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Segunda parte Racismo e cultura’ ee ‘Texto da intervenglo de Frantz Fanon no 1.° Congreso dos Escritores. Sil uae Negros aco Pacis, ax Secenben de 2936, Publiendo ao ateiens pe . ial de Présence Africaine, de Junho-Novembro de 1936, I Be ee A reflexio sobre o valor normativo de certas culturas, decte- tado unilateralmente, merece que lhe prestemos atengio. Um dos paradoxos que mais rapidamente encontramos é 0 efeito de ricochete de definigSes egocentristas, sociocentristas. Em primeiro lugar, afirma-se a existéncia de grupos huma- nos sem cultura; depois, a_existéncia de_culturas_hierarquiza- das; por fim, a nogio da relatividade cultural. Da negagio global passa-se ao reconhecimento singular ¢ especifico. E precisamente esta histéria esquartejada e san- grenta que nos falta esbogar ao nivel da antropologia cultural. Podemos dizer que existem certas constelagdes de insti- tuigées, vividas por homens determinados, no quadro de areas geograficas precisas que num dado momento sofreram o assalto directo e brutal de esquemas culturais diferentes. O desenvol- vimento técnico, geralmente elevado, do grupo social assim aparecido autotiza-o a instalar uma dominagio organizada. O empteendimento da desculturagio apresenta-se como 0 negativo de um trabalho, mais gigantesco, de escravizagdo econémica e mesmo bioldgica. A doutrina da hierarquia cultural nfo 6, pois, mais do que uma modalidade da hierarquizagio sistematizada, pros- seguida de maneira implacével. A moderna teoria da auséncia de integracio cortical dos povos coloniais é a sua vertente andtomo-fisiolégica. Oo surgi- mento do racismo nao é fundamentalmente determinante. O tacismo nio é um todo, mas_o elemento mais vistyel, mais quotidiano, para dizermos tudo, em_certos_momentos,—mals Btosseiro de uma estrutura dada. rr \| \ W RM DE DA RRVOLUGAO AFRICANA Estudar as relagdes entre o racismo ¢ a cultura é levantar glo reefproca, Se a cultura & 0 conjunto dos motores ¢ mer ascido do encontro do ecomo seu semelhante, deyemos dizer de divida um elemento cultural. a quesnio da su comportamentos homem com a gue o ricismo & sem sombr t Assim, hii culturas com racismo ¢ culturas sem racismo. Contudo, este elemento cultural preciso nao se enquistou. O_ncismo nio pode esclerosar-se. "Teye de se renovar, dese matizar, de mudar de fisionomia. ‘Teve de sofrer_a_sorte.do conjunto cultural que o informavs Como as Escritums se revelaram insuficientes, o tacismo vulgar, primitivo, simplista, pretendia encontrar no biolégico a base material da doutrina. Seria fastidioso lembrar os esfor- gos empreendidos nessa altura: forma comparada do crinio, quantidade ¢ configurigio dos sulcos do encéfalo, caracterfs- ticas das camadas celulares do cértex, dimensdes das vértebras, aspecto microscdpico da epiderme, etc. O primitivismo intelectual ¢ emocional aparecia como uma consequéncia banal, um reconhecimento de existéncia. Tais aficmagdes, brutais e macigas, dio lugar a uma_argu- meatigio mais fina, Contudo, aqui ¢ ali vém ao de cima algu- mas ressurgéncias. assim que a «labilidade emocional do Negro», «a integragio subcortical do Arabe», «a culpabili- dade quase genérica do Judeu», sfio dados que se encontram em alguns escritores contemporineos. Por exemplo, a mono- grafia de J. Carothers, patrocinada pela OMS, exibe, a partir de «argumentos cientfficos», uma lobotomia fisiolégica do Negro de Africa. Estas_posigdes sequelares tendem, no entanto, a desapz recer. Este racis mo que se pretende racional, individual, deter- minado, genotipico e fenotipico, transforma-se_em_racismo cultural. O_objecto do mcismo_j4 nio é.o homem particular, mas uma certa forma de existir. No limite, fala-se de mensagem, de estilo caltural, Qs «valores ocidentais» reunem-se singular- eeate ae aria apelo a lata da «cruz Contra o crescenten.. . a equacio morfoldgica niio desapareceu com- atu een ~~ RACISMO E CULTURA 37 pletamente, mas OS acontecimentos dos ultimos trinta anos aba- vam as convicgoes mais firmes, subverteram o tabuleiro de as i reestruturaram um grande nimero de relagdes. * A Jembranga do eatin a_misétia comum de homens. diferentes, 2 escravizagio comum de grupos sociais impor-| tantes, 0 surgimento de «colénias europeias», quer dizer, a instituigio de/um tegime colonial em plena Europa} a tomada de consciéncia dos trabalhadores dos paises colonizadores e racistas, 2 evolugio das técnicas, tudo isto alterou profunda- mente o aspecto do problema. Temos de procurar, ao nivel da cultura, as consequéncias deste racismo. O racismo, vimo-lo, nio é mais do que um elemento de um conjunto mais vasto: a opressao sistematizada de um povo. Como se comporta um povo que oprime? Aqui, encontram-se constantes. Assiste-se a destruigio dos valores culturais, das modali- | dades de existéncia. A linguagem, o vestudtio, as técnicas sio desvalorizados. Como dar conta desta constante? Os psicd- logos que tém tendéncia para tudo explicar por movimentos da alma pretendem encontrar este comportamento ao nivel dos contactos entre particulares: critica de um chapéu original, de uma maneira de falar, de andar... Semelhantes tentativas ignoram voluntariamente o cardc- ter incompardvel da situagio colonial. Na realidade, as nagdes que empreendem uma guerra colonial nao se preocupam com © confronto das culturas. A guerra é um negdécio comercial gigantesco e toda a perspectiva deve ter isto em conta. A pri- meira necessidade 6 a esctavizagio, no sentido mais rigoroso, da populagio autéctone. Para isso, é preciso destruir os seus sistemas de referéncia. A expropriagio, o despojamento, a razia, 0 assassinio objectivo, desdobram-se numa pilhagem dos esquemas culturais ou, pelo menos, condicionam essa pilhagem. O panorama social € desestruturado, os valores ridicularizados, esmagados, esva- ziados. “canga da opre: EM DEFESA DA REVOLUGAO AFRICANA 38 as linhas de forga j4 no ordenam. Frente a elas, um novo conjunto, imposto, eee mas afir- mado, com todo o seu peso de canhées ede sabres. No entanto, a_implantasao do regime colonial nio_traz consigo.a morte da cultura autdctone. Pelo caer a obser- vagio histérica diz-nos que o objectivo procutado ¢ mals uma agonia continuada do que um desaparecimento total cul- tura preexistente. Esta cultura, outrora viva € aberta ao futuro, fecha-se, aprisionada_no estatuto colonial, estrangulada pela jo. Presente ¢ simultaneamente mumificada, depde contra os seus membros. Com efeito, define-os sem apelo. A mumificagio cultural leva a uma mumificagao do pensamento individual. A apatia tio universalmente apontada dos povos coloniais nao é mais do que a consequéncia légica desta operagio. A acusagio de inércia que constantemente se faz. ao «indigena» € o cimulo da mi-fé. Como se fosse possivel que um homem evoluisse de modo diferente que nfo no qua- dro de uma cultura que o reconhece e que ele decide assumir. Bassim que se assiste 4 implantagdo do organismos arcaicos, inertes, que funcionam sob a vigilancia do opressor e decalca- dos caricaturalmente sobre instituigdes outrora fecundas Estes organismos traduzem aparentemente o respeito pela tradigio, pelas especificidades culturais, pela personalidade do povo esctavizado. Este pseudo-respeito identifica-se, com efeito, com o desprezo mais consequente, com o sadismo mais elabo- tado. A caracteristica de uma cultura é ser aberta, percorrida por linhas de forga espontineas, generosas, fecundas. A insta- lagio de «homens seguros» encatregados de executar certos gestos é uma mistificagio que nfo engana ninguém. E assim oe pee toma nomeadas pelas autoridades francesas pelos autéctones. Sio dobradas por uma outta diemaa eleita democraticamente. E naturalmente a segunda dita a maior parte das vezes a sua conduta & primeira. cultura ees constantemente afirmada de «respeitar a ® Populagdes autéctones» nao significa, portanto, que se consi s ‘Onsidetem os valores veiculados pela cultura, encarnados Desmoronadas, RACISMO E CULTURA 39 pelos homens. Bem depressa se adivinha, antes, nesta tentativa uma vontade de objectivar, de encaixar, de aprisionar, de enquis- tar. Frases como: «eu conhego-os», «eles so assim», traduzem esta objectivagio levada ao maximo. Assim, conhego os ges- tos, OS pensamentos, que definem estes homens. O exotismo é uma das formas desta simplificagio. Partindo ¢ dai, nenhuma confrontagio cultural pode existir. Por um lado, h4 uma cultura & qual se reconhecem qualidades de dinamismo, de desenvolvimento, de profundidade. Uma cultura em movi- mento, em perpétua renovacio. Frente a esta, encontram-se catacteristicas, curiosidades, coisas, nunca uma estrutura. Assim, numa primeira fase, o ocupante instala a sua domi- nagiio, afirma macicamente a sua superioridade. O grupo social, subjugado militar ¢ economicamente, é desumanizado segundo ut limensional a | método_polid Exploragao, torturas, razias, racismo, liquidagdes colecti- vas, optessio tacional, revezam-se a niveis diferentes pata faze- rem, literalmente, do autéctone um objecto nas mios da nagéo ocupante. Este homem objecto, sem meios de existir, sem razio de ser, é destruido no mais profundo da sua existéncia. O desejo de viver, de continuar, torna-se cada vez mais indeciso, cada vez mais fantasmatico. E neste estddio que aparece o famoso completo de culpabilidade. Wright dedica-lhe nos seus primei- tos romances uma descrigio muito pormenorizada. Contudo, progressivamente, a evolugio das técnicas de produgio, a industrializagao, alids limitada, dos pafses escravi- zados, a existéncia cada vez mais necessaria de colaboradores, impdem ao ocupante uma nova atitude. A complexidade dos) meios de produgio, a evolugio das relagdes econdmicas,-que, | quer se queira quer nao, attasta consigo a das ideologias, dese- | quilibram o sistema. Q_sacismo vulgar na sua forma biolégica cotresponde ao _periodo _exploragio brutal dos bracos ¢ das _pernas do homem, A_perfeigéo—dos -meios—de. produgio | ptovoca fatalmente a _camuflagem. das_técnicas.de_exploragio’ do homem, logo das formas do racismo. 2Tinee & 40 EM DEFESA DA REVOLUGAO AFRICANA Nio é, pois, 2a sequéncia de uma ou dos espisitos que o racismo perde a sua viruléncia. N ama Erol 0 interior explica esta obrigagéo de o racismo * mat > evoluir. Por toda a parte ha homens que se libertam 7 Jando a letargia a que a opressdo ¢ 0 racismo os tinham conde- nado. _ Em pleno coragio das «nagées civilizadoras», os trabalha- sao do homem, base dores descobrem finalmente que 2 explora lo} | de um sistema, toma diversos rostos. Neste est4dio, o racismo j4 ndo ousa mostrar-se sem disfarces. Contesta-se. Num nimero cada vez maior de circunstancias, 0 racista esconde-se. Aguele que_pretendia «senti-los», «adivinhé-los», descobre-se_visado, olhado, julgado. O projecto_do racista_é entéo um _projecto perseguido pela mé_consciéncia. A salvagio sé pode vir-lhe de um empenhamento passional tal como se encontra em certas psicoses. E nfo é um dos menores méritos do professor Baruk © ter precisado a semiologia desses delitios passionais. O racismo nunca é um elemento acrescentado descoberto ao sabor de uma investigagio no seio dos dados culturais de um grupo. A constelagdo social, o conjunto cultural, sio pro- fundamente remodelados pela existéncia do racismo. } Diz-se correntemente que o racismo é uma chaga da huma- nidade. Mas é preciso que nao nos contentemos com essa frase. E preciso procurar incansavelmente as repercussdes do racismo em todos os nfveis de sociabilidade. A importancia do problema racista na literatura americana contempordnea € significativa. o negro no cinema, o negro ¢ 0 folclore, o judeu e as histé- tias para criancas, o judeu no café, sio temas inesgotaveis. Para voltar 4 América, o racismo obceca e vicia a cultura americana. E esta gangrena dialéctica € exacerbada pela tomada de consciéncia e pela vontade de luta de milhdes de negros € de judeus visados por esse racismo. Esta fase passional, irracional, sem justificagdo, apresenta linrapi, em cars pares dov Mundo de homes anecoe mente fener partes do Mundo de homens anterior 8s, tornam cada vez mais precdrio o equili- RACISMO E CULTURA AL prio. Bastante inespetadamente, 0 grupo racista denuncia ok ‘mento de um racismo nos homens oprimidos. O «pti aparecl a fs iP fjvismo_intelecte » do_periodo de exploragio-dé lugar ¢_20 eanatismo medieval, ov. mesmo_pré-histéticon, .do periodo de «fanatismo_m¢ lberagio. “A dada altura tinha sido possivel acreditar no desapareci- racismo. Esta impressio euforizante, 4 margem. do real era simplesmente a consequéncia da evolugio das formas de exploragao. Os psicdlogos falam entéo de um preconceito tornado inconsciente. A verdade € que 0 rigor do sistema torna supérflua a afirmagio quotidiana de uma superioridade. ‘A necessidade de apelar em graus diferentes 2 adesfo, 2 cola- boragio do autéctone, modifica as relagdes num sentido menos brutal, mais cambiado, mais «cultivado». Alids, nfo € rato vet surgir neste estadio uma ideologia «democratica ¢ humana». O empreendimento comercial de escravizagao, de destruigio cultural, cede progressivamente 0 passo @ uma mistificagio verbal. Oi como tema de meditagio. algumas vezes até como técnica publicitaria. ; E assim que o(biued «lamento dos escravos negros», é apresentado 2 admiragio dos opressores. B_um_pouco_de optessio o _estilizad: tada_ao explorador_e—ao~racista. Sem optessao € sem racis smo nao haveria blues. O fim do tacismo seria o toque de finados da grande miisica negra... Como diria o demasiado célebre Toynbee, 0 bives é uma resposta do esctavo ao desafio da opressio. ae actualmente, para muitos homens, mesmo de cor, a musica de Armstrong sé tem verdadeiro sentido nesta pets- pectiva. = pera . desfigura © rosto da cultura que o aca fa, as artes plasticas, as cangdes pata costu- teirinhas, os provérbios, os habitos, os pattern \ nham fazer-lhe o proces. a Hs, (UEL.Se PLOPO- \ P' so ou banalizé-lo, restituem o racismo. ) mento do teresse desta evolugio esté. em que 0 racismo é tomado RA-g a2 EM DEFESA DA REVOLUCAO AFRICANA O mesmo é dizer que um grupo social, um pais, uma Civilizagio, nfio podem ser racistas inconscientemente. ) Dizemo-lo mais uma vez: o racismo nao é uma descoberta acidental. Nao é um elemento escondido, dissimulado, Nio ‘se exigem esforgos sobre-humanos para o pér em evidéncia, O racismo entra pelos olhos dentro precisamente Porque se insete num conjunto caracterizado: o da exploragio desa- vergonhada de um grupo de homens por outro que chegou a um estédio de desenvolvimento técnico superior. E por isso que, na maioria das vezes, a opress3o militar e econémica pre- cede, possibilita e legitima o racismo. O habito de considerar o racismo como uma disposigio do espirito, como uma tara psicoldgica, deve ser abandonado, Mas como se comportam o homem visado por esse racismo, © grupo social escravizado, explorado, dessubstancializado? Quais sfo os seus mecanismos de defesa? Que atitudes descobrimos aqui? “ Nimos numa primeira fase o ocupante legitimar a sua domi- nagdo com argumentos cientificos, vimos a «raga inferiom negar-se como raga. Porque nenhuma outra solugio lhe é per- mitida, o grupo social racializado tenta imitar o opressor € com isso desracializar-se. A «raca inferior mega-se como raga diferente. Partilha com a «raga superiom as convicgées, as dou- trinas, e tudo o que lhe diz respeito. ') Tendo o autéctone assistido & liquidagio dos seus sistemas de referéncia, a0 desabar dos seus esquemas culturais, j4 nao Ihe resta sendo reconhecer com o ocupante que «Deus niio esté do seu lado». O opressor, pelo cardcter global e terrivel da sua autoridade, chega a impor ao autéctone novas maneiras de ver e, de uma forma singular, um jufzo pejorativo acerca das suas formas originais de existir. —— Este acontecimento, comummente designado_por filiena: Sho, é naturalmente muito importante. Encontramo-lo-nos tex- t08 oficiais sob o nome de Ags \ 5 milagad. Ora esta alienagio nunca é totalmente conseguids. Talvez ~~ RACISMO E CULTURA porque © optessor limite quantitativa e qualitativamente a evo- jugio, surgem fendémenos imprevistos, heterdclitos. O grupo jnferiorizado tinha admitido, com uma forga de raciocinio implacdvel, que a sua infelicidade provinha direc- tamente das suas caracteristicas raciais e culturais. Culpabilidade_e inferioridade_s4o_as_consequéncias_habi- tuais desta dialéctica, O optimido tenta entéo escapart-lhes, por um lado, proclamando a sua adesio total e incondicional aos ” novos modelos culturais ¢, por outro lado, proferindo uma condenagio irreversivel do seu estilo cultural prdprio?. Contudo, a necessidade que o opressor tem, num dado momento, de dissimular as formas de exploragdo nao provoca o desaparecimento desta ultima. As telagdes econédmicas mais claboradas, menos grosseiras, exigem um revestimento quo- tidiano, mas, a este nivel, a alienagio continua a set terrivel. Tendo julgado, condenado, abandonado, as suas formas, culturais, a sua linguagem, a sua alimentagéo, os seus proce dimentos sexuais, a sua maneita de sentar-se, de repousar, de i, \ tir, de divettir-se, o oprimido, com a energia e a tenacidade dof | ndufrago, arremessa-se sobte a cultura imposta. \ Desenvolvendo os seus conhecimentos técnicos no con- tacto com méquinas cada vez mais apetfeigoadas, entrando no citcuito dinamico da produgio industrial, encontrando homens de regides afastadas no quadro da concentragao dos capitais, logo dos lugares de trabalho, descobrindo a cadeia de monta- gem, a equipe, o «tempo» de produgio, ou seja o tendimento por hora, o oprimido verifica como um escindalo a manuten- Gio do racismo e do desprezo a seu respeito. 2 Por vexes, aparece neste estidio um fendmeno pouco estudado, Inte-\\ x lectuais, investigadores, do grupo dominante estudam «cientificamentey a socie- | dade dominada, a sua estética, o seu universo ético. Os raros intclectuais colonizados véem, nas Universidades, 0 seu sistema) cultural ser-lhes revelado. Acontece até que 0s sibios dos paises colonizadores| se entusiasmam por este ou aquele trago especifico, Surgem os conceitos de| pureza, ingenuidade, inocéncia, A vigilncia do intelectual indigena tem de} tedobrar nesta altura, 44 —M DEFESA DA REVOLUCGAO AFRICANA, fia este nivel que se faz do racismo uma histéria de — soas., «Existem alguns racistas incorrigiveis, mas Confessem que no conjunto a populagio gosta de...» Com o tempo tudo isto desaparecerd. Este pais é 0 menos racista... Existe na ONU uma comissio encarregada de lutar con. tra o racismo. Filmes sobre o racismo, poemas sobre o racismo, mensa- gens sobre o racismo... ; . , As condenagées espectaculares ¢ intiteis do racismo. A rea- lidade é que um pais colonial é um pais racista. Se na Inglaterra, na Bélgica ou em Franga, apesar dos principios democtiticos afirmados respectivamente por estas nagdes, ainda hé racistas, sio esses tacistas que, contra o conjunto do pais, tém razio, Nio € possivel subjugar homens sem logicamente os infe- tiorizar de um lado a outro. E o racismo nao é mais do que a explicagéo emocional, afectiva, algumas vezes intelectual, desta inferiorizagio. Numa cultura com racismo, o racista é, pois, normal. A adequagio das relagdes econdémicas e da ideologia é, nele, perfeita. Certamente que a ideia que fazemos do homem nunca est4 totalmente dependente das relagdes econémicas, isto é, nao 0 esquecamos, das relagdes que existem histérica e geo- graficamente entre os homens e os grupos. Membros, cada vez mais numerosos, que pertencem a sociedades racistas tomam Posigo. Péem a sua vida ao servico de um mundo em que o racismo seria impossivel. Mas este recuo, esta abstraccio, este compromisso solene, no estiio ao alcance de todos. Nao _se Pode exigir Ampunemente que um homem seja contra os «pte- conceitos do seu_grupo», Ora, € preciso i jalis 5 voltar a dizé-lo, to alista é racista, » todo 0 gnipo colon Simultaneam eos co ‘aneamente «aculturado» e desculturado, o oprimido So nua a esbarrar no racismo ei Sica. Que o que ele su - Acha que esta sequela é ilé- Os seus conheci ‘perou é inexplicavel, sem motivo, inexacto. catos, a aptopriacdo de técnicas precisas € RACISMO E CULTURA 45 complicadas, pot vezes a sua superioridade intelectual quanto a um grande numero de racistas, levam-no a qualificar 0 mundo racista de passional. Apercebe-se de que a atmosfera tacista impregna todos os elementos da vida social. O sentimento de uma injustiga tremenda torna-se, entdo, muito vivo. Esque- cendo o tacismo-consequéncia, atira-se com furia sobre o racismo-causa. Empreendem-se campanhas de desintoxicagio. Faz-se apelo ao sentido do humano, ao amor, ao respeito dos valores supremos... De facto, o racismo obedece a uma ldgica sem falhas. Um pais que vive, que tira a sua substincia, da exploragio de povos diferentes inferioriza estes povos. O racismo aplicado a estes povos é normal. O racismo nfo é, pois, uma constante do espirito humano. B, vimo-lo, uma disposigao inscrita num sistema deter- minado. E o racismo judeu nao é diferente do racismo negro. Uma sociedade é racista ou nao o é. Nao existem graus de_ racismo. Nao se deve dizer que-tal_pafs é racista, mas que nao ha nele linchamentos ou campos de exterminio. A verdade é gue tudo isso, e muito mais, existe. como horizonte.. Estas virtualidades, estas laténcias, circulam dinamicas, inseridas na vida das relagdes psico-afectivas, econdémicas... Descobrindo a inutilidade da sua alienag’6, a profundi- a dade do seu despojamento, o inferiorizado, depois desta fase “ de desculturagio, de estranhizagio, volta a encontrar as suas posigdes originais. O inferiorizado retoma apaixonadamente essa cultura aban- \ | donada, rejeitada, desprezada. Hi idamente_uma_sobreva- \ Jorizagio que se assemelha psicologicamente ao desejo de se Ho fazer perdoar. Mas, por detr4s desta anilise simplificadora, ha bem a intuigio por parte do inferiorizado de uma verdade esponta- nea que irrompe. Esta histéria psicolégica desagua na Historia e na Verdade. * Porque o inferiorizado reencontra um estilo outrora des- valorizado, assiste-se a uma cultura da cultura. Semelhante AO nm pEFESA DA REVOLUGAO AFRICANA 5 caricatura da existncia cultural significatia, se fosse neces. shri mostraelo, que @ cultuta se vive, mas mio se fragmenta, Nifo se poe entre a lamina ea Jamela. Contudo, © optimido extasia-se cada stedescoberta. © encantamento & permanente. Outrora emigrado da sua cul- tura, 0 autdctone explora-a hoje com arrebatamento. Trata-se, entio, de continuos esponsais. O antigo inferiorizado esta em estado de praga. Ora, nio se sofre impunemente uma dominagao. A cultura do povo subjugado esta esclerosada, agonizante. Nao circula nela qualquer vida. Mais ptecisamente, a tinica vida nela exis tente esta nela dissimulada. A populagio que normalmente assume aqui ¢ ali alguns pedagos de vida, que mantém signi- ficagées dinamicas pata as instituigdes, é uma populago and- nima. Fim regime colonial, sio os tradicionalistas. Pela ambiguidade stibita do seu comportamento, 0 antigo emigrado introduz 0 escindalo. Ao anonimato do tradiciona- lista, opde um exibicionismo veemente e agtessivo. Fistado de graga e agressividade sio duas constantes deste estidio, sendo a agtessividade o mecanismo passional que pet mite escapar 1 mordedura do patadoxo. Porque o antigo emigrado possui técnicas precisas, por que o seu nfvel de acgio se situa no quadro de relagdes j4 complexas, estas redescobertas revestem-se de um aspecto irra cional. Eixiste um fosso, um desfasamento, entre o desenvolvi- mento intelectual, a apropriagdo técnica, as modalidades de pensamento ¢ de Iégica altamente diferenciadas ¢ uma base cemocional «simples, pura», etc. Reencontrando a tradigdo, vivendo-a como mecanismo de ea como simbolo de pureza, como salvagio, 0 desculturado ae ae i que a mediagio se vinga substancializando-se- volvimento ecnioe 6 cach a a a See ide acinar pé parade As instituigdes assim valosi- ‘ responder aos métodos elaborados de acgio j4 adquitidos. A cultura capsulada, vegetativa, apés a dominacio estran- RACISMO E CULTURA 47 geita, é revalorizada. Nao é repensada, retomada, dinamizada de dentro. B clamada. E esta revalorizagio stibita, nao estru-” turada, verbal, recobre atitudes paradoxais. E neste momento que se faz mengio do caracter irrecuperé- vel dos inferiorizados. Os médicos 4rabes dormem no. chio, cospem em qualquet lado, etc. Os intelectuais negros consultam o bruxo antes de tomar uma decisio, etc. Os intelectuais «colaboradores» procuram justificar a sua nova atitude. Os costumes, tradigées, crengas, outrora negados e silenciados, sao violentamente valorizados e afirmados. A tradigao j4 nao € ironizada pelo grupo. O grupo jé nao foge a si mesmo. Reencontra-se o sentido do passado, 0 culto dos antepassado: O passado, doravante constelagio de valores, identifica-se com a Verdade. Esta redescoberta, esta valorizagio absoluta de modali- dade quase irreal, objectivamente indefensdvel, reveste uma importincia subjectiva incompardvel. Ao sair destes esponsais apaixonados, 0 autéctone terd decidido, com «conhecimento de causa», lutar contra todas as formas de exploragio ¢ de alie- nagio do homem, Em contrapartida, o ocupante multiplica nesta altura os apelos 4 assimilagio, depois a integragio, & comunidade. O corpo a corpo do indigena com a sua cultura é uma ope- tagio demasiado solene, demasiado abrupta, para tolerar qual- quer falha. Nenhum neologismo pode mascarar a nova evi- déncia: o mergulho no abismo do passado é condigio e fonte de liberdade. O fim légico desta vontade de luta € a libertagao total do territério nacional. Para realizar esta libertagio, o inferiorizado pde em jogo todos os seus recursos, todas as suas aquisigdes, as antigas e as novas, as suas e as do ocupante. A luta é subitamente total, absoluta. Mas entio j4 niio se vé apatecer o racismo. No momento de impor a sua dominagio, para justificar a 48 EM DEFESA DA REVOLUGAO AFRICANA escravidio, 0 oprfessor invocara argumentagdes cientig Aqui, nada de semelhante. cas, ) Um povo que empreende uma luta de liberta Hegitima o racismo. Mesmo no decurso de perio ‘Juta armada insurteccional, nunca se assiste maciga de justificagdes bioldgicas. A luta do inferiorizado situa-se a um nivel nitidamente | mais humano. As perspectivas sio tadicalmente novas, Ba | oposigéo doravante classica entre as lutas de conquista ¢ as | de libertagao. No decurso da luta, a nagio dominadora tenta reeditar argumentos facistas, mas a elaboragio do racismo revela-se =|_cada vez mais ineficaz. Fala-se de fanatismo, de atitudes pri- “" mitivas perante a morte, mas, uma vez mais, o mecanismo doravante deitado por terra j4 nfo responde. Os imédveis de antes, os cobardes constitucionais, os medrosos, os inferiori- zados de sempre, crispam-se e emergem erigados. O ocupante j4 nao compreende. O fim do racismo comega com uma subita incompreensio. A cultura espasmada e rigida do ocupante, liberta, ofere- ce-se finalmente & cultura do povo tornado realmente irmio. As duas culturas podem enfrentar-se, enriquecer-se. Em conclusio, a universalidade reside nesta decisdo de assumic o relativismo teciproco de culturas diferentes, uma vez excluido itteversivelmente o estatuto colonial. Sao taramente dos agudos de a uma tomada

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