Você está na página 1de 17
© Copyright, 1994. Mario M. Gonzilez Todos os direitos reservados & Editora Nova Alexandria Ltda. Rua Urano, 215 01529-010 — Sao Paulo ~ SP Caixa Postal 12.944 04010-970 — Sao Paulo — SP Fone/Fax: (011) 270-8627 Editor: Luiz Baggio Neto Capa: Juan José Balzi Revisdo: Carla C.C.S. de Mello Moreira Lourengo de Souza Barba Composigao: GHN Dados Internacionais de Catalogacio na Publicagao (CIP) (Camara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Gonzalez, Mario M. A saga do anti-heréi : estudo sobre 0 romance picaresco espanhol ¢ algumas de suas correspondéncias na literatura brasileira / Mario M. Gonzalez. — Sio Paulo :; Nova Alexandria, 1994. 1. Literatura brasileira 2. Literatura picaresca es- panhola — Critica e interpretagao 3. Romance espa nhol I. Titulo. If. Titulo: Estudo sobre 0 romance picaresco espanhol ¢ algumas de suas correspondéncias na literatura brasileira. 94-0968 CDD-863 indices para catalogo sistematico: 1. Romance picaresco espanhol : Literatura espanhola 863 MACUNAIMA A critica O malandro literdrio, que se faz presente em Memérias de um sargento de milicias, nado apenas seria elevado a cate- goria de simbolo — como acertadamente enuncia Antonio Candido' — em Macunaima de Mario de Andrade’. A partir de Macunaima‘e desse seu cardter simbdlico, ‘o malandro ganhard uma dimensao, nas suas diversas manifestagdes lite- rarias, que vai muito além do cardter de protagonista do romance de costumes com que nasce no século XIX. Em nosso entender, essa nova dimensao do malandro Ihe permite ser portador de sfnteses muito ricas que tém sua matriz na raps6dia marioandradina. Uma delas significa reunir em si mesmo as duas formas bdsicas da parédia do herdi classico modelar. Dessas, a que nos interessa prioritariamente aqui é a que coincide com a que os pfcaros cldssicos tragam na Espanha dos Austrias. A possibilidade dessa aproximacao j4 foi enunciada anteriormente por diversos criticos. O primeiro autor a assinalar a possivel relagio de Macunaima com a picaresca foi Joaquim Cardozo, em seu artigo “Macunafma” publicado na Folha Carioca. Nesse "Cf. “Dialética da malandragem (Caracterizagao das Memérias de um Sargento de Milicias)". (Revista do Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de Sao Paulo, Sa0 Paulo, 1970, n° 8), p. 71 ? Citaremos a obra, indicando as paginas entre parénteses, pela edigdo critica de Telé Porto Ancona Lopez: Macunaima o herdi sem nenhum cardter. Paris | Brasilia, Association Archives de la Littérature latino-americaine, des Caribes et africaine du XX¢ siecle { CNPq, 1988. 297 texto, apds apontar Macunaima como um simbolo numa €poca de poucos simbolos por falta da inventiva que existiu na Espanha do “século de ouro”, 0 autor considera que a obra ganha relevo se for lida no contexto dos “romances picarescos dessa grande época espanhola”, e cita La Celestina, Don Quijote e Marcos de Obregén. Deixamos de lado 0 fato de que essas citagdes significam um conceito muito eldstico e até errado de romance picaresco. Mas podemos fazer constar a referéncia ao género com base na Icitura de Macunaima, cujO protagonista o autor vé como uma mistura de Dom Quixote — na verdade a antftese do pfcaro — e Obregon — na verdade, quase que um bufao, j4 um pouco distante do modelo picaresco do ntcleo inicial. E 0 maior interesse para nés, nessas afirmagdes de Cardozo, reside no fato de que sua vinculagao intuitiva de Macunaima a esses dois opostos coincidiré com a nossa prépria leitura dessa personagem, como sintese das parédias do heréi cl4ssico. Um ano depois, outro critico, Florestan Fernandes, sera um pouco mais preciso. Em seu artigo “Mario de Andrade e o folclore brasileiro”, na Revista do Arquivo Municipal, diz explicitamente que Macunaima “é uma sfntese do folclore brasileiro levada a efeito na forma do romance picaresco”. Remete, assim, ndo apenas ao género picaresco, mas a suas origens no folclore e salienta a importancia do aspecto formal na relago que, como Icitor, estabelece. Vird depois a referéncia indireta, de Antonio Candido, no seu jd citado artigo “Dialética da malandragem”’. Como ja vimos, ap6s concluir que Leonardo “nao é um pfcaro safdo da tradigdo espanhola”, qualifica-o como “o primeiro grande malandro que entra na novelistica brasileira” e, continua, “malandro que seria elevado a categoria de simbolo por Mario de Andrade em Macunaima”. Por entendermos que o malandro literério brasileiro definido por Antonio Candido € a versio local do neopicaro, > Op. cit., pp. 67-89. 298 permitimo-nos considerar que podemos utilizar a afirmagao do conceituado critico e mestre para ndo apenas incluir Macunaima nessc tipo de personagens, mas colocé-lo — com base em seu valor simbélico — como um paradigma para os que virdo depois. E, de acordo com o ja dito com relagdo a Leonardo, fazemos isso sem que se deva entender que pretendamos filiar Macunaima a picaresca cldssica, como tampouco viamos raz6es para a filiagdo de Leonardo e de Memérias a esse género. Embora concisa, como 0 texto onde localizamos a afir- magao, ¢ importantissimo registrar a catalogagao do professor Alfredo Bosi*, que define Macunaima como “meio epopéia, meio novela picaresca”. Tal definigdo significa mais uma leitura de Macunaima que, em nosso entender, registra implicitamente o valor de sintese que a raps6dia de Mério de Andrade tem com relagdo ao heréi classico, nela degradado em dois sentidos opostos. O que a leitura de Bosi sugere ficara depois explicito na riquissima andlise que Gilda de Mello e Souza faz de Ma- cunaima no seu O tupi e o alatide. E, com base em alguns aspectos dessa andlise, vemos reforgada nossa hipdtese de ser possivel ler Macunaima a luz da picaresca*. No capitulo III do mencionado livro (pp. 73-105), a autora diz pretender demonstrar a respeito de Macunaima que “inde- pendentemente dos mascaramentos sucessivos que emprestam a narrativa um aspecto sclvagem, 0 seu niicleo permaneceu firmemente europeu” (p. 74). E levanta, em seguida, a hipé- tese de que “Macunaima pode filiar-se, sob certos aspectos, a “In Histéria concisa da literatura brasileira (Sao Paulo, Cultrix, 1970), p. 398. 5 Registre-se que — como conseqiiéncia de nossos cursos sobre i a picaresca — precedeu-nos nessa tarefa, sendo nossa orientanda de pos-graduagao, Heloisa Costa MILTON, autora de uma brilhante disser- taco de mestrado intitulada “Macunaima ¢ a picaresca espanhola”, ainda inédita. Nela, a autora assume um posicionamento ligeiramente diferente do nosso. * 299 uma remota tradigdo narrativa do Ocidente, 0 romance arturia- no” (p. 74). Mas constata que a esse sistema se sobrep6e outro, “ostensivo e contestador” que “aponta para a realidade nacio- nal” (pp. 74-75). Com isso, conclui a autora, “Macunaima representa sob muitos aspectos [...] uma retomada satfrica do romance de cavalaria” (p. 76). Depois, ela analisa como se processa, da Idade Média para a Renascenga, a deterioragao dos mitos da lenda arturiana no compasso da incorporagao da cultura popular apontada por Bakhtin. E, nessa camavalizagao, diz ela, € “que devemos inscrever Macunaima” (p. 79). A autora analisa depois, com muita pertinéncia, os elementos parédicos do romance arturiano presentes em Macunaima, mas convém desde j4 fazer notar que grande ni- mero dos tragos anticavaieirescos que ela aponta sao outros tantos tragos préprios dos picaros cléssicos. Assim, a fuga, © itinerdrio dificil, o labirinto, a falta de lugar e de tempo estdveis, a carnavalizagdo da nobreza e 0 cardter medroso, desleal, mentiroso, injusto, opressor dos fracos ¢ ganancioso do protagonista (pp. 80-88). Diz, depois, a autora: “Em resumo, Macunaima é, sob muitos aspectos, a carna- valizagao do heréi do romance de cavalaria. No entanto, ao contrario do que se poderia supor, isto nao permite identi- ficd-lo 4 figura mais perfeita do cavaleiro andante carnava- lizado, que € Dom Quixote. Em Cervantes, a carnavalizagao se efetua no sentido da hipertrofia das qualidades do cava- leiro, portanto, do exagero e da caricatura; mas o traco dis- tintivo da personagem continua sendo a coragem, que sé se torna ridicula devido ao desacordo grotesco que se estabe- lece entre o heroismo dispendido e a insignificancia dos obstaculos interpostos. Em Mario de Andrade, ao contrario, a carnavalizagdo deriva da atrofia do projeto cavaleiresco, da sua negagéo, da parédia: Macunaima € dominado pelo medo ¢ as suas fugas constantes est4o em desproporgao com a realidade dos perigos; ele é, por conseguinte, 0 avesso do Cavaleiro da Triste Figura, representando a carnavalizagao de uma carnavalizagao.” (p. 89) 300 A tltima frase da autora pode ser vista como um des- lize na sua teoria, de outra parte muito feliz. Porque dizer que Macunaima representa a camavalizagado da camavalizagdo do her6i classico que € Dom Quixote significa reduzir 0 heréi marioandradino e a raps6dia a uma parédia de segundo grau, © que nao parece estar nas frases anteriores do texto de Gilda de Mello e Souza, nas quais fica claro que cabe a possibi- lidade de duas formas de parédia do herdi classico. S6 que a autora se detém apenas em ilustrar uma delas; Dom Quixote. A outra forma de parédia € anterior a Don Quijote de Cervantes, como implicitamente o afirmar4 a autora logo depois, ao incluir Macunaima numa linhagem iniciada pelas personagens do romance picaresco: “Nesse sentido, seria mais acertado inscrevé-lo na longa li- nhagem dos perseguidos vitoriosos da ficgdo de todos os tempos — literdria ou cinematogrdfica — que abrange des- de as personagens do romance picaresco até as figuras cémicas do cinema.” (pp. 89-90). Essas personagens — Lézaro de Tormes, a primeira delas — significam claramente a atrofia das qualidades do heréi classico mediante um processo de carnavalizagao paralelo ao que realiza a hipertrofia das mesmas em Dom Quixote. E esses mecanismos atingem nao apenas os prota- gonistas mas também os demais constitutivos da novela de cavalaria: 0 projeto cavaleiresco se torna grotesco em Dom Quixote, ao ser colocado em contato com a dimensio histé- rica, ausente das novelas de cavalaria, o que faz reluzir seu anacronismo; por sua vez, na picaresca, esse projeto dos cavaleiros seré reduzido a uma tentativa de ascensdo social que comega pelo atendimento da necessidade primd4ria de matar a fome. Os dois, pfcaro e Dom Quixote, conservam a coragem do cavaleiro, s6 que, se no her6i cervantino esta aparece como a coragem pela coragem (Iembre-se 0 episédio dos ledes, por exemplo), no picaro a coragem nao é mais que 301 Macunaima e a picaresca As coincidéncias de Macunaima com a picaresca classica sdo varias. Mas 0 texto implica igualmente a transgressdo de outras caracte: as do género — além da incorporagdo da utopia quixotesca — que nos permitem entender, como uma das dimens6es da rapsédia, scu carater de matriz de uma neopicaresca brasileira. Em primciro lugar, e acima do género picaresco como tal, deve-se considerar 0, fato de Macunaima se inscrever no Ambito da literatura carnavalizada, segundo 0 conhecido con- ceito de Mikhail Bakhtin’. Nao pretendemos discutir 0 assunto aqui. Os interessados podem ver a tese de doutoramento de Suzana Camargo, Macunaima, ruptura e tradigdo, que estuda satisfatoriamente esse aspecto. Tampouco € 0 nosso propésito debater aqui o fato de que a caravalizac¢ao passa claramente pelo romance picaresco®. Mas cabe ao menos mencionar que 0 préprio Bakhtin se refere especificamente ao assunto: “Le roman picaresque peignait la vie en dehors de la routine légalisée, pour ainsi dire, il ‘détronisait’ toutes les situations hiérarchiques, jouait avec elles, multipliait les transformations soudaines, les changements, les mystifications, et percevait Punivers représenté au niveau du contact familier.” (p. 212)° 7 Cf. Bakhtin, Mikhail: La poétique de Dostoievski (Traduit du russe par Isabelle Kolitcheff. Paris, Du Seuil, 1970). * Outros autores, como Edmond Cros em L'aristocrate et le carnaval des gueux (Montpellicr, Univ. Paul Valéry, 1975), ja aponta- ram os tragos da carnavalizagao presentes no romance picaresco, aspecto que ganha particular relevancia em El Buscén de Quevedo. *“O romance picaresco retratava a vida desviada do seu curso comum e, por assim dizer, legitimado, ‘destronava’ as pessoas de todas as suas posig6es hicrdrquicas, jogava com essas posigées, era impregnado de bruscas mudangas, ransformagoes mistificagées, interpretava todo 0 mundo representavel no campo do contato familiar.” (Tradugao do russo de Paulo Bezerra, in BAKHTIN, Mikhail: Problemas da poética de Dostoiévski (Rio de Janeiro, Forense-Universitaria, 1981), p. 137). 304 Os textos picarescos que precedem 0 género como tal — como 0 Satiricon e O asno de ouro — j4 podem ser vistos como exemplo de literatura carnavalizada. Quando se cons- titui como género, a picaresca 0 faz exatamente absorvendo, desde 0 Lazarillo, a cosmoy da Idade Média e inaugurando a carnavalisation profonde et presque complete de tout le domaine des belles-lettres de que fala Bakhtin?®, ocorrida no Renascimento. Cabe apontar aqui que a carnavalizagao direta da litera- tura, isto 6, por causa da presenga do carnaval como une forme de | existence elle-méme dura, segundo Bakhtin, jusqu’a la seconde moitié du XVII’™ siécle!', Ou seja, o fim do fendmeno coincidiria com o fim do que nés chamamos de “expansao classica espanhola” da picaresca. A partir dessa data, diz Bakhtin: “le carnaval cesse presque entitrement d’étre une source immédiate de carnavalisation, cédant ce rdle a la littérature précédemment carnavalisée.” (p. 180)!? Na picaresca, temos que, a partir da segunda metade do século XVII, surge 0 que nés chamamos de “picaresca euro- péia”, escrita sob a influéncia do género espanhol ¢ na qual a carnavalizagdo j4 € indireta, salvo casos, talvez, como Sumplicissimus, de Grimmerlshausen, de 1669, que Bakhtin considera como carnavalizagao direta, embora se saiba que 0 mesmo € uma conseqiiéncia da penetragdo da picaresca espanhola. © Op. cit., p. 178. "Op. cit., p. 180, = "O carnaval deixa quase totalmente de ser fonte imediata de carnavalizagao, cedendo lugar & influéncia da literatura jé anteriormen- te camavalizada.” (Tradugao do russo de Paulo Bezerra, in BAKHTIN, Mikhail, op. cit., p. 113). 305 E sintomatico que, quando venha a poder ser apontado o Tenascer de um género tipicamente carnavalizado, como a picaresca, isso ocorra num contexto social, o Brasil, onde 0 carnaval € parte importantissima da organizagao social, nado tanto pelo fato de as festas carnavalescas significarem um even- to de maxima relevancia no calend4rio nacional, mas porque, entendemos, pode-se aplicar 4 nossa sociedade aquilo que Bakhtin diz acontecer na Idade Média, isto €, 0 fato deo homem levar duas vidas: uma oficial ¢ outra piblico-carnavalesca". A picaresca ressurge, em Macunaima, nio por tradic¢éo literdria, mas, dentre outras razGes, por um processo de car- navalizacgdo da literatura semelhante aquele acontecido na Europa no fim da Idade Média. E, em fungao disso, a rap- s6dia repete — atualizados — certos tragos tipicos do romance picaresco, assim como transgride outros. O subtitulo genérico escolhido por Mario de Andrade para sua obra — “rapsédia” — € 0 primciro ponto em que cabe estabelecer uma analogia com os romances picarescos, espe- cialmente em relagdo ao primeiro deles, Lazarillo de Tormes'*. O sentido em que 0 termo deve ser aplicado a Macunaima foi estudado por Gilda de Mello ¢ Souza, em scu livro ja men- cionado. Gostarfamos de salientar que, j4 no Lazarillo, temos os dois elementos basicos da rapsédia: um estrutural, Ou Seja, a composigao por um procedimento de “suite” musical; outro cultural, ou seja, a origem popular das narrativas integradas no texto maior. Em segundo lugar, temos que a raps6dia Macunaima & parddica, como 0 romance picaresco, e ndo apenas da longinqua ® Op. cit., p. 178. * E muito importante levar em conta que o termo “rapsédia” nao. seria excludente para Mario de Andrade, mas talvez uma sintese capaz de incorporar outras duas designagdes: a primeira, “romance popular utilizada ao anunciar a obra, em 1928; a segunda, “pocma herdi-comico”, atribufda ao texto anos depois, em 1935. Veja-se, a respeito, Tele Porto Ancona Lopez, op. cit., p. 9, onde a autora sustenta que Macunaima é a fusio das wés categorias. 306 novela de cavalaria e do seu heréi modelar, como acima constatamos, mas também do mais proximo indianismo roman- tico. Por outro lado, se 0 picaro € 0 contraponto do “homem de bem”, Macunaima, especialmente na cidade grande, € 0 desvio da burguesia emergente, possivel equivalente atual daquele tipo social. Na picaresca classica, 0 protagonista se vé na contin- géncia de ter de mudar freqiientemente de aparéncia como meio para se livrar das conseqiiéncias da trapaga ou para perpetrar outras novas. Semelhante cardter protéico € perma- nente em Macunafma, cujas constantes mudangas 0 levam de crianga indigena a constelagao celeste. Vinculado ao cardter protéico da personagem, temos o seu carter itinerante, permanente nos pfcaros eem Macunafma. Mais ainda, em ambos os casos, as mudangas de lugar decor- rem muitas vezes da necessidade de fugir para se salvar. Cardter protéico e itinerancia se juntam ao fingimento permanente dos picaros e do “heréi”, fingimento que leva ambos a serem ficgdo dentro de ficgdes, até o ponto de poderem ser considerados quase que como uma pura repre- sentagdo, cuja identidad Por outro lado, Macunaima parece ter a astticia como seu principal atributo, mas, como no caso do picaro, ela nao salva a personagem de acabar como vitima mais de uma vez. Em sintese, quanto ao protagonista, temos que ambos,” picaro e Macunaima, podem ser definidos como um astuto ¢ protéico ser itinerante, permanentemente fugitivo e fingidor. Mas também no decorrer da histéria de um ¢ outro ha analogias: na origem, na partida, no projeto e no choque com a sociedade urbana. Assim, temos que, se 0 picaro degrada suas origens, desqualificando os préprios pais, Macunaima nasce de um processo que € clara pardédia do mito da partenogénese'®. E se Cf. Campos, Haroldo de: Morfologia do Macunaima (Sio Paulo, Perspectiva), p. 107. 307 ° picaro renega a fam/{lia ¢ parte em busca de novos horizontes, Muito disso est4 simbolizado no fato de Macunafma matar a viada parida que se descobre ser sua propria mae. Por outro lado, temos que os pfcaros cléssicos partem com um projeto de ascensdo social como tnico roteiro. Em Macunaima, a procura da muiraquita e a obtengao, com ela, do poder, cumpre fungdo equivalente'®. Ao longo do itinerério, tanto Macunafma quanto os picaros sdo permanentes violadores de cédigos. Isso signifi- cara 0 choque com a sociedade, que se intensifica quando os picaros — ou Macunafma — chegam a cidade grande. Af teré origem a mais intensa sdtira social, que, em’ Macunaima, se inicia com a atitude do protagonista de se dirigir 4 foz do rio Negro para deixar sua consciéncia na ilha de Marapaté, antes de partir para Sao Paulo (36)!’, e culmina na transforma¢ao final da cidade de Sio Paulo “num bicho preguiga, todinho de pedra” (137). E ser4 na parte da narrativa centrada em Sido Paulo — ao longo de dez dos dezessete capftulos da obra — que as acoes de Macunafma mais nos lembrardo 0 romance picares- co, possivelmente pelo fato de vé-lo se chocar — armado apenas de sua astiicia — com a sociedade hostil, ¢ pela sdtira social que desse enfrentamento se origina, como acontece na picaresca cl4ssica. No caso de Macunafma, a dentncia da sociedade industrial e de consumo produz as melhores pé- ginas, particularmente quando o protagonista assume a 16 muiraquitd encarna também o simbolismo de um projeto so- cial alternativo — de carater quixotesco — de Macunaima. "” Heloisa Costa Milton, em sua dissertagao de mestrado antes mencionada (pp. 89-91) constata que essa atitude de Macunaima tem um precedente em Guzmdn de Alfarache (1*, III, 5). Por sua vez, Galvez, 6 protagonista de Galvez imperador do Acre, de Marcio Souza — con- forme analisa Rubia Prates Goldoni, em sua dissertagdo de mestrado “Galvez, © picaro nos trépicos”, pp. 110-111 —, adotaré uma atitude equivalente, porém oposta: nio se despoja da consciéncia antes da partida. 308 narragao, ao modo dos picaros mais tradicionais, na “Carta prés icamiabas” (Cap. IX, pp. 72-85). Mas a sdtira social est4, sem divida, na totalidade do texto. Para comprovar isso ser4 necessdrio, mais abaixo, determo-nos no desenlace da raps6dia. Até aqui terfamos algumas analogias de Macunaima com a picaresca. Mas € na transgressao do género que encontra- mos a afirmagdo da raps6dia como texto recriador da formu- la classica, sendo que a prépria transgressao j4 identifica a obra de Mario de Andrade com 0 processo préprio da histé- ria da picaresca. Essa transgressdo se inicia, como j4 vimos, com a in- corporagao da utopia quixotesca paralelamente ao projeto picaresco. Convém salientar, mais uma vez, que isso equi- vale a anular — na recriagio do género — a barreira mar- cada por diversos criticos entre 0 romance cervantino e a picaresca cldssica. Mas nao € esta a tinica sintese de contrarios que se pro- cessa em Macunaima: a picaresca classica se ap6ia na oposi- ¢4o do bem e do mal como entidades irreconciliéveis, mesmo que a picaresca sirva para denunciar que um e outro podem ser reduzidos a meras aparéncias. Macunaima supera esse dua- lismo como transposi¢ao da inexisténcia do mesmo nos contos indigenas americanos, segundo aponta Haroldo de Campos'*. Macunaima € 0 grande astuto, acima do bem e do mal. J4 no nfvel do discurso, outro trago tido muitas vezes como essencial na picaresca, ora superado, € 0 da autobiografia. A maioria dos criticos faz da forma autobiogrfica o primeiro trago caracterizador do género. J4 manifestamos entender que isso 6 vdlido para o que chamamos de micleo da picaresca classica, quando a forma autobiografica nasce como inovagao contestadora da onisciéncia do narrador da novela idealista da época. Na impossibilidade de encontrar um historiador para Op. cit., pp. 113-114. 309 | | j ' | contar suas ingl6rias travessias, o anti-heréi narra a si mesmo. E também porque ele é, antes que protagonista narrado do inverossimil, testemunha narradora da quotidianeidade. Mas, logo mais, e dentro do préprio micleo, a forma autobiogréfica iria perdendo consisténcia e ganhando artificiosidade, como em El Buscén. Depois, jf na expansio imediata desse nticleo, € possfvel encontrar a transgressdo da narrativa de primeira pessoa em obras secularmente catalogadas como picarescas. S possiveis, depois, outras f6rmulas narrativas que stituam a de primeira pessoa, como aquela que, sendo de terceira, mantém oO ponto de vista no protagonista. Macunaima, por sua vez, € um exemplo interessantissimo dessa transformagdo evolutiva do discurso picaresco. No capitulo XVII da rapsédia, encontramos que o protagonista ensina um papagaio a “repetir na fala da tribo os casos que tinham sucedido pro heréi desde infancia” (158). Depois, no Epilogo, temos que o papagaio conta a historia de Macunafma para o narrador da rapsddia, o qual transcreve “na fala impura as frases e os casos de Macunafma” (168). Isto é, o narrador herda 0 discours de Macunaima e 0 reproduz no seu récit, 0 que leva a uma superposigao da mimese a diégese, conforme a terminologia de Gérard Genette'®. Ou seja, além de 0 ponto de vista ser quase que permanentemente 0 do “herdéi”, € a perso- nagem quem empresta seu discurso ao narrador, e nio o contrario, como costuma acontecer no género romance. Em conseqiiéncia, temos que 0 artificio do narrador de primeira pessoa fica substitufdo por outro equivalente, porém renovador e compatfvel com a transformagao da linguagem narrativa”®. ¥ Cf. “Fronti¢res du récit” in Communications, 8, 1966, pp. 152- 163. 2 Voja-se a pertinente andlise que desse processo faz Encida Maria de Souza em seu livro A pedra magica do discurso — Jogo e lingua- gem em Macunaima (Belo Horizonte, UFMG, 1988), pp. 120-121. A autora também faz uma aproximagao pontual da repsédia de Mario de Andrade com o Lazarillo de Tormes, as pp. 77-80 do mesmo livro. 310 Outro trago da picaresca classica que vemos renovado em Macunaima € a tendéncia, naquela, 4 concatenagdo do discurso, como produto da linearidade da série de aventuras. Para 0 pfcaro classico nao cabem grandes digress6es quanto a acdo. J4 na rapsédia marioandradina, embora se complete 0 cfreulo tipico da picaresca classica, hd varios momentos em que o “herdi”, de acordo com sua falta de cardter, perde de vista 0 projeto maior ¢ introduz deslocamentos laterais sem objetivo claro ou com objetivos apenas imediatos, dando origem, assim, a aventuras marginais a historia principal. Isso coincide com a relatividade que as dimensdes de tempo. ¢ espago tém na rapsédia, oriundas do fato de esta assumir 0 universo magico dos mitos, contra a rigidez cro- noldgica ¢. especialmente geografica da picaresca.classica. Finalmente, temos que, como conseqiiéncia deste dlti- mo trago, Macunaima supera a narrag4o de corte “realista”, propria da picaresca classica. Tanto as leis espaciais ou temporais quanto a causalidade obedecem a légica prépria dos mitos. Assim sendo, a linguagem meramente referencial toma- se insuficiente para esse universo magico e Mario de Andrade deve valer-se da totalidade da linguagem. De acordo com Coseriu*!, entendemos que essa dimensao total da linguagem nao € sendo a poesia. Macunaima 6, pois, um texto poético no sentido mais amplo do termo, dimensio que subjaz em relagdo aos diversos estilos apontados no texto”. No que diz respeito ao protagonista, Macunafma supera 0 pfcaro cléssico naquilo que Antonio Candido diz de Leonardo e do malandro literdrio brasileiro em geral, ou seja, na pratica da: 21.Cf, “Tesis sobre el tema ‘lenguaje y poesia" in El hombre y su lenguaje (Madri, Gredos, 1977), pp. 201-207. ® Cf, Bosi, Alfredo: op. cit., p. 397. 3il “astiicia pela astticia (mesmo quando ela tem por finalidade safa-lo de uma enrascada), manifestando um amor pelo jogo- em-si que 0 afasta do pragmatismo dos picaros, cuja malan- dragem visa quase sempre ao proveito ou a um problema con- creto, lesando freqiientemente terceiros na sua solugdo.” Esse tipo de asticia, segundo Candido, parece ser mais proprio de herdis populares que de modelos eruditos. Nessa linha, Macunafma possui um grau de criatividade nem sem- pre atingido pelo pfcaro. ‘ No mesmo sentido, Macunafma-nio se limita a comici- dade prépria da picaresca cldssica. A superacdo, nesse caso, - est4 na incorporagdo do humor, esse recurso préprio da modemidade que Schopenhauer define como ironia ao con- trario, ou seja, a arte de se ocultar, por trds da burla, algo de profundamente sério™*. Obviamente, Macunaima est4 longe de Ser a obra apenas de divertimento que, as vezes, seria pos- sivel ver em alguns romances picarescos cldssicos, mesmo em El Buscén, segundo criticos como Lazaro Carreter’s, A flexibilidade propria do humor decorre da quebra, em Macunaima, do maniquefsmo, e é t{pica do malandro liter4- rio ou neopfcaro brasileiro. Outra inovagdo macunafmica encontra-se no terreno do erotismo. O pfcaro classico padece normalmente de uma auto- Tepressdo sexual, prépria de seu contexto histérico, que evo- lui para a misoginia ou, a0 menos nas obras do nicleo, para formas implicitas ou explicitas do proxenetismo sustentador do mais tradicional machismo. Na Picaresca cldssica, eros equivale a coisificagdo utilitaria da mulher, transformada em Op. cit., p. 71. * Apud Hauser, Arnold: Ori modernos. I. El manierismo, Guadarrama), p. 317. 25 Cf. Lazaro Carreter, Fernando: “ Studia Philologica, (Madri, Gredos, 19 igen de la literatura y del arte crisis del Renacimiento (Madri, La originalidad del Buscén” in 160-1963), II, pp. 319-338, 312 rrr rrr mais um objeto adequado aos fins pragmdticos do pfcaro. Quanto a Macunaima, € desnecessfrio fazer referéncia ao erotismo onipresente e que se coaduna com os tragos reno- vadores do protagonista até aqui apontados. Finalmente, na mesma linha, temos que os pfcaros clas- sicos do nucleo evoluem do mogo de cego, passando por diversos subempregos — o de criado, especialmente — até a relativa autonomia do delingiiente. Em tiltima instancia, em todos eles predomina a rejei¢ao ao trabalho, haja vista que cle de nada serve como mecanismo de ascensio social. Macunafma leva isso mais longe e proclama 0 6cio como principio. Scu ja classico “ai, que preguica!”, longe de ser apenas um trago negativo, significa a colocagdo das bases de um tipo de organizacao social — uma “utopia” aos olhos de colonizadores ¢ colonizados — que fejeita a sociedade indus- trial. Macunaima chocaré com essa sociedade e ser4 por cla destrufdo; mas est4 claro que se opde aos seus mecanismos coisificadores — homens-méquinas e méquinas-homens — e desrespeita a toda hora suas escalas de valores e hierarquias. Simbolicamente, como j4 lembramos, ao abandonar Sio Paulo, ele se vinga, transformando a cidade num bicho-pre- guiga de pedra. Tudo isso constitui, em nosso entender, um projeto politico alternativo do herdi, que € a base de sua outra di- mensao, a quixotesca, ¢ que inexiste nos pfcaros classicos; estes, a priori, aparecem como vitimas, antes de mais nada, do poder alienante das instituigdes, contra as quais nada tentam além do plano individual. Conclusao Em sintese, a leitura de Macunaima a luz da picaresca ndo apenas € possfvel mas também permite levar a obra de Mario de Andrade a dimensdes e relagdes talvez insuspei- tadas pelo autor, mas legftimas como elaboragdo decorrente 313 do nosso papel de Ieitores. E essa leitura serve ndo para “tiliar” Macunaima a picaresca, mas para sentir que, se 0 género classico revive na raps6dia, haver4 razdes que, no contexto hist6rico, expliquem a reapari¢ado. Os tragos neopicarescos de Macunaima ganham impor- tncia quando vemos que © terceiro-mundismo dessa obra ecoa numa série de romances claramente neopicares ‘OS que surgiram no Brasil dos nossos dias. E que surgem quando o esvaziamento de um “milagre brasileiro” criou condigdes sociats que intuimos como equivalentes aquelas dos séculos XVI ¢ XVII, no murchar do “milagre espanhol” da época. Entao e agora, os marginais vitimados pclo processo de concentragao de riquezas nao teriam outra op¢do para sobre- viver a nao ser a de subir mediante 0 pulo astuto e anti- herdico do picaro. Em Macunaima, como em muitos desses romances que consideraremos a seguir, retoma-se 0 funda- mental do género: um anti-herdi, socialmente marginalizado, protagoniza uma série de aventuras dentro de certo projeto pessoal; por meio delas, a sociedade — e particularmente seus mecanismos de ascensdo social — sao satiricamente denun- ciados, j4 que a trapaga continua a ser 0 caminho para evitar ser aniquilado e poder “subir”. A grande novidade, sem duvida, estaré na incorporagdo, em todas as hist6rias desses novos picaros, de uma ou de outra maneira, de um projeto social alternalivo, mesmo que estes pfcaros-quixotes acabem derrotados como Macunaima. Este, contagiado pela ideolo- gia da cidade grande, € incapaz de assumir sua rejeigdo aos valores do colonizador, Assim, une-se a uma portuguesa ofende Vei, 0 Sol e, por isso, ser4 destrufdo quando, ao se jogar sobre uma Uiara europeizada, deparar-se com a reali- dade nacional das piranhas. A posterior transformagdo de Macunaima em constelagao celeste tem um sentido prolon- gador do mito: ele vira a Ursa Maior, que inclui a Estrela Polar, a luz que guia. E, de sua sintese de pfcaro e quixote, nasce 0 rumo da utopia possivel para todos nos. 314

Você também pode gostar