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ENTREVISTA
Bartomeu Melià
Embora o fato de dizer “não muito religio- as experiências estéticas, da beleza, são
sa”, neste contexto, signifique que todos fundamentais na formação das pessoas.
frequentávamos as missas regularmen-
te, todos os domingos; participávamos Ainda mais no caso jesuíta, a exemplo
dos cultos, das procissões, das festas das missões na Ásia e na América Latina,
religiosas. em que os processos de evangelização
Algumas coisas eu mantenho até hoje. foram significativamente pautados por
Por exemplo, não celebro o meu aniver- todo um complexo de práticas e ideias
sário de nascimento, e sim, o dia de São sobre o estético...
Bartolomeu – santo cujo nome herdei.
É necessário observar certas críticas, com
Quando é o dia de São Bartolomeu? seus fundamentos, e eu sou o primeiro
a fazê-las, no caso das missões. Houve
24 de agosto. problemas. Os jesuítas nunca promove-
ram, entre os Guarani, os interesses dos
Poderíamos chamar sua entrada para o próprios índios – por exemplo, a “religião
colégio jesuíta de “conversão”? guarani”. Houve toda uma série de subs-
tituições. Não obstante, nas missões, os
Não. Não é uma conversão! É uma pas- jesuítas substituíram os interesses nati-
sagem para este modo de vida. Porque vos, por exemplo, pela música barroca,
há um significado, um sentido de ser primeiro a espanhola, depois a italiana
missionário. Há a figura de São Fran- e a centro-europeia. A ponto de, em um
cisco Xavier, as missões exteriores. Meu dado momento histórico, alguns nativos
pai teve um desgosto enorme, já minha gostarem mais destas músicas do que
mãe suportou melhor. Meu pai dizia, das tradicionais. Um superior jesuíta
“vou te deserdar”, mas eu já sabia que geral chegou a falar com os missionários,
estava deserdado, no momento mesmo “olha, sejam mais ecléticos”. Porém, o
em que optei por ingressar no colégio fato é que os índios realmente gostaram
jesuíta, justamente pelo fato de que a daquela música. Quando se fala em um
herança não significava nada para mim. Estado, e mais, em um Estado musical
Contudo, o desgosto do meu pai durou colonial, sim, é verdade se quiserem,
apenas alguns meses. mas era música barroca. Nas missões,
os índios substituíram certas coisas por
E o Paraguai, que motivações o trouxeram outras que são também relevantes. E as
ao país? igrejas das missões eram as mais belas
de toda a região.
Foi um processo natural. Por exemplo,
fiz o noviciado em um antigo mosteiro Quando o senhor veio para o Paraguai,
do século XII, o mosteiro de Veruela, em que ideias trazia consigo sobre a América
Zaragoza. Há a beleza das construções, Latina, as populações indígenas? O que o
das pedras, do claustro gótico (que é senhor esperava e o que encontrou?
extraordinário), da sala capitular, da
mistura de estilos (uma parte tipicamente Neste aspecto, é importante falar sobre
romana, outra gótica). Foi uma experiên- as vocações. Nós éramos seminaristas,
cia marcante, logo esta é uma visão que mas nunca nos chamávamos assim, pois
nos impregna. Algo muito importante. era uma expressão mais usada para os
Eu quero enfatizar este aspecto, já que padres do clero secular. Éramos orienta-
Palavras Ditas e Escutadas 185
dos a ser padres mas, naquela época, na França, onde estudei filosofia. Parte dos
década de 1950, a grande preocupação estudos teológicos foi realizada na Es-
da Igreja (um pouco da “Igreja univer- panha (a propósito, a teologia é bastante
sal”) recaía sobre as ameaças à América ruim por lá). Na França, o aprendizado
Latina, tidas como o protestantismo e o foi excelente. Eu lia em latim, quando os
comunismo. textos de filosofia clássica eram em latim;
Na Europa e, de modo mais concreto, o mesmo para os textos dos filósofos gre-
na Espanha, as vocações eram muitas. gos estudados que, grosso modo, eram de
Havia, portanto, todo um material hu- Aristóteles e Platão. Algumas traduções
mano disponível e disposto. A Espanha até me ajudavam, mas eu seguia os tex-
tinha como foco ajudar uma parte da tos originais. Atualmente, não sou mais
América, e a província da Catalunha re- capaz de fazer isto.
cebeu a incumbência de ajudar a Bolívia A Universidade de Estrasburgo era
e o Paraguai. Neste período, a cada ano, muita moderna, era bastante hegeliana,
em média, quatro jesuítas vinham para na época. Tínhamos uma formação ampla,
o Paraguai. Na minha época, com o meu isto é, filosofia antiga, medieval, moder-
grupo, eu e mais três, quando chegamos na, contemporânea. Líamos quase tudo,
aqui, passamos o primeiro ano inteiro São Tomás de Aquino, Dionísio, Santo
estudando a língua guarani. Agostinho, Descartes, Kant, Hobbes,
Espinoza e, claro, Hegel, dentre outros.
Isto foi quando mesmo? Por lá haviam passado professores no-
táveis.
Em 1954. O Paraguai tinha uma popu-
lação de dois milhões de habitantes. Como por exemplo...
O asfalto era escasso, chegava até Eu-
zébio Ayala, uns 72 km no total, pratica- Por exemplo, Jean-Yves Calvez, grande
mente o único asfalto em todo o país. Era teórico do comunismo. Era um ambiente
um país muito tradicional, pouco moder- acadêmico não muito existencialista, mas
no. A luz elétrica, por exemplo, só existia se conhecia a fenomenologia de Merleau-
em nossa casa. O próprio governador de -Ponty, lia-se Henri Bergson. Foi quando
Assunção não tinha luz elétrica. comecei a ter um contato mais direto com
Estudava-se, em média, um ano e os “estudos de cultura”. Tínhamos um
meio de guarani. Em seguida, continua- professor que havia estado na África e
vam-se os estudos na Europa, especifica- adorava falar de kultur e civilisation. Ele
mente, em filosofia. Porém, eu fiquei um lecionava muito desta perspectiva, não
tempo maior por aqui, primeiro porque era um curso propriamente de antropo-
pretendia ser professor de latim no se- logia, era mais uma espécie de “teoria
minário (o que não aconteceu). Lecionei cultural”, ou coisa do tipo.
no colégio cristão, ao mesmo tempo em
que chegaram colegas para aprender a Deixe-me só retroceder um pouquinho,
língua guarani, o que implicou a cons- voltar para um elemento que me parece
trução de uma pequena gramática da importante. Nos seus primeiros quatro
língua. Assim, eu fiquei no Paraguai anos no Paraguai, havia um mentor
até 1958. intelectual?
A “Cia de Jesus” francesa, que tinha
maior poderio econômico na época, ge- Meu professor era Antonio Guasch. Eu
nerosamente bancou os meus estudos na ainda tenho os cadernos dele!
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Ele foi seu pai intelectual adotivo aqui? ajuda e com os parceiros com os quais
me deparei (facilidade de acesso aos
Sim, embora viajasse muito e, de fato, arquivos, fotocópias, microfilmes).
foram poucas as aulas que tive com ele. Durante a pesquisa, fiz três viagens
Ele faleceu na Espanha, em 1965, pre- importantes. Estive por um mês em Ma-
parando a edição de um livro que não dri, perto da eclosão de maio de 1968 e,
foi publicado. curioso, fui para Roma momentos antes
da explosão do movimento (ficamos sem
Sua tese sobre a língua cristã-guarani, nas transporte, sem trem, só regularizado
missões jesuítas no Paraguai, é de 1969... após um tempo). Com relativa frequên-
cia, eu ia trabalhar no Ibero-Amerikanis-
Sim. Minha tese é de 1969, La création ches Institut de Berlim, um instituto, por
d’un langage chrétien dans les Réduc- sinal, que ainda frequento – nos últimos
tions de Guarani au Paraguay. Depois anos, bem menos, é verdade – ainda
dos estudos de teologia, que duram visito porque dispõe de uma biblioteca
quatro anos, temos novamente uma muito rica sobre a América Latina.
espécie de noviciado, que chamamos de A ideia central do meu trabalho não
“terceira provação”, com mais um ano de era “original” mas, ao mesmo tempo, foi
estudos, sobretudo de espiritualidade, e relativamente original o fato de eu ter
um mês de exercícios espirituais. Estive levado bem a sério aquela intuição: a de
na Áustria, por dois meses, no hospital que, diante do contato, as línguas mudam,
da Imperatriz Sissi. Depois disso, passei porém sobretudo em determinados cam-
um mês e meio com os trabalhadores es- pos semânticos. Todavia, para tanto, era e
panhóis na Alemanha (nos últimos anos, é necessário um trabalho exaustivo, para
observa-se novamente a migração de tra- o qual eu recolhi bastante documentação
balhadores espanhóis para a Alemanha, – que, por sinal, ainda hoje não é muito
porém, agora, a maior parte deles é de explorada. Posso afirmar que eu mesmo
intelectuais). Eu estudava alemão e lia não aproveitei, não analisei sequer a terça
muito. Foi um período muito tranquilo, parte do material que coletei.
durante o qual pude passar dois meses Com frequência me perguntam de
em Viena e outro em Hanôver. onde surgiu esta “originalidade”, mais
Logo em seguida, eu comecei a tese. suposta do que real, na abordagem
Acho que não é vaidade dizer que é uma semântica do guarani dos tempos das
boa tese. O trabalho saiu em menos de reduções. Acredito que tenha nascido
dois anos. Eu frequentava todos os dias do fato de eu considerar a colônia como
a biblioteca de Estrasburgo. Em geral, um vasto processo de transformação
eu era o primeiro a entrar e trabalhava e de conversão linguística. Constituiu
até o meio dia, quando voltava para casa. também, integralmente, uma ampla e
Raramente eu ia à biblioteca no período profunda tarefa de tradução, a tradução
da tarde. A tese, de fato, é uma intro- de símbolos e o manejo de recursos da
dução a todo o trabalho que eu venho linguagem, realizados pelos jesuítas por
desenvolvendo até hoje. Os documentos meio de um sistema bastante coerente
que analiso, os artigos e os livros que e constante, que caminhava na direção
escrevo, são uma espécie de ruminação e da normalização da nova linguagem em
continuidade da tese, é a minha herança. processo de gestação. Os jesuítas tradu-
Eu recolhia documentações com uma fa- ziam a si próprios, na medida em que
cilidade espantosa. Tive sorte com tanta eram traduzidos pelos Guarani. Como
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Napoleão. Estes dois núcleos eram ge- em seguida, teorizei um pouco no livro
renciados pela mesma administração e O mundo guarani (2011). A saber, após
secretariado, com professores católicos e o contato tem-se: (1) destruição, (2)
protestantes (luteranos em sua maioria), vontade de substituição, ou vontade de
mas os alunos tinham toda a liberdade de encobrimento e, às vezes, (3) acontece
assistir – e mesmo mesclar – às aulas (as uma transformação; em alguns casos, há
de teologia católica e protestante). um germe, uma plantinha, que engendra
Eu era muito livre. O meu orientador uma verdadeira criação. É sempre assim.
teve grandes dúvidas, antes de aceitar me Porém, não é tão simples assim, uma vez
orientar. Na ocasião, ele me disse, “olha, é que você precisa comprovar, reunir ele-
a primeira vez que escuto esta palavra: mentos e materiais para demonstrar. Pelo
‘guarani’”. Ele não sabia nada a respeito... menos está documentado! Bem, como se
sabe, por outro lado, toda documentação
Ele era especialista em quê? é uma seleção, é verdade...
Pelo que as pessoas dizem – e até acre-
Ele era especialista na obra do papa dito – tenho um estilo de escrita e de ar-
Leão Magno, que transformou o latim da gumentação que não é complicado. Uma
sociedade romana, pagã se quiser, para editora com a qual trabalhei, já falecida,
que fosse capaz de expressar conceitos me dizia, “você fala de coisas muito pro-
cristãos. Ou seja, também converteu a fundas, de modo muito fácil”. E, de fato...
língua em função desta “nova religião”. É verdade que, às vezes, eu procuro uma
O meu orientador era um grande espe- palavra – uma palavra – mais rebuscada,
cialista no tema. mas faço um uso parcimonioso, pois o
espanhol não é minha língua materna –
Desculpe-me, qual o nome dele? o que é outro ponto importante, como
já mencionado, minha experiência em
Chavasse.3 Ele me dava algumas indi- Porreres. O fato do espanhol não ser mi-
cações, porém, desde o primeiro dia, eu nha língua materna me deu uma grande
sabia o caminho que tinha a seguir. Tive vantagem, em conjunto com todo o meu
poucas dúvidas. Por isto a minha tese co- processo de formação, anos a fio, durante
meça sem preâmbulo. Por exemplo, não os quais aprendi outras línguas.
há explicações sobre marco teórico (os ar- Na tese, argumentei em favor da ideia
gentinos gastam páginas e páginas com de “criação” na língua das missões. Sim,
seus marcos teóricos). Ora, começam a houve uma “criação”, de certo modo, ao
caminhar, se não sabem aonde ir, vêm mesmo tempo em que houve uma “conver-
com esta de marco teórico! Por mais que são”. Algumas palavras foram substituídas,
você tenha muitos mapas, se você não ou seja, mortas de fato. Há palavras da mi-
caminha, não caminhou. Eu tinha esta tologia que, praticamente, não apareceram
vantagem inicial, já sabia qual caminho nunca mais. Muitos conceitos-chave da
percorrer e trabalhava. “religião guarani” foram transformados.
Qual ideia eu defendia? Como dis- Porém, eu sabia que havia ocorrido uma
se antes, é uma argumentação muito conversão, uma transformação, na filosofia,
simples, que aplico continuamente até na mitologia clássica. Eram claras as mu-
hoje. No encontro entre as línguas, o danças ocorridas em termos, expressões.
contato se faz – dependendo do tipo de Ou seja, uma passagem, transformação.
colonização – por áreas semânticas. Daí Eu claramente via os resultados, porém
surgiu o célebre esquema que elaborei e, não sabia de onde viam.
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somente o que foram, mas antes o que Outra coisa que eu já disse há muito
virão a ser pelo uso em uma comunidade tempo: a etnografia histórica dos Gua-
de falantes, de comunicação. rani está no Montoya.4 Escrevi algumas
coisas breves sobre isto, atualmente há
Foi neste retorno ao Paraguai que o se- trabalhos maiores, teses. Há algumas
nhor conheceu León Cadogan? boas: a da Graciela Chamorro, para a
parte religiosa, a da Angelica Otazú e
Fui visitar León Cadogan – eu já havia também o estudo de Antonio Caballos
me correspondido com ele duas ou três (Cf. Otazú 2006; Chamorro 2008a;
vezes. Ele era muito amigo do padre Caballos 2011). Não há mais muita coisa
Antonio Guasch. Cadogan gostava muito além disso, e estão quase todos nesta
dos jesuítas. E foi amor à primeira vista: linha do Montoya, ou seja, são pesquisa-
ele me adotou imediatamente. Cadogan dores com uma experiência etnográfica
confiava enormemente nos acadêmicos que têm lido Montoya, especialmente
e quase todos estrangeiros, após conse- Chamorro e Caballos.
guirem elementos para sua tese, sumiam. No meu retorno – cheguei aqui sendo
Não era má vontade mas, para citar um jesuíta – tinha que ser professor, “ganhar
caso célebre, Pierre Clastres (1972; 1974) a vida”, trabalhar na universidade. Nesta
aproveitou todo conhecimento coletado e conjuntura, numa visita a Cadogan, eu
acumulado por León Cadogan e foi embo- lhe disse: “Gostaria de visitar os índios”.
ra. Simplesmente partiu. Helenè Clastres Aí ele pensou: “Ah, este eu vou pegar
(1975) também: ela ficou apaixonada pelo na armadilha...”. Ele era um artista
trabalho de Cadogan, porém, não deu nesta arte. Cadogan era muito socrático –
continuidade ao trabalho entre os Guara- já falei sobre isto em outra ocasião –
ni. Os acadêmicos partem e vão estudar quer dizer, nunca dava uma resposta
a “história das mentalidades”. E assim direta, você sempre tinha que decifrá-la.
também são os outros. O próprio Miguel E, algumas vezes, acredito, falei coisas
Angel Bartolomé, que está no México. que ele ignorava. Nos últimos anos de
Quando eu faço este julgamento, não sua vida, entre nós havia um convívio
é um julgamento de menosprezo. O que mais frequente.
quero ressaltar é o efeito disto, a saber,
o fato é que, após estes esforços iniciais Ele já estava doente?
destes etnógrafos modernos guarani, não
há uma “antropologia guarani”. Nos úl- Estava. Mas não era tão doente. Ele se
timos anos, não quero nomear, são muito cansava, mas não tanto. Nesta época
poucos os pesquisadores e intelectuais houve ainda algumas obras dele, das
que continuam este legado. Por desgraça, quais eu fui editor. Yvyra Ñe’ery. Fluye del
eu sou quase o único. árbol la palavra (1971). Ayvu Rapyta tam-
Na antropologia do século XX, nós bém editei, mas a nova edição, em 1992,
temos apenas três etnógrafos guarani. com ele já falecido. Ele me chamava con-
Notadamente, há pequenas descrições, tinuamente. Eu era também um pequeno
um pouquinho aqui, um pouquinho aco- escravo. Quando ia para o mato, voltava
lá, mas os antropólogos do século XX são e narrava para ele toda experiência. Ele
simplesmente: Curt Nimuendajú, León confirmando seus trabalhos...
Cadogan e Egon Schaden. Surgiram ou-
tros depois, mas não como estas figuras Nimuendajú e Cadogan realizaram, para
emblemáticas. usar uma expressão empregada pelo se-
Palavras Ditas e Escutadas 191
Às vezes, após o expediente, ia para o sobre isto, de Silvio Coelho dos Santos
mato, pois as primeiras comunidades que (1975), que não era propriamente um
eu visitava não eram de difícil acesso. trabalho acadêmico, era mais uma es-
pécie de informe. No Brasil, não havia
Eram quais comunidades? Mbyá, Kaiowá? um livro específico sobre educação
indígena. Havia o Florestan Fernandes,
Primeiro foram comunidades mbyá. com aqueles artigos fabulosos sobre a
Minha entrada ocorreu graças à ajuda educação tupinambá (1964; 1975), umas
do Cadogan. Posteriormente, o caminho coisas também do Egon Schaden (1976),
ficou mais fácil, nas visitas a comunida- mas bem pouco.
des localizadas na área dos “padres do Educação indígena e alfabetização
verbo divino”.5 Foi quando tive maior é um livro que surge de um trabalho de
contato com os Ava-Guarani, mas quase mutirão.
não tenho anotações oriundas destas
experiências, nunca levei um diário de A equipe, se podemos chamar assim, era
campo. Todo o material resume-se ao que composta por quais pessoas, quantas
ficava impregnado em minha memória, pessoas?
que eu usava para escrever alguma coisa.
O meu primeiro artigo resultante disto Missionários, freiras, boa parte do Mato
foi “Quando o jacaré come a borboleta”, Grosso, era por volta de 1978. Tivemos
uma espécie de ensaio poético mesclado a sorte de contar com o padre Moura,
com um pouco de etnografia. Só depois, um exímio datilógrafo. Ele foi uma peça
a partir do início de 1972, comecei o fundamental para a realização do livro.
trabalho mais sistemático com os Paí- Gerou um trabalho, embora rápido, mui-
Tavyterã, graças ao auxílio dos etnólogos to eficaz, e que muito tem inspirado os
Friedl e George Grunberg (Melià et alli estudos de educação indígena. Embora,
1976). O Grunberg era professor clássico atualmente, eu não encontre muita coi-
de Viena... sa relevante sobre a questão. Acho que
as pesquisas sobre educação indígena
O senhor já o conhecia? estão se enveredando por dois falsos
caminhos!
Não. Eu o conheci aqui. Mas, no início Um deles é uma tese muita própria
de 1970, ele já havia trabalhado com os do Estado, a saber, a do bilinguismo.
Chiriguanos. Depois, em 1971, como eu O bilinguismo é uma armadilha porque,
era presidente do Centro de Estudos Antro- de fato, este bilinguismo – para usar uma
pológicos,6 nos conhecemos pessoalmente. metáfora – é uma ponte pela qual você
Houve, para usar a expressão de Goethe, caminha, passa, mas depois de atraves-
uma “afinidade eletiva” entre nós. A parte sada, é uma ponte destruída, e não se
mais acadêmica, mais antropológica, eu pode mais voltar (que é o que acontece
realizei em conjunto com o casal Grunberg, com as novas gerações).
abordando temas como: terra, saúde, eco- O outro caminho é ainda pior: o da
nomia, língua e religião. “interculturalidade”.
Houve também um projeto peda-
gógico, que resultou no livro Educação Por quê?
indígena e alfabetização. Engraçado,
trata-se de um livro pioneiro a respeito Todo mundo fala em interculturalidade,
no Brasil. Só existia um livro específico mas o século passado (e o atual) foi o
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século em que menos tivemos intercul- Por sorte, Cadogan não negou tempo,
turalidade. Foi a negação de todas as cul- nem esforço a quem dele se aproxima-
turas, potencializada com a globalização va – a Pierre Clastres, a Miguel Ángel
etc... Por exemplo, no caso de contextos Bartolomé, a Mark Münzel. Eu mesmo
indígenas, se você aceita a ideia – a me beneficiei enormemente de sua paci-
mais razoável – de economia indígena, ência e maiêutica socrática. Fazia-me ir
ficam nítidos os problemas. Quando se à selva, como mencionei anteriormente,
observam dois territórios que estão em para perguntar coisas que ele próprio já
sistema de não propriedade privada, sabia, porque, na verdade, queria que
fica evidente que são formas sociais que eu as escutasse de viva voz dos próprios
perdurarão, pois trata-se de comunidades Guarani.
que mantêm o sistema de reciprocidade Clastres podia sentir-se seguro ao es-
e sua ideia correlata de território. Já os crever a Chronique des indiens Guayaki
Estados – sabe-se lá o porquê, isto já (1972), graças ao suporte etnográfico
foi superado com Francisco de Vitória interno que lhe proporcionava o Diccio-
em 1540 7 – quando reconhecem um nario guayakí de Cadogan. Em contra-
território, não reconhecem o solo, não partida, Clastres teve a delicadeza de
reconhecem que há, neste território, tornar possível a publicação do dicionário
um sistema de economia próprio, mais na Societé des Américanistes de Paris.
funcional para a conjuntura. O livro Le grand parler, de Pierre Clastres
Os indígenas são ilhas, e estas ilhas (1974), é de fato uma versão em francês
são o futuro, isto é, as línguas e o sistema do texto em castelhano, de alguns capí-
educativo indígenas. O nosso sistema tulos de Ayvu Rapyta (Cadogan 1959).
educativo, por outro lado, não é melhor. E o próprio poema mbyá coletado por
Em nossa sociedade, não há uma só fa- Clastres, presente no Le grand parler,
mília que seja capaz de educar, é sempre que é uma boa contribuição, foi traduzido
uma educação terceirizada. Mesmo as por Cadogan.
famílias cultas não se sentem capacita- A questão da “terra sem mal” – yvy
das para educar. E, no fim, quem educa? marane’ỹ – é um caso de extrapolação
A rua, a propaganda, o shopping e o co- de um dado etnográfico particular, es-
légio. E educam com coisas que os pais tendido por meio de uma generalização
não entendem – os filhos, nada bobos, etnológica a todo o mundo guarani.
sabem que os pais não entendem. É certo que a “terra sem mal” é um con-
Eu fico meio bravo quando usamos ceito bastante moderno, dada a existência
termos que podem ser escolhidos para da terra dos males, historicamente criada
enganar, como é o caso da interculturali- por nós, brancos. O fato de Nimuendajú
dade. As pessoas querem a confusão. já ter aplicado a expressão, escutada
entre os Apapokúva (Nhandeva), a uma
Gostaria de ouvi-lo sobre um tema algo experiência mística de migração de uma
controverso. A saber, os usos (e abusos?) dúzia de “índios paraguaios” – que, na
de um conjunto de reflexões guarani, sob ocasião, ele ignorava que fossem Mbyá
a chancela da expressão yvy marane’ỹ – deu margem para que Alfred Métraux
(“terra sem mal”). estendesse a noção ao conjunto de Gua-
rani históricos e contemporâneos, me-
Todos nós que temos feito algo de antro- diante uma generalização e transposição
pologia guarani precisamos nos agarrar de sentido que ignora o uso comum e a
aos indígenas como tábua de salvação. semântica guarani de contextos culturais
194 ENTREVISTA
haviam sido publicados uns poemas den, Lux Vidal, Thekla Hartmann, Vera
nossos, que ficaram famosos – não são Penteado Coelho e Renate B. Viertler.
bons poemas – aqueles Tiempos de paz Entre os participantes estavam também
(Martinez 2005). Agora sairá num filme, Dominique Gallois, que ficou famosa por
este poema. Por estes motivos, dentre seus estudos sobre os Oyampí, e Regina
outros, fomos expulsos. Polo Müller, que se especializou, poste-
Teve outro fato importante. Eu entrei riormente, em arte indígena. Dos outros
na defesa dos Ache-Guayaki, que vinham não me recordo bem. O grupo não era
sofrendo ataques incessantes. A questão numeroso. Eu não me sentia um docente,
virou um problema internacional, che- e sim um aprendiz entre tantos mestres,
gando aos Estados Unidos (ao congresso tantos professores. O seminário me obri-
norte-americano). Os Estados Unidos gou a colocar em ordem minha experiên-
cobraram explicações do Stroessner. Dez cia com os Guarani, e as perguntas me
jesuítas foram expulsos, e eu fui nesta abriam perspectivas insuspeitas. Foi uma
leva. Saí porque, de fato, a ordem do exí- experiência para além da de docência.
lio foi transmitida pelo provinciado. Saí Na verdade, sentia-me um tanto quanto
com relativa segurança, não fui levado intimidado, mas ao mesmo tempo ani
como alguns outros. De fato, passei pela mado, devido aos participantes, a maioria
expulsão do país. Os jesuítas são mestres com experiência etnográfica no mundo
em expulsões. Eu desci rio abaixo e che- tupi-guarani.
guei a Corrientes. Era o único passageiro No ano seguinte, fui professor vi-
de um enorme barco, que se chamava sitante em Campinas, onde nasceu e
“Presidente Stroessner ”. Fiquei lá por cresceu minha amizade com o doutor
um tempo. Eu tinha um compromisso, Aryon Dall’Igna Rodrigues, que sem-
neste ano, 1976, no Congresso dos pre me ajudou nos trabalhos sobre as
Americanistas em Paris (o congresso do línguas guarani. Foi neste período, em
centenário da associação) e, de lá, fui uma pizzaria da Rua Consolação, que
para Roma. um companheiro jesuíta me propôs a ir
Em Roma eu não tinha nada o que trabalhar com os Salumã, recém-contata-
fazer, pois é um lugar em que há muitos dos, e cuja autodenominação era, na ver-
padres. Por exemplo, nunca fui convida- dade, Enawenê-Nawê. Com eles estava
do a celebrar uma missa para o público, o irmão Vicente Cañas, assassinado em
nunca, nunca. Nem sequer para freiras... 1987, presumivelmente por fazendeiros
Eu estava em uma comunidade religiosa, da região, e novos colonos de Juína, na
com suas práticas, na casa de escritores, região do alto Juruena.
muito próximo ao Vaticano. Foi uma Eu encaro todas estas aventuras, sem
ótima ocasião, pois pude frequentar o medir muito as minhas possibilidades,
arquivo do Vaticano todos os dias. Abri os pois, como disse, eu não tenho habilidade
documentos de todo o período de 1870. prática nenhuma, só boa vontade.
Fui o primeiro a abrir a documentação do Voltei para Roma, peguei as minhas
Vaticano sobre a guerra do Brasil, Argen- coisas e fui para a aldeia. O período
tina e Uruguai contra o Paraguai. entre os Enawenê-Nawê, entre 1978 e
Em setembro-outubro de 1977, ainda 1980, foi para escutar, aprender, marcar
exilado em Roma, fui convidado a dar um presença, mas sem muito proveito para
seminário, como professor visitante, no um trabalho acadêmico. Eu não tinha
curso de antropologia da USP. Ao seminá- um plano definido, não cheguei a fechar
rio assistiam os professores Egon Scha- nada, embora eu tenha tomado muitas
196 ENTREVISTA
notas. O que ficou foram as fotografias era coordenador das quatro dioceses.
daquele tempo, eu tenho muitas. Eu os visitava. Eu morava em Miraguaí,
Por exemplo, vi as transformações na no Rio Grande do Sul. Quando os índios
produção das canoas. Também as ane- iam para as paróquias, nós, padres,
dotas... A primeira vez que os indígenas procurávamos atendê-los. Se eles pe-
viram uma vaca na área deles – não se dissem o batismo, batizávamos, se não,
sabe de onde veio, provavelmente de uma tudo bem.
fazenda que estava se instalando por per- Foi durante esta experiência que eu
to. Naquele tempo – foram três anos – eu me deparei com um problema, que não
ficava lá observando, aprendendo sobre tinha tido até então: a FUNAI. Muito
a economia da reciprocidade, participava amável, mas era uma amabilidade que
de todas as danças, quase mais do que me afastava de uma convivência mais
eles mesmos. Foi uma experiência muito efetiva com os indígenas.
boa. Como eu sou muito inútil para as
coisas práticas, não sou pescador, não sou O que o senhor chama de problema com
cozinheiro, a única coisa que eu fazia era a FUNAI? Havia conflito? Ao que, exata-
plantar milho, plantar mandioca, quando mente, o senhor se refere?
precisavam. Muito por isto, às vezes, me
deixavam sozinho, o que era um pouco Refiro-me, precisamente, à amabilidade,
duro. Sozinho, sozinho, por períodos de 15 ou melhor, à suposta amabilidade deles...
dias, três semanas... Era muito árduo. Eu morava na casa do chefe do posto,
Após um tempo, por casualidade, fui fazia as refeições nesta mesma casa, e
superior da Missão Anchieta de Mato não tinha como escapar desta situação.
Grosso. Foi outra experiência muito boni- O que implicou diversos problemas,
ta e interessante. Eu ficava em campo e, como a dificuldade de comunicação com
simultaneamente, precisava administrar a comunidade. Eu não sabia a língua,
os problemas das missões, das irmãs. tentei aprendê-la, e logo depois houve
Eu ia para os Kayabi, ficava em média uma espécie de guerra civil entre eles. Eu
duas semanas por lá. Encontrava-me, ia a lugares como Ligeiro, Guarita, rezava
de vez em quando, com os Nambiquara. missa, e percebi que, entre eles, se você
No mais, os trabalhos e os problemas de fosse amigo de uns, não podia ser ami-
administração, a modernidade de uma go de outros. Ou melhor, não é que não
missão, que também não era tão moderna pudesse ser, e sim que não havia ocasião
assim... Administrar coisas como trans- de conversar com outras pessoas.
porte, provisão disto, daquilo, cálculos... Vale ressaltar que esta foi uma
Neste ínterim, eu adoeci. Simplesmente época em que, cada vez mais, eu tinha
adoeci. Quando fui ao médico – eu sentia que trabalhar como professor, em Santo
uma fraqueza enorme – ele me disse: Ângelo, por exemplo. Neste período, em
“Olha padre, você é a Arca de Noé, não Santo Ângelo, finalizei, ao menos, dois
tem bicho da natureza que não esteja no produtos: O Guarani: uma bibliografia
seu corpo”. Todos os vermes possíveis etnológica (1987) e Guaraníes y jesuitas
estavam lá, principalmente amebas. en tiempo de las misiones. Una bibliogra-
Deixei o Mato Grosso e fui para fía didáctica (1995). Eu também lecionei
os Caingangue. Entre eles era outra na Unisinos, de onde saíram algumas
situação, completamente distinta. Os pessoas que se lembram de minha pas-
Caingangue, já naquela época, tinham sagem por lá, dos cursos que ofereci, e
um grupo de católicos e, a princípio, eu ainda hoje me agradecem. Bem, mas se
Palavras Ditas e Escutadas 197
alguém vai para uma universidade é para apoiado, como assessor. Faço tudo o que
fazer isto... Fiz o natural. posso para ajudar.
Até que, por outra casualidade, em Estive presente, por exemplo, em
1989, no dia em que o Stroessner caiu, eu bancas de mestrado e doutorado e tam-
estava no aeroporto de São Paulo. Estava bém nestes cursos sobre formação dos
finalizando uma viagem que – embora eu professores indígenas. Geralmente sou
tivesse sido expulso do Paraguai – havia muito crítico mas, fazer o quê? Ou seja,
começado em Assunção. O que aconte- me chamam, eu vou.
ceu? Eu estava no Brasil, em Dourados,
quando recebi a notícia de que meu pai O que quer dizer quando fala que é
estava morrendo. Vim para o Paraguai, muito crítico aos cursos de formação de
deram-me o visto de saída e segui para professores (“indígenas”)? Quais são as
a Espanha. Meu pai faleceu, de fato, razões para tanto?
três dias depois da minha chegada. No
retorno, como eu tinha direito a terminar É porque toda a nossa educação, repito,
a viagem em Assunção, decidi ir à cida- toda... Não conheço, na América Lati-
de no dia 03 de fevereiro, dia da festa na, uma educação formal que não seja
de São Brás, patrono do Paraguai. No anti-indígena. Não conheço uma única!
aeroporto, eu fiquei sabendo da queda E, às vezes, até mesmo quando os pro-
do Stroessner. Por sorte, o avião no qual fessores são indígenas é algo ainda mais
viajei foi o único a pousar em Assunção anti-indígena porque, sem a distância
naqueles dias. necessária, eles repetem o que foi en-
Agora, da minha experiência com sinado da perspectiva do branco. Há
os Enawenê-Nawê, só escrevi – e acho brancos que são, ao menos, um pouco
que nunca publiquei – uma espécie de críticos sobre estas coisas, que refletem
etno-história sobre o aparecimento dos um pouquinho mais – por circunstâncias
Salumã. Havia o imbróglio, a confusão culturais, claro! E há indígenas que são
dos nomes. Mesmo sabendo que não muito bons. É algo necessário, não serei
devemos dar nomes a tribos que não eu a falar contra.
conhecemos, ficávamos neste impasse – Mas há problemas como: o salário, o
neste caso porque havia um índio cha- status do professor em uma comunidade,
mado Salumã. a concorrência destes professores com os
líderes naturais – e, sobretudo, os xamâ-
Aí entramos em outro tópico sobre o qual nicos, os dirigentes espirituais. É todo
gostaria de ouvi-lo um pouco. Após o um complexo. Eu não vejo, por enquanto,
retorno ao Paraguai, dando continuidade que se tenha promovido uma espécie de
a seu trabalho anterior, o senhor passou desenvolvimento da cultura como tal e,
a ser um dos principais intelectuais da de modo mais concreto, o desenvolvi-
causa indígena neste país. De modo mento da parte linguística, algo que os
mais apropriado, poderíamos chamar de indígenas poderiam fazer soberbamente.
um trabalho “indigenista”? Como é esta Os professores estão bastante desligados
questão para o senhor? Os temas são va- – alguns, outros não – dos próprios líderes
riados, disputas territoriais, expropriação, religiosos, embora alguns deles sejam,
extermínio indígena... eles próprios, lideres religiosos. São
pessoas muito boas, agradáveis, não são
Eu nunca trabalhei nos aspectos jurídi- mal intencionadas, pelo contrário. Porém,
cos, ou seja, nas papeladas, mas tenho estão trabalhando em dois sistemas, aliás,
198 ENTREVISTA
como todos nós, mas me parece que mais pior é que quase não se tem outra pes-
desamparados. soa para falar sobre o assunto. É uma
Há também uma fase de imitação comédia este mundo. Cada um faz o seu
muito mais forte, nos dias de hoje, quer personagem.
dizer... Eu sou outro extremo: não tenho Enfim, em meu retorno ao Paraguai,
celular, não tenho tablet, não tenho ócu- continuei indo muito ao Brasil, a con-
los escuros, carro... Ao passo que eles, os gressos, escrevendo e editando livros.
professores, têm tudo isto que eu falei. As minhas publicações mais importantes
Isto faz com que se distanciem bastante são destes últimos 20 anos. Eu não tenho
da própria comunidade. “Eu, professor, nada de relevante, senão estes trabalhos
tenho outra casinha”... de linguística, de etno-história, e a for-
Por outro lado, há muitos indígenas mação de uma biblioteca notável. Nela,
na universidade, falo dos Caingangue há um acervo com mais de 7.500 livros,
que conheço bem. Há muitos advogados algo em torno de 500 documentos foto-
entre eles. Eu acho que isto é positivo, é copiados. Há também a biblioteca que
outra época. Eu não me sinto em condi- herdei do León Cadogan e, por fim, a
ções... Sou crítico, mas não me sinto em biblioteca Guasch (guarani). Eu não sei
condições de ter uma opinião. Até por- o que vai acontecer, onde ela vai parar.
que eu também sou filho de agricultores Vocês não querem lá no Rio? No Paraguai
– uma família tradicionalmente agricul- ninguém está usando, ninguém pede,
tora, pai, avô, bisavô... E, desta família, mas se alguém souber que o Melià está
saiu alguém que faz antropologia, que levando a biblioteca para outro lugar, aí
faz linguística. Então... chovem manifestações...
São necessárias estas coisas, claro,
mas é um processo muito complexo A sua biblioteca é muito importante para
e o interesse do Estado – do Estado o Paraguai...
propriamente – nestes cursos, é muito
criticável. Não quer dizer que seja mal Sim, eu acho que sim. A minha preocupa-
intencionado, mas é muito criticável pela ção é que ela não seja dispersa, porque,
forma, porque não sabem o que fazer. às vezes, há a falta de espaço, a falta de
Aí, para dizer de novo, tudo vira “inter- alguém que possa cuidar.
culturalidade”, esmaecendo os grandes
problemas e as dificuldades políticas e Professor Melià, estou satisfeito com a
sociais envolvidas. entrevista. Muito obrigado!
Quantos brasileiros que trabalham
com índio sabem a língua? Neste senti-
do, alguns padres estão até em melhores
condições. Mas mesmo assim... Nos
custa muito nos desfazermos da nossa Notas
cultura, quando passamos para outra.
O resultado é uma língua mal falada,
uma cultura mal aprendida. Às vezes,
1
Município espanhol, localizado na pro-
somos tidos como especialistas, então, víncia e comunidade autônoma das Ilhas
imagina, o que serão os outros?! Só Baleares, ao sul de Mallorca.
conhecem lacunas. Vira uma piada. Por
exemplo, me convidam para falar sobre
2
Antonio Ruiz de Montoya, missio-
“cultura guarani!” – é uma piada! E o nário jesuíta peruano, responsável por
Palavras Ditas e Escutadas 199
4
Bartomeu Melià refere-se às seguin-
tes obras do jesuíta Ruiz de Montoya:
Conquista espiritual hecha por los reli-
giosos de la Compañia de Jesus (1639a),
Tesoro de la lengua guarani (1639b), Arte
de la lengua guaraní (1640a), Catecismo
de la lengua guaraní (1640b) e Voca-
bulario de la lengua guaraní (1640c).
Este conjunto de obras contém um vasto
registro empírico, que fornece importan-
tes fontes para pesquisas linguísticas,
historiográficas e etnológicas sobre os
povos guarani.
5
Missionários do Verbo Divino (Societas
Verbi Divini, SVD), Verbitas. Congregação
de padres e irmãos missionários espalhada
pelos cinco continentes, fundada em 1875
pelo padre alemão Arnaldo Janssen.
6
Centro de Estudios Antropológicos
da Universidad Católica Nuestra Señora
de la Asunción (Assunção, Paraguai).
7
Os escritos do teólogo Francisco de
Vitória, bem como suas contribuições
para a teoria da “Guerra Justa”, são tidos
como pilares para a construção do direito
moderno internacional. A alusão feita por