estava se instalando por per- Foi durante esta experiência que eu
to. Naquele tempo – foram três anos – eu me deparei com um problema, que não
ficava lá observando, aprendendo sobre tinha tido até então: a FUNAI. Muito
a economia da reciprocidade, participava amável, mas era uma amabilidade que
de todas as danças, quase mais do que me afastava de uma convivência mais
eles mesmos. Foi uma experiência muito efetiva com os indígenas.
boa. Como eu sou muito inútil para as
coisas práticas, não sou pescador, não sou O que o senhor chama de problema com
cozinheiro, a única coisa que eu fazia era a FUNAI? Havia conflito? Ao que, exata-
plantar milho, plantar mandioca, quando mente, o senhor se refere?
precisavam. Muito por isto, às vezes, me
deixavam sozinho, o que era um pouco Refiro-me, precisamente, à amabilidade,
duro. Sozinho, sozinho, por períodos de 15 ou melhor, à suposta amabilidade deles...
dias, três semanas... Era muito árduo. Eu morava na casa do chefe do posto,
Após um tempo, por casualidade, fui fazia as refeições nesta mesma casa, e
superior da Missão Anchieta de Mato não tinha como escapar desta situação.
Grosso. Foi outra experiência muito boni- O que implicou diversos problemas,
ta e interessante. Eu ficava em campo e, como a dificuldade de comunicação com
simultaneamente, precisava administrar a comunidade. Eu não sabia a língua,
os problemas das missões, das irmãs. tentei aprendê-la, e logo depois houve
Eu ia para os Kayabi, ficava em média uma espécie de guerra civil entre eles. Eu
duas semanas por lá. Encontrava-me, ia a lugares como Ligeiro, Guarita, rezava
de vez em quando, com os Nambiquara. missa, e percebi que, entre eles, se você
No mais, os trabalhos e os problemas de fosse amigo de uns, não podia ser ami-
administração, a modernidade de uma go de outros. Ou melhor, não é que não
missão, que também não era tão moderna pudesse ser, e sim que não havia ocasião
assim... Administrar coisas como trans- de conversar com outras pessoas.
porte, provisão disto, daquilo, cálculos... Vale ressaltar que esta foi uma
Neste ínterim, eu adoeci. Simplesmente época em que, cada vez mais, eu tinha
adoeci. Quando fui ao médico – eu sentia que trabalhar como professor, em Santo
uma fraqueza enorme – ele me disse: Ângelo, por exemplo. Neste período, em
“Olha padre, você é a Arca de Noé, não Santo Ângelo, finalizei, ao menos, dois
tem bicho da natureza que não esteja no produtos: O Guarani: uma bibliografia
seu corpo”. Todos os vermes possíveis etnológica (1987) e Guaraníes y jesuitas
estavam lá, principalmente amebas. en tiempo de las misiones. Una bibliogra-
Deixei o Mato Grosso e fui para fía didáctica (1995). Eu também lecionei
os Caingangue. Entre eles era outra na Unisinos, de onde saíram algumas
situação, completamente distinta. Os pessoas que se lembram de minha pas-
Caingangue, já naquela época, tinham sagem por lá, dos cursos que ofereci, e
um grupo de católicos e, a princípio, eu ainda hoje me agradecem. Bem, mas se
Palavras Ditas e Escutadas 197

alguém vai para uma universidade é para apoiado, como assessor. Faço tudo o que
fazer isto... Fiz o natural. posso para ajudar.
Até que, por outra casualidade, em Estive presente, por exemplo, em
1989, no dia em que o Stroessner caiu, eu bancas de mestrado e doutorado e tam-
estava no aeroporto de São Paulo. Estava bém nestes cursos sobre formação dos
finalizando uma viagem que – embora eu professores indígenas. Geralmente sou
tivesse sido expulso do Paraguai – havia muito crítico mas, fazer o quê? Ou seja,
começado em Assunção. O que aconte- me chamam, eu vou.
ceu? Eu estava no Brasil, em Dourados,
quando recebi a notícia de que meu pai O que quer dizer quando fala que é
estava morrendo. Vim para o Paraguai, muito crítico aos cursos de formação de
deram-me o visto de saída e segui para professores (“indígenas”)? Quais são as
a Espanha. Meu pai faleceu, de fato, razões para tanto?
três dias depois da minha chegada. No
retorno, como eu tinha direito a terminar É porque toda a nossa educação, repito,
a viagem em Assunção, decidi ir à cida- toda... Não conheço, na América Lati-
de no dia 03 de fevereiro, dia da festa na, uma educação formal que não seja
de São Brás, patrono do Paraguai. No anti-indígena. Não conheço uma única!
aeroporto, eu fiquei sabendo da queda E, às vezes, até mesmo quando os pro-
do Stroessner. Por sorte, o avião no qual fessores são indígenas é algo ainda mais
viajei foi o único a pousar em Assunção anti-indígena porque, sem a distância
naqueles dias. necessária, eles repetem o que foi en-
Agora, da minha experiência com sinado da perspectiva do branco. Há
os Enawenê-Nawê, só escrevi – e acho brancos que são, ao menos, um pouco
que nunca publiquei – uma espécie de críticos sobre estas coisas, que refletem
etno-história sobre o aparecimento dos um pouquinho mais – por circunstâncias
Salumã. Havia o imbróglio, a confusão culturais, claro! E há indígenas que são
dos nomes. Mesmo sabendo que não muito bons. É algo necessário, não serei
devemos dar nomes a tribos que não eu a falar contra.
conhecemos, ficávamos neste impasse – Mas há problemas como: o salário, o
neste caso porque havia um índio cha- status do professor em uma comunidade,
mado Salumã. a concorrência destes professores com os
líderes naturais – e, sobretudo, os xamâ-
Aí entramos em outro tópico sobre o qual nicos, os dirigentes espirituais. É todo
gostaria de ouvi-lo um pouco. Após o um complexo. Eu não vejo, por enquanto,
retorno ao Paraguai, dando continuidade que se tenha promovido uma espécie de
a seu trabalho anterior, o senhor passou desenvolvimento da cultura como tal e,
a ser um dos principais intelectuais da de modo mais concreto, o desenvolvi-
causa indígena neste país. De modo mento da parte linguística, algo que os
mais apropriado, poderíamos chamar de indígenas poderiam fazer soberbamente.
um trabalho “indigenista”? Como é esta Os professores estão bastante desligados
questão para o senhor? Os temas são va- – alguns, outros não – dos próprios líderes
riados, disputas territoriais, expropriação, religiosos, embora alguns deles sejam,
extermínio indígena... eles próprios, lideres religiosos. São
pessoas muito boas, agradáveis, não são
Eu nunca trabalhei nos aspectos jurídi- mal intencionadas, pelo contrário. Porém,
cos, ou seja, nas papeladas, mas tenho estão trabalhando em dois sistemas, aliás,
198 ENTREVISTA

como todos nós, mas me parece que mais pior é que quase não se tem outra pes-
desamparados. soa para falar sobre o assunto. É uma
Há também uma fase de imitação comédia este mundo. Cada um faz o seu
muito mais forte, nos dias de hoje, quer personagem.
dizer... Eu sou outro extremo: não tenho Enfim, em meu retorno ao Paraguai,
celular, não tenho tablet, não tenho ócu- continuei indo muito ao Brasil, a con-
los escuros, carro... Ao passo que eles, os gressos, escrevendo e editando livros.
professores, têm tudo isto que eu falei. As minhas publicações mais importantes
Isto faz com que se distanciem bastante são destes últimos 20 anos. Eu não tenho
da própria comunidade. “Eu, professor, nada de relevante, senão estes trabalhos
tenho outra casinha”... de linguística, de etno-história, e a for-
Por outro lado, há muitos indígenas mação de uma biblioteca notável. Nela,
na universidade, falo dos Caingangue há um acervo com mais de 7.500 livros,
que conheço bem. Há muitos advogados algo em torno de 500 documentos foto-
entre eles. Eu acho que isto é positivo, é copiados. Há também a biblioteca que
outra época. Eu não me sinto em condi- herdei do León Cadogan e, por fim, a
ções... Sou crítico, mas não me sinto em biblioteca Guasch (guarani). Eu não sei
condições de ter uma opinião. Até por- o que vai acontecer, onde ela vai parar.
que eu também sou filho de agricultores Vocês não querem lá no Rio? No Paraguai
– uma família tradicionalmente agricul- ninguém está usando, ninguém pede,
tora, pai, avô, bisavô... E, desta família, mas se alguém souber que o Melià está
saiu alguém que faz antropologia, que levando a biblioteca para outro lugar, aí
faz linguística. Então... chovem manifestações...
São necessárias estas coisas, claro,
mas é um processo muito complexo A sua biblioteca é muito importante para
e o interesse do Estado – do Estado o Paraguai...
propriamente – nestes cursos, é muito
criticável. Não quer dizer que seja mal Sim, eu acho que sim. A minha preocupa-
intencionado, mas é muito criticável pela ção é que ela não seja dispersa, porque,
forma, porque não sabem o que fazer. às vezes, há a falta de espaço, a falta de
Aí, para dizer de novo, tudo vira “inter- alguém que possa cuidar.
culturalidade”, esmaecendo os grandes
problemas e as dificuldades políticas e Professor Melià, estou satisfeito com a
sociais envolvidas. entrevista. Muito obrigado!
Quantos brasileiros que trabalham
com índio sabem a língua? Neste senti-
do, alguns padres estão até em melhores
condições. Mas mesmo assim... Nos
custa muito nos desfazermos da nossa Notas
cultura, quando passamos para outra.
O resultado é uma língua mal falada,
uma cultura mal aprendida. Às vezes,
1
Município espanhol, localizado na pro-
somos tidos como especialistas, então, víncia e comunidade autônoma das Ilhas
imagina, o que serão os outros?! Só Baleares, ao sul de Mallorca.
conhecem lacunas. Vira uma piada. Por
exemplo, me convidam para falar sobre
2
Antonio Ruiz de Montoya, missio-
“cultura guarani!” – é uma piada! E o nário jesuíta peruano, responsável por
Palavras Ditas e Escutadas 199

importantes trabalhos linguísticos e Bartomeu Melià refere-se à abordagem


etnológicos sobre os Guarani (Cf. re- de Francisco de Vitória, que tenta pensar
ferências bibliográficas). Curt Unckel os aspectos morais da economia, estabe-
Nimuendaju, etnólogo e indigenista, lecendo vínculos entre “valores e práticas
autor, dentre outras coisas, do célebre culturais” e uma teoria econômica.
Leyenda de la creacion y juicio final
del mundo como fundamento de la re- 8
Para uma contextualização sobre o
ligion de los Apapokuva-Guarani. León debate, ver Schaden (1962), Melià (1991),
Cadogan foi um importante antropólogo Noelli (1993), Ladeira (2001), Mura
e indigenista paraguaio, com importan- (2006), Chamorro (2008b).
tes trabalhos linguísticos e etnológicos
sobre povos guarani. Em sua vasta obra, 9
Revista de periodicidade mensal pa-
destaca-se o livro Ayvu Rapyta (1959). raguaia voltada para questões políticas,
economia e cultura, vinculada ao Centro
3
Antoine Chavasse, professor da de Estudíos Paraguayos Antonio Guash
Faculdade de Teologia Católica da Uni- (CEPAG).
versidade de Estrasburgo.

4
Bartomeu Melià refere-se às seguin-
tes obras do jesuíta Ruiz de Montoya:
Conquista espiritual hecha por los reli-
giosos de la Compañia de Jesus (1639a),
Tesoro de la lengua guarani (1639b), Arte
de la lengua guaraní (1640a), Catecismo
de la lengua guaraní (1640b) e Voca-
bulario de la lengua guaraní (1640c).
Este conjunto de obras contém um vasto
registro empírico, que fornece importan-
tes fontes para pesquisas linguísticas,
historiográficas e etnológicas sobre os
povos guarani.

5
Missionários do Verbo Divino (Societas
Verbi Divini, SVD), Verbitas. Congregação
de padres e irmãos missionários espalhada
pelos cinco continentes, fundada em 1875
pelo padre alemão Arnaldo Janssen.

6
Centro de Estudios Antropológicos
da Universidad Católica Nuestra Señora
de la Asunción (Assunção, Paraguai).

7
Os escritos do teólogo Francisco de
Vitória, bem como suas contribuições
para a teoria da “Guerra Justa”, são tidos
como pilares para a construção do direito
moderno internacional. A alusão feita por

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