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Dante Alighieri

A Divina Comédia
Copyright desta edição
Editora Nova Cultural Ltda., 2002
Todos os direitos reservados
Título original: La Divina Commedia
Coordenação Editorial: Janice Florido
Editores: Eliel Silveira Cunha e Fernanda Cardoso
Revisão: Levon Yacubian
Editoras de arte: Ana Suely S. Dobón e Mônica Maldonado
Editoração eletrônica: Dany Editora Ltda.
Editora Nova Cultural Ltda. Rua Paes Leme, 524 - 10º andar
CEP 05424-010 - São Paulo - SP
www.novacultural.com.br
2003
DANTE ALIGHIERI
A DIVINA COMÉDIA
Tradução: Fábio M. Alberti
PATRoCíNIo CULTURAL
SUZANO
Uma empresa que assume o seu papel.
Primeira parte
Inferno
Canto I
Perdido numa medonha selva, Dante vaga por ela durante toda a noite. Ao amanhece
r, deixando-a, começa a subir por uma colina. Súbito, atravessam-lhe a passagem uma
pantera, um leão e uma loba, e o afastam para a selva. Então, aparece-lhe a imagem d
e Virgílio, que o reanima e oferece-se a tirá-lo da selva, fazendo-o passar pelo Inf
erno e pelo Purgatório. Depois, Beatriz o conduzirá ao Paraíso. Dante o segue.
Ergui os olhos e vi, iluminando as encostas da colina, o planeta que sempre indi
ca o bom caminho; isso fez diminuir o assombro que durante aquela angustiante no
ite turvara o lago do meu coração. Como o náufrago que, mesmo salvo das bravias ondas,
fita o ameaçador mar no qual se agitara, assim meu ânimo, tremendo ansioso, pôs-se a
remirar o espaço percorrido, que nenhum homem jamais cruzou ileso. Depois de dar a
lgum descanso a meu corpo lasso, segui viagem pela subida deserta, firmando bem,
em cada passo, o pé mais baixo.
Iniciava a subida, e subitamente surgiu, ágil e veloz, uma pantera de pele matizad
a. A fera não me perdia de vista; e de tal modo obstava minha caminhada que muitas
vezes desejei retornar. No firmamento a aurora já brilhava; o sol se alçava, cercad
o de astros ... com ele criados quando o divino Amor deu vida aos céus. O moviment
o dos astros, a hora amena e o dorso vivaz e variegado da fera infundiram-me esp
erança. Mas o horror acossou-me mais uma vez o peito: vi-me diante de um enorme e
ferocíssimo leão ... tão feroz que parecia atemorizar o próprio ar. Surgiu depois uma lo
ba muito mirrada e ameaçadora; ela guardava as ambições sórdidas que levaram muitos home
ns à miséria. Dominado pelo medo que seu terrível aspecto me infundia, acreditei que não
seria capaz de chegar ao alto da colina ... e nisso assemelheime ao homem que,
visando em tudo apenas o lucro, explode em prantos se perde em vez de ganhar. A
fera levou-me a agir assim; arremetendo contra mim, obrigou-me a recuar para o l
ugar onde não havia sol ... o vale do qual eu saíra. Enquanto aos tropeções eu caminhava
, espezinhado pela fera, vi alguém mover-se perto de mim; de sua boca som nenhum s
aía.
Assim que o encontrei em tão escuro deserto, bradei, desesperado: "Piedade! Tem pi
edade de mim, quer sejas sombra, quer homem de carne e osso!" "Não sou homem", res
pondeu- me," mas, verdade seja dita, já fui, de pais lombardos, nascidos ambos em
Mântua, amada cidade. Quando nasci, Júlio César estava muito longe de seus áureos tempos
; vivi em Roma, na época do bom Augusto, em que ainda se adoravam falsos deuses. F
ui poeta; cantei os feitos do justo filho de Anquises, que, após a bela Ílionter se
incendiado, veio de Tróia. Mas por que voltas a esse vale desolado? Por que não esca
las o deleitoso monte, que alegrias infinitas guarda em seu seio?
Falei, então, curvando respeitosamente a fronte: "Oh! Tu, tu és Virgílio, cuja eloqüência
... qual fonte ... jorra versos fartamente? Mestre dos poetas, luz que os ilumin
a! Valha-me o longo tempo em que, com profundo amor, entreguei-me à leitura de seu
s versos em busca de sapiência! És meu único modelo no mundo; graças a ti, hoje o munddo
louva a harmoniosa feição de meus versos. Vês a fera que me impede de andar, notável sábi
o; acode, então, livra-me do perigo! De tão transtornado, tremo da cabeça aos pés".
Condoído ante minhas súplicas, ele respondeu: "Para fugir à selva e a seus perigos, co
nvém que de ora em diante tomes outra rota. A fera que te faz ge lar o sangue de h
orror não permite que ninguém passe por aqui impunemente, e quem insiste em opor-lhe
resistência encontra a morte. É uma criatura tão má, e tão contundente, que jamais conseg
ue saciar o enorme apetite ... sente até mais fome, depois que come. Com muitos se
res semelhantes a ela se acumplicia, e assim continuará fazendo até que a enfrente o
galgo que haverá de dar-lhe morte medonha. Este heróico ser, imune às tentações do ouro o
u do poder, cheio de virtude, amor e saber, virá de humilde origem. Será o amparo po
deroso da pobre Itália, por quem Camila, a virgem, dera a vida, e Turno, Euríalo e N
iso encontraram a morte. Ele perseguirá implacavelmente a fera, por todas as parte
s, até atirá-la enfim no recinto infernal, bem lá onde a inveja fora buscá-la.
Agora, para salvar-te, eu tenciono te levar comigo; guiar-te-ei na região do etern
o sofrimento. Ali, ouvindo gritos lancinantes, verás almas antigas, na amargura, s
uplicar segunda morte em altos brados. Também irás ver os que, mesmo penando em meio
às chamas, alimentam a esperança de um dia ascender ao Paraíso. Se quiseres, contudo,
lá subir, terás de contar com um guia superior a mim; eu te deixarei, então, à porta do
reino. Ocorre que, a fim de castigarme a rebeldia, o Imperador do céu não consente
que eu entre em seus domínios. Ele em toda parte reina onipotente, mas seu trono .
.. rodeado daqueles, felizes, que escolheu ... tem sua augusta sede no empíreo".
Disse-lhe então: "Poeta, eu te suplico, por esse Deus que tu não conheceste: afasta
de mim todo o mal que me espreite! Que, sendo sempre por ti conduzido, eu logre
chegar à porta de São Pedro, meu destino, e veja os maus que tinhas mencionado". Dep
ois que falei, o poeta pôs-se a caminhar, e eu o segui.
Canto II
Após invocar as Musas, Dante, em virtude de sua fraqueza, hesita em aventurar-se n
a viagem. Virgílio, porém, diz-lhe que Beatriz ordenara que fosse em frente, e que h
avia quem se interessasse por sua salvação. Diante disso, Dante determina-se a segui
-lo, e enceta com seu guia o árduo caminho.
o dia chegava ao fim, e a aproximação da noite convidava já as criaturas terrenas ao d
escanso. Entretanto eu, velando, preparava-me para a guerra
... do caminho e da piedade ... que minha memória, com exatidão, retratará.
Ó musas! Socorrei-me, divindade! Valei-me! Mente fiel, que encerraste tudo que vi,
sê agora mais precisa que nunca!
Principiei a falar: "Poeta, vê bem se mereço que me guies, se guardo em mim potência s
uficiente. O pai de Sílvio - tu o disseste - ainda vivo fora donduzido ao inferno,
com seu corpo de homem. Mas Aquele que é inimigo do mal permitiu tal coisa por um
nobre motivo: tratava-se do homem que buscava a glória de Roma e de seu Império - l
ugares santos, destinados aos sucessores de Pedro -, e que fora escolhido pelo céu
. Nesse feito, por ti rememorado, ouviu coisas que serviram de inspiração para seu t
riunfo, e o do papado. Lá foi depois o Vaso da Eleição, no intuito de robustecer a cre
nça que é essencial à salvação. Mas eu - por que eu lá iria? E por que semelhante honra? Qu
m poderia comparar-me a Enéias ou a Paulo? Nem eu, nem ninguém. Receio que empreende
r tal jornada seja uma grande insensatez. Mas tu, sábio, és capaz de entender o que
a mim causa tanta confusão".
Assim procedi na pavorosa encosta - Como quem ora quer, ora não quer, e tem a alma
aberta a toda sorte de idéias, sem nada decidir, nem resolver. Refletindo, tendia
a desistir de lançar-me à jornada, decisão formada à pressa e que me desagradava. "Pelo
que pude perceber do que disseste", tornoume o magnânimo poeta, "tu estás dominado
pelo medo; porém, o homem que se acovarda perde a razão, passando a agir como um ani
mal assustado. Desejo livrar-te dos temores; direi por que vim, e tudo que ouvi
no lugar em que fui inteirado de seus contratempos. Encontrando-me suspenso entr
e as almas do Limbo, uma bela e piedosa dama chamou-me, e eu a atendi, prestimos
o. Os seus olhos brilhavam mais que uma estrela; ela me disse suavemente, em sua
singela língua pátria: Nobre alma mantuana, que ainda hoje em dia gozas no mundo fa
ma tão intensa, que, enquanto houver mundo, perdurará: um meu amigo, desamparado pel
o destino, teve o seu caminho interrompido na vertente descampada e perigosa. Re
ceio que já esteja tão perdido que não haja mais como socorrê-lo, por tudo o que no céu eu
tenho ouvido. Segue, pois, e com tua poderosa eloqüência, ajuda-o. Estarás com isso m
e consolando. Sou Beatriz, e te envio a meu amigo. Desejo retornar sem demora de
onde venho. Por amor é que vim ter contigo; prometo que, voltando ao meu Senhor,
irei sempre louvar-te por tal feito'. Quando ela silenciou, eu lhe disse: 'Virtu
osa senhora, que tem sido grandioso exemplo à espécie humana, tanto apraz-me a missão
que me conferes que, mesmo cumprindo-a imediatamente, eu saberia ter demorado. É l
ei tua vontade; mas espera, e me diz por que motivo, senhora, resolvestes descer
até aqui, vinda do céu, ao qual tornarás agora'. Se é teu desejo ser esclarecido', torn
ou-me, eu te direi, em poucas palavras, por que não receei descer às sombras. Devemo
s temer unicamente o que pode de fato causar dano; e o simples temor não pode faze
r mal. Deus concedeu-me a soberana graça de manter-me imune à vossa miséria e a este i
ncêndio devorador e insano. Há no céu uma piedosa dama, cuja prece o Eterno sempre ouv
e, que se condoeu dos perigos aos quais te envio; esteve mesmo inclinada a suspe
nder tão austera sentença. Pois esta Senhora chamou Luzia e lhe disse: O teu fiel se
rvo corre tanto perigo que em tuas mãos devo entregá-lo agora'. Luzia, suave inimiga
de toda crueldade, moveu-se até onde eu me achava sentada, ao lado de Raquel.
Generosa Beatriz', disse-me apressada, Por que não vais salvar quem te amou tanto,
e só por ti superou a mediocridade humana? Não percebes seu doloroso pranto? Não vês qu
e a morte, mais terrível que o mais caudaloso dos mares, se acerca dele? Ninguém jam
ais fugiu ao mal ou procurou o bem com o mesmo afã que me envolvia quando, ao toma
r conhecimento do que sucedia, deixei o alto para cá embaixo vir - a fim de recorr
er à tua gentil eloqüência, na qual acredito, e que honra a ti e a quem te pode ouvir'
."
"Assim ela me falou, baixando o olhar; vi que nele uma lágrima brilhava, e isto me
fez chegar a ti o quanto antes. E aqui estou, conforme ela queria: consegui sal
var-te da temível fera que te impedia de escalar o monte. Que fazes, pois? Por que
estás hesitante? Por que te pões tão triste? Não te é suficiente que três santas na realez
do céu estejam querendo protegerte, por meu intermédio?
Então, quais flores que, à noite, enregeladas, emurchecem, e à luz do sol renascido alça
m-se fortes na haste, como novas, assim se refaz meu ânimo caí do. Um novo alento in
vadiu-me o coração, e eu disse em voz alta, firme e convicto:
"Bendita a que me trouxe a salvação! E tu, que prontamente obedeceste ao celestial p
edido da dama! Tuas palavras acenderam em mim grande desejo de enfrentar a jorna
da; já não meço esforços para o objetivo que propuseste. Assim sendo, apertemos nosso pa
sso: irás me guiar, meu senhor, meu mestre!" Assim falei-lhe. E segui atrás dele, le
sto, pelo caminho rude e silvestre.
Canto III
Chegados à porta do Inferno, os dois poetas deparam a ameaçadora inscrição. Entram e enc
ontram no vestíbulo o caminho; alcançam o Aqueronte, rio onde Caronte, o barqueiro i
nfernal, conduz as almas dos danados à margem oposta, rumo ao suplício.
"Por mim se vai à cidade das dores; por mim se vai à ininterrupta dor; por mim se va
i à gente condenada. Foi Justiça que inspirou o meu Autor; fui feito por Poderes Div
inais, Suma sapiência e Supremo Amor. Antes de mim, havia apenas coisas eternas, e
eu, eterno, perduro. Abandonai toda a esperança, ó vós que entrais!"
Estas palavras, em letreiro escuro, vi escritas por cima de uma porta. Eu disse:
"Mestre, o sentido delas me é obscuro". E Virgílio, atento a meus receios, responde
u, rápido: "Aqui, convém deixar de lado toda suspeita, toda debilidade". Enfim nos e
ncontramos no lugar onde verás a gente atormentada que não pôde conservar a luz do bem
. Tomando-me a mão amigavelmente, animando-me com seus gestos, fezme entrar no mis
terioso ambiente. Ali, soavam queixas e lamentos; enchiam o ar, em meio à escuridão,
e meteram-me medo por uns momentos. Diversas línguas, muita murmuração, gemidos, brad
os de ira e de dor, urros, sons de mãos chocando-se contra o corpo - tudo isso com
punha um turbilhão que girava continuamente, como areia revolvida por tufão. Tal hor
ror espicaçava-me a mente, e eu disse a Virgílio:
"Mestre, que ouço agora? Que gente é esta, que a dor está prostrando?"
"Queixa-se dessa maneira", tornou-me, "quem viveu com indiferença a vida, sem ter
nunca merecido nem louvor nem censura ignominiosa. Faz-lhes com panhia um grupo
de anjos mesquinhos, que a Deus não manifestaram nem fidelidade, nem rebeldia, pen
sando apenas em si mesmos. Foram, com desdouro, expulsos dos céus; nem o inferno p
rofundo os acolhera, pois os anjos rebeldes se jactariam de lhes serem superiore
s em algo."
"Que dor tão cruel se apodera deles e os faz gritar, urrar tão fortemente?", eu perg
untei. "A razão disso é simples", respondeu-me ele. "Não lhes é permitido esperar o desc
anso da morte, e, com sina tão vil e abjeta, passam a invejar qualquer outra sorte
. Seus nomes passaram pelo mundo sem deixar marca; o perdão e a justiça divina os de
sdenharam. Mas não desperdicemos mais tempo com eles: olha-os e segue em frente."
Meus olhos fitaram uma bandeira que, tremulando, bem veloz corria, e a sua agitação
não cessava. Uma multidão compacta a seguia: difícil crer que a morte arrebataria um d
ia tanta gente de entre os vivos. Já havia reconhecido alguns vultos. De repente,
olhando, distingui a sombra daquele que fez a grande renúncia, torpemente. Logo co
mpreendi que se tratava da facção das almas envilecidas, que os maus detestam e que
Deus repele. As desgraçadas - que em vida eram destituídas de vontade - sempre estav
am nuas, e as torturavam as aguilhoadas de vespas e tavões. As lágrimas regavam seus
rostos, misturadas com sangue; e, caindo-lhes aos pés, serviam de alimento a abje
tos vermes.
Dirigindo os olhos para a margem de um largo rio, avistei outro bando de almas;
então disse: "Mestre, eu te peço, fala-me dessa gente, e me explica por que desejam
tanto atravessar o rio, se os vejo bem sob esta vacilante luz?" Sua resposta foi
: "Terás uma explicação minuciosa quando alcançarmos a assombrosa margem do rio Aqueront
e". Depois de ouvir isto, prossegui de olhos baixos e abatido; acreditava que o
tivesse importunado.
Súbito, aproxima-se num barco um velho de cabelos brancos, bradando: "Ai de vós, con
denados! Nunca vereis o Céu! Levados por mim à sombra eterna, na outra vida, sereis
encerrados para sempre no fogo e no gelo. E tu, criatura viva misturada aos mort
os, vê se te afasta!" Depois disse, já que eu não o obedecia: "Deverás usar um caminho q
ue não este para ires ao porto, onde há bom transporte, onde encontrarás barca menos l
enta".
Meu guia então dirigiu-se a ele: "Caronte, não te agastes! Isso já foi decidido lá onde
Quem pode ordena. Portanto, não faze mais perguntas". Acalmando-se, o idoso navega
nte do triste lago silenciou. Contudo, ao ouvir palavras tão duras, as almas se in
quietaram; mostravam extrema palidez no semblante; seus dentes rilhavam. Ultraja
ram Deus e amaldiçoaram a humanidade, a pátria, o tempo, a origem da sua vida, os pa
is de que nasceram. Mergulhando então no pranto, elas sofriam, agrupando-se no hor
rendo lugar destinado aos que a Deus não temem. Caronte, remexendo os olhos ígneos,
chamava-as e a todas recebia; e ia batendo com o remo nas que se demoravam. Como
a árvore que, no outono, principia a perder as flores, e se desnuda, devolvendo à t
erra o que lhe cabia, assim os filhos de Adão, corrompidos, se aproximavam da prai
a, um a um, como aves atraídas por chamados. Viajavam sobre as sombrias águas; e ant
es de terem chegado ao outro lado, novos grupos já no oposto esperavam.
"Meu caro filho", disse o mestre amado, "para cá vêm os que encontram a morte, tendo
encolerizado a Deus em vida. Buscam sem demora os rios, e se acham tão sedentos d
a justiça de Deus - pois reconhecem sua culpa - que seu medo se transforma em dese
jo forte! Alma inocente aqui jamais transita; para que Caronte volte-se contra t
i, há evidente razão, que tanto o irrita."
Meu mestre mal terminara de falar quando o negro descampado tremeu, tão fortemente
que me banho de suor ao relembrar a experiência - o mesmo suor frio que o medo fi
zera escorrer de meu rosto então. A terra lastimosa expeliu vento, na forma de cla
rão avermelhado; isso fez com que eu perdesse os sentidos, e eu tombei, como em so
no mergulhado.
Canto IV
Despertado por um trovão, Dante se acha no primeiro Círculo do Inferno, onde estão as
almas de crianças e adultos que não foram batizados. Também vê os sábios da Antiguidade, q
ue tiveram vida virtuosa, mesmo sendo pagãos.
Fui acordado do assombroso sono por um sonoro estampido, estremecendo, como quem
é bruscamente despertado. Pus-me em pé e, já movendo os olhos, procurei saber onde me
encontrava, atento a tudo. Na verdade, eu me achava junto à borda do indescritível
vale das dores, de onde soavam infinitos ais.
Era um vale tão profundo, sombrio e nebuloso que, por mais que eu olhasse, nada di
visava no antro horroroso. "Sigamos, enfim, para baixo, rumo ao ne gro mundo!",
exclamou o poeta, estremecendo. "Eu vou primeiro, e tu irás em seguida." Notando a
sua lividez, tornei-lhe: "Não sei; pois me parece que estás tomado de medo, quando
era confiança o que eu esperava de ti". Ele me respondeu: "Não é medo o que vês impresso
em meu rosto, mas misericórdia, inspirada pelo terrível sofrimento dos que iremos e
ncontrar. Mas apressemo-nos, que será longa a jornada".
Entramos no primeiro círculo, em que o abismo já começava a estreitar-se. Prestei atenção:
não mais havia choro lastimoso, só suspiros, que murmuravam, ecoando suavemente por
todo o espaço. Tais suspiros nasciam de um sofrimento sem martírio, experimentado p
or homens, mulheres e crianças que ali se aglomeravam.
"Não queres saber", disse meu bom Mestre, "que espíritos são esses que agora vês padecen
do? Antes que vás em frente, convém saberes que não pecaram; porém, mesmo tendo realizad
o boas obras, estão aqui porque lhes falta o batismo, portal da fé, no qual acredita
s e és ditoso por isso. Viveram no tempo que antecedeu ao Cristianismo, e jamais p
restaram culto a Deus: eu, que venho do paganismo, sou um deles. Por tal defeito
- outros não nos mancharam - somos torturados com o castigo de ter nossos desejos
para sempre frustrados."
Tal revelação encheu-me o coração de dor. Na verdade, conheci muitas almas de grande val
or que não haviam sido poupadas da desolação do Limbo. Pedi-lhe, buscando resguardar m
inha fé contra qualquer juízo precipitado: "Diz-me, meu mestre e senhor: alguém, por m
erecimento próprio ou por intermédio de outro, já daqui saiu, subindo ao céu?" Penetrand
o imediatamente em minhas intenções, o mestre faloume: "Pouco tempo depois que chegu
ei a este lugar, vi descer um forte guerreiro, cingido por gloriosa coroa. Liber
tou almas - nosso pai primeiro, e Abel, Noé, Moisés, que legislara por Ele, Abraão, ínte
gro na fé e na obediência, e Davi, que sobre os hebreus reinara; e Israel, com seu p
ai e sua prole vasta, e Raquel, por quem muito se afainara. Outros mais retirou
do Limbo e elevou ao Céu. Antes de Ele vir, contudo, jamais alguém fora salvo". Marc
hávamos enquanto ele falava, embrenhando-nos na selva de almas, que a cada passo a
umentava.
Quando ainda nos achávamos perto da entrada, divisamos um fulgurante clarão, que ilu
minava um pouco a banda das trevas. Estávamos longe dali, mas eu já podia perceber q
ue lá se reunia nobilíssima gente. Perguntei a Virgílio: "O tu, que a ciência e a arte g
lorificaram, quem são esses que desfrutam o grande privilégio de manter-se afastados
da turba?"
"São os escolhidos", respondeu-me o mestre, "do Céu, que recompensou a fama alta e p
reclara com que na terra foram engrandecidos." Neste momento, escutei dizerem em
voz poderosa e clara: "Que seja honrado o altíssimo poeta! Sua sombra, que estive
ra ausente, volta agora a nosso convívio". Notei quatro sombras se aproximando de
nós assim que se aquietou o rumor. Em seus semblantes, nenhuma alegria se mostrava
, nem nenhuma tristeza. Meu mestre disse, após alguns instantes:
"Observa aquele que, como um orgulhoso monarca, traz a espada à mão e está à frente dos
outros três: é Homero, rei dos poetas. O outro é o satírico Horácio;
a seu lado, Ovídio, e logo atrás Lucano. As vozes que acabamos de ouvir eram deles;
honrando a mim com semelhante atitude, praticam um ato que honra a eles próprios".
Assim vi reunida a bela escola do alto mestre do glorioso canto, águia voando semp
re mais alto que os demais. Tendo conversado entre si por alguns momentos, a mim
se voltaram com gesto amigável, e meu mestre sorriu ante tanto encanto. Mas demon
straram apreço maior quando quiseram que eu me reunisse a eles, dando-me o sexto l
ugar em seu grêmio. Caminhei em sua companhia na direção da luz; enquanto andávamos, tra
tamos de assuntos sublimes, que prefiro não revelar.
Chegamos a um resplendente castelo, cercado por sete muralhas altas; cingia-o um
lindo, porém singelo, ribeiro. Atravessei-o andando, como se suas águas fossem sólida
terra, e, sempre acompanhado das ilustres almas, passei por sete portas, caminh
ando até um suave prado de relva fresca. As sombras que ali vi ostentavam graves,
pausados olhos; elas eram discretas e falavam pouco, e seu aspecto era primoroso
. Posicionamo-nos sobre local alto e iluminado, e de lá avistamos o numeroso grupo
daquelas nobres almas. O mestre, sobre o esmaltado verde da relva, indicava ins
ignes sombras: ainda me extasia pensar que alvoroçava-me ao vê-los. Vi Eletra, acomp
anhada de heróis - entre os quais Enéias e Heitor -, e também César, que nos volvia seus
brilhantes olhos. Vi também Pentesiléia, e o rosto crestado de Camila; o rei Latino
, sentado, enternecia-se com sua Lavínia. Notei Márcia, Lucrécia, Bruto - o que expuls
ou Tarquínio -, Cornélia e Júlia; e, afastado dos demais, Saladino.
Alteando os olhos, tomado de respeito, vi o mestre de todos os filósofos, cercado
de pensadores, que o observavam e admiravam. Achavam-se ali Platão e Sócrates, os qu
e, em nobreza, mais se lhe aproximam. Junto a Demócrito, o atomista, estavam Tales
, Heráclito, Zenão e Anaxágoras, e Empédocles e Diógenes. E ainda Dióscoris, sábio que estu
a com afinco a natureza, e Orfeu, e Túlio, o eloqüente; também estavam presentes Sêneca,
o douto, que investiga a moral, Euclides, Hipócrates, Ptolomeu, Galeno e Avicena;
e Averróis, comentador sapiente. Não me é dado relacionar todos quantos vi, pois me d
emoraria demais, o que talvez me levasse a ser omisso. Nosso grupo de seis então s
e dividiu; o mestre trilhou comigo outro caminho. Saímos do lugar sereno para o lu
gar tremente - e chegamos lá onde luz não brilha.
Canto V
À porta do segundo Círculo está Minos, que julga as almas e lhes decide a pena. Nesse
Círculo acham-se os luxuriosos, que são incessantemente arrastados e atormentados pe
la ventania. Aqui, Dante encontra Francesca da Rimini.
E assim rumei ao segundo Círculo, cujo espaço é mais estreito, mas onde o poder da dor
é mais profundo. Em fúria, Minos rangia os dentes: ele avaliava as culpas junto à ent
rada, dando a sentença enquanto fazia voltas à cauda. Quando uma alma desgraçada posta
-se ante ele, confessa-lhe seus erros; e Minos, que conhece muito bem os pecados
, determina a que Círculo infernal ela será enviada enrolando sua cauda: pelo número d
e voltas que lhe dá, sabe-se em que parte do abismo a alma se precipitará. Há sempre m
uitos condenados em sua presença, cada um esperando a vez de ser julgado: fala, ou
ve, cai, desaparece.
Ao ver-me, Minos bradou, furioso, interrompendo sua grave tarefa: "Ó tu, que entra
s onde a dor fez morada! Não penses que poderás depois sair tão fa cilmente como estás e
ntrando!" "Por que falar gritando?", disse-lhe meu guia. "Não faças ameaças; não ouses t
olher a viagem: isso foi decidido lá onde o que se ordena se faz. Que te seja fort
e esta certeza!"
Logo comecei a ouvir as lamúrias da infernal geena: aproximava-me já do lugar em que
se padecia ferozmente. Era um local privado de toda luz, que rugia como mar ass
olado por ventos furiosos. O furor da tormenta, nunca apoucado, flagelava eterna
mente as almas, agitava-as e as espicaçava, sem nunca parar. Quando à beira do abism
o as precipitava, ais, choros e lamentos rompiam. A multidão de malditos blasfemav
a contra Deus. Ouvi dizer que sofriam de modo horrendo os que se dedicavam aos víc
ios carnais, submetendo a eles o discernimento.
Os espíritos eram lançados de um lado a outro, ao talante do tufão - quais estorninhos
que, paralisando as asas, são levados pelo vento, em bando, no inverno -, sem esp
erança de parar; nem mesmo podiam sonhar com um breve descanso. Vi uma turba de al
mas gemendo sob o látego do tufão; semelhavam grous em vôo tortuoso, soltando o seu gr
asnido. Então, disse: "Mestre, que almas são aquelas que o vendaval castiga enfureci
do?"
Respondeu Virgílio: "A primeira entre as sombras das quais desejas ter notícias rege
u nações. Decretou que a lascívia seria lícita e agradável, a fim de legitimar as torpes p
ráticas nas quais se excedia. Semíramis era seu nome. Ela herdou o trono estável de Ni
no, e foi a sua esposa; governou a terra que agora pertence ao sultão. A outra mor
reu por amor, traindo as cinzas de Siqueu, a quem jurara fidelidade. Segue-a a l
ibidinosa Cleópatra. Também podes ver Helena, a causa mentirosa de muitos males, e o
glorioso Aquiles, lançado ao último combate pelo amor. Eis também Páris e Tristão". E mos
trou-me mais um bando de sombras que o amor conduzira à sepultura, nomeando-as.
Confrangia-me o coração ouvir os nomes dessas damas e senhores antigos, conhecer sua
s dores. Comecei: "Poeta, desejo muito falar aos dois companheiros que ali se ac
ham, um ao lado do outro, parecendo tão ligeiros ao vento!" Respondeu-me: "Quando
estiverem mais perto, chama-os, em nome do amor que os uniu: eles virão sem pejo".
Quando o vento os trouxe para mais perto de nós, gritei: "Vinde! Vinde falar-nos,
almas dolorosas, se alta lei não o impede". Como as pombas que, conduzidas pelo am
or, de asas tensas, rumam em direção ao ninho, assim, deixando os outros no caminho,
ambos foram se aproximando de nós, respondendo ao meu grito de carinho. "Ente ben
igno, piedoso e brando, que nos vem visitar neste escuro abismo, a nós, que vertem
os nosso sangue impuro no mundo do qual viestes! Se nossos rogos pudessem ser ou
vidos pelo Senhor, pediríamos por tua salvação, pois te condóis do nosso mal perverso. E
nquanto o vento estiver calmo, o que disseres haveremos de ouvir atentamente, e
diremos tudo o que desejarias ouvir.
Nasci naquela terra onde o rio Pó, com seus afluentes, volta-se para o mar, como q
ue anelando a paz. Este, que ao meu lado está, quedou-se de amor por minha beleza
- daquele amor que se apossa dos corações subitamente -, a qual me foi roubada, tão ab
ruptamente que ainda agora me ofende. Mas, exigindo em troca igual ternura, este
amor uniu nossos corações de maneira tão definitiva que mesmo aqui, no vale das sombr
as, ele perdura. Quanto a quem nos deu morte violenta, seu destino é encontrar Caína
". Isto dito, o silêncio foi feito.
Inclinando a cabeça, pus-me a meditar amargamente nas terríveis aflições daquelas pobres
almas. Vendo-me, o poeta exclamou: "Em que pensas?"
Assim que pude, falei: "Que destino! Tanto arrebatamento, tão doce encanto, e tiv
eram um fim tão trágico!" Entretanto, dirigindo-me ao par, disse-lhes: "Tuas penas,
Francesca, me angustiam, levam-me a triste e compassivo pranto. Revela-me como,
dos doces murmúrios e do casto amor, chegaste a sucumbir ao desejo, pecado que ago
ra expias". Ela disse: "Não há tormento mais dorido que relembrar os tempos felizes
na desgraça; teu mestre sabe bem disso. Mas porque queres saber como vingou a flor
do nosso afeto, eu te satisfarei, muito embora vá chorar enquanto fale. Tudo se d
eu assim: como passatempo, eu e meu amado líamos o relato do amor de Lancelote. Es
távamos sós, absortos; nossos olhos às vezes se encontravam durante a leitura, e nós coráv
amos. Então, chegamos ao trecho que mudaria nossos destinos. Ao lermos que o febri
l amante beijara os tão desejados lábios da mulher amada, este, que jamais de mim se
separa, beijou-me a boca, arfante, trêmulo. Bem, nesse dia, por culpa do autor e
de seu escrito, a leitura foi interrompida".
Enquanto ela contava a triste história, ele gemia tanto que eu, transido pela dor
e pela piedade, como que desfalecia; até que tombei enfim, como tomba corpo morto.
Canto VI
Acham-se no terceiro Círculo os gulosos, condenados a ficar prostrados sob forte c
huva de granizo, água e neve, e ser dilacerados pelas garras de Cérbero. Dante encon
tra entre os condenados Ciacco, que faz a Dante desastrosas previsões sobre Florença
.
Quando minha mente aflita - que o sofrimento dos dois cunhados mergulhara em des
alento pungente - retornou do desmaio, mais uma vez encontrei me cercado de outr
os miseráveis, de outras agruras, que estavam em toda parte, ao longe e ao lado. E
ra o terceiro Círculo: caíam eternas chuvas, gélidas, escuras, pesadas - sempre as mes
mas, sempre impuras. Despencavam sem cessar, de alturas tenebrosas, granizo gros
so, neve e água, espalhando pelo chão um odor pestilento.
Cérbero, cão furioso e horrendo, ladrava, escancarando suas três colossais bocarras, p
ara as turbas submersas de pecadores. Seus olhos são vermelhos, seu ventre, desmed
ido; traz a barba suja e as garras muito aguçadas - rasga, lanha, despedaça a infeli
z gente. Como ganiam os pobres condenados! Mudavam sempre de lado, buscando defe
sa e alívio, essas almas infaustas.
Ao ver-nos, o monstruoso Cérbero rugiu, expondo os dentes e agitando os membros co
m raiva. Abrindo as mãos, meu guia as encheu de terra, e lançou às goelas assassinas d
a fera essa iguaria amarga. Como o cão, que em latidos retumbantes brada de fome e
acalma-se ao devorar algo, assim procedeu o demônio semelhante a um mastim, tortu
rador de almas: cerrou as bocas tremendas, fez cessar o urro ensurdecedor que de
las vinha.
o solo em que pisamos se povoava de sombras, que as chuvas derrubavam: tinham fo
rma e aparência de pessoa. Estendidas na terra, deitavam-se; mas uma delas sentou-
se assim que nos avistou. Disse: "Tu, que és guiado pela estrada do inferno, vê se a
caso me conheces: nasceste antes de eu vir a esta morada". Respondi-lhe: "A gran
de angústia que sofres não permite que eu me lembre de tuas feições; de ti não guardo nenh
uma lembrança. Quem és, que em tal lugar tão duramente te castigam por teus pecados? P
ois pode existir pena maior, mas nenhuma é tão deprimente". Ele me respondeu: "Em tu
a cidade - já totalmente corroída pela inveja - gozei existência contente e serena. To
dos os de lá chamavam-me Ciacco. Pelo vício da gula eu sofro à chuva, miseravelmente,
enregelado e fraco. Entretanto, não peno sozinho, pois os que aqui estão com castigo
foram punidos por igual pecado".
"Com muita dor", tornei-lhe, "eu te digo que o seu tormento me comove. Sabes, po
rém, se os partidos inimigos colocam Florença, já tão degradada, em risco? Por que motiv
o? E responde-me mais uma pergunta: há ali algum justo?"
"O ódio excessivo os levará ao combate, e o partido selvagem, triunfante, expulsará fe
rozmente o outro. Ao cabo de três sóis, chegará o momento de ser derrotado pelos venci
dos, graças a alguém que age em favor de ambos os lados. Então este vencedor, ousado,
atormentará os do outro partido, que se submeterá, envergonhado. Só há dois justos, mas
ninguém lhes dá ouvido. A soberba, a avareza e a inveja têm incendiado o peito dos flo
rentinos." Resumiu-se a isso sua previsão.
Eu lhe disse: "Dê-me mais informações: será um favor a este que deseja te ouvir. Onde es
tão Farinata e Thegghiaio, de alma justa, Jacó Rusticucci, Mosca, Arrigo, e outros t
antos, de grande virtude? Diz-me se os verei, amigo; quero muito conhecer seu pa
radeiro, isto é, se estão no inferno ou no céu. Respondeu-me: "Acham-se entre os que p
enam da forma mais cruel, lá no fundo, pois são muitos os seus pecados. Se lá fores, i
rás encontrá-los. Quando voltares ao saudoso mundo, narra aos de lá meu fado, meu torm
ento. Vou me calar agora; retornarei ao silêncio profundo". Então, fitou-me com seus
olhos imóveis, de viés, e, curvando a fronte, caiu entre os mais cegos.
Disse o mestre: "Eles esperarão assim, em sono incessante, o angélico chamado, quand
o os for julgar o Onipotente. Cada qual deixará a triste tumba, ressurgindo na car
ne e na figura, e ouvirá a voz que no céu ecoa eternamente".
Assim, caminhando lentamente pela mistura de sombras e de chuva, falávamos da vida
futura. Então, indaguei: "Mestre, depois da sentença final esse suplício crescerá? Terá i
gual efeito? Será mais brando?" "Lembra", disse-me, "o velho fundamento: Verás que q
uanto mais o ser se eleva com o bem, mais cresce o sentimento da dor. Embora est
a gente fadada à treva nunca atinja a altura da perfeição, após o Juizo sentirá mais dor."
Percorremos a extensão do Círculo discorrendo acerca de temas que não repito, até descer
para outro escuro Círculo, onde vimos Plutão, grande inimigo.
Canto VII
Montando guarda à entrada do quarto Círculo, Plutão, com palavras cheias de ira, tenta
amedrontar Dante. Neste Círculo encontram-se os pródigos e os avarentos, condenados
a rolar enormes pesos e a se injuriarem mutuamente. Depois, descendo ao quinto
Círculo, os poetas deparam os irascíveis, mergulhados no Estige.
Pape Satan, pape Satan, aleppe!"bradou Plutão, com voz rouquenha. Para que eu me m
antivesse tranqüilo, meu sábio mestre disse-me: "Faze desaparecer de tua mente aterr
ada todo o susto! Plutão não pode nos tolher a entrada". Voltando-se então ao vulto ne
gro de ódio, gritou-lhe: "Cala-te, lobo horroroso! Consome a ti mesmo com tua ira!
Se descemos ao abismo tenebroso, é que assim dispôs o alto, onde Miguel subjugou os
rebeldes orgulhosos". Como o mastro que, caindo, traz as velas consigo, o feroz
inimigo baqueou-se por terra. Então o quarto Círculo se abriu, e seguimos adiante n
o horrendo abismo, ao qual o mundo envia todo seu mal.
Justiça divina! Por que acumulas tanta dor e sofrimento? Por que a venda da culpa
nos molesta? Como, em Caribde, duas ondas encontram-se e ambas se quebram, espum
antes, assim eu vi turba com turba se chocar. Um sem-número de almas rolava fardos
de um lado a outro com extrema dificuldade, muito ofegantes e gritando atrozmen
te. Investiam umas contra as outras, até se encontrarem violentamente; depois grit
avam, retrocedendo: "Por que dissipar?", e "Por que gastar?" Repetiam este movim
ento indo de um lado a outro do Círculo, apregoando sem cessar seu bordão.
Subjugado pela piedade, indaguei: "Mestre, há razão para se acharem aqui? Os que estão
à esquerda são clérigos para usarem tonsura?" "Por serem moralmente transviados", tor
nou-me ele, "entregaram-se ao desperdício, como testemunham suas próprias bravatas a
o outro grupo. Aqueles desprovidos de cabelos foram papas, clérigos ou cardeais, d
ominados pela torpe avareza."
Disse eu: "Em meio a tantos, mestre, decerto haverá muitos a quem conheci, conspur
cados pelo pecado vergonhoso!"
Tornou-me ele: "Estás errado. A obscuridade em que viveram lá em cima tornou-os cá emb
aixo ocultos a qualquer identidade. Assim como os vês permanecerão pela eternidade;
ao ressuscitar, uns terão as mãos fechadas, e outros, quase nada dos cabelos. Por fa
zer mau uso das coisas, por mal guardar, viram fechadas as portas do Céu, e sofrem
agora tormentos que as melhores palavras não conseguem descrever. Que com isso po
ssas ver quanto é ilusória e vã a porfia dos homens que na Fortuna situam a finalidade
principal da vida. Todo o ouro que se acha sob o Sol não bastaria a dar repouso a
uma só destas almas".
"Dizei-me, mestre: essa Fortuna de que falas - que coisa é realmente, para exercer
tal domínio sobre as criaturas?"
E ele a mim: "Criaturas cegas, quanta ignorância vos conturba a mente. A ti, porém,
direi o que penso. Deus, cujo saber transcende a todas as coisas, ao criar os Céus
criou também seus guias, que de uma parte a outra parte esplendem, graças à luz que l
hes foi concedida; assim também criou dispensadora de graças para os esplendores hum
anos dando-lhes regras e limites, para que em tempo hábil os bens enganadores muda
ssem de nação a nação, de raça a raça - mudança que se dá mesmo contra a vontade e o esforç
os. Pois eis que um povo domina, outro sucumbe conforme os caprichos da Fortuna,
serpente que na relva da campina se esconde. Contra ela de nada valem o vosso p
oder e o vosso querer; ela provê, ajuíza e rege em seu domínio, como sobre ela mesma a
vontade divina reina. Vai provendo as suas mudanças sem cessar jamais, pois ser v
eloz é imperativo da Fortuna. É por isso que, no mundo, a sorte muda tão rapidamente.
Tal é a Fortuna, amiúde insultada com censuras injustas, mesmo por aqueles que teria
m razões para louvá-la. Feliz, porém, nada disso ela escuta. Primitiva como as criatur
as originais, basta-lhe ser como é. Mas agora desçamos a ver espetáculo ainda mais tri
ste. Já desmaiam as estrelas que brilhavam ao partirmos; é preciso que nos apressemo
s".
Assim, atravessamos o círculo, até uma fonte cujas águas ferventes haviam escavado o p
róprio leito. Sua água era negra. Acompanhando o seu curso, chegamos a um pantanal,
por nome Estige, formado pelo ribeiro triste que seguíamos ao pé de suas escuras mar
gens. Eu percebi sombras vagando no pântano. Estavam desnudas, cobertas de lodo, e
traziam irritação no semblante fosco. Flagelavam-se, não apenas com as mãos; também da ca
beça, do peito e dos pés faziam azorragues. Com os dentes, dilaceravam membro a memb
ro.
o sábio mestre assim falou: "Eis as almas dos que pela ira foram vencidos. Sob ess
a água imunda há gente que suspira muito, fazendo em borbulhas fremir as ondas por t
oda a extensão que tua vista alcança. Imersas no lodo, recitam estas palavras: Trist
es fomos sob os doces ares que o Sol aquece e que nossa ira toldou. Hoje, mais t
ristes somos neste negro lodo'. Assim se lamentam com voz vacilante".
Caminhamos ao longo da onda escura, descrevendo arco pela borda enxuta, mirando
a multidão perdida. Assim deparamos uma torre.
Canto VIII
Os dois poetas - que ainda se encontram no Círculo Quinto - atravessam o Estige na
barca de Flégias, chegando às portas da cidade de Dite, ou Lúcifer, a qual reúne todos
os demais Círculos do Inferno. Não conseguem, contudo, entrar na cidade.
Ainda longe da torre, olhamos para o seu ponto mais alto. Notamos ali dois facho
s lançando luz muito viva; respondia-lhes um terceiro, de tão longe que mal se podia
divisar sua luz. Indaguei àquele que conhecia o sentido de todas as coisas: "Que
dizem esses dois lumes? Que responde o terceiro sinal? E quem os acendeu?" Respo
ndeu-me:
"Se o nevoeiro permitir, através desse charco imundo logo verás a quem desejas".
Nunca corda alguma de arco expediu frecha tão veloz quanto era rápida a barca que di
stingui singrando em nossa direção, tripulada por um único galeote, o qual gritava: "E
nfim chegas, ó alma perversa!"
"Flégias, Flégias, (1) de nada te servirá gritar", disse-lhe o mestre. "À tua mercê nos te
rás apenas o tempo que dure a travessia." Como quem se dá conta de haver incorrido e
m grave erro, Flégias reprimiu sua cólera.
Meu guia entrou para a barca, fez-me segui-lo, e foi só então que o barco se inclino
u. "Dante exercia peso sobre a embarcação, pois conservava seu corpo; já com os outros
tal não ocorria, pois eram sombra."
* (1) Personagem mitológico. Flégias incendiou por vingança o templo de Apolo, o qual
lhe violara a filha amada. *
Assim que o guia e eu nos acomodamos, a antiga proa, abrindo sulco profundo como
jamais fizera, partiu. Singrávamos o estagnado plano quando aproximou-se um vulto
, coberto de lama, e perguntou-me: "Quem és, que vens antes de tua hora?" Respondi
-lhe: "Vim, mas não para ficar. E tu, quem foste para acabares imundo assim?" Resp
ondeu: "Sou apenas um que chora!" Falei-lhe: "Permanece a sofrer no lodo mergulh
ado, ó espírito maldito! Embora desfigurado, eu te reconheço". (2) Ele, então, pousou am
bas as mãos na borda do barco, mas o mestre prontamente o repeliu, bradando: "Junt
a-te aos outros cães, maldito!" Em seguida, o mestre abraçou-me e beijou-me o rosto,
dizendo: "Nobre alma, bendita quem te concebeu altivo e digno! Aquele espírito, n
o mundo, foi sobremodo orgulhoso. Não deixou memória de bondade; e mesmo aqui ainda
esbraveja. Quantos reis há, tidos por grandes na terrena vida, e que baixarão como p
orcos a se revolver neste lodo, deixando lá acima lembrança daninha!"
Falei: "Mestre, de bom grado veria esta criatura mergulhar no mais profundo ante
s que terminemos de cruzar este lago". E ele: "Antes que a margem oposta divisem
os, verás satisfeito teu desejo". Pouco depois testemunhei a turba demoníaca tortura
r aquele farrapo enlameado de gente. E eram tais que, ao recordá-los, louvo e agra
deço a Deus. "Maldito Filipe Argenti!", bradavam; e a florentina sombra, contra si
se revoltando, mordia-se em feroz loucura. Depois disso, dele não fiz mais caso.
* (2) Trata-se de Filipe Argenti degli Adimari, desafeto do poeta, que aqui se v
inga do adversário vitorioso no terreno da política. *
Entretanto, um lamento golpeou-me os ouvidos. Para a frente estendi o olhar enqu
anto o bom mestre explicava: "Filho, Dite (3) já está próxima. É cidade habitada por uma
turba miserável". E eu disse: "Mestre, creio distinguir as suas torres de vigia,
rubras como se revestidas de chamas". Ele explicou: "É o fogo eterno que as faz ve
rmelhas, pois ali dentro lavra chama voraz, como já vistes neste Baixo Inferno".
Aproximamo-nos de profundos fossos, quaís valos que a praça circundassem; os muros p
areciam de ferro. Não sem antes traçar largo giro, arribamos a um sítio onde o barquei
ro com voz poderosa mandou: "Saiam, essa é a entrada!"
À porta havia mais de mil demônios iguais àqueles que um dia o Céu de si expulsou. Brami
am de cólera. "Quem é este que, sem ser morto, penetra o reino dos mortos?" Meu sábio
mestre lhes acenou convite para em segredo parlamentarem. Sustando seu iroso des
dém, responderam: "Vem tu sozinho; fique onde está o atrevido que penetrou neste rei
no. Que retorne, se puder, pela estrada que percorreu desavisadamente. Tu, no en
tanto, ficarás, pois que o tendes guiado até aqui".
Não pode o leitor imaginar meu sobressalto ouvindo tão terríveis palavras. Temi nunca
mais poder retornar.
"Ó venerável guia!", implorei, "que mais de sete vezes me confortaste, não me abandone
s neste perigo iminente e desgraça imensa. E se prosseguir nos é vedado, juntos torn
emos e prontamente partamos."
* (3) Cidade infernal, entrada para as regiões mais profundas do Inferno. *
Ele porém, que tão distante me havia conduzido do ponto inicial, acalmou-me: "Não tema
s, eles não poderão nos vedar a passagem que por Deus nos foi designada. Espera por
mim, alça o espírito abatido, alimenta-o com a esperança de que não serás abandonado neste
horrendo mundo".
o bondoso pai afastou-se. Em meu íntimo, a esperança e o receio se alternavam. Não pud
e ouvir o que ele lhes propôs. A demora foi curta e logo, à pressa, os malditos se r
ecolheram para dentro da cidade. A porta rijamente fecharam diante do mestre, o
qual retornou para mim, com passos lentos. Tendo baixos os olhos e despido o olh
ar da antiga segurança, murmurou: "Quem me negou entrada na cidade dos que choram!
"
E disse-me: "Não te deixes abater por minha aflição. Hei de vencer a resistência que nos
tolhe o acesso à cidade! Essa audácia do inimigo não é nova, já foi provada em outra port
a, que sem ferrolho agora está. Viste-a comigo, e leste a soturna inscrição do cimo. V
indo do alto, já desce a este reino da iniqüidade um Ser que prescinde de guia, e po
r suas virtudes nos franqueará as portas da cidade".
Canto IX
Os dois poetas, sem poder entrar em Dite, tentam encontrar solução para seus problem
as. Um anjo lhes abrirá as portas do Círculo Sexto, onde heréticos jazem em sepulcros
inflamados.
A palidez que cobrira meu rosto ao ver assim tornar o guia levou-o a recuperar-s
e depressa de sua própria turbação. Quedou-se então atento, qual homem que perscruta e p
rocura ouvir; pois a treva e a neblina espessa o impediam de enxergar bem.
"É preciso não esmorecer...", murmurou, "pois socorro hábil nos foi prometido... Ó quant
o tarda a sua chegada!"
Percebi que o sentido receoso das suas primeiras palavras fora emendado, nas seg
uintes, por outra idéia que pronto lhe ocorrera. A mim, contudo, vencera-me o rece
io; eis que, levado pelo temor, dera a tais palavras intenção pior do que a que real
mente tinham. Indaguei: "A este fundo do páramo infernal, onde o esperar também é duro
sofrimento, desceu jamais alguém do Limbo?"
Respondeu: "Raras vezes percorremos estes descaminhos que baixam ao abismo. É verd
ade, porém, que já de outra vez, esconjurando-me, para cá me enviou Eritone (4), bruxa
que sabia como ligar os espíritos às carnes mortas.
* (4) Feiticeira invocada por Pompeu na véspera da batalha de Farsália. Pouco antes
dessa batalha morrera Virgílio. Virgílio se declara o enviado de Eritone ao Inferno
para buscar o espírito a ser ressuscitado. *
Havia pouco que das carnes me desnudara quando sua magia fez-me adentrar esses m
uros a fim de retirar um espírito ao círculo onde Judas se acha. É esse o lugar mais f
undo e infame, o mais distanciado do Céu. Eis por que conheço bem o caminho, estejas
certo disso! Este pântano, que tão horrível cheiro exala, circunda a cidade dolorosa,
onde sem luta não lograremos entrar".
Não me recordo o que mais disse, pois fixara os olhos no cimo da torre chamejante
onde surgiram, com horripilante aspecto, três Fúrias, tintas de sangue, feminis nos
membros e nos gestos, de verdes hidras cingidas, ostentando sobre a cabeleira se
rpentes e cerastas enrodilhadas na fronte.
Conhecendo-as como servas da rainha da dor e do acerbo pranto, apontou-as a mim,
dizendo: "Observa as ferozes Erínias. A da esquerda é Megera; a que à direita chora é A
lecto; a que vês entre as duas é sífone". Isso dizendo, calou-se.
As Fúrias usavam as unhas para rasgar o próprio peito, batiam palmas, levantavam tão a
lto clamor que, atemorizado, ao poeta me acheguei. Olhando-se fixamente, elas gr
itavam: "Vem, Medusa, vem transformá-lo em pedra, pois não está ainda bem castigado o
assalto do ímpio Teseu". (5)
"Volta-lhes as costas e mantém cerrados os olhos, pois se Górgona (o rosto infernal
de Medusa) puder fixar-se em teus olhos, jamais retornarás a seu mundo!", avisou-m
e meu mestre; e, juntando as suas mãos às minhas, cobriu-me os olhos com presteza.
* (5) Teseu desceu ao Inferno para raptar Prosérpina; condenado por isso a não mais
voltar, ele enganou as Fúrias e regressou ao mundo. Querem elas vingança contra Dant
e. *
Ó vós, que tendes a inteligência sã, buscai perceber o sentido exato que nestes versos,
por vezes, está oculto!
Súbito, sobre as turvas águas, reboou violento e espantoso estrondo. As praias ouvir
am-no; semelhava o impetuoso vento que, em contrários ardores se excitando, castig
a a selva incessantemente e raivoso agride, abate, carrega os ramos, e por uma n
uvem de pó vai precedido, pondo em fuga tanto a fera quanto o pastor.
Descobrindo meus olhos, disse o mestre: "Aguça a vista até a espuma antiga (o rio Es
tige), onde a neblina fica mais forte".
Como rãs que, descobrindo serpente voraz, no seio das águas buscam refúgio, indo encon
trar abrigo no fundo do charco, assim vi milhares de espíritos fugindo em desordem
à passagem de um ser que, a pé enxuto, cruzava as águas do Estige. Ao seu redor, o vu
lto dissipava toda neblina com o agitar da mão esquerda, e apenas esse esforço turba
va a divinal pureza do rosto. Dei-me conta de que se tratava de enviado celeste.
Voltei-me para o mestre, que me fez sinal, ordenando-me inclinasse, mudo e quie
to, ante aquele ser. Ah! quão pleno de desdenhosa ira este se me afigurou! Apenas
tocou de leve com sua vara na porta e ela se escancarou.
O enviado bradou no limiar do funesto sítio: "Ó ignaras criaturas do Céu expulsas, de
onde tomastes tamanha audácia? Como resistir à vontade divina, contra a qual força alg
uma jamais pôde se opor, e que em muito pode aumentar vossas dores? Julgai estar e
m vós o opor-se à Providência? Tende na lembrança Cérbero, vosso igual, que inda traz marc
ado o mento e o colo". Tornou logo a refazer o caminho pelo qual viera, sem mais
falar, parecendo ter a mente ocupada com preocupações em nada relacionadas ao probl
ema com que acabara de lidar.
Seguimos em direção à cidade, confiantes naquelas palavras santas. Entramos sem encont
rar resistência. E eu, que desejava ardentemente ver o que guardavam em seu recint
o as muralhas ultrapassadas, tão logo me vi dentro delas, para toda parte dirigi o
olhar. E percebi, de cada lado, uma campanha infinda, plena de dores e de penas
inacreditáveis.
Assim como o Ródano, em Arles, se transforma em brejo; como em Pola, junto do Guar
naro que banha a fronteira da Itália, o chão se vê desigual e incerto pela sucessão de túm
ulos inumeráveis, assim era o lugar por onde passávamos. Mais triste, porém, dado que
entre os sepulcros serpenteavam chamas dedicadas a manter as tumbas inda mais es
braseadas do que a arte de amoldar requer do ferro. Abertos, os túmulos deixavam e
scapar gemidos lancinantes.
"Mestre", disse eu, "que gente é esta que desse modo deixa ouvir seu sofrer imenso
?" E ele: "Aqui estão reclusos os heresiarcas e seus seguidores. Bem mais do que p
odes julgar, estão cheias essas tumbas. Aí se encontram iguais com iguais, réus dos me
smos crimes; as tumbas queimam segundo a gravidade da heresia feita."
Seguiu então rumo à direita, e passamos entre a muralha e os supliciados.
Canto X
No Sexto Círculo, onde os dois poetas ainda se encontram, Dante dialoga com Farina
ta e com o pai do poeta Guido Cavalcanti, seu amigo.
Entre a muralha e as campas tormentosas - uma via estreita -, caminhamos. o mest
re ia à frente, e eu o seguia.
Pedi a ele: "Tu que és a sabedoria e que me conduzes por esta estância infernal, sat
isfaz o meu desejo de bem conhecer este lugar. Aqueles que habitam estes sepulcr
os podem ser vistos e entrevistados? As lápides estão erguidas e não se vê nenhum guarda
". Ele então me respondeu: "Todos esses túmulos serão de novo, e então eternamente, sela
dos, no dia em que, regressando de Josafá, os espíritos trouxerem o corpo que na Ter
ra tiverem deixado. Aqui se encontra Epicuro com todos os que, seguindo-o, profe
ssaram a doutrina da morte da alma junto com a do corpo. Quanto ao desejo que ma
nifestaste, será mais satisfeito, como também será esse desejo que não revelaste, mas qu
e alimentas". Acudi: "Bondoso guia, com satisfação abriria meu coração, mas aprendi cont
igo a valer-me das palavras com parcimônia".
"O toscano, que vivo conseguiste penetrar na cidade ígnea e que disso fazes modéstia
, concede parar um pouco. o teu acento mostra claramente que foste nascido nessa
nobre pátria à qual suponho ter sido um dia molesto." Subitamente, tais palavras su
biram de uma das tumbas, causando em mim tamanho medo que me aproximei do mestre
, receoso. Ele, porém, tranqüilizou-me: "Que fazes? Vê, é Fitrinata que em seu túmulo se l
evanta. Podes vê-lo, da cintura para cima".
Contudo eu já o fitava, olhos nos olhos, e ele, altivo, empinava o peito e a cabeça,
parecendo desdenhar o próprio Inferno. As animosas mãos do meu guia, por entre as m
uitas sepulturas, conduziram-me para aquela, enquanto me dizia: "Fala-lhe, mas c
om jeito".
Mal aproximei-me da tumba, olhou-me o ocupante e com gesto severo e desdenhoso p
erguntou: "Quem foram teus antepassados?" Eu, que desejava obedecer, nada lhe oc
ultei, dizendo claramente quanto sabia a respeito. Os sobrolhos arqueando em men
oscabo, comentou ele: "Ferozes adversários foram de mim, de minha gente, de meu pa
rtido. Por duas vezes eu os dispersei..." De pronto retorqui: "Se foram expulsos
, souberam voltar de todos os exílios; os vossos, entretanto, não puderam aprender t
al arte".
Ao lado dele, do sepulcro, surgiu então outra figura, o rosto nos voltando. Creio
que havia estado sobre os joelhos. Ao meu redor olhou, como se à procura de alguém q
ue comigo peregrinasse. Depois que sua esperança dissipou, disse-me em prantos: "S
e a este cárcere escuro podes baixar por prêmio às tuas virtudes, onde está meu filho? P
or que não vem contigo?" E eu a ele: "Não vim por vontade minha. Esse que me espera é
meu guia, a quem vosso filho Guido não deu o devido apreço". Respondi-lhe diretament
e porquanto as suas palavras e a pena que sofria haviam-no identificado.
Levantando-se subitamente, gritou: "Por que disseste que meu filho não lhe deu o m
erecido apreço? Ele não vive mais? Não mais a doce luz solar ofusca seus olhos?" Intui
u a verdade pela demora que pus em responder; tombou de costas e não pude mais vê-lo
.
O espírito que me havia interrogado antes não mudara o aspecto, não arfara o peito, não
movera o flanco durante este breve diálogo. Prosseguiu: "Se a arte de voltar não deu
lustro ao meu nome, tal coisa me causa sofrimento ainda maior que o deste leito
maldito. Mas não terá a rainha do Inferno mostrado ao mundo cinqüenta vezes a sua fac
e acesa (1) sem que experimentes todo o amargor que em tal arte existe. E se con
seguires tornar ao convívio humano, possas explicar por que se mostra o nosso povo
, por intermédio de suas leis, tão desumano para com os meus".
Respondi-lhe: "É levado a decisões tão drásticas pela lembrança do morticínio que tingiu de
vermelho as águas do Árbia". (2) Inclinando a cabeça, suspirou e disse: "A essa batalh
a não me dirigi sozinho, nem lutei sem levar razões. Mas estive só quando na reunião do
Conselho, de rosto descoberto, defendi Florença contra os que desejavam a sua ruína"
.
"Que teus descendentes conheçam a paz", bradei; "mas desata o véu que envolve o meu
confuso raciocínio. Se bem entendo, o curso do futuro te é possível conhecer. Quanto a
o conhecimento do presente, procedes de modo bem diferente do de outros."
* (1) Prosérpina, rainha do Inferno, é aqui identificada com a Lua. Antes de se pass
arem quatro anos, Dante seria exilado de Florença.
(2) Foi às margens deste rio que se travou sanguinolenta batalha entre bandos riva
is de Florença, com a vitória do gibelino Farinata. *
Explicou-me: "Assim como os que têm a vista defeituosa, enxergamos melhor os suces
sos distantes do que os próximos. Para os fatos do presente, falta-nos lucidez, e
os que chegam nos informam o pouco que nos é dado saber".
Mas o guia já me chamava. Apressado, roguei a Farinata nomeasse as almas que dele
se avizinhavam. Disse-me: "Mais de mil jazem comigo. Entre eles, Frederico Segun
do e aquele cardeal... Dos outros, contudo, não falarei".
Volvi meus passos então ao poeta amigo, refletindo sobre o vaticínio adverso que ouv
ira. O mestre, andando, interrogou-me: "Por que te inquietas?" Explicando o agou
ro, respondi à sua pergunta. Ordenou-me, então: "Conserva na memória quanto contra ti
escutaste". E indicando o alto com um dedo, continuou: "Quando estiveres diante
daquele cujo olhar tudo ilumina, tomarás conhecimento de quanto te reserva o futur
o".
Tomou a esquerda; distanciando-se do muro, conduziu-me para o centro da campina.
Por um atalho, passamos a um vale que tresandava.
Canto XI
Ao pé do sepulcro do Papa Anastácio, Virgílio explica demoradamente a Dante como se di
stribuem os pecados no Inferno.
Alcançamos o cume de uma alta penedia, formada por blocos de rudes rochas, avistan
do abaixo um sem-número de almas sujeitas a castigos ainda mais temíveis. Do pavoros
o abismo subiam emanações de tal modo pestilentas que fomos obrigados a recuar para
o abrigo de túmulo monumental. Na tampa, li: "Guardo o Papa Anastácio, a quem Fotino
desviou do caminho reto". (1)
"Paremos um pouco na descida", propôs Virgílio, "pois convém acostumar o olfato ao mau
cheiro. Assim não sofremos tanto seus maus efeitos." Disse-lhe eu: "Então, mestre,
faz com que o tempo da espera não fique sem proveito". Respondeu-me: "Cuidei disso
". E prosseguiu: "Nesta rocha que descemos são três os círculos escavados, iguais aos
que atrás deixaste; estão cheios de condenados. Para que bem os conheças com um só passa
r de vista, ora te vou dizer quais os pecados aqui punidos, e quais castigos serão
aplicados.
"Todo mal que é cobrado nesses degraus tem origem na prática da injustiça, seja pela v
iolência ou pela fraude. Sendo a fraude vício especialmente cultivado pelo homem, co
m maior rigor é punido pelo Céu: o réu de semelhante pecado sofrerá no mais fundo Infern
o.
* (1) Fotino, diácono de Tessalõnira. teria levado o Papa Anastácio à heresia. *
"Reserva-se o primeiro círculo aos violentos; este círculo divide-se em três partes, u
ma para cada tipo de violência. A Deus, a si próprio e ao próximo o violento ofende, a
gindo contra as pessoas ou os bens que elas possuam, conforme agora explico. Ao
próximo, violenta na pessoa, matando-o ou ferindo-o; também o violenta nos seus bens
, destruindo-os, incendiando-os ou deles se apossando. Homicidas, agressores, sa
queadores e ladrões acham punição no primeiro dos três fossos.
"São castigados no segundo os que em si mesmos puseram mão violenta, ou em seus have
res, privando-se de viver em vosso mundo ou dissipando os bens com os quais pode
riam viver dignamente.
"Os homens agem de modo violento contra Deus se o negam; se, perdidos em raiva,
blasfemam ou menosprezam a natureza e os dons que desta ema nam. Por isso, no te
rceiro fosso está recluso o usurário de marca maior, que, tal e qual Sodoma, represe
nta os que ofenderam a Deus.
"A fraude, seguida por eterno remorso, é praticada traindo-se a confiança conquistad
a ou tramando danos contra o próximo que confia. Quem por este segundo modo ofende
a doce lei do amor fraterno encontra seu castigo no círculo segundo. Nele se acha
m os hipócritas, os aduladores, os falsários, os mistificadores, os rufiões, os simoníac
os e outros do mesmo jaez.
"Trair a confiança violenta os afetos verdadeiros que a natureza inspira em almas
simples. É, pois, sobre os traidores que pesa o maior castigo. No menor dos três círcu
los, onde tem assento Dite, a alma do traidor pena continuamente."
Disse eu: "Mestre, tua explicação foi claríssima; fez-me conhecer como é disposto este bár
atro e quem o habita. Mas dizei-me: os iracundos mergulhados na fúnebre lagoa, os
luxuriosos castigados pelo vento, os gulosos sob a chuva incessante, os pródigos e
os avaros em contínuo disputar, por que não estão reclusos na cidade demoníaca? Não acend
eram eles também a ira divina? E se não, por que assim são torturados?"
O mestre respondeu: "Foram acaso varridos de tua mente aqueles sãos princípios a que
sempre foste submisso? Que sentido dás ao teu raciocínio? Esqueces porventura a cla
ra lição da Ética, de que três são as disposições condenadas pelo Céu: malícia, bestialidad
ontinência, sendo esta a que menos se castiga? Se bem aceitas esta doutrina reta e
a memória te recorda quem viste além do muro sofrendo penitência, concluirás que com ju
stiça aqueles e estes sofrem separados; porque sendo menos grave a culpa, menos pe
sado é seu castigo".
"Tua lição é como o Sol", eu lhe disse. "Ilumina meu discernimento. Tanto bem me fez a
explicação que a dúvida transformou-se em deslumbramento. Desse modo encorajado, peço-t
e que expliques como a usura ofende a Deus violando a lei do Céu".
Então, Virgílio assim falou: "A filosofia ensina, a quem a estuda, que a natureza se
origina no Divino Intelecto e em Sua Arte. Também a Física logo ao princípio revela q
ue o engenho humano segue, imita, como o aluno ao mestre, as criações do Eterno Arti
sta. A obra humana é neta de Deus, dele descende. Se lembrares o Gênese, entenderás qu
e o homem retira da natureza o seu sustento e a felicidade. O usurário, no entanto
, nega a ambas, desprezando a natureza e o modo de vida que ela ensina, pois out
ros são seus ideais. Mas agora segue-me, é hora de continuar: eis que Peixes assoma
no horizonte e sobre o Cauro a Ursa ora descansa. (2) Inda há muito que descer".
* (2) Indicação de que a Aurora se aproxima. *
Canto XII
Descendo ao sétimo Círculo, que é guardado pelo Minotauro, os dois poetas deparam os q
ue praticaram violência contra o próximo; estes se acham mergulhados em sangue ferve
nte.
A trilha pela qual descíamos era tão rude, tão desprovida de encantos, que a todo olha
r causaria assombro.
Lembrei-me daquele precipício que se vê sobre o Adige, aquém de Trento, produzido por
terremoto ou porque as águas abalaram o leito. Do alto, de onde escorreu o monte a
té a falda, é tão íngreme a escarpa que parece impossível a descida. O mesmo aspecto apres
entava o desfiladeiro, em cuja borda, ereto na penedia abrupta, velava Minotauro
, monstro nascido de falsa vaca, terror e suplício dos cretenses. Apenas nos desco
briu, pôs-se a morder-se furiosamente, qual homem que não domina a cólera. Meu sábio mes
tre gritou-lhe: "Acaso pensas que este que vem comigo é o príncipe ateniense que no
mundo terreno te venceu e deu morte? Refreia-te, besta; este jamais ouviu as lições
de tua irmã. Peregrina para conhecer as penas que se pagam neste poço".
Como o touro que, sob golpe mortal, perdendo o tino, já não pode reger-se e vacila p
ara cá e para lá, assim o Minotauro abandonou-se à impotência.
"Depressa", gritou meu guia, "passa depressa, enquanto a besta queda paralisada
pelo furor." Baixamos então àquele solo coberto de pedras que gemiam ao peso de meus
pés, carga a que não estavam acostumadas.
Notando meus receios, disse o poeta: "Não te assuste esse monte de pedras soltas,
reino da fera brava que há pouco silenciei. É bom que saibas: da outra vez em que de
sci ao Baixo Inferno, essa montanha ainda não havia ruído. Mas pouco antes de vir -
se bem me lembro -, Aquele que a Dite tornou valiosa presa no primeiro círculo, o
vale tremeu tão fortemente e abalou o mundo inteiro; de tal modo que pensei ocorre
r uma nova Criação, pois muitos crêem que várias vezes o mundo voltou ao caos. Naquele m
omento essa velha rocha rompeu em muitas partes. Mas observa o vale, já se vê o rio
de sangue onde os homicidas são castigados".
ó cupidez cega! Fúria desumana, que durante a curta existência a muitos desgoverna, co
nduz para sempre à perdição! Divisei dali um vasto fosso que, em forma de arco, abrang
ia o horizonte, tal como o anunciara o guia. Pela margem, como barreira erguida
sobre o rio, vigiavam esquadrões de centauros, manipulando flechas como se caçassem
no mundo terreno. Vendo-nos descer, pararam, e três deles contra nós avançaram, tendo
as flechas prontas para o disparo. Um gritou: "A que pena vindes destinados, vós q
ue baixais da encosta? Dizei daí mesmo ou disparo". Meu mestre atendeu: "Responder
emos somente a Quíron. Quanto a ti, domina o furor, pois dele conseguiste tão-soment
e o mal".
Tocou-me, e me disse: "Esse é Nesso, o que morreu por amor a Dejanira e ao morrer
vingou-se de seu matador. o do meio, com o olhar voltado para o peito, foi aio d
e Aquiles: é o famoso Quíron. o outro é Folo, sempre em ira. Milhares de outros centau
ros estão pela margem, flechando as almas que se elevam acima do nível que lhes marc
a a pena no poço de sangue fervente". Chegados junto dos ágeis monstros, Quíron, servi
ndo-se do fundo de uma flecha, separou a barba que lhe ocultava a boca. Tendo de
scobertos os lábios, observou aos companheiros: "Perceberam que o que vem por último
afunda as pedras sobre as quais pisa? O mesmo não ocorre com os pés dos mortos". Me
u mestre, colocando-se junto àquele ponto no centauro onde a natureza humana une-s
e à natureza animal, explicou: "Ele vive. E a mim incumbe mostrar-lhe o vale maldi
to. Necessidade, e não prazer, move-o. Interrompendo lá no Céu os cantos celestiais, u
m ser bendito "Beatriz" confiou-me tal encargo. Não é ele um condenado, nem eu sou u
m perdido. Em nome, pois, daquele Poder que me anima a percorrer tão horrendos cam
inhos, destaca um de teus centauros para nos mostrar onde cruzar o rio de sangue
, e para levar a este na garupa, pois, não sendo alma, voar não pode".
Voltando-se para a direita, Quíron ordenou a Nesso: "Serás o guia e cuidarás que os no
ssos não os perturbem".
Conduzidos por este guarda, fomos costeando as ondas vermelhas, ouvindo os grito
s dos que nelas cozinhavam. Viam-se almas mergulhadas até os olhos. O centauro exp
licou: "São os tiranos, os que viveram da pilhagem e do sangue derramado. Aqui são p
agos impiedosos danos. Aqui chora Alexandre, e o fero Dionísio, que por muitos ano
s flagelou a Sicília. A cabeça na qual vês cabelos negros é de Azzolino; a de cabelos lo
uros é Obizzio d'Este, que foi morto por um bastardo".
Virgílio disse-me: "Por ora, dá atenção primeiro a ele; eu serei segundo". Pouco além, o c
entauro pôs-se a fitar multidão de espíritos que sustentavam apenas a cabeça fora da vor
agem sanguinosa. o guarda explicou-me apontando um solitário: "Esse feriu diante d
e Deus um nobre coração que o Tâmisa ainda relembra". Havia outras almas, tirando do r
io em ebulição apenas o busto ou a cabeça. Pude reconhecer muitos dos que vi.
o nível do rio baixava até o ponto onde mal cobriria os pés. Foi onde vencemos o canal
fervente. "Aqui o fervedouro não tem leito profundo", ensinou o centauro. "Fica p
orém sabendo que o seu fundo desce acentuado para a banda oposta, até o pélago onde ge
mem, imersos em trevas, os déspotas do mundo. Ali, com mão de ferro, a justiça divina
castiga Átila - carrasco da Terra - e Pirro e Sexto faz que chorem sem cessar, e r
edobra a agonia de Rinier da Cometo e de Rinier Pazzi, salteadores sem coração, pelo
mal que nas estradas praticaram."
E se foi pelo vau, discretamente.
Canto XIII
No segundo recinto do Círculo Sétimo, os dois poetas encontram os que praticaram vio
lência contra si próprios, e os violentos contra os próprios bens; os suicidas são trans
formados em árvores, e cães ferozes perseguem e destroçam os dissipadores.
Nesso ainda não chegara à outra margem quando adentramos uma floresta de tal modo es
pessa que por trilha alguma era cortada. Sua fronde não era ver de, mas escura; não
eram lisos seus ramos, e sim nodosos, e deles pendiam, em lugar de frutos, farpa
s venenosas. As bestas ferozes que buscam abrigo nas brenhas desertas de Cecina
e Corneto (1) ali estariam bem escondidas.
Em semelhantes árvores nidificam aquelas hórridas Harpias que, em tempos remotos, in
duziram os troianos a abandonar as ilhas Estrófades, anunciando-lhes perigos os ma
is cruéis. Largas têm as asas; o colo e o rosto de mulher; garras no lugar dos dedos
; emplumado o ventre volumoso. Seus lancinantes gritos ecoam por toda a horrenda
floresta.
Disse a mim meu mestre: "Antes que prossigamos, fica ciente de que estamos no se
gundo recinto e nele estaremos enquanto houver deste tenebroso areal. Repara e hás
de ver coisas aptas a justificarem o que a tal respeito já comentei".
Vinha-me de todos os lados aiar dolorido, mas eu não alcançava vislumbrar os que ass
im gritavam.
* (1) Lugares nos quais, ao tempo de Dante, escondiam-se animais selvagens. *
Detive-me, confuso e angustiado. Creio que o guia supôs estivesse eu acreditando p
rocederem os gritos de turba que entre as árvores de nós se houvesse escondido. Ele
observou: "Se quebrares um ramo dessa fronde, verás que teu pensar não é correto".
Arranquei então o ramo de um galho. E o tronco clamou: "Por que me partes?" Cobrin
do-se logo de negro sangue, prosseguiu: "Por que me feres? Não possuis um mínimo de
piedade? Já fomos homens, hoje somos lenho; mas se fôssemos almas de serpente, menos
cruel tua mão seria".
Como o lenho verde que, atirado ao fogo, de um lado se contorce, do outro crepit
a por ação do vapor dele desprendido; notei que daquele ramo partiam sangue e vozes,
o que foi motivo para deixá-lo cair, quedando-me espantado.
Socorreu-me meu sábio guia, dirigindo-se ao malferido: "Se este houvesse dado crédit
o ao que a tal propósito antecipo em meus versos (2) deixar-te-ia ileso. Para que
acredite neste mistério, levei-o a fazer-te mal, proceder que a mim me pesa. Mas d
ize-lhe quem foste e ele, em troca, ao voltar ao mundo dos vivos, conforme lhe é c
oncedido, há de celebrar o teu nome".
E o tronco: "Acedo, pois é confortador e amigo o teu falar. Não te aborreça, entretant
o, que os detenha um pouco mais, sobre meu passado dissertando. Fui aquele a que
m o Imperador Frederico entregou as chaves do seu coração; com elas, quer dissuadind
o quer persuadindo, usei métodos tão suaves que a ninguém permiti partilhar os seus se
gredos. Nesse empenho fui constante e fiel, nele perdendo a tranqüilidade e a saúde.

* (2) Na Eneida, Virgílio menciona episódio semelhante quando Enéias arranca ervas nas
cidas sobre o túmulo de Polidoro. *
Porém a inveja, meretriz que do trono dos césares não desvia o torvo olhar, peste e víci
o dos palácios, acendeu contra mim o ódio do mundo e desse fogo inflamou o imperador
, o qual, retirando-me as honras, cobriume de mágoas. Desenganado, acreditando pel
a morte suprimir o desgosto, para comigo fui carrasco. Pelas raízes novas deste tr
onco eu juro: ao meu senhor jamais faltei à fé jurada. Rogo àquele de vós que regressar
ao mundo: um nome honrado seja a memória que houver de mim, vítima que fui, destruído
pela inveja". (3)
o tronco emudeceu. Mas o poeta exortou-me: "Se mais queres saber, e se ele se ca
la, fala-lhe; não percas tal oportunidade". Respondi: "Fala-lhe tu, que ficarei sa
tisfeito em ouvir; pois a piedade me paralisa". Virgílio então lhe disse: "Para que
este vivo generosamente cumpra o que lhe pediste, ó alma encarcerada, ajuda-o, rev
ela como pode o espírito ligar-se a um tronco e se tais cadeias rompendo é possível li
vrar-se".
Da miserável árvore partiu sopro rijo que em voz humana isto fez ouvir: "Serei breve
e preciso na resposta. Quando homem violento, dominado pelo furor, voluntariame
nte apaga a sua vida, é atirado por Minos ao sétimo círculo. Cai, ao acaso, no meio da
floresta, qual semente germina e se faz árvore, cuja fronde serve de pasto às Harpi
as, as quais, provocando a dor, a esta abrem a janela que são os gritos. No dia do
Juízo Final, como os demais iremos procurar os nossos corpos sem podermos jamais
nos revestir deles, pois em vida os rejeitamos. Serão arrastados para aqui e perma
necerão pendentes dos galhos da árvore na qual a alma acha-se prisioneira".
* (3) Este é Pier delle Vigne, secretário e confidente do Imperador Frederico II, qu
e mandou prendê-lo e cegá-lo. *
Nós nos mantínhamos ao pé da árvore, esperando que a voz continuasse a nos falar, quando
nos surpreendeu um rumor intenso, igual àquele que anuncia ao caçador, pelo estalar
dos galhos e o uivar dos cães, _a aproximação do javali. Súbito, pela esquerda Irromper
am dois espíritos a correr, nus, maltratados, em desespero tamanho que na fuga rom
piam os obstáculos. Gritava o da frente: "Vem, ó morte!" O segundo, sempre mais atrás,
bradava: "Lano, tuas pernas não foram assim tão ágeis lá no Topo!" (4) E tombou sem força
s sobre o ervaçal. Perseguia-os um bando de cadelas negras, velozes, ferozes quais
mastins deixados a seu talante. Investiram sobre o espírito caído, fizeram-no em pe
daços e retiraram-se.
Meu guia tomou-me pela mão e levou-me para junto do ervaçal, o qual, também ferido, em
vão exalava queixumes débeis: "Por que, ó lacopo da Santa Andrea, junto de mim vieste
procurar refúgio? Por que devo com minha dor resgatar tua culpa?" Meu mestre lhe
perguntou: "Quem és, que por tantas feridas nos fazes ouvir reclamo tão doloroso?"
Respondeu-nos ele: "Ó almas que juntas contemplais o meu estado!, aliviai o meu so
frer, recolhendo os ramos partidos e juntando-os às suas raízes. Nasci naquela cidad
e que trocou pelo Batista o seu antigo patrono, mudança que de tal modo a malquist
ou com o deus antigo que, se na ponte sobre o Arno não restasse um sinal do velho
culto, talvez não pudesse recuperar-se de seus males e com isso malograsse o esforço
dos que a reedificaram quando Átila a reduziu a pó. Ali enforquei-me em minha própria
casa".
* (4) Referência a Pieue del Topo, batalha sangrenta. Os perseguidos são Ercolano da
Siena e Iacopo da Santa Andrea, dissipadores conhecidos. *
Canto XIV
No terceiro recinto do Sétimo círculo, os dois poetas ouvem o orgulhoso Capâneo, rei d
e Tebas. Neste recinto se acham os violentos contra Deus, contra a arte e contra
a natureza, os quais são atingidos por uma chuva de fogo que nunca cessa.
Genuíno amor à pátria moveu-me em favor daquele desgraçado. Reuni os ramos dispersos e o
s dei ao ervaçal, já fraco de tanto que falara.
Não demoramos a alcançar o limite entre o segundo e o terceiro recinto, onde presenc
iei horrível obra da justiça.
Para descrever com clareza o que vi, direi que chegáramos a um campo deserto sobre
o qual planta alguma vegetava. De um lado cercava-o a selva de braços dolorosos;
do outro, tal como a própria selva, era cingido pelo rio de sangue. Temeroso, ali
pousei os pés, quando a areia grossa e seca recordar me fez aquela outra que no pa
ssado Catão pisara.
Ó justiça divina, quem não te reverenciará entendendo o que aos meus olhos foi manifesto
!
Almas nuas choravam lamentosamente, por meios vários purgando culpas. Parte dessa
multidão jazia pela areia; sentada mantinha-se outra porção, enquanto terceiro bando g
irava sem cessar. Este último era turba especialmente numerosa e menor a dos que,
imóveis no sofrer, com seus lamentos demonstravam uma dor maior.
Em todo o areal, lentamente tombava uma chuva de fogo, igual à neve a descer sobre
a serrania, estándo ausente o vento. Assim viu Alexandre, nas cálidas regiões da índia,
chuva de labaredas requeimar o solo e os seus soldados, havendo ordenado que pi
sassem as chamas à medida que caíam, para que em incêndio não se juntassem elas. Desse m
odo, descia ali do céu aquele ardor eterno, qual fagulha reunida à estopa, o torment
o duplicando aos condenados. Eles agitavam sem parar as mãos, na esperança de anular
o efeito da chuva de faíscas.
Disse eu: "Mestre, que sobre todos os anteriores obstáculos triunfaste, com a só exc
eção da furiosa malta de demônios que em Dite nos cortou a estrada, dize-me quem é esse
espírito altivo que não foge ao fogo!"
Percebendo ser o objeto de minha curiosidade, a própria sombra respondeu: "Continu
o, morto, a ser o que fui em vida. Pode Júpiter cansar no trabalho o seu forjador
de raios, com os quais, no último dia, saciou em mim o seu furor vingativo; pode a
tivar os seus ciclopes na forja de Mongibello, a negra oficina, incitando-os aos
gritos de Acode, bom Vulcano, ou serei vencido!', como gritou na batalha de Fle
gra, nem assim conhecerá a vingança".
Virgílio então respondeu, com um tom de voz enérgico como eu jamais ouvira: "Capaneu,
a quem a morte não diminuiu a soberba: sofre por isso a maior pena. Não há castigo igu
al ao teu nem se concebe punição capaz de cobrar tamanha fúria".
E de modo mais brando, dirigiu-se a mim: "Foi um dos sete reis que sitiaram Teba
s. Parece que a Deus vota desdenho, menosprezo. Ouviste porém o que eu lhe disse:
a sua ira está em proporção ao seu castigo. Agora, segue-me, cuidando para que não se qu
eimem teus pés nessa areia ardente; é preciso mantêlos sempre junto ao bosque".
Fomos caminhando em silêncio, até onde vi jorrar do bosque riacho tão vermelho que ain
da de seu rubor a lembrança me atormenta. Fluindo cálido pela areia, recordou-me o B
ulicame, rio eleito pelas mulheres de vida pecaminosa. As margens e a orla, de a
mbos os lados, assim como o fundo do leito, eram em pedra, proporcionando caminh
o a quem tivesse coragem de segui-lo.
"Dentre tudo de mais assombroso que te foi revelado desde que cruzamos aquela po
rta que a todos dá acesso, nada viste que se iguale a este arroio, que apaga quant
a chama sobre si caia." Havendo assim o guia excitado o meu desejo de conhecer d
etalhes, roguei que continuasse a falar.
Ele disse: "Jaz em meio ao mar um país agora desolado, por nome Creta. Sob o mando
de Saturno, conheceu a idade áurea. O monte Ida, de aprazível aspecto, ali se ergue
, hoje esquecido como ruína mas àquele tempo apreciado por suas águas e bosques. Réia es
colheu-o para seguro berço de seu filho, fazendo cobrir os vagidos do menino com g
rande alarido. Há nas entranhas desse monte um ancião venerando que, voltadas as cos
tas para Damieta, tem os olhos postos em Roma como em espelho embevecedor. De ou
ro fino é a sua cabeça; de pura prata o peito e os braços; em bronze o tronco; de ferr
o as pernas menos o pé direito, que em argila é moldado e sobre o qual, mais do que
sobre o outro, está ereto. Salvo pelo ouro, tudo o mais que o constitui destila um
fio de lágrimas que, reunidas, geram uma fonte que, de rocha em rocha, baixa a es
tes negros vales, forma os rios Estige, Aqueronte e Flegetonte, chega ao lugar m
ais profundo do Inferno, onde se forma o Cocito - o qual hás de conhecer no devido
momento".
Disse a ele: "Como se explica que, provindo tal água do nosso mundo lá acima, vemo-l
a apenas neste lugar horrível?"
E ele: "Sabes que este lugar tem forma circular. Sendo assim, embora já tenhamos p
ercorrido parte extensa, baixando à esquerda, ainda não o cruzamos inteiro. Portanto
, não sejas dominado pelo espanto diante de novos acontecimentos".
"Mestre", insisti, "por onde correm o Flegetonte e o Letes? A respeito deste nad
a dizes; do outro contas ser filho desta chuva de lágrimas humanas".
Virgílio assim respondeu: "Esse curso rubro que aí vês, fervendo, responde a uma parte
de tua pergunta. Quanto ao Letes, hás de vê-lo, mas fora do Inferno, pois é onde as a
lmas já redimidas vão purificar-se". E continuou: "É tempo de nos afastarmos desta flo
resta. Sigamos junto da margem, pois ali o furor das chamas se apaga".
Canto XV
Os dois poetas, ainda no terceiro recinto do sétimo Círculo, deparam os sodomitas, q
ue sob o fogo não cessam de mover-se.
Fomos por uma passagem empedrada, defendida, como também a água, contra a chuva de f
ogo, pelo vapor que da torrente se elevava. Eram essas margens iguais aos diques
erguidos pelos flamengos temerosos da ação marítima, entre Bruges e Cadsand; ou àqueles
outros que os paduanos levantam para opor-se às águas do rio Brenta antes de que o
degelo comece em Quiarentana. Eis como eram as bordas desse rio medonho, embora
um construtor prudente não lhes fosse dar tal altura nem tal espessura.
Já afastados da selva - tanto que, voltando a cabeça, não poderia vê-la -, deparei compa
cta multidão de almas que, sob a ardência das chamas, avançava costeando a pedregosa m
argem, tendo fixos em nós os olhares, com a insistência que o caminhante põe ao encont
rar outro caminhante, ao fim do dia, sob luz escassa. Contraíam os olhos para nos
ver, como faz o velho alfaiate para enxergar a agulha.
Terminado o exame minucioso, um deles me reconheceu; puxou então minha roupa e bra
dou: "Ó prodígio!" Fixei nele os olhos e embora o ardor eterno lhe houvesse requeima
do as faces pude ver, mais na memória do que na retina, o seu retrato vero. Erguen
do para ele a mão, exclamo: "Ó Brunetto! (1) vós aqui!?"
* (1) Brunetto Latini, o mestre predileto de Dante. *
E ele: "Filho, consente que teu Brunetto por um pouco refaça o caminho, a teu lado
, deixando esta triste companhia". Respondi-lhe: "Se depender de mim, por longo
tempo ficarei te ouvindo". Mas ele: "Filho, se um de nós, condenados que assim pur
gamos pecados, por um só momento sustar os passos, por cem anos, em paga, ficará imóve
l, torturado pelo fogo. Caminha e seguirei perto. Falaremos e depois voltarei a
juntarme aos míseros que sofrem e choram".
Não ousei descer da margem para caminhar ao seu lado, mas para ele inclinei revere
nte a fronte, a ouvi-lo. Ele começou: "Que sucesso ou destino, antes da morte, par
a aqui te conduziu? E quem é esse que o caminho te mostra?"
Respondi-lhe: "Antes de haver na Terra o meu tempo de vida cumprido, vi-me perdi
do em vale desolado. Ontem pela madrugada pude deixá-lo, quando este que vai comig
o me socorreu e me reconduz a casa por estrada singular".
E ele: "Tua estrela ainda há de te conduzir a gloriosa altura, se bem vaticinei em
vida. Se eu não houvesse morrido antes de poder dar-te bons conselhos, vendo o Céu
para contigo tão benigno, tua tarefa em muito teria auxiliado. Mas esse ingrato po
vo que do povo de Fiesole descende e guarda a natureza dura da pedra será teu inim
igo, porque és bom. Isso já era de se esperar; pois entre os ásperos ramos do sobreiro
não pode frutificar o doce figo. Uma velha tradição os diz cegos, orgulhosos, avarent
os e invejosos. Evita o contágio de seus muitos vícios. Tamanha será a tua glória que os
partidos te disputarão; mas de todos eles conserva-te afastado, pois serás sua pres
a. Revolvem-se os vícios fiesolanos em seu próprio lodo, mas poupam ao lodo a planta
que na esterqueira germinou de semente santa (1) para cantar e glorificar o nom
e romano ali deixado, quando tanta malícia se ergueu".
Então eu disse: "Fosse meu querer considerado lá no Céu e a branda luz terrena ainda a
nimaria teus olhos, pois a tua veneranda imagem vive em minha memória desde quando
lá no mundo hora a hora me ensinaste como pode o homem imortalizar-se. Enquanto v
ivo for, reconhecido, ao mundo inteiro hei de proclamá-lo. Quanto ao agouro sobre
o meu futuro, guardo-o junto a outro bem funesto. Sábia dama há de explicá-lo se a sua
presença eu for admitido. No mais queda-te certo de que estou pronto a arrostar o
s golpes da sorte adversa. Os males que profetizaste já me haviam sido ditos. Como
quer que a Fortuna gire a sua roda, dela não cuido, como não reparo de que lado o c
amponês deita a sua enxada".
Então Virgílio, volvendo para a direita, virou-se para trás e me disse: "Melhor aprove
ita quem põe mais atenção ao que lhe narram".
Continuei conversando com Brunetto enquanto caminhava. Pedi que indicasse os mai
s famosos de seus companheiros; ele atendeu: "Quanto a alguns deles, farei como
pedes. A respeito, porém, da maioria, é louvável deixá-los no silêncio, mesmo porque o nos
so tempo é curto. Fica sabendo que foram letrados - alguns até famosos clérigos -, man
chados pelo negro e igual pecado. Nessa turba vão marchando, sob a chuva afogueada
, Francisco d'Accorso e Prisciano. (2)
* (1) Dante orgulha-se de descender dos romanos, que, com os fiesolanos, fundara
m Florença.
(2) Francisco dAccorso, jurisconsulto; Prisciano, gramático. *
Poderia mostrar-te outro se tanta infâmia não te repugnasse. É o que o servo dos servo
s - o papa - transferiu do bispado do Arno para o de Bacchiglione, onde morreu.
Poderia dizer mais; porém, o andar e o falar mais longos não podem ser. No areal, en
tre a nuvem afogueada e vaporosa, entrevejo aproximar-se outra multidão de almas e
não nos é permitido estar em turba diferente. O meu Tesouro eu recomendo a teus cui
dados, pois só por causa dele lá no mundo sou lembrado".
E assim partiu, veloz como o corredor velocíssimo que nas festas de Verona disputa
em corrida a glória de conquistar o pálio verde. E ao correr, mais parecia ser o qu
e ganha do que o que é derrotado.
Canto XVI
Os poetas permanecem no sétimo Círculo, e encontram um novo grupo de sodomitas. Ante
s de descerem ao oitavo Círculo, Virgílio invoca uma presença que irá fascinar Dante.
Alcançamos uma paragem onde se ouvia o ribombar da água tombando para o círculo seguin
te, lembrando o ruído de enxamear de abelhas; súbito, de uma turba que passava a gem
er sob o peso do castigo pluvial, separaram-se três almas e dirigiram-se correndo
em nossa direção. Bradavam: "Pára, ó tu que pela vestimenta mostras ser de nossa brava t
erra!".
Que horríveis chagas vi, novas e antigas, cobrindo seus membros. Só com o recordá-las,
sinto terrível tristeza.
o mestre, que os ouvira, voltando para mim o rosto, concedeu: "Espera e atende a
os seus pedidos. E não fora pela chuva de fogo própria do lugar, a pressa seria mais
apropriada a ti do que a eles".
Notando que parávamos, voltaram a gritar e ao nosso redor vieram formar círculo fech
ado por suas mãos unidas. Assim como os lutadores, na arena, tendo já o corpo untado
, estudam-se procurando o ponto fraco do adversário, aqueles três, sempre me encaran
do, moviam o corpo menos o rosto, de tal sorte que a face e os pés ficavam às vezes
opostos.
Um deles então disse: "Se a miséria a que fomos reduzidos, se o funesto aspecto de n
ossa comburida face te leva a desprezar nosso pedido, que a fama de nossos nomes
terrenos supere tal desânimo e te induza a nos dizer quem és - tu que, antes de fin
dar a vida na Terra, o Inferno pisas. Malferido e nu, como ora vês a este outro de
nós três, lá no mundo desfrutou poder imenso. Descendente de Gualdrada, chamou-se Gui
do Guerra na vida que ilustrou com a mente e com a espada. O que vem depois é Tegg
hiaio Aldobrandi (1), a cujos conselhos e trabalhos devera nossa pátria ser grata.
Eu, que com eles partilho a pena, fui Jacó Rusticucci (2) e a causa principal dos
meus pecados foi ter uma mulher má".
Não fosse aquele fogo terrível, eu os abraçaria. Nisso, creio, teria o mestre consenti
do. Mas pelo fogo teria sido consumido; assim, em meu peito o medo venceu a vont
ade de ir consolá-los abraçando-os.
Contudo, eu lhes disse: "Não desprezo, e sim mágoa a vossa triste sorte em mim excit
a. E tanto que a custo é que hei de dissipá-la. Tão logo ouvi de meu guia que gente il
ustre nos viria ao encontro, soube que éreis vós, assim que vos deparei. Vim de voss
a cidade onde sempre reverenciei vosso nome e os grandes feitos que vos deram ho
nras. Quanto à minha viagem, levado por este guia veraz, vou deixando as amarguras
deste sítio em busca dos doces pomos celestiais. Mas é forçoso que passe ainda pelo C
entro da Terra e suba por ali".
* (1) Florentino de grande prestígio; Dante, ao falar a Ciacco (canto VI, verso 79
), mostrou-se preocupado com seu fim.
(2) Jacó Rusticucci, nobre florentino, coberto de ridículo pelas humilhações que sua mul
her lhe impunha. *
"Que a alma fique por muito tempo ainda em teu corpo, e a glória de teu nome seja
resplendente!", exclamou o condenado, que prosseguiu: "Mas dize-nos se em nossa
cidade a honra, o valor ainda residem, ou se dali foram expelidos pelo ódio, que a
tudo corrompe; pois Guilherme Borsiere, chegado há pouco e junto a nós sofrendo nes
ta fogueira, trouxe-nos a esse propósito notícias desalentadoras".
Bradei, de cabeça erguida: "Chefes improvisados, fortunas repentinas, acenderam em
Florença tal soberba e tamanhos vícios que de maus resultados ela mesma se arreceia
". Os três, que às minhas palavras estiveram atentos, entreolharam-se desgostados da
verdade. Tornaram: "Feliz de ti, se com tamanha franqueza e sempre expões teu pen
samento. Com isso, grande fama hás de granjear. Mas, pedimos-te, quando voltares a
mirar as estrelas, deixando este lugar horrendo, e jubiloso puderes dizer eu es
tive lá de fato!', não permitas que nossos nomes sejam esquecidos no mundo dos vivos
!" Então, desfazendo o círculo, partiam. Velozes, como se de asas munidos, desaparec
eram antes mesmo que eu pudesse dizer amém!
Por isso o mestre pôs-se a caminho e aos seus passos seguiram-se os meus. Havíamos p
equena distância percorrido quando de água a cair ouvimos o fragor, mas já tão próximo e tã
forte que para a voz um do outro ser ouvida, gritar-nos não seria bastante. Tal q
ual o rio que abre o seu caminho e, em Veso nascendo, flui para oriente, ao lado
esquerdo dos Apeninos, e, correndo por terras altas, leva o nome de Aquaqueta,
diversamente chamado nas alturas de Forli e que de repente estruge e tomba junto
de São Benedito; assim, das alturas de elevado penhasco rugia em catarata o cauda
l vermelho, com estrondo tal que quase me ensurdeceu.
Mantinha comigo a corda com que havia tentado prender a pantera de pêlo cambiante.
Obediente ao dizer do mestre, desenrolei-a de ao redor do corpo e entreguei-a a
ele. Voltando-se para a direita, ele atirou a corda na direção do precipício. Pensei:
"A este gesto algo de espantoso há de responder decerto, pois q o mestre a segue
com os olhos".
Muita cautela e igual prudência devem ter os homens quando lidam com os que enxerg
am não somente as coisas, mas percebem também o que se pensa. Pois me disse o mestre
: "Logo se realizará o que tens no pensamento. Surgirá depressa o que aguardo".
o homem sábio evita sempre dizer a verdade quando ela possa parecer mentira, a fim
de não ser injustamente tido por mentiroso. Mas nada posso omitir, leitor, do que
vi. Juro por esta Comédia que vi subir, nadando com asas por aquele ar pastoso, e
scuro, uma figura de tal modo assustadora que ao peito mais valoroso e forte cau
saria espanto. Subia, como o marujo que mergulhou para desprender a âncora presa p
or ocultos embaraços e que, subindo, encolhe as pernas e os braços estende.
Canto XVII
Virgílio fala a Gerido, símbolo da fraude. Dante se aproxima dos que praticaram violên
cia contra a arte; estes se acham sentados, debaixo da chuva de fogo. No final,
os dois poetas rumam para o oitavo Círculo no dorso de Gerido.
Meu guia assim falou: "Eis o monstro de cauda pontiaguda, com a qual fura couraças
, atravessa muralhas e montes, e cuja peçonha envenena o mundo!" Acenou depois à fer
a para que baixasse o corpanzil junto de nós, sobre a pétrea margem. Da fraude o vul
to obedeceu ao mandado. Pousou o busto, mas a disforme cauda manteve suspensa no
vazio do abismo. o rosto e as feições, na harmonia da forma e na maciez da pele, de
homem justo pareciam. De serpente era todo o mais do corpo. Os braços ostentavam
pêlos até as axilas; o dorso e o peito perdiam-se em nódoas e torvelinhos. Tantos mati
zes em si revelava como jamais tecelões tártaros e turcos usaram em suas telas; nem
Aracne teceu nada parecido.
E como um barco que tivesse a proa na areia, a popa ainda imerge em água, ou como
os germanos glutões observam o castor entregue à pesca - assim estava o monstro desc
ansando na orla que o precipício cerca. Movia no ar a peçonhenta cauda de ponta bipa
rtida, lembrando o escorpião que se apronta para o golpe.
o guia disse: "Convém nos desviemos do caminho até onde nos apela o monstro que aí vês".
Tomamos, pois, a trilha da direita e, inclinados para fugir ao fogo e ao ardor
da areia, avançamos dez passos. Quando nos aproximamos da besta, pude ver, para além
dela, um bando de condenados sentados junto do abismo.
o mestre sugeriu: "Para que tenhas ciência de quanto neste recinto acontece, aprox
ima-te e conhece quem são aqueles e o que padecem. Mas sê lacônico. Entrementes, pedir
ei a esta fera que nos faça empréstimo de suas fortes espáduas".
Adiantei-me até o limite extremo deste círculo sétimo, indo ao encontro daquela triste
gente. Buscando diminuir a ardência do solo sobre o rosto, continuamente agitavam
as mãos enquanto os olhos, sem parada, lacrimejavam. É assim que no estio agita-se
o cão buscando com as patas e o focinho alívio contra as pulgas, moscas e moscardos
que o atormentam. Pondo reparo nos fúnebres semblantes que o fogo supliciava, não re
conheci um só. Notei porém que do peito pendia bolsa a ostentar sinais e cores heráldi
cos, cuja contemplação parecia tranqüilizá-los.
Andando e observando, vislumbrei impressa figura de leão azul em campo de ouro; ou
tra exibia a brancura de um ganso em fundo sangüíneo. Um que trazia na bolsa figura
de javali azul sobre campo branco interpelou-me: "Que buscas neste abismo? Retir
a-te de imediato, mas antes, embora vivo, fica sabendo que o lugar à minha esquerd
a espera por Vitaliano. Sou paduano entre estes muitos florentinos que continuam
ente me desassossegam com o gritar: Venha para o nosso meio o rei dos usurários, o
que na bolsa traz três chifres esculpidos! Isso dizendo, o danado estirou a língua
para fora da boca e lambeu os beiços, como faz o boi sedento. Eu, porém, receando qu
e a longa demora desagradasse a Virgílio, que recomendara urgência, deixei os conden
ados em seu suplício.
Deparei meu mestre grimpado na garupa do monstro e a me dizer: "Agora, sê forte! M
elhor que o ânimo tenhas preparado! Cumpre que desçamos e este
é o meio. Monta à minha frente! Ficarei entre ti e a cauda venenosa para que ela não v
enha a te ferir". Como o maleitoso que se põe a tremer supondo estar por um acesso
acometido, tendo arroxeadas as unhas só por haver penetrado local de frescura e s
ombra, assim tremi ao ouvir semelhantes palavras. Veio em meu auxílio aquela vergo
nha que muita vez, ante o bom senhor, faz o servo corajoso. Sentando-me sobre as
brutais espaldas, eu quis gritar "acode-me com teus braços!", porém a voz não me saiu
. Mas ele, que já antes tanta coragem me havia transmitido, abraçou-me com força, orde
nando à fera: "Gereão, tem cuidado, que hoje levas carga especial. Desce em vôo tranqüil
o".
Como um barco que deixa suavemente a praia, Gereão alçou vôo e pôs a cauda onde havia de
scansado o peito. E tal qual a enguia toma impulso e ganha movimento, assim fez.
Faetonte, quando da mão perdeu os freios, em desastre de que o céu ainda guarda os
traços, não se quedou mais assustado do que eu fiquei então. Nem ícaro, ao ter as asas d
e cera derretidas e ouvindo ao pai gritar: "Ai que te perdes!", provou pavor mai
or do que eu ao me ver cercado pelo ar apenas, nada enxergando senão a fera. Voamo
s lentamente, e eu sabia que descíamos, pois o ar que vinha de baixo no rosto me b
atia.
Já se ouvia claramente, à direita, a catarata trovejar; ousei voltar os olhos. Estre
meci ao distinguir lampejo de outro fogaréu e o ecoar de alteroso pranto. Encolhi-
me transido, e soube que tocávamos o fundo em virtude dos lamentos que vinham de t
odas as direções.
Semelhante ao falcão que, planando sobre asas, demorou-se muito e, retornando sem
presa, ouviu o protesto de seu dono a lhe gritar: "Como? Já de vol ta?!", e exaust
o e abatido afastou-se do amo, dando-lhe apenas um desdenhoso olhar, assim Gerião
pousou no fundo do vale. E tão logo nos deixou sobre rochedo abrupto, como liberto
de opressivo peso, fugiu de nós mais rápido que uma flecha.
Canto XVIII
Os poetas entram no oitavo Círculo, onde recebem castigo os que cometeram fraude;
estes são distribuídos por dez diferentes valas. Neste canto é narrada a visita às duas
primeiras valas.
Existe no Inferno um lugar chamado Malebolge; é cercado por muralhas de pedra em fér
reo colorido e na rocha escavado. No centro desse campo maldito abre-se um poço mu
ito largo e profundo, de cuja estrutura falarei oportunamente. Tem forma circula
r o labirinto estendido entre o ápice da ribanceira e o fundo, o qual é dividido em
dez covas iguais. Assim como os muros dos castelos possuem fossos que os tornam
mais seguros, estas covas ostentam natureza e desenho iguais àqueles. E mais: qual
fortaleza que estende sobre o fosso e para fora dele a sua ponte levadiça, as cov
as de que falo lançam entre uma e outra pontes, unindo os vales entre si, e termin
ando junto ao poço central.
Tal era o local em que nos encontramos ao descer das espaldas de Gerião. O meu poe
ta tomou à esquerda e eu, após ele, movi-me. O que vi à direita, na primeira das covas
, encheu-me de piedade pelas novas penas e pelos tormentos novos que nelas obser
vei. Marcham nus, lá no fundo, os pecadores. Uns iam em direção oposta à nossa; outros,
na mesma direção que seguíamos, porém com passos mais velozes. Assim, no tempo do Jubile
u, caminhavam em Roma as multidões sobre a ponte que então se inaugurou. De um lado
os que, tendo o castelo à frente, procuravam São Pedro; do outro lado os que seguiam
pelo monte. De um lado e de outro, sobre a rocha tétrica, demônios corníferos apressa
m a marcha dos condenados, fustigando-os pelas costas com grandes azorragues. Quão
rápido moviam os calcanhares logo ao primeiro golpe! Nenhum esperava pelo segundo
, muito menos pelo terceiro.
Andando, mirei um condenado e disse: "Não é esta a primeira vez que o vejo!" Para be
m recordá-lo demorei um passo. Comigo deteve-se o meu bom guia, prontamente consen
tindo que para trás eu me voltasse. Baixando os olhos, o fustigado presumia furtar
-se aos meus, mas não logrou o seu intento. Gritei-lhe: "Ó tu que baixas o olhar! Se
tuas feições não foram muito alteradas pelo castigo, és Venedico Caccianemico! Que peca
do cometeste para seres reduzido a tal estado?"
E ele: "Eu te responderei com má vontade. Cedo ao som desse falar gentil que à memória
me trouxe a felicidade antiga. Fui aquele que induziu sua irmã, a bela Gisola, a
satisfazer os desejos do marquês. Só agora revelo tal acontecimento. Mas não sou, aqui
, o único bolonhês. Estas covas contêm deles número maior do que os que lá no mundo, entre
o Rio Savena e o Reno, usam dizer sipa (1); e se disso quiseres provas, basta-t
e lembrar quanto aquela gente é votada à avareza". Ia dizer mais quando um demônio o g
olpeou, gritando: "em frente, rufião, aqui não há mulheres a que possas explorar!"
* (1) Trata-se de uma referência aos bolonheses, que habitam entre tais rios; em s
eu dialeto, sipa quer dizer seja. *
Voltei para meu guia, e com poucos passos alcançamos lanço do rochedo distendido a u
nir a margem vizinha. Facilmente por ele subimos, e cruzando essa ponte da prime
ira cova nos distanciamos.
No vão da ponte, sítio em que pelo arco abaixo passam os condenados, o meu guia aler
tou: "Pára e procura olhar no rosto desses desgraçados, feições que ainda não observaste,
pois na mesma direção que a nossa eles iam".
Da velha ponte, vi a fileira de frente, pois em nossa direção ela marchava, fustigad
a sem detença. O guia, embora nada lhe houvesse perguntado, diz: "Observa aquele d
e alta postura, a quem a dor não lava o rosto com lágrimas. Quanto de rei ainda exis
te nele! É Jasão, o que mediante ardis e força arrebatou o velocino da Cólquida. Tocou e
m Lemnos, logo depois que as desapiedadas mulheres dessa ilha aos homens todos h
aviam dado morte. Ali, com palavras e modos enganosos, seduziu Hipsípile - donzela
que, por sua vez, a todas as mulheres enganara. Abandonou-a grávida e sem amparo.
Tal culpa, a punição que vês justifica, e a Medéia dá vingança. E a mesma pena receberá qu
como ele enganar. Mas já basta o que sabemos desta cova e dos que nela são torturado
s".
Alcançamos um local estreito, de outra ponte sendo o firme esteio, já dentro da cova
seguinte. Ouvíamos lamentos doloridos dos reclusos na cova segunda, os quais, buf
ando fortemente, com as mãos a si mesmos fustigavam. Eram as ribas encobertas por
feia e negra pasta, que aos olhos horroriza e ao olfato nauseia, produto do cond
ensar-se do hálito dos condenados. o abismo é tão fundo que, para vê-lo, não basta fixá-lo
em subir ao ponto onde o arco mais se alteia.
Subimos, pois, e vislumbramos, no mais profundo do fosso, gente metida em cloaca
tamanha que parecia a única latrina do mundo. Enquanto o fundo com os olhos inves
tigava, notei figura por tal forma coberta de imundícies que sequer consigo decidi
r se de leigo se tratava, se de clérigo. Gritou-me: "Por que me olhas fixamente, só
a mim, e não aos outros condenados?" E eu: "Porque, se bem recordo, já te conheci co
m os cabelos limpos. És Alessio Interminei, de Lucca. Os demais não consigo reconhec
er". Volveu ele, desferindo violentos murros na própria cabeça: "Eis quanto me afund
aram as lisonjas em que minha boca, no mundo, foi hábil e incansável".
Então disse-me o guia: "Faz que teus olhos avancem a modo de poderes fixar a mulhe
r imunda e desgrenhada que toda se arranha com unhas emporcalhadas, quer esteja
em pé, quer deitada. É Taís, a rameira que, ouvindo o amante perguntar: Ainda gostas d
e mim?', respondeu: Como nunca antes!' Mas vamo-nos, já vimos o bastante".
Canto XIX
Os dois poetas, na terceira vala do oitavo Círculo, encontram os simoníacos, enterra
dos de cabeça para baixo em covas abertas na pedra. Apenas ficavam de fora seus pés,
em chamas, e parte das pernas.
Ó mago, ó Simão (1) e seus míseros imitadores, pelos quais as graças divinas inseparáveis d
bondade são adulteradas e trocadas por ouro e prata! Por ti e pelos teus soa a tr
ompa supliciante; eis que estais enterrados na terceira cova!
Indo pela rocha altaneira, erguida a meio sobre o fosso, penetramos em outra cov
a temerosa. Ó suma justiça, total é a perfeição que exibis no Céu, na Terra e no mundo infe
nal! E quão perfeita sois na distribuição de castigos!
Vi, pelas margens e no fundo dessa cova, buracos abertos na lívida pedra. Todos de
igual tamanho e rotundos. Não me pareceram maiores ou menores do que as pias que
na minha formosa igreja de São João serviam para o batismo. Uma dessas pias quebrei,
faz anos, no afã de salvar a alguém que ali se afogava; e se o dano agora revelo é pa
ra que a razão do ato seja conhecida.
Do pecador metido em tal vala ficava de fora a parte que vai dos pés à barriga da pe
rna; o resto do corpo não se via.
* (1) Simão, famoso mago da Samaria, propôs vender aos apóstolos o dom de invocar o Es
pírito Santo. De seu nome vem simonia - negociar com as coisas sagradas. *
Ardiam-lhes as plantas dos pés, acesas por inteiro, e nesse sofrer tanto se estorc
iam que teriam podido romper laços e cordas. Do calcanhar aos dedos corriam chamas
, inflamadas como se flamejassem sobre corpo untado com gordura.
"De quem se trata?", perguntei ao mestre, "quem vejo eu cercado por labaredas ma
is vivas e altas e que mais do que os outros mostra-se agitado?" Respondeu-me: "
Se queres, levo-te ao plano estendido logo abaixo. Ali, dele próprio saberás quem é e
o mal que praticou". Tornei: "Sempre me agrada o que a ti parece justo. És quem co
manda e não me aparto do teu querer, pois conheces os meus desejos".
Descemos, indo à esquerda, até baixar à quarta cova, de fundo estreito, esburacado. O
mestre de mim não se separou senão quando chegamos junto daquele cujo frenético agitar
dos pés indicava sofrimento.
Conclamei: "ó tu, corpo metido no solo qual estaca, se podes, fala-me!" Sentia-me
qual o monge que, havendo confessado o assassino já metido na cova, ouve que este
ainda outra vez o chama para, confessando-se de novo, retardar a execução. (2)
E o mísero gritou: "És tu que por fim chegas a esta vala, ó Bonifácio? Em vários anos erre
i a tua idade. Estás por fim saciado da ambição a que te entregaste, por amor dela pro
fanando e enganando a linda esposa?"
Quedei-me como quem ouve resposta e não a compreende e, aturdido, termina sem pala
vras.
Virgílio, então, disse: "Responde-lhe por este modo: Não sou, não sou quem pensas..
* (2) Dante se sente como um padre chamado pelo assassino que, já a meio caminho d
e ser enterrado uivo, quer ser ouvido em confissão, buscando retardar sua morte. *
Fiz conforme aconselhado. o infeliz, com isso, mais fortemente torceu os pés e cla
mou, com voz de pranto: "Por que, então, tens interesse tamanho em saber quem sou,
a ponto de até aqui alongar o caminho? Fica sabendo que enverguei o grande manto.
Filho de Urso, empenhado em ajudar os meus ursinhos, muitos bens pus na minha b
olsa e eis por que termino aqui embolsado. (3) Abaixo de mim, sobrepostos, muito
s estão que, simoníacos, foram castigados antes de mim. Descerei mais fundo, quando
chegar aquele que ainda há pouco julguei que fosses. Mas o tempo que passei assim
metido, com os pés ardendo, é já mais longo do que o tormento que a ele se prepara. Po
is logo em seguida à sua chegada, e ainda mais carregado de pecados, baixará do Ocid
ente um pastor sem lei, o qual empurrará a mim e ao outro mais para o fundo. Será es
se último um novo Jasão - como se lê no livro dos Macabeus -, condescendente havendo e
ste sido ao seu rei como aquele em aceitar como senhor o rei da França".
Creio ter sido então demasiado rude ao responder, no seu mesmo tom: "Dize-me que t
ipo de tesouro porventura exigiu Nosso Senhor de São Pedro ao lhe confiar as chave
s? Certo que nada pediu a não ser vem comigo!' E nem Pedro nem os mais apóstolos rec
lamaram de Matias ouro ou prata quando o elegeram para o cargo que o traidor hav
ia perdido. Bem te está, pois, a pena que aí sofres. Guarda a moeda vil que extorqui
ste e contra Carlos(4) te fez erguer.
* (3) A Gasconha, de onde procederá o Papa Clemente V.
(4) Carlos de Anjou. *
Não fosse o grande respeito que ainda guardo pelas santas chaves que empunhaste um
dia, durante tua vida regalada, palavras ainda mais duras clamaria, pois tua cu
pidez escandalizou o mundo, serviu de estímulo aos maus, aborreceu os bons. De ti
já se ocupara o evangelista ao ter a visão daquela que pousa sobre as águas, a fornica
r com os poderosos. Nascera com sete cabeças, de dez cornos haurindo forças para man
ter-se esposa virtuosa, enquanto seu esposo é virtuoso. (5) Puseste o alvo em um d
eus de ouro e de prata; és bem a imagem idólatra que, em vez de um deus, adora a cem
! Ah! Constantino, de quanto mal foi causa, não a tua conversão, mas a riqueza que d
oaste ao papa e à qual outras riquezas se juntaram".
Enquanto tais palavras eu lhe dirigia, ele ou de ira incendido, ou por remorsos
pungido, agitava os pés com maior braveza. Porém acredito que minhas palavras tenham
agradado a Virgílio, que sorria ouvindo as duras verdades por mim bradadas. Logo
mais, aconchegando-me ele ao peito, voltamos a subir pelo caminho seguido na des
cida. Cingido pelo seu braço, alcancei do arco o alto cimo - passagem para a quint
a cova. Ali ele colocou-me docemente sobre rocha tão íngreme e esconsa que às próprias c
abras seria obstáculo. Dali, outro vale me foi mostrado.
* (5) As sete cabeças são as virtudes, e os mandamentos, os dez cornos. A esposa ser
ia a Igreja; o esposo seria o papa. *
Canto XX
O cenário agora é a quarta vala do oitavo Círculo; neste recinto se acham mágicos, adivi
nhos e farsantes, os quais têm a cabeça plantada ao contrário no corpo, ou seja, volta
da para as costas.
Este canto - o vigésimo - desenhará a meu talante novas penas que no infernal abismo
reservam-se aos ímpios submersos.
Observava o abismo aberto aos meus pés, vale profundo, do qual vinha um pranto ama
rgo, e vislumbrei, da cova ao longo, multidão de almas caladas e lacrimosas, avançan
do ao passo tardo que no mundo é próprio das procissões. Mais acuradamente observando,
percebi que, de modo espantoso, todo justiçado tinha voltados para as costas o me
nto e o pescoço, caminhando como quem recua, pois lhes era proibido olhar para a f
rente.
Talvez, em virtude de paralisia, haja alguém que traga o corpo assim torcido. Não vi
nem creio que haja. Que a lição, prazendo a Deus, te seja útil, leitor, e por ti mesm
o avalia se me era possível manter os olhos enxutos, com a crescida compaixão que me
trazia o avistar nos condenados a figura humana tão deformada que o seu pranto, d
escido dos olhos, pelas nádegas rolava.
Buscando apoio no rochedo, eu chorava, e com tal estridor que o mestre me disse:
"Como todos aqui, és louco? Aqui, é virtuoso o que piedade não sente - pois quem pode
ser tão perverso quanto o que se apieda do mau castigado pela justiça divina? Ergue
, pois, a fronte e fita aquele que se abismou na terra ante os tebanos que lhe g
ritavam: Para onde te precipitas, Anfiarau, que por tão estranho modo deixas o cam
po de guerra?' E, entrementes, no abismo ele imergia até o sítio onde Minos a todos
aferra. Por haver tentado antecipar o futuro, traz as costas no lugar do peito;
e só pode avançar recuando; e só consegue enxergar o que para trás ficou.
"Lá está Tirésias, que sendo homem, transformou-se em mulher, os membros todos alteran
do; para recuperar o antigo físico, viu-se obrigado a, com um golpe de bordão, separ
ar duas serpentes ligadas entre si. Segue-o Aronte, que às costas a barriga voltou
: no monte Luni, que se ergue ante Carrara, habitou gruta de mármore, à entrada da q
ual, sem obstáculos para a vista, consultava os belos astros e o mar infindo.
"E essa mulher, que oculta os seios em trança flutuante e o corpo traz de pêlos reco
berto, foi Manto, que após errar incerta por muitas terras, naquela onde nasci ach
ou repouso, e a respeito de quem gostaria de que me ouvisses um pouco mais. Vend
o ela que o fim chegava para seu pai, e reduzida à escravidão a cidade de Baco (Teba
s), saiu a girar pelo vasto mundo. Na formosa Itália, há um lago nos Alpes, junto do
Tirol, já na fronteira alemã, que tem por nome Benaco. A água sua formadora provém de f
ontes mil, entre Garda e Val Canonica. Uma ilha no meio se ergue, sobre a qual o
pastor trentino e, como ele, os bispos de Bréscia e de Verona possuem de benzer i
gual direito. No lugar onde a margem largamente se espraia, avulta o forte de Pe
squiera, frontejando Bréscia e Bérgamo. É por aquele local que a água impossível de guarda
r no lago se despenha e corre feito rio, banhando fartamente prados verdejantes.
Nesse correr, recebe outro nome, e perde o antigo. Chama-se então Míncio até o local
onde ao Rio Pó se acrescenta. Quando ainda o seu curso é reduzido, cruza planície a qu
e no estio inunda, formando um pantanal que representa risco à saúde do homem.
"A virgem cruel, passando por ali, percebeu o terreno desabitado, inculto. Assim
, naquele pântano, renegando o convívio humano, fixou-se com seus servos, deu-se à mag
ia até receber da morte o aceno. o povo, que já pelo arredor se repartia, vendo firm
e o lugar que o pântano abraça e protege, levantou sobre a tumba de Manto a cidade q
ue por isso se chamou Mântua. Fizeram-no em sua lembrança e sem de outro nome haver
cogitado. Foi esta, outrora, a cidade mais povoada, antes que a intriga de Pinam
onte e a loucura de Casalodi a prejudicassem. E, por fim, ainda afirmo que se de
outra fonte a minha cidade afirmarem haver nascido, não consintas que a falsidade
substitua a verdade".
Tornei-lhe: "Mestre, o que ensinas é verdadeiro e merece minha fé a tal ponto que, a
isso comparada, qualquer outra lição parece carvão extinto. Mas dize me: outro daquel
es vultos que avançam merece atenção? Nisso, agora, me concentro".
Disse-me ele: "Esse cuja barba escorre do queixo à espádua foi áugure num tempo em que
a Grécia guerreira só nos berços dispunha de homens. Em Áulida, tendo Calcas por igual,
este indicou o tempo da partida da primeira nau. Chamou-se Eurípilo; sua história é r
etratada num de meus versos, bem o sabes, pois no poema embebeste a mente. O out
ro, franzino de figura, foi Miguel Scott, ativo executor de fraudes. Repara depo
is em Guido Bonatti, em cara e dentes, que não deveria ocupar-se senão do couro e da
sovela, infidelidade de que agora inutilmente se arrepende. E eis o cortejo tri
ste das que deixaram a agulha e a roca e puseram-se a praticar toda sorte de mal
efícios com ervas e imagens.
"Mas sigamos; eis que no limite que os hemisférios reparte surge Caim (1) com seus
espinhos, e o mar já vai tocando o baluarte de Sevilha. Ontem, a noite foi de lua
cheia, conforme deves recordar, pois assim a contemplaste, da selva onde te aux
iliou o seu branco palor."
Assim falou-me enquanto caminhávamos.
* (1) Caim: a lua. No tempo de Dante, dizia-se que as manchas lunares representa
vam a figura de Caim a carregar um feixe de espinhos. *
Canto XXI
Os dois poetas chegam à quinta vala do Círculo oitavo, onde são punidos os que se bene
ficiaram de tráfico de cargos e de influência: os corruptos e os prevaricadores, mer
gulhados em betume fervente.
Íamos de uma ponte a outra, falando de coisas que nesta Comédia não cabe comentar, qua
ndo a certa altura nos detivemos a observar a outra cova escura de Malebolge, da
qual subiam lamentos insanos.
Assim como o betume, nos estaleiros de Veneza, ferve o dia inteiro, naquela época
própria para o reparo dos barcos avariados no mar; e todos, ali, labu tam à porfia,
um construindo um novo barco, outro calafetando o costado já muito viajado; uns ma
rtelando na popa e outros na proa; este aparelhando um remo, aquele torcendo ou
cortando o linho, aqueloutro preparando velas grandes e pequenas; assim ali na c
ova eu via ferver o pez. Não por efeito de fogo e sim por disposição divina. Era um pe
z bastante grosso, a tornar viscosas, em toda a sua extensão, as margens do valado
. Observei que a superfície não perdia a efervescência, levantando bolhas que inchavam
e cresciam até estourar, num processo que nunca cessava.
Enquanto eu observava o fundo do pélago, o meu guia alertou: "Cuidado! Atenção!", e de
onde eu estava para onde ele estava atraiu-me. Voltei-me qual o homem que tarda
em reconhecer o perigo de que foi mandado fugir e, vazio de toda coragem, olha
ao redor enquanto foge. Olhando, vi atrás de nós, sobre a rocha, o mais negro demônio
a correr em nossa direção. Como era feroz seu aspecto! E que de ameaças percebi em sua
s abertas asas e em seus pés ligeiros! Sobre os ombros enormes e fortes carregava
um pecador, tendo-o seguro pelos calcanhares.
Alcançando a ponte sobre a qual estávamos, gritou: "Ó Malebranche, eis um dos anciãos de
Santa Zita! Mergulha-o no pez enquanto volto àquela terra onde abundam criaturas
iguais a esta, todas venais, com exceção de Bonturo (1), habilíssimas em, por dinheiro
, transformar o sim em não!" Lançou a vítima ao pez e refez o caminho com mais fúria e p
ressa do que em perseguir ladrão demonstra o mastim para isso estimulado.
O condenado afundou e voltou à tona encurvado como se de joelhos. Sob a ponte, os
demônios gritavam-lhe: "Aqui não há imagem de Cristo diante da qual te devas curvar, n
em se pode nadar como nadavas no Serchio. Se não queres provar a agudeza de nosso
ferir, não te deixes ver fora do pez". Depois de com mais de cem aguilhões fustigar
o pecador, observaram: "Dança lá no fundo a tua dança. E ali, oculto, que roubarás o que
porventura puderes roubar". É com este mesmo falar que, na cozinha, o mestre orde
na aos ajudantes mergulharem no caldeirão a carne que permanece à superfície.
Meu mestre assim falou-me: "Não convém que esses demônios te vejam e te molestem. Busc
a abrigo num desvão de rochedo e aguarda. Quanto a mim, não receies que me possam fe
rir. Sei como aplacar o seu furor".
* (1) Malebranche: nome comum aos demónios do quinto valado. *
Seguiu para além do extremo da ponte; entretanto, quando firmou os pés sobre a sexta
borda e já por ela subia, foi-lhe preciso mostrar coragem no gesto, pois com a fúri
a e o rumor que a matilha põe no acossar o pedinte exausto que parou à espera da esm
ola, assim os demônios investiram-no, brandindo as armas. Gritou-lhes, ousado: "Qu
e nenhum se atreva! Antes, avance até mim um dentre vós, e ouça-me, decidindo depois s
e mereço golpes ou bom tratamento". O bando deliberou: "Que vá Malacoda!" Adiantou-s
e o que se chamava assim, ficando para trás os demais. "Que desejas?", perguntou M
alacoda. Respondeu-lhe o mestre: "Acreditas que eu aqui chegaria, de ti e de tua
s armas não padecendo medo, se não o fizesse por ordem de um querer supremo? Deixa q
ue eu passe, pois esse poder divino dispôs que eu a outrem servisse de guia". Tais
palavras demoliram o orgulho do demônio, que aos pés deixou cair o forcado, ao mesm
o tempo que aos de sua grei clamava: "Este irá sem ser molestado".
Meu guia disse-me: "Tu, que cauto e quieto te abrigas entre rochedos, vem a mim,
sem receios". Pressurosamente, corri ao seu encontro. Os demônios, descobrindo-me
, agitaram-se tão ameaçadores que, aflito, receei não cumprissem a promessa de paz. Ta
nto quanto tremi então, vi tremerem os soldados que saindo de Caprona encontraram-
se rodeados por inimigos. Ao mestre eu lançara braços e corpo, enquanto nos turvos g
estos dos demônios punha bom reparo. Os croques traziam levantados e dois gritavam
: "Quer que o fisguemos pelo costado?", ao que outros responderam: "Sim, sim, se
ja espetado". Mas aquele diabo que com o mestre parlamentara, aos outros vivamen
te ordenando, bradou: "Está quieto, ó Scarmiglione!" (2) E para nós viajantes disse: "
Avançar além, por este caminho, não vos será possível, pois o sexto arco jaz de todo em to
do destruído. Sigam desta borda a direção. Pouco adiante, há rochedo que a passagem favo
rece. Ontem, cinco horas mais tarde do que este instante, fez mil duzentos e ses
senta e seis anos que a ponte para o fundo descaiu. Enviarei alguns dos meus naq
uela direção, para ver se do pez nenhum danado se ergueu. Ide com eles, que nenhum m
al intentarão". Voltando-se para o bando, dispôs: "Calcabrina abrirá a marcha, Alichin
o será o segundo, Cagnazzo acompanhará aos dois, Barbariccia comandará a decúria formada
ainda por Draghignazzo, Libicocco, Graffiacane, Ciriatto, Farfarello e Rubicant
e. Que os condenados não escapem do pez! E quanto a estes dois estranhos, em perfe
ita paz sejam conduzidos até passar o exato lugar da ponte".
Disse: "Que vejo, ó mestre? Se o caminho te é conhecido, partamos sós e de imediato; d
ispensemos tais guias. Prudente sempre foste, continua a sê-lo, pois não vês que eles
os dentes vão rangendo e com furor mal contido nos encaram?" Mas ele a mim: "Não haj
a receio. Deixa-os ranger quanto desejem, pois a fúria endereçam não a nós, mas aos que
no pez sofrem submersos".
Os demônios se voltaram para a esquerda. Antes de marchar, porém, exibiram a língua fo
ra da boca e apontaram-na para seu chefe. Este, por sua vez, voltou-lhes as cost
as e do seu traseiro extraiu sons de trombeta, em postura repelente.
* (2) Nome de um demónio, assim como Calcabrina, Alichino, Cagnazzo e outros. *
Canto XXII
Vi cavaleiros desarmando suas tendas e correndo para a batalha, brilhando em des
files cheios de garbo; vi-os até mesmo em fuga a fim de salvar a vida. Vi vossos c
ampos devastados, ó aretinos. Assisti a cavalgatas, justas e torneios; contemplei
esquadrões manobrando ao som de tubas, címbalos e tambores, ou por sinais hasteados
nas praças fortes. Mas jamais vi nada igual ao demoníaco instrumento de sopro!
Seguíamos, pois, os dez diabos; mas, enfim, na igreja com os devotos e na taberna
com os glutões. No entanto, eu não cessava de observar o pez fervente, procurando co
nhecer quais tormentos e quais atormentados a negra vala guardava.
Assim como o golfinho, arqueando o dorso, avisa ao marinheiro que se deve prepar
ar para a tormenta, aqui e ali, na fervura, alguns condenados, mostrando o lombo
à superfície, procuravam alívio para seu tormento. Mas logo, velozes qual raio, no fu
ndo se ocultavam. E, à maneira de como, à beira dos brejos, a rã deixa ver a cabeça fora
mantendo ocultos corpo e pernas, no pez os pecadores, vislumbrando Barbariccia,
recolhiam-se sob as bolhas. Entretanto, vi um condenado demorar-se à superfície, qu
al rã imóvel, enquanto as companheiras fogem. Tal lembrança sempre haverá de causarme ho
rror! Graffiacane, que lhe estava próximo, célere agarrou-o pela empastada cabeleira
e, como quem da água retira a lontra fisgada, assim o suspendeu. Os apelidos de t
odos os dez demônios eu sabia, desde quando chamados pelo seu chefe. Ouvindo-os en
tão nomear, atentei para o que fariam. "Rubicante, agarra-o pelo costado! Crava-lh
e os ferrões! Arranca-lhe a pele!", gritavam os diabos, excitados.
Pedi: "Mestre, se podes, identifica esse infeliz caído nas garras dos malditos". A
proximou-se-lhe o meu guia e perguntou-lhe pelo sítio de nascimento. "Nasci no rei
no de Navarra" (1) , respondeu. "Depois que meu pai destruiu seus bens e sua vid
a, minha mãe me pôs a serviço de grande fidalgo. O bom Rei Teobaldo fez-me seu familia
r e eu vendi seus favores. Pago agora por isso."
Então Ciriatto - que de cada lado da boca exibia dentes iguais aos do javali - enf
iou-lhe as presas, lacerando-lhe a pele. Entre gatos cruéis fora cair o rato, mas
eis que, abraçando-o, Barbariccia gritou: "Para trás! A mim cabe despedaçá-lo!" E a meu
mestre explicou: "Antes de que o meu bando o dilacere, interroga-o, se algo mais
desejas saber".
O meu guia então perguntou: "Diz-me se entre estes pecadores há algum latino". O con
denado respondeu: "Deixei, faz pouco, um que da Itália foi vizinho. Se em sua comp
anhia ainda estivesse não haveria de temer agora ferrões e farpas". Libicocco interr
ompeu-o: "Acabou-se a nossa paciência!" E ao dizêlo, com sua farpa arrancou ao desgr
açado parte de um braço. De seu lado, Draghignazzo preparava-se para atingi-lo em um
a das pernas, mas o iroso líder do bando demoníaco aos dois encara, moderando-os.
Diminuído o rumor, meu mestre apressou-se em perguntar ao infeliz, que as próprias f
eridas contemplava: "Quem foi essa alma, condenada como tu, que ao subires à tona
embaixo deixaste?"
* (1) Trata-se de Ciampolo de Navarra. Tendo caído nas graças de Teobaldo II, abusou
da confiança real trapaceando e prevaricando. *Explicou: "Frei
Explicou: "Frei Gomita de Galura, que todas as fraudes conhece, protetor dos ini
migos de seu amo. Por ouro os pôs em segurança e os serviu; amealhar fortuna era seu
principal objetivo. Em muitas e várias ocasiões deu prova de que em matéria de falsid
ade foi soberano. Com ele discorre sobre a Sardenha - pátria comum -, em palestras
em que jamais se cansam, Miguel Zanche, o que foi juiz de Logodoro. Mais eu dir
ia se não receasse o avanço desse demônio que se aproxima!" Disse então o chefe a Farfar
ello, que se aprestava para ferir: "Monstro carniceiro, arreda!".
O condenado então prosseguiu: "Se tendes vontade de ver e de ouvir toscanos e lomb
ardos, posso convocá-los até o número de sete, pois é uso entre nós, malditos, assobiar um
som de aviso para os que desejam vir à tona sem perigo. Convém, no entanto, que os
demônios estejam a distância, para que deles os meus iguais não se arreceiem". A estas
palavras, Cagnazzo alçou o focinho e, sacudindo a cabeça, exclamou: "Ah! essa é então a
malícia dos que detestam a fervura?" Ao que o precito respondeu: "E justo que me
toque o título de malicioso, quando aos meus companheiros preparo um acréscimo de do
res?" A esta observação respondeu Alichino: "Se pensas fugir sem castigo, sabe que a
o teu encalço irei, não correndo, mas as asas batendo sobre o pez. Protege-te como p
uderes junto à margem! Se, sozinho, vales mais do que nós é o que veremos".
Agora, leitor, saberás qual foi o ardil. Cada qual dos demônios voltou o rosto, mais
rápido sendo o que maior crueldade demonstrara. O navarrês calculou bem o tempo, so
bre a margem firmou-se e, num átimo, mergulhou rumo à liberdade. Grande desgosto sen
tiram com isto os diabos todos, e em bem maior escala o que fora causa de escapa
da, o qual urrava: "Já te apanho!" Porém o medo foi mais veloz do que a asa, e enqua
nto ao fundo chegava o fugitivo, no ar o perseguidor detinha-se. Assim mergulha
o pato selvagem ao avistar o falcão e este volta, exausto e vencido. Calcabrina, e
nfurecido com o logro, voltou contra seu companheiro as garras e a ira. Raivosos
se atracaram e o outro, gavião feroz, as unhas lhe cravou. Enlaçados, caíram sobre o
pez, cujo calor prontamente os apartou. Mas em vão tentam escapar à fervura, pois su
as asas foram endurecidas pelo betume. Barbariccia, que ao fato assistia, condoe
u-se deles e enviou quatro dos seus, armados de croques, para ajudá-los. Chegaram
velozmente e estenderam os forcados aos companheiros, já quase cozidos pela massa
ardente. E a isso dedicavam-se eles quando partimos.
Canto XXIII
Fugindo da presença dos demônios, os dois poetas conseguem chegar à sexta vala do oita
vo Círculo, onde se acham os hipócritas. Estes desfilam em prantos, revestidos de gr
ossas capas feitas de chumbo.
Seguimos em silêncio, sozinhos, um atrás do outro, como marcham pelas estradas os fr
ades menores. A rixa entre os diabos fizera com que eu evocasse a fábula de Esopo
na qual a rã ilude o rato. Comparando o princípio e o fim de ambos os casos - a rixa
e a fábula -, encontrava-os iguais. E visto que um pensamento imprevisto nasce de
outro pensamento, logo daquele vieram outros pensares, trazendo-me receio. Pois
eu dizia a mim mesmo: "Esses demônios que por nossa causa foram logrados e conhec
eram vergonha, decerto contra nós alimentam rancor. Virão atrás de nós com a fúria que mov
e o cão de caça quando por fim alcança a lebre".
Já o medo me dominava e, olhando para trás, ao meu guia fui dizendo: "Mestre, se não n
os escondermos prontamente, os demônios nos alcançarão. Parece-me ouvi-los". Respondeu
: "Se eu fora espelho, não refletiria tão claramente a tua imagem quanto vejo estamp
ado o que tens na alma. De forma tão exata o teu pensamento coincide com o meu que
um só se fazem os dois pensares. Ou me iludo ou para a direita se inclina a encos
ta. Se baixarmos ao vale próximo ao descê-la, estaremos livres da perseguição".
Não terminara o seu parecer quando os demônios surgiram em seu vôo de asas tendidas, e
não iam longe. Rapidamente o guia tomou-me nos braços, qual mãe que despertando se vê c
ercada por violento incêndio e, apertado o filho contra o seio, foge totalmente ap
ressada que nada além da camisa lhe cobre a nudez. O mestre escorregou comigo do c
imo da riba fragosa para o fundo da cova. Água não despenca mais veloz pela calha qu
e faz girar roda e moinho do que a rapidez com que Virgílio desceu, levando-me est
reitado ao peito qual seu filho, não seu companheiro. E da cova apenas tocara o fu
ndo quando lá em cima os demônios fizeram-se notar, ainda mais irados pelo fracasso
do seu intento. Porém, não havia mais o que recear: a Providência, que da cova quinta
os tornara guardiões, não permitia que na cova sexta ingressassem.
Naquele fundo vimos, após, gente de cor brilhante revestida, a avançar chorando e co
m passos tardos, nos semblantes mostrando fadiga extrema. Traziam, os infelizes,
capa e capuz que os olhos mantinham ocultos, à moda usada entre os monges de Colôni
a. Dourados por fora, são por dentro de plúmbeo tom e assim pesados que, a eles comp
arados, pareceriam de palha as capas de Frederico. (1) E por toda a eternidade t
inham de conduzir o fatigante manto.
Com semelhantes almas ao lado, caminhávamos, a ouvir, atentos, o seu doloroso pran
to. Exaustas sob o duro peso, tão lentamente se moviam que a cada passo nosso tínham
os aos flancos companhia nova. Disse ao meu guia:
* (1) Referência às capas que o Rei Frederico II mandava vestir em seus inimigos - c
apas de chumbo muito pesadas, com as quais os réus eram atirados ao fogo. *
"Teus prestativos olhos sem cessar procurem, a fim de que entre tantos eu identi
fique pecador notável no mundo ou pelo nome ou pelos feitos". E eis que um daquele
s atrás de nós, ouvindo os sons da língua toscam, gritou: "Abrandai a pressa com que a
travessais este sítio infame e vos direi quanto vos interesse ouvir". O mestre então
aconselhoume: "Pára um instante e cadencia teus passos pelos dele". Detive-me e v
i dois vultos que aceleravam seu andar no intento de acercarem-se; não conseguiam
fazê-lo, porém, por causa do peso do manto e da estrada muito ruim.
Com seus vesgos olhos eles fitaram-me longamente, sem falar. Depois, disseram-me
: "Este é vivo, como se pode perceber pelo respirar. E se mortos am bos fossem, qu
al privilégio os exime desta opressora capa?" Clamaram em minha direção: "Toscano, que
ainda em vida vieste conhecer o desfile do triste bando dos hipócritas, não recuses
dizer-nos quem és". Respondi: "Nasci e cresci à margem do formoso Arno, na linda Fl
orença. Ainda tenho corpo mortal. Mas vós, cujos olhos vertem incessantemente tão amar
go pranto, quem sois? Qual penar é o vosso que, dourado na aparência, tanto vos exau
re?"
Disse-me um deles: "Sob o dourado destas capas, tanto peso carregamos que a cada
passo oscilamos como para tombar, quais pratos de balança manejada. Estivemos na
Terra entre os chamados frades gaudentes (2) e somos, ambos, bolonheses. Eu sou
Catalano, e este é Loderigo. Como se pessoa única fôssemos, recebemos o governo de Flo
rença para o cultivo da paz. Em vez disso, as ruínas que ainda se vêem lá em Gardingo fo
ram por nós causadas".
* (2) Eram conhecidos por "Gaadentes"em virtude de sua vida cheia de brilho e fa
usto. *
Principiei a dizer: "Frades, o vosso mal..." e mais não pude, pois diante de meus
olhos mostrou-se um infeliz por três cravos sobre o solo crucificado. Ao me ver, c
ontorceu-se desesperado, suspirou e cuspiu na barba. Frei Catalano, de mim acerc
ado, explicou: "Esse crucificado (3) foi quem sugeriu aos fariseus, invocando o
bem do povo, que a um homem dessem morte. Está nu e estendido sobre a passagem, co
nforme vês, para que de cada passante suporte o peso. Neste mesmo vale, padecem ig
ual suplício o sogro e os demais participantes do Conselho que para os judeus se t
ornou fonte de desgraça".
Virgílio mostrou-se estupefato ao conhecer a identidade do crucificado. Em seguida
a Catalano dirigiu estas palavras: "Dizei, se vos é permitido e de vosso conhecim
ento, se à direita deste recinto existe trilha que dele nos retire, de modo que ta
l auxílio não sejamos obrigados a pedir a algum demônio". Respondeu o perguntado: "Mai
s próximo do que esperais, ergue-se rochedo que se estende para longe, abraçando, so
branceiro, os vales infernais, exceção deste onde não lançou arco. Passareis por brecha
que em aclive conduz ao alto". O guia baixou por instantes a fronte, e afinal co
ncluiu: "Bem erradas informações nos deu aquele que os pecadores tiraniza". E o frad
e: "Já em Bolonha ouvi dizer que entre os muitos vícios do Diabo salta aos olhos o d
e ser pai da mentira e impostor".
O mestre afastou-se rapidamente, o semblante mudado pela ira. Deixando os que pe
navam sob os execráveis mantos, fui seguindo meu guia.
* (3) Caifás, o que aconselhou os fariseus a crucificarem Jesus, e seu sogro Anás. *
Canto XXIV
Os dois poetas logram alcançar a sétima vala do oitavo Círculo. Lá deparam os ladrões, que
correm em meio a serpentes gigantescas; quando picados por elas, reduzem-se a c
inzas, para logo em seguida renascerem.
Na fase do ano novo em que os raios do Sol se fazem ardentes, igualando o dia e
a noite sob o signo de Aquário; quando a geada ainda recobre o campo, perfeita ima
gem de sua irmã, a neve - imagem que logo se desvanece; o pastor, a quem tudo falt
a, sai a reconhecer o campo e, vendo-o esbranquiçado, volta para sua casa lamentan
do-se, tendo já perdido as esperanças. Mas recupera o ânimo ao deparar a terra despida
do triste manto branco, e com forças renovadas, tomando o cajado, apressa as ovel
has rumo do pasto. Semelhante desânimo senti ao perceber coberto pelo desalento o
semblante do meu guia. Mas ele sem demora ao mal deu remédio; tão pronto chegamos à po
nte derrocada, voltou-se para mim, exibindo a mesma serenidade doce demonstrada
no início da nossa jornada. Depois de refletir por algum tempo, examinando o estad
o das ruínas, abraçou-me. E qual o homem que de tarefa complicada antecipa no raciocín
io vários lances, enquanto me ajudava a escalar uma das rochas, para outra, à frente
, olhava e dizia: "Sobre aquela devemos também subir; antes, porém, vejamos se ela p
ode suportar teu peso".
Apesar de Virgílio ser espírito, e de me amparar na subida, era com grande custo que
passávamos de uma saliência à outra. Não sei quanto ao mestre, eu porém teria desfalecido
não fosse a rampa que subíamos bem mais curta que a do sítio precedente. Mas porque M
alebolge inclina-se em direção ao mais fundo do poço infernal, tivemos ali a prova de
que, em cada cova, uma das margens é aclive e declive a outra. Chegamos enfim ao p
onto culminante, onde a última pedra se eriçava. Não pude dar, de tão cansado, um só passo
mais à frente: assim como cheguei, sentei-me.
"Ânimo!", pediu-me o mestre. "Não é cedendo ao ócio nem refestelando-se sobre plumas que
se obtém êxito. Aquele que à inatividade se entregar deixará de si sobre a terra memória
igual ao traço que o fumo risca no ar e a espuma traça na onda. Vence a fadiga e o t
orpor, recobra o ânimo, que das vitórias sobre os perigos, a primeira é a da vontade s
obre o corpo. Pensa que devemos subir muito mais alto e que foi pouco o haver saíd
o desse abismo. Se o que disse te aproveita, demonstra-o." Levantei-me, procuran
do mostrar coragem que não possuía. Disse ao guia: "Sigamos adiante! Sobram-me forças
e determinação!"
Em meio a escolhos, tomamos áspero caminho, mais estreito e hostil do que o anteri
or. Para não dar sinal de fraqueza, eu falava ao caminhar, e eis que ouço, vindas de
outra cova, palavras incompreensíveis, só me dando a conhecer estar irado quem fala
va. Forçando a vista, sondei o fundo do poço, mas aos meus olhos mortais não se fender
am aquelas trevas. Pedi ao mestre: "Desçamos um pouco, pois alguém fala e não o compre
endo; olho e não vejo". Tornou: "Outra resposta não te darei senão a favorável, pois um
pedido prudente deve ser atendido, não discutido".
Atravessando a ponte, atingimos o extremo onde principia a oitava margem, e logo
a cova inteira apareceu. Serpentes incontáveis se embalavam, tão horríveis de ver que
só com o recordá-las nas veias se me gela o sangue. Não mais se envaideça a Líbia de suas
serpes, pois se produz quersos, jáculos, cêncris, faréias e anfisbenas, jamais tal qu
antidade foi mostrada; nem pelas praias do Mar Vermelho, nem no sertão da Etiópia se
viu número e vulto semelhantes.
Pelo meio do feroz e cruel enxame, corria gente desnuda e descomposta, sem jamai
s esperar descanso e a quem não valeria o heliotrópio. Algumas das serpes atavam as
mãos dos infelizes atrás das costas. Outras, apertando a cauda sobre seus rins, unia
m cabeça e cauda no peito do supliciado. E eis que a um dos condenados, próximo de nós
, atirou-se uma das feras e cravou os dentes em sua garganta. Não se escreveu nunc
a um O ou um I mais rapidamente do que o infeliz incendiou-se e virou pó. Estando
por terra derrubado, juntou-se por si a sua cinza, e logo da cinza ele se ergueu
, e se fez tal qual era antes. É assim, conforme os escritos dos sábios, que, ao se
avizinhar dos quinhentos anos, a Fênix morre e logo mais renasce. Nem de erva nem
de grão ela se nutre, mas de lágrimas de incenso, e é de nardo e mirra que faz o leito
para o momento da despedida.
E como o homem que tomba, sem se dar conta, sob o poder do demônio que o sujeita p
or terra, ou cai em convulsões por efeito de um mal qualquer, e depois, recuperand
o os sentidos, ainda atordoado pelo sofrimento, pasmo e estupefato olha ao redor
e suspira; assim recuperou-se o condenado havia pouco perdido em chamas. Ó justiça
divina, quão dura sois! que tamanhos golpes desferis na punição extrema dos pecados!
Meu guia então indagou ao infeliz quem ele era, e este respondeu: "Faz pouco da To
scana precipiteime neste hórrido abismo. Vivi existência reservada a um mulo (1) , e
muito pouco humana. Sou Vanni Fucci, e Pistóia me foi o justo covil". Dirigi-me a
o mestre: "Dize-lhe que não se afaste e pergunta-lhe pelo crime que lhe valeu tal
condenação. Ladrão e assassino sabia já que fora". O pecador, que bem me entendera, não se
esquivou. Voltou para mim o rosto onde a vergonha à tristeza se misturava.
Disse então: "Maior dor me causa o haveres presenciado a minha atual miséria do que
a sofrida no dia em que da vida terrena fui tirado. Mas não negarei o que me pedes
. Nesta fundura me encontro por haver roubado à sacristia de uma igreja alfaias e
ornamentos e desse crime a outrem haver acusado. Mas para que não te seja conforto
o meu padecer, ao saíres destas paragens sombrias, ouve bem o que anunciarei: Pis
tóia expulsará de si a facção dos negros, Florença mudará seus mandantes e sua política. No
l di Magra, o deus Marte prepara um raio (2) que, envolto em torvas nuvens, fará d
esencadear violenta tempestade. Quando o combate houver findado, cada um dos bra
ncos estará ferido. Digo-te tais coisas para deixá-lo sem ânimo".
* (1) Trata-se do nome dado aos filhos bastardos dos negros.
(2) Os partidos negros e brancos achavam-se em luta permanente pelo domínio da Tos
cana. Dante pertencia ao dos brancos. O raio é referência ao Marquês Morello Malaspina
; as nuvens retratam os combatentes negros vindos de Florença, Pistóia e Lucca para
a batalha contra os brancos, travada em Campo Piceno, em 1301. *
Canto XXV
Ainda caminhando pela sétima vala do oitavo Círculo, os poetas encontram peculatários
florentinos, e vêem almas transformarem-se em serpentes e serpentes transformarem-
se em almas.
Terminando de falar, o ladrão levantou as mãos em figa e gritou: "Bom proveito, Deus
, são tuas!". Passei a considerar amigas as serpentes quando uma delas enrolou-se-
lhe ao pescoço, como a dizer: "Não blasfemarás!" Outra já o impedia de erguer os braços, p
or tal modo envolvendo-os que gesto algum podia ele esboçar. Ah! Pistóia, Pistóia, bem
devias reduzir-te a cinzas, de vez que teus filhos avançam no mal para além dos teu
s fundadores. Não vi, em todos os sombrios descaminhos do Inferno, pecador tão orgul
hoso!
Agora calado, o ladrão fugia; porém eis vejo avançar centauro, irado, a perguntar aos
brados: "Onde está o celerado?" Até o ponto onde o homem começa a ser animal, tantas s
erpentes trazia o centauro sobre a garupa que não creio em tal número as possuísse Mar
ema inteira. Na espádua lhe pousava dragão de asas distendidas, a cuspir fogo contra
quem o fitasse. Explicou-me o guia: "Esse é Caco, ladrão que, nas faldas do Aventin
o, muito sangue derramou, comprazendo-se com tais lagos. De seus irmãos não pode goz
ar a companhia por haver, com sutil esperteza, roubado o sacro rebanho que pasta
va vizinho à sua gruta. Ali cessaram seus crimes, pois, como efeito deles, veio a
morrer sob a clava de Hércules, que, dizem, desferiu-lhe uma centena de golpes, do
s quais nem dez pôde sentir".
Enquanto o mestre falava, afastou-se o centauro e deparamos três espíritos já próximos,
nos quais nem eu nem o guia havíamos posto reparo. Gritaram-nos: "(quem sois?", in
terrompendo nossa conversa, pois então somente deles nos ocupamos. Não os reconheci,
mas eis que, assim acontece amiúde, um deles, interrogando o outro a respeito do
terceiro, os denunciou. Perguntara: "E Cianfa, onde está?" A essa voz, volteime pa
ra o guia, pondo o dedo sobre os lábios como a pedir-lhe atenção.
Leitor, se não acreditares no que narrarei não me surpreenderás, pois vi então prodígios e
m que mal ouso acreditar eu próprio. Enquanto aos três observava, serpente com não men
os de seis pés contra um atirou-se e nele se enlaçou. Com os pés dianteiros lhe deu no
s braços apertado nó; com os do meio corpo cingiu-lhe o ventre; e usando os traseiro
s imobilizava do condenado as pernas, enquanto lhe mordia a face e com a cauda f
eria os rins. Jamais houve parasita assim entrelaçado a ramos como a serpente se e
nroscava àquele corpo. E como se de cera amolecida fossem homem e serpente, mistur
ando formas e cores, nem um nem outro já mostrava o que pouco antes havia sido, ta
l qual sucede ao papel que sujeito ao fogo escurece e, sem ser de todo negro, br
anco já não é. Os outros dois espíritos, assistindo a tudo, gritavam ao companheiro: "Co
mo estás mudado, Agnel!"
As duas cabeças haviam se tornado uma só, e confundidos estavam os dois semblantes.
Dois braços se agitavam onde antes houvera quatro; as co xas, de mistura com as pe
rnas; o ventre e o peito, de envolta, formaram membros que iguais jamais se vira
m. Assim perderam-se as feições antigas, enquanto na estranha mistura de dois seres
nenhum novo ser resultara.
Então, qual lagarto que em dia caloroso, buscando moita fresca, cruza atalho com f
ulmínea rapidez, vi cobra, escura qual grão de pimenta, lívida, inflamada, arrojar-se
contra o segundo dos outros dois malditos. Picou-lhe o umbigo, que é por onde a cr
iatura recebe o primeiro alimento. E logo aos seus pés tombou estendida. O mordido
fitava-a sem dizer palavra, imóvel, em bocejos, como se acossado por sono ou febr
e. A cobra devolvia o fixo olhar do homem, e este pela ferida e aquela pela boca
fumegavam; e as fumaças se misturavam.
Silencie, pois, Lucano, acerca do que ocorreu com Sabélio e com Nassídio. (1) Silenc
ie e ouça o prodígio maior que ora descrevo. Cale Ovídio a história de Cadmo e Aretusa,
pois, se, poetando, a esta mudou em fonte e àquele em serpente, não lhe tenho inveja
. Nunca transmudou duas naturezas, postas frente a frente, sem estarem dispostas
à troca. Aqui se vê prodígio superior! De tal modo acomodaram-se ambas as partes que
a cauda da serpente, bifurcando-se, formou pernas de homem e os pés do homem, junt
ando-se, formaram cauda de serpente. Tudo, com perfeição tamanha que da juntura não re
stou vestígio ou sinal. A cauda, em duas partida, tomava a forma atrás perdida e sua
pele tornou-se branda ao tempo em que a do homem enrijeceu.
* (1) Soldados de Catão, personagens do poema Farsália, de Lucano, Sabélio e Nassídio são
picados por serpentes; Sabelo inchou até estourar, e Nassídio a cinzas foi reduzido.
Vi braços penetrarem axilas e tanto estendia a cobra os seus curtos pés quanto o hom
em encolhia seus longos braços. Retorcendo os pés extremos, o monstro exibiu o membr
o que o homem traz escondido, ao passo que o condenado teve aquele apêndice transf
ormado em pés.
o fumo que os envolvia roubou os cabelos ao homem e os colocou na cobra. Ergueu-
se a serpente, rojou-se ao solo o homem, tendo um no outro o olhar cravado, a co
nhecer das feições as diferenças. o que se ergueu compôs a fronte com os largos sobejos
de matéria e modelou as orelhas, apontou o nariz e formou a boca orlada pelos lábios
. Ao que em terra ficou rojado sumiram as orelhas, qual caracol que recolhe as a
ntenas. Em troca, partiu-se-lhe a língua em falar desavisada, na boca que em focin
ho se mudou. E isto aconteceu no instante em que do outro a língua antes forquilha
da num órgão único se tornou. A fumaça dissipou-se. Aquela alma transformada em réptil, si
bilando, disparou vale afora. A cobra, feita sombra humana, usando a língua nova,
na direção do fugitivo escarrou e, voltando-lhe as costas, disse à terceira sombra: "Q
ue Buoso ande como eu o fazia: rastejando".
Estas as temíveis transformações que vi na sétima vala, cuja estranheza exige estilo sem
adornos. Foi ali que, embora com os olhos e o ânimo empanados pela piedade, pude
reconhecer Puccio, o Desancado, o único daquelas três sombras que não mudara. O outro
era aquele por cuja morte, ó Gaville, pagaste muito caro. (3)
* (3) Cidade próxima de Florença, a qual executou o bandido Francesco Cuercio Cavalc
anti. Foi duramente atacada pelos parentes e amigos do morto. *
Canto XXVI
Os poetas, agora na oitava vala, vêem acesas longas chamas, em grande número; dentro
delas se encontram as sombras dos falsos conselheiros.
Exulta, Florença! Tão célebre é teu nome que abre asas por terras e mares, e mesmo no In
ferno é lembrado! Entre os ladrões, na cova destes, encontrei cinco de teus filhos -
coisa que a mim envergonha e a ti nenhuma glória representa. E se é mesmo certo que
cedo se sonham aqueles sonhos reflexos da realidade, verás breve o que a gente de
Prato deseja a ti, para tua desgraça. Quisera eu que o mal não demorasse a desabar
sobre ti, pois quanto mais rápido ele vier, menos sofrerei.
Fomo-nos. O guia refez os degraus por que havíamos descido e após si me conduziu. A
trilha erma e rude, desfilando entre fraguras ásperas, exigia que as mãos ajudassem
os pés. As dores que então sofri ainda as sinto quando avivo a memória daquele ínvio cam
inhar. Tal lembrança me anima a perseverar da vida no bom caminho, seguindo as sen
das da virtude.
O homem simples, no alto da colina, na estação em que por mais tempo o Sol está de for
a, no instante em que o vaga-lume sucede à mosca, não consegue notar no vale onde ar
a ou vindima pirilampos tão numerosos quanto as luzes que ao nosso olhar brilhavam
, pasmado pelo que divisamos ao tocarem nossos pés o fundo do oitavo poço. Qual o pe
rsonagem vingado pelos ursos (1) que, vendo subir ao céu em sulcos de fogo o carro
de Elias, não pôde segui-lo com a vista, mas apenas distinguir a chama sutil, tal n
uvem a vagarem céu sereno; assim surgiu diante de mim uma multidão de luzes congrega
das. A alma de um pecador jazia presa a cada uma delas.
A fim de vê-los, sobre a ponte eu me inclinava, apoiado em rocha que, vizinha, um
socalco me estendia. Sem o que por certo eu despenharia para o fundo da hórrida ca
va. Dando-se conta o mestre do meu embevecimento, esclareceu: "Envolvido em cada
chama arde um espírito condenado". Respondi: "Que assim se passa, eu suspeitava a
penas, mas já agora creio. Dize, porém, da razão que separa no vértice aquela chama em d
uas, lembrando a labareda levantada da pira que de Etéocles e de seu irmão foi ara".
(2) Ele tornou: "Ardem no interior dessa dupla chama Ulisses e Diomedes, unidos
no castigo assim como unidos foram ao merecê-lo. Purgam a traição do cavalo que de re
sto foi a porta pela qual entrou na Itália o gentil sêmen romano; pagam o ardil que
levou a morta Deidamia a chamar por Aquiles; são castigados pelo roubo do Paládio sa
grado".
"Mestre", eu pedi, "se lhes é permitido falar de dentro de suas ígneas vestimentas,
suplico e rogo não deixes de satisfazer o meu desejo. Que eu possa ouvir o que tem
a dizer a chama bipartida que para nós se dirige". E ele a mim: "Digno de satisfação é
o teu desejo. Serás atendido, mas convém que te cales.
* (1) Perturbado por arruaceiros, o Profeta Eliseu fez com que dois ursos saíssem
da floresta próxima e atacassem seus oponentes.
(2) Filhos de Édipo, Etéocles e Polinice deram fim um ao outro num duelo. Postos na
mesma pira, a chama desta partiu-se em duas, como se as duas almas ainda lutasse
m. *
Deixa que eu fale; sei bem o que deseja ouvir, e pode suceder que teu pedido não f
aça eco na vaidosa alma desses gregos".
Tendo aquela chama se aproximado e considerando o guia azados a situação e o momento
, por este modo lhes falou: "Ó vós que sois dois em um único facho; se ao cantar também
os vossos feitos, nos versos que em vida escrevi, algum mérito ganhei, detende-vos
, e que um dos dois reconte onde e como morreu".
A parte mais alta da antiga chama, agitando-se com murmúrio igual ao da lâmpada que
oscila ao vento, inclinando-se em vários rumos conforme é próprio da língua eloqüente, dis
se: "Quando fugi dos feiticeiros encantos de Circe, os quais por todo um ano me
retiveram junto de Gaeta, antes que Gaeta por Enéias viesse a ser assim chamada, n
em a forte saudade do Filho, nem a lembrança da provecta idade do pai, nem o puro
amor de Penélope, a esposa fiel, venceram em mim o desejo de conhecer o vasto mund
o, o aspecto dos demais mortais e a sua valia respectiva. Fiz-me de velas sobre
o amplo mar aberto, na só companhia de um barco e de um punhado de bravos que jama
is me desertou. Em ambas as costas do mar cursei as praias da Espanha, do Marroc
os, da Sardenha e de países outros que as águas do mesmo mar cercam e banham. Já éramos
velhos alquebrados, eu e meus seguidores, quando chegamos enfim ao estreito que
Hércules deu por limites ao mundo. (3) À esquerda havia já ultrapassado Ceuta, e à direi
ta deixara Sevilha.
* (3) Referência ao Estreito de Gibraltar. *
Eu disse: ó irmãos, que superando cem mil perigos chegastes ao extremo do Ocidente,
não seja pelo pouco de vida restante que vos negueis a investir a terra estendida
para além do Sol, vazia de gente. Considerai a raça de que sois! Fostes feitos para
perseguir a aventura e a glória, não para dar margem a temores injustificados'.
"Tais palavras ergueram tanto o ânimo deles que logo se dispuseram a seguir em fre
nte. E voltando a popa no rumo da aurora, dos remos fizemos asas, vogando firme,
à direita deixando o ocaso. À noite vi no céu as estrelas que adornam o outro pólo, enq
uanto o nosso mergulhava na planície marítima. Cinco vezes o Sol que ilumina deixou
acender a Lua e outras tantas a extinguiu depois que nos déramos ao árduo intento, q
uando, para nosso espanto, se mostrou, envolta em brumas, uma montanha alta como
eu nunca vira antes. Depressa nossa alegria se desfez em pranto: dessa terra no
va contra nós investia um furacão. Três vezes a proa da nave sobre si mesma foi torcid
a e, na quarta, a popa erguendo muito alto, voltou a proa para o fundo e, como s
e obedecesse ordens de alguém, foi descendo. E o mar terminou por nos sepultar."
Canto XXVII
Ainda na oitava vala, os poetas tomam conhecimento de que Guido de Montefeltro o
cupa o interior de uma das chamas; vão então falar-lhe.
A labareda aquietou-se, e, obtida a permissão do poeta, afastava-se em silêncio; então
outra chama, vindo atrás da turba, atraiu nosso olhar à sua cima; confundia-nos o s
om que ela emitia.
Tal como o boi siciliano que fez seu primeiro mugido do pranto de quem o construír
a-bramia pela voz do torturado (1), de modo que, sendo de cobre, parecia ter por
recheio o medo e a dor; assim as palavras daquele espírito desgraçado confundiam-se
com o estalejar do fogo, não havendo conduto que as trouxesse até nós. Mas quando, af
inal, pôde articulá-las com a perfeição desejada pela língua ao lhes dar passagem, pudemos
ouvir e entender que exclamava: "Ó tu, a quem me dirijo e que momentos atrás disses
te no idioma lombardo podes ir, já não te exorto a responder', ainda que eu signifiq
ue atraso em tua viagem, não te enfade a conversares comigo, como eu não me aborreço;
antes podes ver que me alegro com o desceres a este mundo escuro.
* (1) Perilo construiu para Falaride, tirano de Agrigento (Sicília), uma nova máquin
a de tortura: um touro fundido em cobre, o qual, recebendo em seu interior os in
imigos do governante, seria aquecido ao rubro, por baixo. Os gritos de dor da víti
ma resultariam em sons iguais ao bramir do animal. Falaride mandou que testassem
a eficiência do invento encerrando nele o próprio inventor, Perilo. *
Se é certo que vieste daquela doce terra latina onde em tempos passados pequei o m
eu pecado, dize-me se na Romanha há paz ou guerra, pois nasci entre Urbino e os mo
ntes que originam o Tibre".
Eu o ouvia, quando o guia, tocando-me, sugeriu: "Fala com ele, é italiano". E eu,
que já tinha pronta a palavra, sem demora disse: "Ó alma que sob chama tão forte estás r
eclusa, fica sabendo que a tua Romanha jamais uma hora sequer gozou de paz no co
ração dos tiranos que a oprimem. Mas não está, agora, em guerra declarada. Ravena contin
ua, como há muito, sob as garras da águia de Polenta, a qual também sobre Cervia esten
deu as asas. Forli, terra outrora mártir e gloriosa, que aos franceses causou enor
mes danos, definha sob as garras do leão verde. (2) E tanto o velho quanto o novo
mastim de Verruchio, que liquidaram Montagna, conservam igual sanha no morder. A
s cidades banhadas pelo Lamone e pelo Santerno são governadas pelo Leão do Ninho Bra
nco', que muda de partido a cada inverno; e aquela outra cidade de que o Savio b
anha o flanco (Cesena), assim como se ergue entre montes e planura, também ora é opr
imida, ora está em liberdade. Mas rogo-te nos reveles quem és; menos cortês não sejas co
nosco do que fomos para contigo, para que tua história possa ser lembrada".
Então aquele fogo rumorejou e, como se comovido estivesse, a ponta agitou de um la
do para outro, dando-nos a ouvir estas palavras: "Se acreditasse responder a que
m de volta estivesse à luz do mundo, permaneceria calado.
* (2) Alusão a Sinibaldo Ordelaffi, tirano de Forli. *
Mas porque sei ao certo que jamais se libertou quem ao Inferno veio ter, falarei
sem receio de infâmia. Primeiro fui homem de armas, e depois, franciscano, supond
o que o santo cordão pudesse salvar-me. Nisso estava eu certo, não sucedesse que o p
apa - a quem mal haja! - me induzisse a retornar ao caminho do pecado. O como e
o porquê, eis te vou narrando. Enquanto mantive a forma de carne e ossos que me de
u minha mãe, os meus feitos imitaram mais os da raposa que os do leão. Nas astúcias e
nos ardis fui mestre e tanto essa arte pratiquei para meu proveito que os confin
s da Terra alcançou a fama de meu engenho. Quando me vi chegado àquela parte da vida
na qual todos deveriam amainar as velas e colher os cabos, aborreci-me das cois
as que antes havia cobiçado e, arrependido, fiz-me penitente, na esperança de que mi
nha alma se salvasse.
"Pobre de mim! o perdão teria alcançado, por certo. Mas o príncipe dos novos fariseus
lá de Latrão declarou guerra, não contra judeus ou sarracenos, mas contra cristãos que j
amais haviam cometido crimes iguais ao de sitiar o Acre ou de traficar com o sul
tão. Nessa hora, nem cuidou ele do seu santo ofício, nem reparou no cordão que eu cing
ia e cujo destino foi macerar quem o instituíra outrora. Ao contrário, tal como no p
assado Constantino foi à solidão de Soracte pedir a Silvestre que da lepra o curasse
, assim este me tomou por conselheiro a fim de livrá-lo de suas vaidades. Prudente
, calei-me, pois em suas palavras percebi a insensatez. Insistiu: Não haja receio;
desde já a absolvição te concedo se me ensinas o ardil com que haja de tomar Palestin
a. Abro e fecho o Céu, como bem sabes, pois manejo as chaves desprezadas por meu a
ntecessor'. Abalado por tão graves ponderações, entendi que partido ruim seria o meu s
ilêncio, e disse: Padre, se desde já me absolves do pecado que cometerei, triunfarás s
obre o teu objetivo, prometendo muito e cumprindo pouco'.
"Depois que morri, veio São Francisco buscar minha alma; foi interrompido no feito
por negro demônio, que lhe gritou: Não o leves, não me faças in justiça! O lugar desse en
tre os meus foi apontado. Desde quando deu conselho fraudulento, tenho-o sob meu
s cuidados. Não basta, para salvar, a contrição de um momento, pois é pecaminosa a contr
adição entre arrepender-se e simultaneamente planejar o mal'. Ah! que mágoa e dor sent
i ao ouvi-lo assim falar, de mim se apoderando: Pensavas que eu não possuía lógica bas
tante e astúcia suficiente?' A Minos me levou e este ao redor do corpo oito vezes
a cauda enrolou, e mordendo-a, raivoso, sentenciou: É culpado dos crimes que se pa
gam no interior das chamas'. Por isso aqui me vês, nestas vestes chamejantes, lame
ntando ter me perdido."
Isso dito, partiu a chama lamuriosa, vibrando a sua ponta de um lado para o outr
o.
Quanto a mim e a meu guia, seguimos viagem. Pelo rochedo em ruínas subimos ao arco
sucessivo, do qual se via o fosso onde cumprem pena os que promoveram a discórdia
.
Canto XXVIII
Os poetas chegam à nona vala - a penúltima do oitavo Círculo. Neste recinto estão os que
desencadearam cismas religiosos, e os que semearam o ódio e a discórdia.
Quem, em verso ou em prosa, lograria descrever o sangue e as espantosas chagas q
ue vi por ali? Nenhuma língua poderia tanto, nem nenhum talento.
Ainda quando o que buscasse tal feito pudesse reunir todos os que, na infeliz te
rra apuliana, derramaram sangue na luta ingente às mãos dos romanos, e depois, em fa
vor destes, na guerra em que tantos anéis se perderam (1), conforme narrou Lívio, qu
e não exagera; e mais a gente que foi por golpes abatida quando se opunha a Robert
o Guiscardo (2); e aquela cujos ossos ainda se podem ver em Ceperano, campo de b
atalha onde cada apuliês falseou seu partido, e que também se vêem em Tagliacozzo, ond
e o velho Alardo venceu sem combater; e se todos esses mortos reunidos exibissem
ferimentos e mutilações - ainda assim, tudo isso seria nada comparado ao que depare
i no fosso de número nove.
Qual um barril desfeito em arcos, assim se achava um pecador, bem no fundo. O co
rpo todo aberto se lhe via, do queixo ao reto. Entre as pernas, as entranhas; ex
ibidos os pulmões e o feio saco onde o alimento se torna excremento.
* (1) Alusão à batalha na qual Aníbal aniquilou um exército romano. Das últimas foram reti
rados muitos anéis.
(2) Roberto Guiscardo, famoso mercenário, passou a vida em batalhas. Responsável pel
a morte de milhares de homens, é o que afirma o poeta. *
Contemplava-o, tomado de horror, quando ele gritou, abrindo mais o esfacelado se
io: "Repara como tenho lacerado o peito! Vê quão estropiado ficou Maomé. Precede-me na
marcha e nos lamentos Ali, que traz desfeito o rosto, do mento à testa. E todos o
s mais que por aqui percebes foram em vida semeadores de cismas e de escândalos. S
omos perseguidos por um demônio cruel, que nos mutila sem descanso. Ao fim de giro
completo desta dolorosa estrada, as feridas se fecham antes que se volte a defr
ontá-lo. Mas tu, quem és? Ficando aí na ponte estás, quem sabe, aumentando a pena a que
foste condenado!"
O mestre por mim respondeu: "Ainda não é morto, nem sentença há que o condene. Vem para
conhecer como aqui se padece. E eu, já morto, devo conduzi-lo através do Inferno, de
fosso em fosso. E tal como refiro, é tudo verdadeiro". Tendo-o ouvido, mais de ce
m condenados pararam para me encarar, esquecendo suas dores .
A alma prosseguiu: "Tu que talvez em breve voltes a ver o Sol, diz a Frei Dolcin
o (3) que, se não deseja em breve seguir meus passos, fartamente se abasteça de come
stíveis, antes que o bloqueio de neve dê triunfo à gente de Novara, a quem vencê-lo será e
ntão empresa fácil". Antes de dizer tais palavras, já havia Maomé um pé alçado, e tão logo
pronunciou, pousou o pé e foi-se embora.
* (3) Fundador de uma seita que exigia o uso comum dos bens e das mulheres. Pers
eguido, foi se esconder no Monte Zebelo; mas não suportou a fome, e rendeu-se. Foi
preso e publicamente queimado em Nouara. *
E outro ainda, com o pescoço perfurado, o nariz quebrado e uma só orelha, que entre
outros contemplava-me pasmado, adiantou-se aos demais e, escancarando a boca, de
onde irrompia sangue, falou: "Tu, que entre sofredores não sofres e a quem já vi, q
uando vivo, na pátria latina, isso se não me engana uma grande parecença, recorda-te d
e Pier de Medicina quando voltares a ver a doce planura estendida entre Vercelli
e Marcabó. E adverte aos probos cidadãos de Fano, o nobre Angiolello e o honrado Gu
ido, que, se não erro no antever o futuro, morrerão, por traição de cruel tirano, junto à
Católica, atirados fora de seu navio. (4) Nem por piratas ou por gente argólica perp
etrado, entre Chipre e Maiorca, jamais viu Netuno crime igual. O traidor, que de
um olho é privado e tiraniza a terra onde um dos que estão comigo preferiria jamais
haver entrado, há de chamar àqueles dois para acordo amigável, mas fará que contra o ve
nto de Focara não precisem nem de preces nem de abrigo".
Respondi: "Se queres que lá acima de ti eu dê notícias, indica-me e identifica quem é es
se que em certa cidade preferiria não haver entrado". Ele, tocando com a mão a face
de um seu igual, escancarou-lhe a boca enquanto gritava: "É este, mas não tem língua.
A dúvida de César dissipou outrora, afirmando que ao homem preparado é prejudicial tod
a demora". Cúrio, infeliz! Triste vê-lo, assim cortada na garganta a língua que sobre
a Terra tamanha audácia aconselhara! (5)
Um condenado a quem amputaram as mãos ergueu seus cotos no ar, a banharem-lhe com
sangue o triste rosto, e gritou: "Lembra-te também de Mosca". (6)
* (4) Malatestino mandou atirar ao mar dois nobres adversários, os quais atraíra ao
seu campo prometendo a paz.
(5) Caio Ctírio aconselhou César a cruzar o Rubicão, precipitando a guerra civil, que
condenou milhares de homens à morte.
(6) Mosca dei Lamberti, que suscitou ódio entre guelfos e gibelinos, levando-os à gu
erra. *
"Tu, Exclamei: "O que se diz, faça!", frase que origem de tantos males foi para a
gente toscana. "E morte aos teus", acrescentei. A isto, ele fugiu, desesperado.
Depois, coisa tão assombrosa me foi dado ver que hesito em narrá-la, provas não havend
o comigo senão a assistência da minha consciência, fiel companheira que ao homem dá cora
gem, quando é pura. Certamente vi, e inda cuido ver, avançar em meio ao infeliz cort
ejo um corpo sem cabeça. Caminhava, segurando pelos cabelos a própria testa, tendo-a
suspensa à guisa de lanterna. Os olhos dessa cabeça fitavam-nos, e repetidamente ou
vi dizer: "Oh! eu!"
Usava a própria cabeça como lanterna, um feito em dois, e dois reduzido a um. Como i
sto é possível, sabe-o apenas Aquele que lá de cima a tudo discipli na. Quando, enfim,
o desgraçado chegou ao pé da ponte, vi que erguia a cabeça nas mãos, para melhor ouvirm
os o que nos diria: "Tu que vivo visitas os mortos, dize-me se viste jamais cast
igo que se compare ao meu. Regressando ao mundo lá de fora, dê-lhe notícias minhas. So
u Bertram de Born, o que deu ruins conselhos ao Príncipe João. (7) Tornei inimigos p
ai e filho, como Aquitofel fizera entre Absalão e Davi. Trago minha cabeça do tronco
separada, tal como separei pai e filho".
* (7) Bertram de Born instigou o jovem Henrique a se rebelar contra o rei inglês H
enrique II, seu pai. *
Canto XXIX
A décima e última vala do oitavo Círculo - onde se acham os falsários - é alcançada pelos p
etas. Os pecadores, estendidos no chão, estão recobertos de lepra.
Chorei copiosamente ao ver tamanha multidão, e as feridas que a corroíam. Virgílio per
guntou: "Por que fixas a vista nos tristes mutilados e em seus cruéis tormentos? Não
foi assim que procedeste nos fossos antes percorridos. Se queres contar quantos
são, lembra-te de que este fosso tem circunferência de vinte e duas milhas e que a
Lua já está sob nossos pés. É escasso nosso tempo, e sabes quão longo é ainda o caminho". R
spondi: "Se soubesses por que me detive com certeza ter-me-ias concedido mais te
mpo".
Contudo, o mestre partiu, e eu, acompanhando-o, completei a fala: "Naquele fosso
, onde o lacrimoso olhar mais demorei, creio que alguém de minha família paga os pec
ados cometidos no mundo". Retorquiu: "Não o lamentes mais, pensa que neste antro p
adece culpa merecida. Atrás, ao pé da ponte, eu o vi quando a ti indicava, com o ded
o erguido, em gesto enfurecido. Geri del Bello - assim o chamavam. Não o notaste e
ntão, entretido que estavas com aquele que foi o Senhor de Hautefort. Somente quan
do já havia passado o percebeste".
"Ó mestre, a morte violenta por ele padecida, e não vingada por alguém da nossa estirp
e, foi o que o levou a apontar-me com reprovação e a afastar-se de mim. Tal desdém cau
sou-me maior piedade".
Assim argumentando chegamos ao ponto do rochedo de onde outro fosso se descortin
aria, do alto ao fundo, se lá embaixo não faltasse luz. Estávamos, pois, na última claus
ura de Malebolge, sobre o arco a que chegavam os ais e os lamentos dos danados r
eclusos em recinto imundo. Tapei os ouvidos, terrivelmente comovido com os sons
cruentos.
Tão acerba era a dor nos ais descrita, qual se no calor de entre julho e setembro
fosse possível reunir todos os enfermos das pantanosas regiões da Maremma, da Sarden
ha e das chusmas que vão buscar remédio nos hospitais da Valdichiana. De poço mais pro
fundo subia o fedor que costuma fugir dos corpos em decomposição.
Volvendo à esquerda, descemos até o extremo, claramente discernindo então a soleira in
feliz da cova escura. É aquele o sítio mais baixo do Inferno onde a justiça infalível do
Senhor pune de modo inflexível os falsários cujos feitos ali de volta em volta são re
memorados.
Não acredito ter conhecido maior tristeza o povo de Egina ao ver os seus adoecendo
e o ar pestífero aos animais trazer a morte, tanta impureza havendo em tudo que a
té os vermes morreram. Segundo narram os poetas, para repovoar a ilha foi preciso
que a nova população fosse feita com o sêmen das formigas. Ao presenciar os males que
a fúnebre turba afligiam, não foi menor a minha mágoa. Um espírito vi que pousava sobre
o ventre; outro que sobre um terceiro se estendia, cada qual se arrastando e se
estorcendo no lajedo torpe. Passo a passo avançamos e, sem falar, vimos e ouvimos
os míseros em vão esforço pretenderem pôr-se em pé. Notei dois, sentados, um no outro a se
apoiar, quais torteiras uma a outra se aquecendo; estavam da cabeça aos pés coberto
s de crostas apodrecidas. Nunca vi criado posto em pressa pelo patrão ou guarda qu
e vigiando de má vontade percebe chegar o superior. Manejar com tamanha fúria a fort
e escova quanto veloz e fortemente aqueles dois sobre si raspavam as unhas, busc
ando aliviar o ardume que os afligia continuamente. Com as unhas retiravam da pe
le crostas horrendas, e grandes como nem mesmo as têm os peixes.
Virgílio falou a um dos dois: "ó tu, que os dedos transformas em tenazes para com ex
trema fúria raspares o próprio corpo, dize-me se, entre estas almas castigadas, algu
ma é de italiano. E por nisso me atenderes, desejo que tuas unhas, pela eternidade
, sejam suficientes ao teu serviço". Chorando, o interpelado respondeu: "Ambos o s
omos. Mas tu quem és, que assim nos interrogas?" Explicou meu guia: "Devo conduzir
a este, ainda vivo, de círculo em círculo, mostrando-lhe o Inferno inteiro". A isto
, os dois deixaram o comum apoio, para mim se voltando; e a turba que passava pr
estamente os imitou. O meu bom guia, acercando-se, aconselhou-me: "Fala-lhes seg
undo teu desejo". Comecei: "Que nunca a tua memória desapareça do mundo dos homens,
mas com eles permaneça por muito tempo! Dize-me quem és e de onde vieste. Não te cause
vergonha narrar-me a pena e por que ela te foi aplicada".
"Fui de Arezzo", começou o primeiro, "e Alberto de Siena queimou-me vivo. (1)
* (1) Griffolino d Arezzo, alquimista conhecido, foi condenado à fogueira por have
r apregoado ser capaz de voar e não ter capacidade de realizar a proeza. *
Mas é outra a razão queme condenou. Dissera-lhe, gracejando: Posso, querendo, voar p
elos ares!' e ele, possuindo grande ambição e pequeno entendimento, desejou ardentem
ente lhe ensinasse tal arte. Como não pude torná-lo um novo Dédalo, fez que me mandass
e à fogueira aquele que o tinha por filho. No último dos fossos vim cair por sentença
rigorosa de Minos, que na alquimia enxergou meu crime.
Falei ao meu mestre: "Existiu jamais gente tão vaidosa quanto os sieneses? Decerto
nem a francesa é tão cheia de si!"
O segundo dos leprosos, ouvindo-me, respondeu: "Abra exceção para Stricca, sempre am
igo da poupança, e para Nicolau, que criou o costume requintado de com o cravo ind
iano temperar a boa comida; e ainda para Caccia d'Asciano e os companheiros seus
, com os quais esbanjou o valor de bosques e vinhedos; e também para Abbagliato, o
galante. (2) Mas se queres saber quem te informa destas coisas, deste modo aos
sieneses censurando, repara no meu triste rosto e recordarás que já o viste um dia.
Sou a sombra de Capocchio, o que falsificava metais com os recursos da alquimia"
.
* (2) Trata-se de ironia. Stricca, seu irmão Nicolau, Caccia d Asciano, Abbagliato
- todos conhecidíssimos perdulários e inconseqüentes. *
Canto XXX
Ainda na décima vala, os poetas encontram outra espécie de falsários.
No tempo em que Juno, com ciúme de Sêmele, jurou vingança contra o sangue tebano - dis
posição de que por muitas vezes deu provas -, com tamanha loucura perturbou o cérebro
de Atamante que este, encontrando a esposa a lhe exibir no colo os dois filhinho
s, pôs-se a gritar: "Estendam a rede! Eia, vamos apanhar a leoa e os leõezinhos!" E
isso dizendo, tresloucado, estendeu os braços, apanhou um dos meninos, Learco, e g
irando-o no ar destroçou-lhe a cabeça num rochedo. A mãe, abraçada ao outro filho, atiro
u-se ao mar.
E quando a fortuna da guerra reduziu a cinzas a pujança de Tróia, pouco antes tão alti
va, e morrendo, o rei morria com o seu reino; a triste Hécuba, mísera, prisioneira,
depois de ver morta a filha Políxena, encontrou o filho Polidoro morto em praia es
quiva, e ali, por grande angústia possuída, uivou como se fosse cadela, tanto lhe pu
ngira a alma ferida. Mas nem em Tebas nem na Tróia destruída, homens e feras jamais
revelaram raiva em proporções tão desmedidas como testemunhei existir em duas lívidas al
mas que passaram a correr, nuas, os dentes nos mostrando, quais porcos fugidos à p
ocilga. Uma delas atingiu Capocchio e, aferrando-o pela nuca, pôs-se a arrastá-lo, o
ventre raspando a rocha dura. O espírito do homem de Arezzo, tremente, disse-me:
"É Gianni Schicchi esse raivoso que de outros condenados usa agravar o sofrimento"
. Pedi-lhe então: "Se do outro furioso conseguires fugir, não deixes que ele se vá sem
que eu saiba de quem se trata". Respondeu: "É a alma antiga de Mirra, a infame qu
e, movida por paixão ímpia, induziu o pai a fazer-se seu amante. Para torná-lo coniven
te, falsificava em seu corpo as formas de outra mulher. Esse que me agarrou, ard
il empregou um dia para ganhar a égua mais valiosa da manada. Apresentou-se como s
endo Buoso Donati e a um falso testamento deu forma legal".
Observei atentamente os dois furiosos até que passaram. Volvi-os então para os outro
s desgraçados. Vi um com o tronco talhado na parte onde se bifurca em pernas. Cast
igava-o grave hidropisia, cujo humor, formado pelo sangue mau, deforma o corpo,
desproporcionando ventre e cabeça. Mantinha a boca escancarada como faz o ético, pun
gido pela sede, que retorce um dos lábios para a testa e o outro para o peito.
Bradou-nos: "Ó vós, que a este negro abismo descestes, ignoro por quais mercês isentos
de pagar as duras penas, ponde reparo em minha miséria e conhecereis toda a históri
a de Mestre Adão. (1) Outrora, na Terra, conheci o gozo do mando e dos prazeres. H
oje, por gota de água suspiro em vão. Dos riachos que murmurando procuram o rio Àrno,
na verde encosta de Cosentino, ao longo de frescas e doces canaletas; sem cessar
a saudade reavivo. Esse grato memorar meus sofrimentos e mágoa aumenta, aumentand
o o mal que me desfigura.
* (1) Falsário queimado em Florença por haver falsificado a moeda florentina que tin
ha por efígie São João Batista. *
Impõe a justiça, que me castiga implacavelmente, que - para aumento e continuidade d
os tormentos - seja recordado o sítio ameno onde pequei. Foi em Romena que com fal
sos cunhos em dinheiro gravei a imagem do Batista e por isso meu corpo foi queim
ado. E mais me contrista o não ver aqui as almas de Guido, de Alessandro e de seu
irmão. Por vê-las, a visão da própria Fonte-Branda esqueceria. Se é que os raivosos que se
m cessar vão por aqui girando não pretendem enganar-me, uma daquelas três almas já para
aqui baixou. Mas isso, que valia me traz? Em vão tento caminhar! Se em um século int
eiro eu fosse bastante rápido para avançar uma polegada, pôr-me-ia sem demora a procur
ar por aquele espírito detestado, embora tenha este vale infernal onze milhas de c
omprido e quase uma de largura. Seus conselhos me arruinaram; levaram-me a falsi
ficar florins".
Tornei a perguntar: "Quem são aquelas duas sombras que ora vejo à tua direita, a dei
tar fumaça como no inverno sucede às mãos umedecidas?" Explicou-me: "Assim estavam qua
ndo desci e creio ali os verei em tal postura pelo tempo sempiterno. Uma é a falsa
mulher que acusou José; o outro é Sínon, o Grego, traidor de Tróia. Por força de uma febr
e abjeta, uma fumaça fedorenta se desprende deles".
Uma das sombras mencionadas, certamente melindrada ao ouvir lembrada a sua traição,
esmurrou de tal modo o ventre de Adão que a barriga soou qual tambor percutido. Me
stre Adão, em troca, lhe bateu no rosto e, ainda brandindo o punho igualmente duro
, gritou: "Mesmo não podendo mover agilmente o corpo, tenho o braço veloz o bastante
para rechaçar a tua ofensa". O outro, por sua vez, o exprobrava: "Foste mais do q
ue lento e sem vontade quando ao cadafalso te conduziram por causa do dinheiro f
alsificado". A isto, o hidrópico repôs: "É verdade, mas verdade não disseste quando de t
i, em Tróia, exigiram juramento". "Se falseei a verdade", insistiu o grego, "falsi
ficaste o cunho; estou aqui por crime único; tu, por mais crimes do que os de qual
quer demônio." Retorquiu o da barriga inchada: "Lembra-te do cavalo, façanha que ain
da agora a toda gente causa asco!" Devolveu Sinon: "Bem haja a sede que te conso
me e que o teu ventre faz inchar a ponto de ocultar a vista!" Treplicou o moedei
ro falso: "Só veneno, sempre, sabe lançar a tua boca. Se o humor malsão me toma o corp
o, o teu corpo arde em febre, e não seria preciso mais do que uma palavra para que
te debruçasses à fonte de Narciso".
Eu ouvia os dois atentamente, quando Virgílio advertiu: "Irei zangar-me contigo se
continuares a lhes dar atenção!" Ao ouvi-lo assim falar, fixei-o com tal vergonha q
ue ainda hoje, ao relembrá-lo, me ruborizo. E como quem, sonhando com maus sucesso
s, mesmo no sonho deseja que tudo não passe de pesadelo, queria desculpar-me e não o
conseguia nem dava tento a que o meu silêncio era já um pedido de desculpas. o mest
re assossegou-me: "Mesmo vergonha menor do que a tua escusaria culpa bem maior.
Liberta-te de todo pejo. E lembra-te, se presenciares outra vez esse tipo de dis
cussão, faze de conta que ao teu lado eu digo: comprazer-se em ouvi-la é torpeza.
127
Canto XXXI
Deixando o oitavo Círculo, Dante e Virgílio chegam ao Poço dos Gigantes. O gigante Ant
eu acomoda os poetas em sua imensa mão e os coloca com suavidade no nono e derrade
iro Círculo.
A mesma língua que me causara vergonha logo mais foi meu remédio. Assim ouvi dizer d
a prodigiosa lança de Aquiles e de seu pai, a qual curava feridas que ela mesma ab
ria.
Deixamos o triste valo, atravessando a borda do muro ao seu redor distendido. Não
sendo noite e não sendo dia, pouco à frente eu enxergava, mas eis um estrugir de tro
mpa retumbando tão alto que nenhum trovão poderia soar mais alto. Para o lado de que
viera, voltei o rosto, ali concentrando a atenção. Tão potente não soara a trompa de Or
lando quando Carlos Magno perdeu a santa batalha.
Olhando com atenção, julguei perceber várias e elevadas torres. Indaguei: "Mestre, que
estranha cidade é aquela?" Respondeu: "A distância e a luz crepuscular induzem à ilusão
. Aprenderás, ao chegar lá, como a distância os sentidos iludem o bom juízo. Por ora, ap
ressa o passo". Tomou-me a mão e com voz amiga prosseguiu: "Antes que nos adiantem
os, quero dissipar teu engano. O que vês não são torres, são gigantes. Embora isso pareça
confuso e raro, hás de vêlos mergulhados no poço até o umbigo".
Tal como ao dissipar da névoa mais e melhor a visão discerne aquilo que o vapor mant
inha fosco; assim, à proporção que penetrava com o olhar a sombria atmosfera, achegand
o-nos à borda, apagava-seme o engano e crescia o medo; pois ao modo pelo qual os m
uros do castelo de Montereggione coroam-se com torres, ali a margem ao redor do
fosso aparecia torreada por meias figuras de formidáveis gigantes. Júpiter do céu aind
a ameaça com trovões.
Já podia divisar um deles; seu rosto, suas espáduas, o peito, boa parte do bojudo ve
ntre e, além das costas, os dois braços. Bem fez a natureza quando se esqueceu de co
mo gerar tais monstros, privando desses instrumentos ao guerreiro deus Marte. Se
a selva e o mar ainda são povoados pelo elefante e a baleia, quem cogita desse de
talhe com retidão de pensamento entende por que a natureza, agora como dantes, cri
a tais bichos. Pois somente quando a força e a inteligência se unem a um gênio pervers
o, como sucede em relação àqueles gigantes, não é possível ao homem resistir-lhes. A face d
quele que eu mirava pareceume tão larga e comprida quanto a pinha de São Pedro, em R
oma. (1) Os demais membros eram proporcionais. Acima da borda do poço, apenas se v
ia metade do seu corpo. No entanto, calcula-se bem que, se o medíssemos da cabeça à ci
ntura, três frisões hercúleos não somariam igual altura, pois estimo que trinta largos p
almos lhe corressem dos flancos até o pescoço.
"Rafel maí amech zábi almos" gritou de súbito a assustadora boca, que não sabia entoar m
ais doces salmos.
* (1) Havia, no tempo de Dante, na praça da Basílica de São Pedro, em Roma, uma pinha
de bronze com quatro metros de altura *.
Contra ela gritou o meu guia: "Ó alma rude e bravia! Faz soar a trompa se com ela
podes aliviar a ira ou outra paixão que em ti, ardente, lavra. Busca ao redor do p
escoço, ó alma sem oriente, e vê que teu largo peito imobiliza a correia". Depois, a m
im anunciou: "Ele mesmo, do que eu disse se acusa. É Nemrod, e por haver persistid
o em doida empresa é que o mundo uma só linguagem não usa. É inútil que lhe falemos; não en
ende nenhum idioma, e o que usa ninguém consegue compreender".
Seguimos rumo à esquerda. Outro gigante se nos depara a tiro de besta, superior ao
primeiro em corpulência. Não sei quem tivera forças para tal fazer, mas é fato que seu
braço direito estava ligado ao dorso e o outro braço ao peito preso por cadeia de ri
jo laço que, com cinco voltas, lhe cingia do enorme corpo a parte descoberta. Diss
e o meu guia: "Este soberbo pretendeu provar a sua força contra o sumo Júpiter e eis
o fruto do orgulho que o perdeu. É Efialtes, e mesmo que se diga que com seus irmão
s aos céus causou receio, os braços que então movia já não move". E eu a ele: "Gostaria de
ver o gigantesco corpanzil do desmesurado Briareu". Ao que me respondeu: "Verás A
nteu (2) que anda livre e é o que nos deporá no fundo deste fosso, centro infernal.
O que mencionaste encontra-se longe, e este que está vizinho lhe é semelhante em tud
o, tendo a mais, horror maior na face".
Jamais houve terremoto tão violento, que abalasse com tal presteza torres e muralh
as, qual a agitação de Efialtes, que nisto se movia. Eu nunca como então receei a mort
e; e decerto só com o medo morreria, se não o soubesse muito bem algemado.
* (2) Trata-se de um gigante mitológico conhecidíssimo. Era prodigioso caçador de leões.
Foi morto por Hércules. *
Seguimos viagem; mais à frente avistei Anteu, cuja cabeça em cinco braças sobrepujava
a borda do penedo. Assim lhe falou meu mestre: "Ó tu, que no vale afortunado, que
ainda hoje marca a glória alcançada por Cipião no dia em que Aníbal, com os seus, voltou
-lhe as costas, atrevidamente caçaste mil leões por vanglória, e que, se aos teus irmãos
houvesses ajudado na ousada guerra, talvez a história registrasse a vitória dos for
tes filhos da fecunda Terra: não te enfades conosco e suavemente leva-nos abaixo,
ali onde o Cocito faz rolar suas frias águas. Não nos induzas a fazer este pedido ao
s titãs Tifeu e Tício. Este, ao meu lado, te pode dar o que mais deseja: bom nome lá n
o mundo, pois ele ainda vive e espera viver muito, se antes do tempo a morte não o
convocar".
Sem demora Anteu empolgou o mestre com aquela mão que já fizera o próprio Hércules sofre
r. Virgílio, ao sentir-se empalmado, disse-me: "Aproxima-te para que te abrace". E
logo eu e ele formávamos um só feixe, bem unidos. Como aquele que olhando a Carisen
da(3), do lado em que ela pende, ao passar no céu nuvem apressada crê que para o out
ro lado a torre caia, assim vi curvar-se para nós o altíssimo Anteu. Naquele instant
e, bem quisera encontrar-me em estrada muito distante. Mas foi suavemente lá, naqu
ele fundo onde Lúcifer e Judas em estreiteza se comprimem, que ele nos deu assento
. Então, aquele gigante curvado empertigou-se novamente.
* (3) Torre inclinada, em Bolonha. *
Canto XXXII
Dante e Virgílio chegam à planície do nono Círculo. Percorrem o primeiro recinto - a Caína
, para os que traíram os do próprio sangue - e o segundo - a Antenora, para os traid
ores da pátria.
Se eu descrevesse com rimas duras, rascantes, o fúnebre paço, razão de ser do Inferno,
far-lhe-ia justiça. Mas rimas assim não quero; e é pois timidamente que intento fazê-lo
. Descrever o mais profundo buraco do universo não é tarefa que se cumpra com prazer
, nem que calhe a quem sabe apenas dizer papá e mamã. Peço às Musas que auxiliem meu ver
so como ajudaram um dia Anfião a murar Tebas; porque a realidade não desejo distorce
r.
Desgraçado bando o que encontrei em lugar tão difícil de retratar - fôsseis antes gado!
Alcançamos o fundo de escuro poço, mais baixo que os pés dos gigantes. Eu ainda olhava
, pasmado, o alto muro circundante, quando ouvi dizerem: "Atenção, caminhante, para
que não pises a cabeça de teus irmãos desventurados". Voltei-me e olhei fixamente. Dia
nte de mim, e sob meus pés, divisei lago coberto de gelo, tão plano que de vidro par
eceria a muitos. A correnteza do Danúbio não seria em toda a Áustria mais duramente en
rijecida em pleno inverno, nem a do rio Don na sua pátria seria mais fria. Tão duro
este gelo que se por cima lhe caísse o Tambernic ou o Pietrapana, certamente não o r
omperia. Como a rã que no charco se esgoela a coaxar, com o focinho de fora, enqua
nto na sua cabana a camponesa sonha com as alegrias do respigar; assim gemiam as
almas na frieza do gelo, metidas nele até a cintura, lívidas, batendo o queixo com
a mesma rapidez com que as cegonhas batem o bico. A cabeça pendendo para o peito,
a boca a tremer de modo repelente, juntavam nos olhos sinais de amargura.
Quando reparei nas almas que me cercavam, mesmo junto aos pés, descobri duas tão próxi
mas uma da outra que cabelo com cabelo se mesclavam. Perguntei-lhes: "Quem sois,
que os peitos assim juntais em tão estreito laço?" Voltando-se, por curto instante
me encararam, mas de seus olhos, úmidos, correram lágrimas e não palavras, e o frio re
inante logo gelo fez das lágrimas, desse modo velando aqueles olhos. Quais tábuas fi
xadas pelo prego, assim estava unido o par sombrio, embora à moda de carneiros; ca
da qual a marrar, no outro buscou saciar a fúria ingente.
Contudo alguém - que perdera as orelhas em virtude do intenso frio - observou: "Se
rão meus companheiros teu espelho? (1) Queres saber quem foram aqueles dois? o val
e por onde o Bisenzio abre o curso já lhes pertenceu e a seu pai, Alberto. Nascera
m do mesmo ventre e em toda a Caína, ainda que procures, não encontrarás outros tão dign
os de estar no gelo sepultados. Nem aquele a quem, com golpe de lança, Artur rompe
u o peito e a sombra; (2)
* (1) Os olhos mortais de Dante eram refletidos pelo pavimento de gelo, coisa qu
e foi percebida pelos condenados.
(2) O Rei Artur teria assassinado seu filho, Mordrec, com um golpe de lança, abrin
do-lhe no corpo tal ferida que através dela poderia passar um raio de sol. *
nem Foccaccia nem esse que a cabeça inclina para não mostrar a fronte, e que se cham
ou Mascheroni Sassol, nome bem conhecido, sobretudo de ti que és toscano. E agora,
para que saibas, sou Camicion dei Pazzi; e meus crimes serão atenuados quando aqu
i chegar Carlino".
Anotei mais de mil outros vultos, arroxeados, tiritantes, de tal modo assustador
es que por arrepios ainda sou tomado quando, diante de vastidões geladas, recordo
o que ali presenciei.
E avançando para o centro em que o universo reúne o seu peso, trêmulo, a treva eterna
conheci. Por isto foi que a contragosto, por sorte ou acaso, entre cabeças desfila
ndo, a uma delas pisei. Ela reclamou, chorando: "Por que me pisas? Se não é teu propós
ito tomar vingança do sucedido em Montaperti, por que me queres causar dano?" E eu
: "Mestre caro, espera-me. Este danado lançou-me dúvida e quero esclarecêla. Caso perc
amos nisso tempo, depois buscarei recuperá-lo".
Virgílio parou e perguntei ao pecador, que então bradava suas blasfêmias: "Quem és, que
me censuras?" Tornou: "Antes dize quem és tu, que pela Antenora caminhas, a espezi
nhar faces alheias. Ainda que fosses vivo, bem violento foi o golpe desferido".
Respondi: "Vivo sou e, se alcançar no mundo fama, poderei auxiliar-te a situar o t
eu entre outros ilustres nomes". E ele a mim: "Muito outro é o meu desejo! Vai-te,
pois! Demasiado nos tens molestado. Aqui não há lugar para a lisonja". Agarrei-o en
tão pela cabeleira, ameaçando: "Ou me dás teu nome, ou nem um fio te restará hoje na cab
eça". A isto respondeu: "Ainda que mil vezes me arranques os cabelos todos, não te d
irei quem sou nem te mostrarei meu rosto".
Tinha já envolvido as mãos em suas melenas e uma parte dos cabelos lhe arrepelara. M
as ele baixava sempre mais o rosto. Eis quando outro condenado grita: "Que tens,
ó Bocca? Não te basta bater o queixo? Já é preciso latir? Que diabo te tortura?" Ao que
tinha prisioneiro em minhas mãos proclamei: "Basta! Podes estar calado. Já sei quem
és, vil traidor! Para teu castigo, por toda a Terra contarei o teu destino". Excl
amou: "Vai e conta o que desejares, se puderes sair deste abismo infame. Mas des
creve também a sorte deste outro, o indiscreto. Narra que ele ainda chora o ouro p
elo qual se vendeu aos franceses. Podes dizer: Vi Boso Duera com muitos de seus
iguais no gelo sepultado'. E se perguntarem por esses outros, a fim de que possa
s responder, olha ao redor e verás Beccheria, que Florença mandou degolar; ao lado d
e Gianni dei Soldanier, Ganelon, e aquele Tribaldello, que quando Faenza dormia
lhe abriu as portas".
Eu já me afastara daquele ponto, seguindo o guia, quando duas cabeças enxerguei, em
fenda de tal modo postas, que a nuca de uma saía da boca da outra. Qual faminto qu
e o pão agarra e morde, os dentes de uma no crânio da outra se aferravam, assim como
Tideu a dentadas lacerava o crânio do morto Menalipo. Exclamei: "Ó tu que, qual fer
a enlouquecida, mostras tanto ódio contra esse a quem mordes, que ofensa tão grande
ele te fez? Se tens razão para tal proceder, dize-me quem és para que eu possa fazer
a tua defesa - se a língua não me secar antes!"
Canto XXXIII
Na Antenora, Dante e Virgílio ouvem a narrativa da desgraça de Ugolino. Chegam à Ptolo
méia, onde se acham os que traíram os amigos.
Tirando a boca do seu repasto, limpou-a o pecador na cabeleira do crânio que ia de
vorando. E disse: "Desejas que eu reviva a dor atroz que me oprime; tão grande que
antes mesmo de narrá-la me tortura! Mas se minhas palavras forem sementes da infâmi
a do traidor que me serve de pasto, eu falarei. Não sei quem és nem como pudeste aqu
i chegar, mas florentino eu te diria pela pronúncia. Na Terra me chamei Conde Ugol
ino, e este outro foi o Arcebispo Rogério. Explicarei por que meu desatino. Não prec
isarei narrar como, à traição, fui por este preso e morto. o que ignoras é o tipo de mor
te que me foi dado. Dize-me se já vistes alguém sofrer tão cruelmente.
"Na torre - chamada depois desses acontecimentos de torre da Fome', onde outros
padecerão ainda -, através de estreita fresta pude contar a passagem de muitas luas,
quando certa noite, um sonho mau, fendendo o véu que oculta o futuro, deu-me notíci
a do que me fora reservado. Este aqui apareceu-me no sonho como guia e chefe de
feroz caçada, encurralando um lobo e seus lobinhos naquele monte que aos pisanos i
mpede enxergarem Lucca. Terríveis lobos famintos, em matilha formada por Gualandi,
Sismondi e Lanfranchi, perseguia-nos em fúria. Vi, ao fim de curta perseguição, pai e
filhos tombarem, e os raivosos dilacerando-lhes os flancos.
"Quando despertei, ao clarão da alva, meus filhinhos pediam pão; dormiam ainda, sonh
ando em meio a gemidos. Se ouvindo isso não sentes o que então eu antevi, és o mais cr
uel dos seres e nunca por nada mais irás chorar. Acordaram os meninos pela hora em
que usualmente a magra comida nos traziam. Da horrível torre então ouvi pregarem as
portas. Nos quatro pequenos pousei a vista, já quase morta. Choravam. Eu não podia
chorar, pois tinha a alma petrificada. Um deles, Anselmuccio, observou: Que tens
, pai, que nos olhas com tão estranho olhar?'
"Não chorei nem disse palavra todo aquele dia e a noite que se lhe seguiu, até que d
e novo o Sol sobre o mundo levantou-se. À primeira luz entrada no doloroso cárcere,
pude ver o meu macerado rosto nos quatro pequenos rostos retratado. De ira, mord
i as mãos. Eles, cuidando que o gesto eu devesse à fome, levantaram-se e disseram-me
: Pai, sofreremos dor menor se de nossa carne te nutrires. Dela, foste tu a nos
vestir; agora tira dela o teu sustento'. Silenciei para mais não contristá-los. E aq
uele dia e o outro dia, estivemos todos silenciosos. Ó dura terra, por que a nosso
s pés não te abriste? E sucedeu que, ao quarto dia, Gaddo atirou-se-me aos pés murmura
ndo: Pai, por que não me socorres?' E morreu. E assim como me estás vendo, vi morrer
os outros três, um a um, entre o quinto e o sexto dia. Apalpando, busquei seus co
rpos, pois já cego estava, não os podendo ver. Dois dias passei, seus nomes repetind
o. E para acabar comigo, o que não puderam dor e sofrimento, pôde o longo jejuar".
Quando tais palavras disse, torcendo a vista, voltou, furioso, a remorder o crânio
do mesquinho, qual mastim que fortemente rompe um osso.
Ah! Pisa! vergonha dos que habitam a meiga terra onde o doce si ressoa; uma vez
que teus vizinhos em te punir são lentos, auguro que velozmente Caprara e Górgona (1
), postadas na foz do Arno, impedindo das águas a saída, levante-as até afogar a última
das tuas gentes! E se o pobre Ugolino foi acusado de haver ao inimigo entregue o
s teus castelos, por que também os filhos punir com tal castigo?
Eram inocentes pela própria idade, esse Uguccione, esse Brigata e os dois irmãos sob
re os quais usaste tal ferocidade, ó nova Tebas!
Passamos para a seguinte estância (Ptoloméia), onde, não voltada para o alto, mas supi
na no gelo, vi outra casta de pecadores. Tendo o rosto voltado para as costas, não
podem do pranto auferir alívio. As lágrimas para o peito lhes refluem, aumentando e
m muito o sofrer. Antes de rolar, petrificada em gelo, a lágrima forma, em cada órbi
ta, venda de neve sobre o olho inteiro.
Embora o extremo frio houvesse tornado insensível o meu rosto, pareceu-me perceber
aragem branda. Surpreso, perguntei: "Mestre, que produz tal vento, se não há aqui v
apor de que ele se faça?" (2) Respondeu: "Breve chegaremos a um ponto onde teus ol
hos darão resposta aos ouvidos, dando-te a conhecer como este vento é produzido".
* (1) Caprara e Górgona, ilhotas do Mediterrâneo, diante da foz do Arno. (2) Acredit
ava-se à época que o vento resultasse da evaporação da Terra. Não chegando o Sol até o fund
do Inferno, como a evaporação se daria?
Eis que um dos padecentes gritou: "ó almas cruéis! ó almas perdidas, que à última estância
nfernal fostes condenadas! Libertai meus olhos da gelada cobertura para alívio dar
ao peito aflito, antes que novas lágrimas cristalizadas aumentem meu penar!" Reto
rqui: "Se queres ajuda, dize-me quem és, e se eu faltar ao trato, seja metido entr
e os danados do derradeiro sítio". Explicou-me: "Sou Frei Alberigo, o que serviu a
s frutas do mau horto. Aqui, por castigo, recebo tâmara por figo". Exclamei: "Pois
então morreste?"
E ele: "Eu mesmo não sei se lá no mundo meu corpo é morto ou vivo. Coisa tamanha só em P
toloméia sucede: as dores aqui pungem antes que Átropos (3) mova o dedo. E para que
tu, com diligência maior, removas dos meus olhos as endurecidas lágrimas, revelo que
no corpo do traidor, no instante em que a traição consuma, penetra demônio que o gove
rna até o momento extremo, estando a alma já de muito nesta caverna. Ainda vivo e fe
liz em seu país natal tu supões esteja alguém que ao meu lado agora inverna. Se é que vi
este de pouco, hás de saber que há muito mais de ano ele está aqui recluso". Contestei
: "Creio que te enganas. Branca d'Oria (4) ainda é vivo a esta hora, e come e dorm
e e veste-se de pano". Tornou: "Ao poço lá em cima, onde ferve o pez, e que se chama
Malebranche, não havia ainda chegado Miguel Zanche, quando um demônio tomou lugar n
o corpo deste e de um parente seu, cúmplice na traição. Mas agora, estende as mãos e aju
da-me a abrir os olhos".
* (3) Átropos, a mais velha e implacável das Parcas, era quem cortava o fio da existên
cia humana.
(4) Branca d'Oria, genovês, assassinou o sogro para herdar-lhe a fortuna e o cargo
que este desempenhava na Sardenha. *
Mas não o ajudei, pois entendi haver errado ao querer com tal canalha ser gentil.
Ah! genoveses, gente divorciada dos bons costumes, amantes do pecado, por que não
sois dispersos pelo mundo? Eis que junto ao pior espírito da Romanha encontrei um
de vós, traidor a tal ponto infame, que sua sombra no Cocito já se banha enquanto se
u corpo se mostra no mundo, bem vivo.
Canto XXXIV
Os dois poetas se avistarão agora no quarto recinto do nono Círculo - a Judeca, onde
são punidos os traidores de seus chefes e benfeitores.
"Vexilla regis prodeunt Inferni (1) em nossa direção: à frente, pois, observa e hás de vê-
los, se o teu olhar puder discernir", disse o mestre. E assim como se distende n
eblina espessa, ou quando, em nosso hemisfério, a noite fecha e um moinho ao longe
, tendo as pás agitadas pelo vento, chama a nossa atenção - pareceu-me divisar vulto i
gual.
O vento que soprava abrigo me fez buscar junto do mestre, que outro amparo por a
li não existia. Havíamos por fim chegado - tremo ao descrevê-lo em versos - àquele ponto
onde os condenados, cobertos pelo gelo, nele transpareciam como trincas no bom
vidro. Alguns vi, deitados; outros eretos; grande número, com as pernas para o alt
o, vários deles, vergados a ponto de com os pés e as faces formarem arco.
Quando, no entender do mestre, avançáramos o bastante, decidiu-se a indicar-me a cri
atura que outrora exibira formoso semblante. Tocou-me e me deteve, dizendo: "Eis
Lúcifer! Este é o local onde de extrema fortaleza convém que armes o espírito". o quant
o, então, me senti gelado e oco, não me perguntes, leitor, que não o saberia dizer, po
is todas as palavras são poucas para descrevê-lo. Não morri e contudo não vivia.
'* (1) Vençam os estandartes do rei do Inferno... *
Se acaso és dotado do suficiente engenho, imagina o quanto estive privado, tanto d
a vida quanto da morte.
O imperador do reino doloroso erguia o peito para fora da geleira. Eu, com minha
estatura, mais próximo estou de um gigante do que um gigante comparado com o braço,
apenas, de Lúcifer. Imagina pois, leitor, quão grande será Lúcifer se calculado pelo ta
manho de seus braços. Se um dia foi belo, quanto é hoje horrendo; se contra seu Cria
dor alçou a fronte, bem entendo seja ele a fonte única do mal que o mundo chora. Ah!
Qual não foi minha estupefação ao aperceber-me de que de três faces era a sua cabeça. Era
vermelha (a indicar o ódio que o move) a face que eu via de frente; as outras rep
ousavam, cada uma sobre largo ombro, mas lá em cima, no alto crânio, formavam as três
um só conjunto. A da direita estava entre o branco e o amarelo; a da esquerda lemb
rava a cor que amorena a gente nascida e afeita à terra onde o Nilo tem seu curso.
Sob cada face, duas asas vastas o quanto convém a um ser de tal modo volátil e mau.
Velas assim grandes não vi jamais em nau de alto-mar. Não tinham penas, e mais lemb
ravam pela forma as asas dos morcegos. Continuamente agitadas, produziam os três v
entos gélidos que mantêm enregelado o Cocito. Pelos seis olhos chorava; por três peito
s escorriam suas lágrimas, pranto feito de sangue e espuma. Em cada boca triturava
um pecador, qual moinho a esmagar o grão. Para o condenado da boca fronteira o mo
rder era pouco, pois com as garras, em constante fúria, Lúcifer lhe arrancava a pele
.
Indicou-me o mestre: "Essa alma que sofre maior padecimento é Judas Iscariotes. De
ntro da bocarra infernal tem a cabeça, e fora as pernas não cessa de agitar. Os que
vês das outras bocas pendentes são Bruto, preso à boca de cor mais negra (repara como
se contorce e silencioso se mantém), e Cássio o de membros especialmente robustos. P
orém, eis que a noite se anuncia. É tempo de partir. Vimos o que devia ser visto".
Conforme me instruiu, abracei-o fortemente. Ele escolheu o tempo e o modo azados
, e quando foram abertas as asas infernais, àquelas costas peludas agarrado, de ve
lo em velo fomos avançando, entre o gelo e o compacto pelame. Atingida a altura em
que os quadris se unem às coxas, reparei que o guia, exausto e angustiado, voltav
a a cabeça para a direção em que até ali apontava com os pés, agarrando-se como se, em vez
de descer, quisesse subir. De modo que supus para o Inferno estar voltando.
Com voz de homem ao extremo fatigado, Virgílio instruiu-me: "Segura-te bem que só po
r este singular caminho se pode abandonar o império do mal". Por uma fenda na roch
a, saiu e fez-me sentar. Junto a mim ficou, ereto, vigilante.
Ergui o olhar, esperando ver Lúcifer tal como o havia deixado e eis que o vejo de
pernas para cima. o quanto nesse instante me senti embaraçado, pense-o a gente sem
instrução e todos quantos ignoram qual era o fulcro pelo qual eu havia passado.
o mestre comandou: "Ergue-te! Vamos! A jornada é longa, o caminho ruim e da meia-t
erça já esplende o sol.
o caminho não era piso de palácio, mas simples trilho em galeria subterrânea, com mau
traçado e de lume carecente. Quando pude pôr-me em pé, murmurei: "Antes que deixe o es
curo abismo, dissipa-me, ó mestre, dúvida que me atormenta. Onde está o gelo?
Aquele maldito que ereto vi há pouco, como é que, agora, assim se encontra? E como,
tão rápido, fez o Sol o trajeto da noite à madrugada?"
Tornou-me: "Acreditas que ainda nos encontramos além do centro, lá onde me agarrei a
o pelame do verme que com o pecado empesta o mundo. Ali estiveste enquanto desci
. O centro, porém, cruzaste no exato ponto em que me voltei para direção oposta. Tal p
onto é o centro para onde, de toda parte, o peso é atraído. Ali passaste para o hemisfér
io que se opõe àquele das terras ressequidas, em cujo alto monte foi morto um justo
que nasceu e viveu sem pecado. Tens os pés, agora, firmados sobre pequena esfera f
ora da Judeca. Se aqui é manhã, lá anoitece, e esse cujo pêlo nos serviu de escada não mud
ou nem lugar nem posição. Aqui ele tombou do Céu, e a Terra, que neste ponto emergia,
por horror ao chegadiço cobriu-se com o véu do mar e para outro hemisfério deslizou. E
talvez tenha sido também por medo a ele que esta cavidade deixou, ao fugir além, aq
uela montanha que longe aparece na outra metade do mundo".
Naquelas fundas paragens há um ponto que dista tanto de Belzebu quão largo é deste o s
epulcro, o qual ponto não há de ser localizado pela vista, mas pelos ouvidos. Anunci
a-o murmúrio de arroio que o seu curso tortuoso escavou na rocha e que pouco pende
. Ao longo de seu manso curso, pelos ouvidos seguindo ínvio trilho, meu guia e eu
buscamos regressar ao claro mundo superior. Sem jamais considerar, nem ele nem e
u, em pelo caminho tomar descanso, fomos subindo, o mestre à frente eu em segundo,
até que por abertura circular pude notar as maravilhas do céu escuro. E depois, sai
ndo, as estrelas se nos descortinaram.
Segunda parte
Purgatório
Canto I
Os dois poetas retornam do Inferno pela galeria subterrânea, e alcançam a superfície d
a terra. Acham-se perto do Monte Purgatório. Entre a praia e o sopé da montanha, dep
aram Catão, que guarda o lugar.
Singrando em águas favoráveis, a barca do meu engenho alçou velas, deixando para trás o
pélago cruel. Eis que passo a cantar o segundo reino, onde o espírito, purgando culp
as, faz-se digno de ascender ao Céu. Para isto, ó santas Musas, fazei que eu recuper
e o vigor da poesia antiga e que Calíope empreste ao meu cantar o tom alto e digno
que não permitiu às pegas esperar que seu atrevimento fosse perdoado.
Linda tonalidade de safira oriental espargia-se pelo horizonte sereno até onde o p
rimeiro céu alegra a vista aumentando a minha alegria por haver, afinal, deixado a
s auras mortas que me haviam pungido o olhar e o coração. O formoso astro que auspic
ia o amor fazia esplender o oriente inteiro, velando a constelação de Peixes que lhe
faz escolta.
Voltando-me à direita, avistei o outro pólo e eis descubro quatro estrelas jamais vi
stas senão pela antiga gente. Ao seu rutilar, mais alegre parece o firmamento. Ó set
entrião!, vale por viuvez o não haveres contemplado tão rutilantes astros!
Tendo-os admirado longamente, atentei para direção oposta, onde o carro solar se hav
ia rompido, e diviso, bem próximo, ancião que de mim merecia reverência tanto quanto f
ilho algum já fez ao pai. Longas barbas, brancas quais os cabelos, lhe desciam ao
peito. Tal fulgor punham em seu rosto aqueles quatro astros que eu o via como se
o Sol lhe estivesse adiante.
Disse-me, agitando as veneráveis barbas: "Quem és, que vencendo o rio trevoso fugist
es da prisão eterna? Quem te guiou, iluminando o caminho, para que pudesses deixar
o infernal espaço onde é sempre noite escura? Acaso estão anuladas as leis do Abismo?
Ou o Céu, rompendo a própria ordem, permite aos condenados invadir este domínio?"
Acenando e movimentando as mãos, Virgílio indicou-me o que me incumbia fazer. Curvei
joelhos e baixei os olhos, enquanto ele respondia: "Não vim por vontade. Dama do
Céu baixada rogou-me prestasse socorro a este vivente, servindo-lhe de guia. Mas v
isto que desejas conhecer em pormenores a nossa condição, ora te darei explicação devida
.
"Ainda não é chegada a hora fatal para este a quem guio, mas, por seus pecados, este
ve tão próximo dela que bem pouco lhe faltou para perder-se. Já dis se o porquê de tê-lo s
ocorrido. Para tirá-lo do perigo não há caminho senão o que vamos percorrendo. Mostrei-l
he, ao longo dele, a gente que paga as suas maldades. Ora, neste lugar entendo e
xibir-lhe a grei que sob os teus cuidados se purifica. Demasiado longo seria nar
rar-te quanto vimos. Sabes provir do Alto a ordem que me impôs trazê-lo para ver-te
e ouvir-te. Sê, pois, benigno a quem a liberdade aspira - e o quanto ela é preciosa
bem o sabe quem por ela rejeitou a vida. Por ela não terá sido amarga a tua morte em
Utica, sítio que guardou teu corpo, gesto esse teu que no Juízo Final sob luzes fav
oráveis será considerado. Não violamos leis divinas pois ele é vivo e Minos não me impediu
, pois sou daquele círculo onde também se encontra a tua Márcia, cujo puro olhar parec
e estar rogando que ainda a consideres tua. O recordála amorosamente te faça propício
a nós peregrinos. Acede a que cruzemos os teus sete reinos e eu, grato, hei de ref
erir a Márcia a tua benignidade, se isso te agradar".
Catão por sua vez disse: "A tal ponto alegrava Márcia os meus olhos que, no mundo, q
uanto quis lhe concedi. Agora, porém, não me é dado mover-me para além do rio que tudo l
imita. Ao deixar o Limbo, tal decreto me foi imposto. Quanto a vós, se dama celest
ial vos patrocina, é indispensável que rogueis beneplácito. Vai, rápido! Cinge a este vi
vente, com a haste do junco lava-lhe o semblante, para que de toda sombra infern
al seja liberto. Pois é mister que quando defronte o primeiro anjo, sentinela do P
araíso, névoa alguma lhe oculte o olhar. Para além, no ponto mais baixo onde o mar bat
e a costa, esta ilha é ornada por alastrado juncal. Planta alguma, mais rija ou al
terosa, ali viveria, não sabendo dobrar-se ao embate do mar. Feito isto não regresse
is aqui, de nada adiantaria. À luz do Sol que vai nascendo, descobrirás o melhor cam
inho para remontar a montanha".
Assim falou, e desapareceu. Ergui-me e, silencioso, olhos postos no semblante do
meu guia, amparei-me nele. Disse: "Segue-me, filho. Voltemos, eis daqui vai-se
inclinando o chão para o mais fundo vale". Recuava o crepúsculo, e pude ver, distant
e embora, o ondular marinho. Andávamos por deserta planície, como quem volta à estrada
antes perdida, tornando o caminho inútil.
Quando alcançamos um ponto em que a luz não lograra espancar a sombra e pela relva a
inda havia rocio, o mestre sobre a erva molhada deslizou as mãos. Seu intento comp
reendendo, ofereci-lhe as faces. O passar das mãos bastou para devolver-me a cor e
o viço perdidos no Inferno.
Enfim chegamos à erma praia, cujas águas jamais haviam sido domadas por homem nenhum
. Aí fui cingido, segundo mandara Catão. Ó Maravilha! Vi, renascida, a planta no lugar
de que fora arrancada.
Canto II
Caminhando à orla da praia, os poetas vêem chegar uma nave pilotada por um Anjo, da
qual desembarcam almas rumo ao Purgatório. Dante reconhece, entre essas almas, o mús
ico florentino Casella.
o Sol já começava a surgir na fímbria do horizonte da ilha do Purgatório, cujo meridiano
é o ponto mais alto de Jerusalém; já a noite, que traça itinerário oposto, elevava sobre
o Ganges a constelação da Balança, oscilante em suas mãos. A esse tempo, ali onde me enc
ontrava, a branca e rósea cor da aurora tinha seus tons alterados pelo avançado da h
ora.
Avançávamos ainda ao longo do mar; éramos como aqueles que, embevecidos, apressam apen
as a mente, ficando seus pés lentos. Eis que, assim como sobre as dobras da manhã Ma
rte fulgura entre a névoa, além, no poente dos pagos marinhos, uma luz - queira Deus
torne a vê-la! - percebi a correr sobre o mar, com tal velocidade que vôo de ave al
guma se lhe compara. Inda mais rútila e poderosa me pareceu depois que, tendo-me v
oltado para o guia, a interrogálo, novamente a mirei.
Pensei ter visto em suas bordas um não sei quê branquejar, que logo, na parte inferi
or, foi também surgindo. Meu mestre não disse palavra, até que tais brancuras em asas
se definissem. Então, reconhecendo o navegante, assim falou:
"Ajoelhado, e de mãos postas! Eis um anjo de Deus! Compõe as mãos! Daqui para a frente
, ditoso, muitos outros hás de ver. Observa que, desdenhando os recursos humanos -
remos ou velas -, apenas com as asas remotos sítios vai percorrendo. Vê como as ori
enta rumo do céu, movendo agilmente as eternas plumas, que não mudam nem caem qual s
ucede aos cabelos mortais".
Contudo, mais e mais se avizinhando, bem se desenha o divino mensageiro, fazendo
-me baixar os olhos deslumbrados. Tocou a praia, veloz e leve, qual barca que se
quer tocasse a água! Na popa do barco vinha celestial barqueiro, na fronte parecen
do ostentar o seu feliz estágio. Dentro, vinham mais de cem espíritos a cantar "In e
xitu Israel de Aegypto" entre outros. Após o sinal-da-cruz, dirigiram-se à praia, e
o anjo como veio tornou, sem perder tempo.
Os que permaneceram mostraram-se deveras espantados, olhando ao redor, o que é com
um nos que provam conhecimentos novos. Em todos os pontos o Sol frechava com luz
es o dia nascido, e com seus fulgores acelerava o tramonto das estrelas de Capri
córnio, quando os recém-chegados perguntaram-nos:
"Se sabeis, mostrai-nos o caminho para subir o monte". E Virgílio falou-lhes: "Sup
ondes sejamos conhecedores deste sítio, mas peregrinos somos, tal como vós. De pouco
vos precedemos, chegados por caminho tão áspero e temeroso que, comparado a ele, se
rá aprazível subir".
Então aquelas almas notaram, pelo meu respirar, que eu vivia; e empalideceram tal
sua surpresa. E qual multidão curiosa envolve o mensageiro a os tentar ramos de ol
iveira, desejando por primeiro ouvir as notícias, sem atentar no desconforto da ag
lomeração, assim cercaram-me as almas venturosas. Em meu rosto fixaram interesse alv
oroçado, quase esquecidas de que marchavam para a suprema formosura. Uma delas, ad
iantando-se, esboçou o propósito de abraçar-me, e com tal ímpeto que de entusiasmo igual
fui tomado. Vã tentativa, pois a sombra era verdadeira só em aparência! Três vezes quer
endo estreitá-la, três vezes ao peito eu trouxe apenas as minhas mãos. Ante o meu demo
nstrado espanto, sorriu e retirou-se. Principiei a segui-la. Mas com suavidade d
isse que eu me detivesse. Ouvindo-a, reconheci quem era, e pedi-lhe que comigo f
alasse.
Respondeu-me: "Como te estimei revestido de corpo mortal, assim te estimo ainda.
Pergunta e atenderei ao que desejas". Tornei-lhe: "Casella, faço esta viagem para
retornar ao ponto terreno de onde parti. Mas tu, que há muito faleceste, como só ag
ora chegas aqui?" E ele: "O anjo que toma na sua barca a quem e quando deseja, n
enhuma injustiça me fez ao retardar minha passagem, pois a Sumo Querer obedecia. Há
três meses apenas que ele, em sua barca, deu entrada a quantos entendia. Encontrav
a-me onde o Tibre entrega águas ao mar, e pelo anjo fui recolhido. Para aquele sítio
o vôo freqüentemente endireita, pois ali se congregam as almas que não estão sujeitas às
penas do Aqueronte".
E eu a ele: "Se lei não te proíbe memorar e recitar o amoroso canto que suavizou mágoa
s de meu viver, concede consolar meu espírito que para aqui vindo juntamente com o
corpo tantos horrores viu".
Amor que em minha mente me sugere...'; começou ele a cantar, com doçura tamanha que
inda agora enternece minha alma. O mestre, eu e aquela gente nos quedamos tão cont
entes que com nada mais ocupamos a mente.
Pendíamos de suas notas quando aquele ancião venerando [Catão] acorreu bradando: "Que é
isto, ó espíritos descuidados? Que negligência, que preguiça
é esta? Correi, subi a montanha, a liberar-vos das impurezas que não vos permitem co
ntemplar a Deus". Como pombos que entretidos com comida, distraídos, são despertados
por algo que os angustia, e súbito arrancam, de pavor tomados - assim aquela turb
a o amável canto esquece e corre na direção da encosta, em desespero.
Nem nossa partida foi menos breve.
Canto III
Dante e Virgílio dirigem-se ao sopé do monte, onde o Antepurgatório começava. Avistam os
excomungados, que para ascender aguardavam o decurso do prazo.
Enquanto a turba era impelida, por aquela súbita dispersão, rumo ao monte onde casti
go merecido a esperava, acheguei-me ao companheiro fiel. Não fosse ele, como teria
encontrado o caminho? Quem me conduziria à montanha?
Observei que o remorso o perturbava, dado que a mais leve falta motiva aborrecim
ento às almas puras! Quando diminuiu a pressa no andar, que não era apropriada ao lu
gar, eu, que até ali sentira a mente angustiada, alarguei o alvo das atenções e voltei
o olhar para a montanha que, mais alto do que todas as outras, é a que do céu mais
se aproxima.
Atrás de nós fulgia o Sol, a dardejar a luz que meu corpo interrompia, lançando sombra
diante de meus passos. Vendo a sombra única e receando haver sido abandonado, pre
sto voltei-me para o lado. Aquele que era meu conforto perguntou-me, incisivo: "
Por que suspeitas? - Não crês que eu continue, cuidadoso, a guiar teus passos? Vai n
ascendo a estrela Vésper lá onde repousa o corpo dentro do qual eu também projetava so
mbra. É Nápoles, que recebeu meu corpo de Brindisi. (1)
* (1) Virgílio morreu em Brindisi, porém seus restos foram transferidos para Nápoles.
*
Se diante de mim não existe sombra, não te seja isso maravilha, como não deve maravilh
ar, lá no Céu, uns aos outros, que os astros não impeçam a passagem da luz. (2) Aptos a
suportar grandes tormentos, extremos entre o gélido e o fervente, a Suma Virtude c
ria, sem mais explicações, corpos como o meu. Louco é quem acredita ser a razão humana c
apaz de apreender a infinita grandeza onde vige o Ente que é Uno em Três substâncias. Ó
homem, que o quia te baste (3) pois se ao Supremo Saber vos fosse dado elevar-vo
s, não teria dado à luz Maria. Para o homem, é inútil procurar a solução dos grandes proble
as que mesmo para não serem entendidos lhe foram apresentados. Refiro-me a Aristótel
es, a Platão e a outros mais".
Baixando a fronte, silenciou, muito perturbado. Assim chegamos ao sopé do monte. E
ste era tão escarpado que a escalada nos pareceu impossível. A mais difícil e triste d
e quantas veredas existiam entre Lerici e Turbia resultará dócil escada se comparada
à trilha deste monte.
Detendo-se, o mestre disse: "Quem poderá saber onde se abre o monte em trilha mais
amena, passível de ser superada por quem não possua asas?"
Enquanto ele refletia sobre o melhor caminho, passei a vista ao redor e descobri
, à direita, turba que para nós se encaminhava em passo tão lento que nem parecia esti
vesse caminhando. Alertei ao mestre: "Volta a atenção para esses que se aproximam. P
odem nos mostrar a via desejada, se não a achaste por si só".
* (2) De acordo com o sistema ptolemaico, os astros das esferas inferiores eram
dotados de transparência; não impediam a passagem da luz dos astros das esferas supe
riores.
(3) quia: aquilo que é. O homem deve contentar-se com que uma coisa exista, sem in
dagar sua razão. *
Dirigiu-me o olhar já serenado e disse: "Vamos ao seu encontro, pois bem lentament
e avançam. Até lá, mantém acesa a esperança, querido filho". Estava bem longe aquela gente
, pois havíamos caminhado já mil passos e ainda nos encontrávamos a tiro de pedra lançad
a por destro atleta, quando eis que os espíritos cerram espaço e fazem alto junto ao
penhasco, como se vigiassem, desconfiados, os que deles se aproximam.
Virgílio falou-lhes: "Ó vós, finados na graça divina, espíritos eleitos para aquela graça q
e, suponho, seja vosso grande anelo! Revelai-me o ponto onde essa penedia fragos
a, abrandando a sua dureza, permite-nos escalar; pois escasso é o tempo e difícil a
nossa missão.
Como ovelhas que deixam o redil a uma, a duas, a três, mantendo as mais assustadas
os olhos e a cerviz baixados, todas seguindo os passos da primeira, aconchegand
o-se-lhe quando ela pára, seguindo-a quando avança, dóceis e quietas sem saber por quê;
assim notei que se movia para nós a testa daquela coluna de almas afortunadas, pud
icas no olhar, simples no andar.
Mas quando as primeiras dentre elas puderam ver que minha sombra, estendida à dire
ita, crescia sobre a rocha, estacaram surpresas; deram um passo para trás, imitada
s pelas que as seguiam.
"Sem que pergunteis, digo-vos ser vivo o corpo que aí vedes, no solo interrompendo
, com sua sombra, a marcha da luz solar. Não vos cause o fato excessivo pasmo, eis
que, por vontade divina auxiliado, pretende ele atingir deste monte o cimo".
"Assim falou meu mestre, à guisa de explicação. E aquela digna gente respondeu: "Volta
i-vos e caminhai à nossa frente!" e com mover de mão indicavam o roteiro. Logo, diss
e-me um deles: "Quem quer que sejas, sem deixar de caminhar volve teu rosto para
o meu e procura recordar se viste minha face alguma vez".
Olhei-o com atenção: era louro, belo, de nobre aspecto; trazia porém o sobrolho dividi
do por rude golpe. E quando respeitosamente neguei conhecê-lo, exibiu-me no peito
uma larga ferida, dizendo: "Repara!" Depois, sorrindo, continuou:
"Eu sou Manfredo, neto da Imperatriz Constança. Quando voltares à Terra, rogo-te que
narres a verdade à minha filha - a qual concebeu esses reis que honram Sicília e Ar
agão -, pois a verdade não lhe contaram. Recebendo duas feridas mortais, rendi-me, c
horando, àquele que é o Sumo Perdão. Réu me fiz de pecados horrendos, mas a Bondade Infi
nita estende seus braços a todos quantos suplicam-lhe a graça. Se o bispo de Cosenza
, que o Papa Clemente enviou a desenterrar meus ossos, houvesse meditado nesse m
istério da divina graça, talvez meus restos ainda se achassem perto da ponte próxima d
e Benevento. Agora são fustigados pela chuva e revolvidos pelos ventos, longe dos
limites do que foi meu reino, nas margens do Rio Verde, em lugar cheio de escuri
dão e indigno. Mas nenhum anátema é tão poderoso que deserde a alma do amor divino enqua
nto a esta alma restar a confiança no Sumo Amor. Essa alma deve permanecer fora do
Purgatório trinta vezes o tempo em que na Terra viveu apartada da Santa Igreja, s
e preces do mundo não lograrem encurtar tal período. Agora entendes que bem me podes
auxiliar revelando à minha boa Constança como achaste-me aqui, e quanto alívio se pod
e alcançar pelas preces dos vivos".
Canto IV
Os poetas começam a subida do monte, já no Antepurgatório. Deparam as almas de indolen
tes, negligentes e omissos, e de gente que mostrou arrependimento no momento ext
remo.
Quando a alma é tomada, seja pela felicidade ou pela desgraça, chega-se a supor que
a nada mais ela se faz sensível - o que é, por sinal, o melhor testemunho contra aqu
ela errônea crença de que há em nós uma alma dentro de outra alma embutida.
Assim, quando o homem ouve ou contempla maravilha que lhe absorva a atenção e as fac
uldades da alma, vai-se o tempo sem que o perceba; pois suas qualidades concentr
a apenas no que vê ou ouve. Por um lado isca atado, pelo outro permanece desintere
ssado. Ouvindo falar aquela sombra, tive a verdadeira prova disso.
O sol já havia subido cinqüenta graus (1) sem que de tal me apercebesse, quando a tu
rba que seguíamos, indicando certo ponto, gritou: "Entrai, entrai aqui!"
O vinhateiro costuma proteger com braçadas de ramas espinhosas o acesso à vinha já ama
durecida. Pois mais áspera e estreita era a senda alcantilada por onde o meu guia
e eu, depois dele, fomos subindo, tão logo a multidão afastou-se de nós. Assim se alca
nça Noli, descendo por San-Leo, e se chega ao pico de Bismântova.
* (1) Já haviam se passado mais de 3 horas, visto que o Sol percorre 15 graus por
hora. *
Ideal seria dispor de asas de ave robusta, ou de inabalável obsessão, para seguir co
mo seguia o mestre, de quem me vinha esperança e luz para o caminho. Subíamos por um
caminho aberto entre rochas, esfregando-nos em ambos os lados nas paredes; e usáv
amos mãos e pés em tal tarefa.
Alcançando um ponto mais alto da penedia, perguntei: "Que direção tomamos, querido mes
tre?" E ele a mim: "Fica perto, até que tenhamos orientação segura". Não podia a vista c
alcular tão íngreme inclinação, ainda superior à linha que corta o centro de um quadrante.
Adiante, sem forças, supliquei: "Ó doce pai, põe reparo em mim; ficarei abandonado se
continuas sem mim". Disse-me: "Filho, arrasta-te para ali", e com o gesto indic
ava espaço pouco acima a vincar a escarpa.
Tais palavras foram para mim grande estímulo. Rastejei seguindo seus passos, até che
gar à altura mencionada. Lado a lado nos sentamos, voltados para o nascente, quais
exaustos peregrinos a fitar a palmilhada estrada. Então olhei para baixo. Ao Sol
volvi depois o olhar e, pasmado, constatei que pela esquerda nos vinha sua luz.
O poeta notou meu enleio diante da posição solar já pelo norte entrada. Por isso, diss
e-me: "Se Castor e Pólux (2) iluminassem prontamente ambos os hemisférios, verias br
ilhar mais junto das estrelas da Ursa a roda do zodíaco, pois mantida estaria a ve
lha rota astral. Se quiseres esclarecer esse mistério, imagina que este monte e aq
uele outro que é de Jerusalém a máxima altura estão sobre o mesmo horizonte mas em posição
ntípoda, pois situados em diferentes hemisférios.
* (2) Estrelas da constelação dos Gêmeos. *
Assim, a estrada que o Sol no céu percorre - se a razão não te falhar no raciocínio - co
ntrária parecerá, pois enquanto um o vê de um lado, é visto do lado oposto no outro mont
e".
Eu disse: "Bom mestre, jamais, como agora, o meu entendimento alcançou o que antes
parecia obscuro. Sei que a linha mediana do terreno círculo equador é chamada em as
tronomia, e sempre separa o inverno do verão. Se compreendi a tua lição, é este monte o
antípoda de Jerusalém, e assim vemos o Sol brilhar no norte enquanto os hebreus o po
dem ver ao sul. Mas agora, se consentes, gostaria de saber - pois meus olhos não d
ivisam o cume da montanha - quanto ainda teremos de cumprir".
Ele respondeu: "É próprio deste monte causar maior fadiga no início da escalada; quem
mais alto vai, menos cansaço sente. Ao fim do caminho a escalada será tão suave que o
subirás lépido e alegre, tal como a favor da corrente usa descer a nave. Após o esforço,
sentirás alívio, no corpo e na mente. É a verdade".
Mal o mestre terminou de falar, uma voz fez-se ouvir perto: "Talvez antes do fim
necessites repousar!" Ao som de tal voz ambos nos voltamos, buscando conhecer o
que falara. Vimos à esquerda alterosa rocha na qual só então pusemos reparo. Para ali
fomos e, tendo-a contornado, deparamos multidão de almas acolhida à sombra, repousa
ndo como se vencidas por preguiça. Uma, que mais do que as outras parecia exausta,
estando sentada abraçava as pernas e prendia os joelhos entre a cabeça.
Exclamei: "Vede, ó caro mestre, quanto ama a negligência esse que irmão da preguiça me p
arece". Aquele, então, sem alterar postura, a nós voltando os olhos, murmurou: "Segu
e tu, que te proclamas valente!" Reconheci-o. Embora ainda ofegante, para ele en
caminhei os passos. À minha aproximação, mal ergueu a testa, e com sossego foi que dis
se: "Reparaste como à esquerda é que o Sol conduz seu carro?" Seu lento mover-se, su
a voz arrastada a um sorriso me dispuseram. Tornei: "Belacqua, não choro o que a t
i ocorreu, mas dize-me por que ficas aí sentado? Esperas por quem te guie ou também
aqui pela preguiça és dominado?" (3)
Respondeu-me: "Irmão, de pouco me adianta subir mais. O anjo que custodia a porta
dos martírios do Purgatório não me permitiria entrar. Antes de que eu entre, o céu deve
girar ao meu redor tempo igual ao que tive em vida. Isso se em contrário orações não me
ajudarem; pois só quando o fim chegou é que me arrependi".
Mas já o poeta prosseguia na penosa ascensão. "Vem!", chamou-me. "Já resplandece o Sol
no meiodia, e a noite já assenta seus pés em Marrocos!"
* (3) Trata-se de Belacqua, fabricante de instrumentos musicais em Florença, do círc
ulo de amizade do poeta; era famoso por sua indolência. *
Canto V
Ia me afastando das lentas almas, acompanhando a sombra do meu guia; súbito uma de
las, em minha direção apontando o dedo, gritou: "Olhem! A luz do Sol não atravessa o q
ue vai mais demoradamente e que se conduz como se fosse vivo!"
Voltei-me para a direção de onde o grito viera, e percebi que as almas todas olhavam
, perplexas, a mim e à minha sombra. Perguntou o mestre: "Por que, filho, te pertu
rbas a ponto de retardar os passos? Incomoda-te o murmurar desta gente? Segue-me
de perto e deixa falar. Sê como torre firme, cujo cimo não desaba ao soprar dos ven
tos. Pois é certo que, entregando-te ao mesmo tempo a vários pensamentos, perdes em
firmeza e teu ideal afastas, dado ser próprio de um pensamento enfraquecer a força d
o que lhe é anterior".
Respondi o que devia responder, e o fiz enrubescendo: "Já vou". Mas eis que pelo a
talho subiam almas, em grande número, entoando o Miserere. Quan do se deram conta
de que meu corpo à luz do Sol não permitia passagem, mudaram o religioso canto para
um "Oh!" rouco e prolongado, e duas dentre elas, à guisa de exploradores, avançaram
para junto de nós, pedindo: "Instruí-nos sobre quem vós sois!"
E meu mestre: "Informai aos que vos enviaram que a vida terrena ainda não abandono
u o corpo deste que me acompanha. Se, conforme presumo, os vossos passos detives
tes por ver-lhe a sombra humana, a devida explicação já vos dei. Ora, a vós convém ter-lhe
respeito".
Mais velozes do que costumam as estrelas cadentes cortar o sereno infinito, ou a
névoa crepuscular do céu ser soprada, aquelas duas almas retornaram para junto de s
eus iguais. Uma vez reunidos, vieram ao nosso encontro qual esquadrão a galopar de
senfreado.
O poeta alertou-me: "Avultada é a multidão e todos vêm para interrogar-te. Não convém, por
causa disso, sustar a marcha. Segue caminhando, mas escuta enquanto anda".
Assim gritavam, enquanto iam se aproximando: "ó alma que sobes para a alegria cele
ste revestida dos membros com os quais nasceste, diminui um pou co o vigor dos p
assos. Observa-nos, a ver se reconheces alguém dentre nós, a fim de levar ao mundo n
otícias dele! Mas por que continuas assim, com tanta pressa? Por que não paras? Vê, to
dos nós fomos vítimas de morte violenta, pecadores, portanto, até o momento derradeiro
, quando nos chegou a graça divina. Assim que, saindo da vida, sofrendo e perdoado
s, para cá viemos, com Deus pacificados, agora movidos tão-somente pelo desejo de vê-l
o".
Respondi: "A ninguém entre vós reconheço, pelas alteradas feições. Mas se algo posso fazer
que de agrado vos seja, ó espíritos votados à luz, de boa mente o farei, pois que bus
co, por este sábio espírito conduzido de mundo em mundo, seguir caminho".
Disse um dos espíritos: "Sem necessidade de jura damos fé às tuas palavras de que pode
s cumprir tudo quanto nos acenaste. Aos outros eu me antecipo rogando tua atenção. S
e acaso fores ter àquela cidade erguida entre a Romanha e a praça que é possessão de Car
los de Anjou, procura os meus familiares em Fano e roga-lhes que com piedosas pr
eces abreviem o suplício com o qual pago os pecados outrora cometidos. Nasci ali,
mas os rudes, sanguinosos golpes que a cara existência me cortaram recebi-os nos c
ampos, onde habitam os descendentes de Antenor, região onde mais seguro eu julgara
estar. Assim o exigiu a fúria do Marquês d'Este, o qual meu fim planejara, cheio de
ódio. Ah! se na fuga eu me houvesse orientado para Mira, que está entre Pádua e Oriag
o, talvez ainda me encontrasse no mundo onde se come e respira. Mas os esbirros
me alcançaram; corri pelo pântano, sem rumo certo, tombando por fim, em juncos e can
as enleado, vendo meu sangue derramar-se fartamente no chão".
Outro clamou, depois: "Se puderes realizar o desejo de ultrapassar esse alto mon
te, por mim te mova a piedade prometida. Fui de Montefeltro e me cha mei Buoncon
te. Ninguém se lembra de mim, nem mesmo Giovanna, minha esposa; por isso ando de c
abeça abaixada".
Disse-lhe eu: "Qual força ou qual desdita te arrastou tão longe de Campaldino, que n
em se sabe onde é tua sepultura?" Replicou: "Junto ao Casentino corre um rio chama
do Archiano, o qual nasce sobre Ermo, nas alturas apeninas. Lá, onde seu nome vão se
torna, cheguei, ferido na garganta, fugindo a pó. Ao perceber que perdia a vista
e a fala, clamei, antes do derradeiro suspiro: Maria!' Meu corpo tombou, pela al
ma abandonado. Direi verdade, podes repeti-la ao mundo. Ao anjo que meu espírito r
ecolhia, o Demônio bradava: Por que me tomas esta presa, ó tu que vens do Céu? Dele me
tomas a parte que é eterna, por graça de uma mísera lágrima final, mas sobre a parte co
rruptível exercerei um bom governo!' Bem sabes que o vapor, de água retorna quando p
elo frio é acolhido nas elevadas alturas. Insistiu aquele danado, que em nome do m
al grandes coisas pode, e contra mim moveu o fumo e o vento. Por fim, terminado
o dia, do vale do Pratomagno à alta serra a neblina por inteiro envolvia, de luto,
cobrindo a celestial abóbada. Na forma de chuva cai o vapor convertido em água, e a
s gotas que não se embebem na terra, tombando nos vales, formam regatos que velozm
ente em torrentes se convertem, contra as quais nenhum obstáculo eficaz se opõe. Jun
to à sua foz encontrando o meu cadáver, o avolumado Archiano empurrou-o ao Arno, des
fazendo então a cruz que com meus braços formara quando pela dor caí vencido. Rodou-me
o rio pelas margens e pelo fundo, cobrindo-me com areia e lodo e tudo quanto ne
le havia".
Quando calou-se o segundo espírito, um terceiro pôs-se a falar: "Ah! quando voltares
ao mundo, e houveres repousado desta dura jornada, recorda-te de mim; sou Pia.
(1) Siena me fez, Maremma me desfez! Bem o sabe quem me havia ornado com seu ane
l nupcial, preciosa gema".
* (1) Pia del Guostelloni foi morta por Nello Pannocchieschi, seu marido, que o
fez por suspeitar de suas ligações com um jovem das vizinhanças. *
Canto VI
Ao final de um jogo de zara (1), o perdedor, entristecido, põe-se a ensaiar lances
afortunados que lhe teriam mudado a sorte. Os assistentes partem, seguin do o v
encedor. Todos querem a sua atenção. Sem deter-se, a este e àquele dá ouvidos, furta a mão
daquele que a empolgou, e assim se vai defendendo dos que o pressionam. Do mesm
o modo cercava-me a multidão compacta. Ora a um, ora a outro me dirigindo, com pro
messas logrei escapar de todos eles.
Entre eles estava o aretino que dos braços robustos de Ghin di Tacco teve morte ho
rrível e ainda outro aretino que, andando à caça de homens, pereceu afogado. Adiante,
mãos postas; erguia-me súplicas Federigo Novello e aquele pisano que ao pai, Marzucc
o, fez parecer varão muito forte. Vi também o Conde Orso e aquela alma separada do c
orpo, não por culpa cometida, mas por inveja e ódio. Refiro-me a Pier della Broccia,
por cuja causa deve a que ora impera no Bradante expiar suas faltas para que não
acabe entre os que sofrem suplício mais terrível.
Quando desliguei-me, enfim, da multidão que aflitamente encomendava orações abreviador
as de sua entrada na Mansão Divina, perguntei ao guia: "Bem claramente afirmas, em
passagem de teu livro, que as preces não bastam para demover as disposições celestes.
Contudo, ansiosamente as pede essa turba imensa. Será inútil a esperança de tantas al
mas ou compreendi mal teu texto?"
* (1) Jogo de dados popular da Idade Média *.
Disse-me: "Meu texto é claro, e a esperança destes não é vã. O mais Alto Juízo em nada se a
tera se o ardor de caridade, por via das preces, redime o padecente. E lá onde tal
coisa afirmei, por estar distante de Deus quem orava, nenhuma prece pode ter va
lia. Não te perturbe tão profunda dúvida. Logo mais será desfeita por aquele lume que há d
e ser a ligação entre o teu intelecto e a Suma Verdade. Falo de Beatriz. Risonha e f
eliz a verás quando atingires o cume deste monte".
Respondi: "Mestre, urge caminharmos mais depressa; não sinto mais a fadiga que me
atrasava os passos e do alteroso cimo já diviso a sombra". Tornou: "Continuaremos
conforme estiverem nossas forças e enquanto o dia esteja claro. Mas advirto que as
coisas não são como ao teu desejo parecem. Antes de que chegues ao cimo, tornarás a v
er o Sol ora escondido pelo monte, em modo tal que já a tua carne não lhe intercepta
os raios. Observa porém aquela alma solitária, cuja atenção está voltada para nós; irá nos
sinar o melhor caminho para subir".
Aproximamo-nos: Ó nobre alma lombarda, quão altiva e desdenhosa estavas, grave e len
tamente movendo os olhos. Qual leão em repouso, majestosamente deixava-nos aproxim
ar, sem nada dizer.
Virgílio achegou-se a ele, rogando nos mostrasse a melhor via. Por resposta nos pe
rguntou qual a nossa pátria e a vida. O guia, todo meiguice, começou por dizer: "Em
Mântua..." e já a sombra, comovida, a ele se endereçou, clamando: "Sou Sordelo, teu co
nterrâneo!" E em abraços ambos se estreitaram. Ah! serva Itália, morada das angústias, n
au sem piloto em mar tempestuoso, imperial outrora, lupanar agora! Aquele nobre
espírito, com o só ouvir o doce nome da terra, comum, ao conterrâneo abre os braços dele
itosos, enquanto os teus filhos vivos travam em teu solo crua guerra, atiram-se
uns contra os outros os irmãos que a mesma cidade encerra. Olha, miserável, o teu te
rritório inteiro, e vê se em algum lugar se pode fruir a paz! De que serviu Justinia
no preocupar-se em ajustar os bridões, se ainda tens vazia a sela? Não fora essa ausên
cia talvez fosse bem menor tua vergonha. Ah! gente de religião, ocupa-te das devoções
e deixa que governe o imperador, cumprindo a lei por Deus promulgada! Nota como
a falta de aguilhões açulou a fera dos maus instintos, depois que mãos sem firmeza tom
aram as rédeas do governo. Ó Alberto da Germânia, que abandonas essa Itália tornada indo
mável, a qual deverias reger com dureza; caia sobre ti, por causa desse abandono,
o justo castigo do Céu - castigo tão nítido e forte que todos compreendam a sua razão -,
de modo que teu sucessor dele tenha receio. É culpa tua e de teu pai - mantidos,
por mera cobiça em terra estranha - que o Jardim do Império se encontre em tal modo
abandonado. Vê, ó negligente, Capuletos e Montéquios em permanente angústia; Monaldi e F
ilisppeschi em constante fúria! Vem, ó insensível, sentir a opressão em que vivem teus s
eguidores e ocupa-te em minorar-lhes as mazelas. Corre a Santafior, para saber c
omo são tratados!
Vem ver tua Roma, que em deplorável estado, viúva e só, noite e dia chora e clama: "Po
r que não me acodes, ó César?" Vem medir o amor que reina entre teu povo, e se em noss
o favor piedade não te move, mova-te a vergonha por tua descurada fama! Se me é perm
itido, ó Sumo Deus - por amor aos homens sacrificado -, estarão acaso Teus olhos jus
ticeiros fixos em outras bandas? Ou, na profundidade insondável da Tua mente, nos
reservas algum bem, ora vedado ao nosso entendimento? A infeliz Itália está repleta
de tiranos, e qualquer um crê poder tornar-se um Marcelo.
Ó Florença, felizmente tal comentário não te diz respeito, mercê do proceder de teu povo,
de outros povos exemplo! (2) Muitos destes trazem no coração o anelo da justiça mas não
o demonstram precipitosamente, preferindo, prudentemente, aguardar momento favoráv
el, enquanto o teu povo a tem nos lábios, permanente! Muitos recusam os encargos púb
licos, mas teus filhos, solícitos, respondem aos gritos, sem esperar chamado: "Eu
me ofereço". Alegra-te, pois em ti o mundo encontra riqueza, prudência, paz! De que
digo a verdade, os efeitos são a prova. Atenas e Esparta, que a elevada altura for
am guindadas por leis e instituições, curto progresso tiveram se comparadas contigo,
que te acostumaste a ver revogadas em novembro leis promulgadas em outubro. Qua
ntas vezes, em muito pouco tempo, foram transformados leis, moedas, usos e costu
mes; transtornado o quadro dos cidadãos. E se sabes julgar com acerto, concluirás qu
e bem te assemelhas a doente que no leito se agita constantemente, procurando em
vão alívio para a dor.
* (2) Trata-se de cortante ironia do poeta para com a sua pátria *.
Canto VII
Conduzidos por Sordelo, os dois poetas chegam a um vale ameno, em que há belíssimo j
ardim. Neste vale avistam-se as almas de reis e príncipes que, tendo vivido apenas
para desfrutar os prazeres do mundo, voltaram seus pensamentos para Deus apenas
no instante final.
Depois de várias vezes repetidas as demonstrações de amizade, Sordelo afastou-se, perg
untando: "Quem és?"
Eis a resposta dada por meu guia: "Antes que a este monte se endereçassem almas ao
gozo do bem chamadas por Deus, já Otávio meus ossos enterrara. Sou Virgílio. Não foi po
r pecar que não entrei no Céu, mas por haver desconhecido a fé".
Estupefato, Sordelo se perguntava: "Será? Ou não?", Humilde, baixou a fronte, aproxi
mou-se do poeta e abraçou-lhe os joelhos, clamando: "Ó glória dos latinos, que tão alto
ergueste o nosso idioma! Honra eterna da amada pátria! Qual prodígio ou mérito me conc
ede ver-te? Diz-me se vens do Inferno, e de região dele".
Virgílio respondeu: "Através dos círculos todos do reino dolente venho subindo, por vi
rtude do Céu conduzido e a este outro conduzindo. Não por haver pecado, mas por não te
r conhecido a fé, não me é permitido ver o Sol que ambicionas. Demasiado tarde Ele me
foi revelado. Lugar existe, lá embaixo, destinado não a martírio, por trevas somente a
ngustiado, onde se ouvem suspiros, mas não gemidos. Ali estou (no Limbo), em meio à
grei inocente mordida pelos dentes da morte antes que da culpa humana fosse redi
mida. Permaneço entre os que, não conhecendo as virtudes da teologia, souberam contu
do praticar as virtudes cardiais. Mas podes nos ensinar o caminho mais fácil para
o Purgatório?".
E Sordelo: "Aqui, não nos é fixado lugar para detença. Posso ir e vir livremente. Sigo
, pois, a servirte de guia. Mas, repara, o dia declina e subir, à noite, não se pode
. Busquemos local para a pousada. À direita e a distância, está queda multidão de almas.
Se concordas, levo-te até lá e, quem sabe, conhecê-las te alegre".
Foi-lhe respondido: "Como assim? Quem desejasse ir acima à noite ver-se-ia impedid
o? Ou não o conseguiria?"
O bom Sordelo, usando o dedo, fez um traço no chão: "Vês? Nem apenas este traço consegui
rias cruzar depois de tramontado o Sol. Não devido a qualquer obstáculo erguido, mas
à trevosa noite que dobra a vontade mais animosa. Se, porém, quisesses baixar camin
ho, ao redor da montanha, poderias livremente fazê-lo enquanto o horizonte oculta
o dia".
Aturdido, meu mestre disse: "Leva-nos, pois, ao sítio a que aludiste, pois a demor
a e a ansiedade iguais vão se fazendo". Pouco adiante, observei, abriam-se vales i
guais aos das montanhas terrenas. Anunciou a sombra amiga: "Iremos além, até onde a
encosta se encurva, e ali o novo dia aguardaremos".
Inclinando-se entre escarpa e planalto, um caminho meio rude, meio sereno conduz
iu-nos ao vale, sua inclinação mais que ao meio se atenuando. Ouro
e prata de lei, vermelho, branco, azul profundo, marfim límpido e lustroso, verde
puro de esmeralda ao se partir fulgente, felizes cores pelo vale se impunham às er
vas e flores como o menor sujeita-se ao maior. E não só em pinturas se esmerava a na
tureza, mas de mil perfumes fizera essência única, misteriosa. Almas até ali ocultas p
ela concavidade do vale, quais flores sentadas sobre a relva, entoavam o Salve,
Rainha.
Sugeriu o mantuano que nos conduzia: "Enquanto ainda houver sol de fora, não chega
remos mais próximos da turba. Desta altura, poderás reconhecer as feições e os atos dos
que estão ali ainda melhor do que se vizinhos estivéssemos. Aquele que mais ao alto
aparece negligenciou os seus deveres, e ora não abre a boca para seguir, dos demai
s, o canto. É Rodolfo, imperador que bem poderia ter sanado os males que deixaram
tão rota a Itália - mas não o fez. O seguinte, que a olhá-lo parece oferecer conforto, r
einou lá onde o Moldávia conflui no Elba e o Elba conflui no mar. Otocar é o seu nome
e já na infância valia mais do que o filho, Venceslau, o Barbudo, rei totalmente ded
icado ao ócio e à luxúria em vida.
"O de pequenino nariz, que com o anterior parece manter colóquio, ao morrer fugiti
vo, deslustrou a florde-lis. (1) Observa como bate no peito. Repara nesse outro
que suspira, acamando na mão o rosto. (2) O pai e o sogro do mal de França: conhecen
do a sua existência indigna, dela fazem a culpa que lhe atiram. (3) Esse membrudo,
que faz coro ao cantar com o que tem nariz desmedido, foi guardião das virtudes.
(4)
* (1) Trata-se de Filipe II, rei da França.
(2) Henrique III, de Navarra.
(3) Filipe III e Henrique III, pai e sogro de Filipe, o Belo, o mal da França.
(4) Pedro III de Aragão, o membrudo, e Carlos I de Anjou*.
E houvesse tido por sucessor no trono o jovem que à retaguarda vês sentado, o valor
de um grande rei seria herdado por outro rei; mas tal não aconteceu com os que o s
ucederam. Nem Jaime nem Frederico (5), possuindo o reino, herdaram o melhor - as
virtudes paternas.
"Raro a probidade é transmitida de geração para geração. Esta é disposição d'Aquele que a d
bui, para que se saiba constituir ela um dom todo Seu. A esse de nariz grande, t
ais palavras se aplicam, bem como a Pedro que, a seu lado, canta enquanto Apúlia e
Provença gemem. Tanto menor é o filho comparado ao pai quanto Beatriz e Margarida são
inferiores em virtude àquele (Pedro III) cuja viúva é Constança. Ali se pode ver o rei
de vida simples, Henrique da Inglaterra, sentado a sós; teve melhor sorte com seus
descendentes. Mais para baixo, sentado e a olhar o céu, está Guilherme, por quem Al
essandria, com a guerra, levou Monferrato e Canavese à ruína".
* (5) O que poderia ter sido bom rei é Afonso, o qual morreu jovem. Seus irmãos fora
m Jaime II, em Aragão, e Frederico, na Sicília *.
Canto VIII
Dante e Virgílio preparam-se para passar a noite no vale florido. Dante reconhece
Nino Visconti entre as almas; e tem, de Conrado Malaspina, augúrio de seu exílio próxi
mo.
Era a hora em que mais o navegante sofre de saudade naquele dia em que diz adeus
a amigos queridos; o instante em que mais fere o amor ao que por ele se fez per
egrino, ao ouvir, distante, um campanário chorar o fim do dia.
Parei de ouvir e observei a sombra que, erguendo-se, com gestos de mãos requeria o
uvíssemos. Aproximou-se e alçou as mãos, olhos fitos no oriente, como que dizendo a De
us: "Só Tu importas a mim!" Te lucis ante, murmurou, com tamanha doçura e devoção que fe
z-me esquecer as preocupações. Logo, com devoção igual e igual enlevo, as outras almas s
eguiram-na a cantar o hino, olhos postos no alto.
Leitor, repara agora: convém aguçares o entendimento para enxergar além do véu da imagem
ora bem sutil, para que seja fácil transpô-lo.
A multidão silenciou, humilde e pálida, a observar o céu, em ansiosa espera. E vi baix
ar da mais alta esfera dois anjos a empunharem flamejantes gládios de truncada pon
ta. Verdes quais recém-abertas folhas, os seus vestidos, elevados pelo vento, pass
avam além das flabelantes asas. Veio um deles pousar junto de nós, indo o segundo pa
ra a margem oposta, ficando entre os dois a nobre turba congregada. Eu discernia
claramente seus cabelos louros, porém meus olhos, ofuscados por virtude excelsa,
não podiam reconhecer seu rosto.
Então Sordelo anunciou: "Da parte de Maria ambos descem, a custodiar o vale contra
a serpente que logo chegará". Não sabendo por onde viesse a maligna, com temor circ
unvaguei o olhar e enregelado de medo busquei o amparo das espáduas. Sordelo conti
nuou: "É momento de ouvir aqueles altos espíritos. Desçamos, pois, ao vale. Irão alegrar
-se ao nos ver".
Três passos pareceram-me suficientes para baixar ao vale e divisar um na turba a m
e fitar como que se esforçando por conhecer quem eu fosse. Já o ar se convertia em t
revas, mas não ainda o bastante para ocultar aos olhos seus e meus que ambos fôssemo
s. A mim veio, a ele fui. Ó Nino, juiz excelente! Quanto me alegrou ver que não esti
vesses entre os condenados.
Foi aprazível o nosso encontro. Depois, perguntou: "Há quanto tempo chegaste, através
do mar, ao pé desta montanha?" Tornei-lhe: "Oh! ainda esta manhã, não pelo mar, mas ao
longo dos tristes sítios infernais. Ainda no gozo da vida terrena, nesse vaguear
pelos soturnos pagos vou buscando merecer a vida eterna".
Ouvida a minha resposta, Sordelo e Nino, pasmados, recuaram, como quem de súbito c
ai em confusão. Um voltou-se para Virgílio e o outro disse à alma que lhe estava senta
da próxima: "Vem, Conrado, ver o que pôde permitir a vontade divina!" E a mim, clamo
u: "Pela gratidão que deves Àquele que ao nosso entendimento oculta a Sua vontade pr
imeira, imploro-te, ao regressares ao mundo além do mar temível: diz à minha filha Joa
na que rogue por mim, sendo Deus especialmente sensível à inocência. Não espero que sua
mãe o faça, pois retirou os véus de viúva e casou-se novamente. Não faltarão à infeliz dore
ue a mortifiquem. Por ela se pode conhecer quão pouco arde na mulher a chama do am
or se o contato ou a vista da pessoa amada não a alimentar sem cessar; melhor teri
a sido se não se casasse de novo, a modo de substituir em sua lousa sepulcral o ga
lo de Gallura pela víbora de Milão". Isto disse, inflamado por aquele zelo que faz a
brasar o coração.
Eu fixara no alto os olhos, lá no pólo, onde parece mais lento o giro das estrelas,
como a parte da roda mais junto ao eixo. Perguntou meu guia: "Filho, que coisas
miras lá no alto?" E eu a ele: "Aqueles três astros rutilantes (1) a cujo fulgor tod
o o pólo esplende". Tornou-me: "As quatro estrelas que vimos pela manhã ora jazem oc
ultas. Brilham estas em seu lugar, agora".
Virgílio ainda falava quando Sordelo anunciou, tocando-o: "Eis que chega o inimigo
!", fazendo o dedo insistir na direção dos olhos. Logrei descobrir, na parte exposta
do vale, uma serpente - a mesma talvez que induzira Eva a provar o mau alimento
. Avançava entre ervas e flores, volteando a cabeça para um e outro lado, a língua alo
ngando para tocar o dorso. Não vi, e pois descrever não posso, como foi que os guard
iães celestes contra o réptil se atiraram. Percebendo o ar fender-se sob as verdes a
sas, fugiu a serpente, e então, voando calmamente, tornaram os anjos ao lugar de o
rigem.
A alma que viera unir-se à do juiz continuara a fixar-me durante o tempo em que os
anjos voavam.
* (1) Referência às três virtudes teologais. *
Começou por dizer: "A divina graça que ilumina o teu caminho seja alimento do teu de
sejo honesto e te conceda quanto necessário para atingires o Paraíso. Mas ora, se sa
bes alguma novidade acerca de Val di Magra ou vizinhanças, conta-ma, que eu lá tive
domínio. Fui Comado Malaspina. Não o antigo, mas seu descendente: o amor que dedique
i aos meus purifica-se aqui .
Tornei-lhe: "Jamais por ali andei, mas não há lugar na Europa em que a alta fama dos
teus feitos não haja despertado ecos. A glória que teu brasão ressuma faz honra à gente
e ao lugar, e mesmo quem não o viu seu valor proclama. Juro que se lá acima chegar,
essa honra da estirpe terá para sempre aclamada a sua liberalidade e seu valor. N
atureza e costumes excelentes fazem com que, enquanto no mundo os maus chefes tu
do põem a perder, só essa estirpe despreza o vício em todas as suas formas".
Disse-me ele: "Parte, agora. Antes que o Sol percorra sete vezes o espaço que a co
nstelação do Aries ocupa e cobre com suas quatro patas nos caminhos celestes, tua op
inião a respeito dos Malaspina te será gravada no coração com fatos bem mais marcantes d
o que palavras ditas com mais ênfase(2). A não ser que o destino siga diferente curs
o".
* (2) Os Malaspina dariam acolhida a Dante durante os anos de exílio. *
Canto IX
Dante, em sonho, pensa estar sendo conduzido para o céu por uma águia de asas dourad
as; mas era Santa Lúcia que o levava à porta do Purgatório.
Já exibia sua alvura sobre o oriente a concubina de Titão antigo, deixando os braços d
e seu doce amigo. Sua fronte era ornada por uma jóia brilhante, a formar a figura
do animal que com a cauda fere o homem. No lugar em que os cinco nos encontrávamos
, elevando-se, já a noite percorrera espaço igual a duas horas; e se aproximava o te
rceiro espaço quando eu, herdeiro de Adão vencido pelo sono, recostei o corpo no sol
o e adormeci.
Pouco antes do amanhecer, quando a andorinha principia a emitir tristes soluços, p
ondo talvez em sofrer antigo o recordar, não mais sentindo o espírito opresso pelo m
edo; livre, portanto, para pensamentos altos, em visões divinas mergulhei.
Era como se pairasse no espaço águia de penas de ouro, asas abertas, intensa a baixa
r o vôo. Julgava-me na montanha em que Ganimedes abandonara os seus, para subir ao
seio do alto consistório. Pensava: bem pode ocorrer que tal ave, acostumada a est
as paragens, em nenhum outro lugar queira exercitar a caça. Depois de descrever al
gumas voltas e veloz qual raio, afigurou-se contra mim partir e para a região do F
ogo Supremo alçar-me prontamente. Presumi, então, que eu e ave ardêssemos, e isso com
tanta veracidade que o sono foi interrompido pelo vigor do falso fogo.
o próprio Aquiles não se surpreendeu tanto ao vagar os olhos despertos por local des
conhecido quando Tétis maternalmente o tirou de Quíron e o levou a Sciro, de onde ma
is tarde seria pelos gregos encontrado. Assim fiquei, fugido o sono às pálpebras, te
ndo o semblante lívido.
Sempre a meu lado, o mestre me confortava. o Sol avançara mais de duas horas e par
a o mar eu olhava fixamente. Dizia-me o guia: "Tranqüiliza-te, não está longe o porto
seguro. Ao Purgatório, por fim, chegaste. Um muro de rochedos o limita. Aquilo que
aparenta ser falha no muro é a entrada. Ao crepúsculo matutino, quando no vale esta
vas imerso em sono sobre a relva florescida, apresentou-se distinta dama e disse
: Sou Lúcia (1). Vou tomar a este que dorme e sua jornada tornar bem leve'. Sordel
o e as outras três nobres almas permaneceram onde estavam. Apanhou a ti e, sendo já
claro o dia, subiu, e eu lhe segui os passos. Aqui deixou-te, e com os olhos ind
icou-me a desejada porta. Depois, ela e o sono se foram".
Como o homem que, tendo padecido dúvidas, alegra-se e converte o temor em confiança
ao ver restabelecida a verdade, senti-me transformado. Percebendo o guia que tem
or algum me sujeitava, partiu rumo ao alto. E eu o segui.
Leitor, já vês como elevo o tom do meu estilo. Não te seja estranho se com mais arte,
com mais brilho doravante procure sublimar minha arte.
Em passo acelerado, já alcançávamos aquele ponto onde eu presumira divisar abertura na
muralha.
* (1) Lúcia, símbolo da graça luminosa. *
Vislumbrei três degraus, cada qual de uma cor diferente, levando à porta guardada po
r um porteiro imóvel. De mais perto examinando-o, notei estar sentado no degrau su
perior. Ofuscou-me sua face refulgente. Na mão, trazia espada nua, a refletir sobr
e nós seus raios. Diversas vezes tentei fixá-la, em vão.
Inquiriu: "Qual é o vosso propósito? Quem vos guia? Não temeis as conseqüências de tamanha
ousadia?" Respondeu o mestre: "Dama do céu, de tais conseqüências sabedora, nos insti
gou: Avançai por ali! É essa a suspirada entrada!"' Repôs o solícito porteiro: "E que el
a faça progredir vossos passos no caminho do bem! Prossegui. O caminho para vós acha
-se livre!"
Ao subirmos, percebi que o primeiro degrau era de alvíssimo mármore, tão bem polido qu
e nele pude espelhar-me por inteiro. O segundo era escuro, não polido, talhado em
pedra tosca e requeimada, fendida ao longo e de través. O terceiro, sobre os dois
anteriores, era de pórfiro e de flamejante cor rubra; lembrava o sangue jorrando d
e uma artéria rompida. Neste degrau é que o anjo rutilante firmava os pés, sentado porém
na soleira, que parecia feita de um só diamante.
Segui o guia obedientemente, ouvindo-o dizer: "Deves, com humildade, rogar que d
escerre a porta!" Pus-me de joelhos ante os sacros pés do anjo, rogan do-lhe por m
isericórdia que abrisse, e três vezes devotamente bati no peito com os dedos.
Gravou-me ele sete vezes a letra P (2) na fronte com a ponta daquela espada, ao
tempo em que ensinava: "Lá dentro, arrependido, lava estes traços do pecado".
* (2) Inicial da palavra pecado. *
De sob as vestes, cuja cor repetia a de terra seca ou cinza, retirou duas chaves
: de ouro uma; de prata, a outra. Primeiro a chave branca, depois a amarela apli
cou na porta, tornando com isso completa a minha alegria. Explicou: "Se a fechad
ura não funciona ao impulso de uma das duas chaves, quer isso dizer que se nega en
trada ao postulante. Se uma tem maior valia, mais arte e mais apuro tem a outra
no abrir, cedendo-lhe ao empenho a prisão mais crua. Aconselhou-me Pedro, que as c
onfiou a mim, que ao usá-las eu antes errasse em ser condescendente no atendimento
do que em mantê-la cerrada, tendo o mundo ajoelhado aos pés".
Empurrou a porta sagrada, acrescentando: "Entra!, mas devo advertir que fica par
a fora quem se volta para trás!" Já descerrava a porta a visão do divino recinto, rang
endo nos gonzos de metal fino e cantante. Não foi com estrondo igual que as portas
de Tarpéia se abriram, quando resultaram vãos os esforços de Metelo, e o tesouro (de
Roma) foi roubado.
Julguei ouvir cantar por mavioso coro o Te Deum laudamus. Tal melodia infundia-m
e a imagem que se tem quando, durante os coros acompanhados ao órgão, perdem-se algu
mas palavras entre as muitas que se consegue entender.
Canto X
Ultrapassando a porta, os dois poetas entram no terraço do Purgatório. Era um espaço e
streito, três vezes maior que o corpo humano. Dante e Virgílio deparam ali os soberb
os e os orgulhosos.
Transpusemos o limiar da porta bem pouco usada, pois o desordenado amor humano a
ceita por reto o caminho errado, quando, pelo estrondo ouvido, com preendi volta
ra ela a ser trancada. Mas se me detivesse para olhá-la, que explicação haveria de dar
para a falta contra a qual fora bem avisado?
Por uma fenda aberta no rochedo, subíamos. Aconselhou o guia: "Aqui, o preciso é uma
certa habilidade no acostar-se ora a um lado ora a outro".
Caminhávamos devagar, e já o crescente lunar se reclinava em seu leito no horizonte
quando, afinal, deixamos a trilha, desembocando em espaço aberto ao pé do monte, sítio
onde a subida fazia descanso.
Minhas forças já estavam no fim. Sem saber ao certo que caminho seguir, quedamo-nos
em veredas mais solitárias que as do deserto. Calculamos que a sua borda distava d
a borda oposta, sobre a qual o rochedo se afirmava, distância igual a três vezes a a
ltura de um homem. E tudo quanto meu olhar podia discernir, quer à esquerda, quer à
direita, me dizia ser uniforme aquele lugar na sua largueza.
Ainda não tínhamos pisado em tal planura e percebi que a escarpa circundante, empina
da a ponto de tornar impossível a escalada, era de mármore muito alvo, adornado com
entalhes; para reproduzi-los, fora preciso recorrer ao talento de Policleto e à ar
te da própria natureza.
Aquele anjo que levou à Terra decreto de paz, durante muitos anos desejado por ser
o acordo que abria ao homem o Céu, surgia ali esculpido, tão verdadeiro no gesto e
no aspecto que nem parecia de pedra (1). Poderia jurar que bradava o Ave!, mesmo
porque ali estava também figurada aquela que alto amor divino soubera volver a ch
ave (para que Deus novamente amasse aos homens). Na postura suave parecia que di
ssesse de "Ecce ancilla Dei", tão nitidamente quanto uma cópia feita de cera.
Assim disse-me o mestre: "Não tenhas a mente presa unicamente a esse relevo!", e i
sso disse tendo-me daquele lado em que palpita o coração. Movi o olhar e divisei então
à direita, para além de Maria, outra história imposta no mármore. Para vê-la melhor fui a
lém de Virgílio. E admirei, esculpidos, o carro e seus bois a conduzirem a Santa Arc
a da Aliança lembrando aos leigos um gesto de humildade. Ao redor, aglomerava-se a
gente, dividida em sete coros e aos meus sentidos cantos diversos entoando, poi
s enquanto meus ouvidos diziam "Não!", os meus olhos diziam "Sim, eles cantam!" Pe
rcebia igualmente subir o fumo do incenso e me parecia ao olhar que sim e ao olf
ato que não.
* (1) Referência ao Arcanjo Gabriel, que anunciou a Maria a Encarnação do Verbo. *
Precedendo o bendito vaso, dançava, com fervor, humilde, o salmista mais e bem men
os que rei naquele instante. Além, debruçada à janela de grão palácio, Micol, ao assistir
tal dança, admirava-se, mulher que era, orgulhosa e triste.
Afastei-me de onde me encontrava, a fim de ver de perto outra história que para além
de Micol branquejava na pedra. No candor marmóreo, rebrilhava a altissonante lege
nda desse famoso romano imperador, por quem Gregório obteve tão alta glória. Refiro-me
a Trajano, cujo cavalo é seguro pelo freio por mulher viúva, do cruel sofrer é prova
o largo pranto. Ao redor se aglomeravam cavaleiros e sobre as bandeiras erguiam-
se as águias latinas de ouro, esvoaçando aos ventos. Rodeada pelos guerreiros, parec
ia dizer a infeliz mulher: "Vingança, senhor! Morto está o meu filho e eu sem confor
to choro!" E pôde-se ouvir Trajano responder: "Espera o meu regresso". Ela respond
eu: "Senhor, e se não regressas?!" E ele: "Quem me suceder te ouvirá". Ela: "Como es
perar que outro cumpra em teu nome o dever de que tu próprio foges?" E ele: "Tua d
esgraça e teu ânimo me convencem. Cumprirei meu dever sem mais demora!"
Aquele para quem nada é novo produzira tal prodígio novo para nós, pois neste mundo ta
l não existe. Enquanto eu me encantava na observação de tais exemplos de humildade, o
poeta dizia:
"Um sem-número de almas se aproxima, em passos lentos. Conheceremos por seu interméd
io as vias que nos hão de conduzir ao cimo".
Meus olhos, que se compraziam no admirar os portentos, rápido volvi para atentar n
a turba. Não pretendo, ó leitor, que dos retos pensamentos ora te afastes ao ouvir c
omo é que Deus pretende lhe sejam pagos os débitos do pecado. Não ponhas na pena a tua
atenção, mas concentras na suma beatitude que seguirá à expiação, pois além da sentença nã
o castigo.
Eu respondi: "Mestre, o que vem para cá não me parece sejam almas. o que possam ser,
contudo, não me sugere o meu turbado espírito". E ele a mim: "o peso de seu castigo
constringe-os a caminhar assim, curvados para o solo. Tanto que também a minha vi
sta à vista deles se turbou. Mas já podes perceber que, sob o peso de grandes pedras
, todos vêm batendo no peito".
Cristãos cheios de soberba, infelizes de alma cega que para trás caminhais na doutri
na, não julgando sequer adiante, dai-vos conta de que os homens somos o verme de q
ue surgirá a borboleta angelical que sobe à justiça divina sem obstáculos. Por que vos e
nsoberbece o orgulho, se não sois mais do que insetos imperfeitos, incompletos no
seu desenvolvimento? É comum ver-se a sustentar forro e telhado, cariátide com os jo
elhos unidos ao peito; e quem a olha comove-se pela falsa postura e pela dor sup
osta. Dor igual senti ao reparar nas almas que se aproximavam. Vinham curvadas -
umas menos, outras mais - segundo o peso de seus pecados. E parecia que as ouvi
a dizer: "Não posso agüentar mais!"
Canto XI
No primeiro recinto do Purgatório, Dante e Virgílio ouvem Humberto Aldobranesco; não p
odem, porém, identificá-lo em meio à turba dobrada ao peso das gigantescas pedras. Dan
te reconhece o pintor Oderísio de Gúbio.
"Ó Pai nosso, que estais no Céu, porém não circunscrito, mas sim por dedicar maior amor às
primeiras de Vossas criações - que todas as criaturas louvem Vosso nome e poder, na
s Vossas três pessoas. Venha a nós a paz do Vosso reino - que aspiramos a alcançar, não
por nossos méritos, mas por Vossa bondade; como a vontade própria dos anjos se humil
ha ante o querer Vosso, sob os doces cantos do hosana, assim se humilhem os home
ns. Dai-nos o pão cotidiano, sem o qual, neste áspero deserto, retrocede o que julga
andar avante. E à medida que perdoamos a quantos nos fazem mal, perdoa, benigno,
os nossos pecados, sem olhar a pequenez de nosso merecimento. Nossa virtude, que
tão facilmente se deixa abater, não a sujeiteis à prova com a tentação do inimigo, mas fo
rtalecei-a contra ele, que a procura vencer. Esta última prece, Senhor, não a fazemo
s por nós, que de seus efeitos já não temos necessidade, mas pelos que ficaram para trás
!"
Assim avançavam as pobres sombras, curvadas ao peso de suas culpas, como em pesade
los que sofremos às vezes. Cruzavam, ofegantes, o primeiro círculo, expurgando-se da
s manchas trazidas do mundo terreno. Se lá por nosso bem elas oram, aqui no mundo
o que podemos dizer ou fazer em benefício de quem já recebeu o sinal da graça? Ajudemo
-las (com nossas preces) a lavar as impurezas do pecado, para que, sem jaça, alcan
cem o páramo estelar.
"Que justiça e piedade consigam para vós breve alívio, a fim de que possais livremente
mover as asas, conforme é vosso desejo! Socorrei-nos, agora, indican do-nos a ver
eda mais curta e menos escarpada, se mais de um caminho existir para a escalada,
pois este a quem acompanho, gravado ainda pelo peso das carnes de Adão, por mais
que se esforce, é a custo que avança."
As palavras com que se deu resposta às palavras do meu guia não identificaram quem a
s pronunciava. Mas ouvimos: "Vinde conosco à direita, ao longo da encosta, e encon
trareis o passo que melhor há de servir a esse ainda vivo. Não pelo peso da pedra qu
e, domando meu orgulho, mantém no solo o meu olhar, gostaria de fixar o rosto dess
e que vive, a fim de constatar se não o conheci e obter que me seja compassivo. Na
sci na Itália, de toscano ilustre. Guglielmo Aldobrandesco chamou-se meu pai e pre
sumo que seu nome vos seja conhecido. A glória e o renome do sangue antigo tamanho
orgulho em mim despertaram que deslembrado da origem comum das criaturas por to
dos os homens alimentei desprezo. Nesse estado morri, conforme é sabido por todos
os seneses, e em Campagnatico sabem-no até mesmo as crianças. Humberto foi meu nome;
a punição pelo orgulho desmedido não tocou somente a mim, mas coube por igual a todos
os meus. Bem mereci, portanto, este fardo que meus passos embaraçando demonstram
o acerto da justiça divina. Se não paguei quando estava vivo, é justo que pague morto"
.
Curvei a cabeça enquanto escutava. Um daqueles, não o que falava, mas outro, estorce
ndo-se debaixo do fardo, fixou-me e, reconhecendo-me, gritou meu nome, com esforço
mantendo em mim o seu olhar. Contudo, caminhávamos, e eu ia como eles curvado. Eu
lhe disse: "Não és Oderísio, mestre da iluminura?" Volveu-me: "Irmão, mais coloridos e
mais alegres são os trabalhos que atualmente agradam, como aqueles de Franco de Bo
lonha. A sua glória é também minha, em parte. Esta verdade não proclamei no mundo, quand
o vivo, pois a isso me impedia o mundano desejo de em tudo ser o primeiro. Dessa
soberba aqui se paga a pena. Estaria em pior lugar, não houvesse mostrado a Deus
que de meus pecados, no extremo momento, me arrependera. Ó glória vã dos ímpetos humanos
! Quão pouco dura o verde no cimo, se não seguido de época medíocre! Cimabue julgou ter
o cetro da pintura, mas hoje sua fama é menos que nada; o nome de Giotto, por outr
o lado, é celebrado (1). Assim um Guido a outro tomou o cetro da poesia e bem prováv
el é haver nascido o que a ambos há de superar. A glória mundana não é senão sopro de brisa
que ora vem daqui ora dacolá, mundano o nome conforme muda de lado. Que fama haverá,
pois, de ti, ao fim de um milênio, quer deixes a vida no extremo passo da velhice
ou ao tempo do inconsciente balbucio infantil? Pois da eternidade à face, o mais
dilatado tempo é menos que um bater de cílios lá do Céu no mais tardo círculo.
* (1) Cimabue parecia acreditar ser o maior pintor de seu tempo. o juízo crítico atr
ibuiu esse privilégio a Giotto di Bondone, discípulo daquele. *
Esse que caminha à minha frente a tão lentos passos foi a seu tempo, na Toscana, sen
hor de grande renome. Agora é apenas lembrado em Siena, onde dominava quando ela f
oi atacada pela fúria florentina, poderosa então quanto é hoje desprezada. A fama dos
homens - flor que se abre e definha mercê do mesmo Sol que a fizera vingar".
Disse-lhe eu: "O teu dizer instila-me humildade e abominação ao orgulho. Mas quem é es
se a quem te referiste?"
Respondeu: "É Provenzan Salvani e aí vês no que resultou a presunção de com suas mãos subju
ar Siena. Deve caminhar assim, sempre curvado, sem jamais deter-se, desde sua mo
rte. É sua paga por ter se dedicado à soberba no mundo".
E eu: "Se o espírito do homem que no fim da vida se arrependeu de seus pecados dev
e aguardar lá embaixo (no Antepurgatório), até que se escoe tempo igual àquele que viveu
, contando com o só auxílio das orações, como se explica haver podido Provenzan chegar a
qui em cima?"
Respondeu-me: "Quando tinha poder, percorreu por vontade própria, e com humildade,
a cidade de Siena; qual pobre penitente esmolou, a fim de obter o resgate de um
amigo tido em prisão pelo Rei Carlos. Nesse mister tremeu, mísero e angustiado. Mai
s não direi. Se julgas que meu falar é obscuro, teus conterrâneos hão de te fazer conhec
er, bem pronto, quanto custa sofrer. O gesto de Provenzan livrou-o de penar mais
atrozmente".
Canto XII
Os dois poetas continuam seu caminho pelo primeiro terraço do Purgatório. Um anjo lh
es indicará a passagem para o próximo recinto.
Íamos - como os bois levados lado a lado pelo jugo - eu e aquela alma opressa, qua
ndo meu mestre aconselhou: "Deixa de estufa-la agora; sigamos em frente. Convém da
r mais velocidade a nosso barco, valendo-nos de vela e remo".
Pus ereto o corpo e comecei a andar; seguia os passos de Virgílio, embora meus pen
samentos continuassem modestos e humildes. Movendo os pés mais rapidamente, busque
i não ficar atrás do meu mestre.
Ele me disse: "Mais fácil te será a caminhada se atentares para o solo em que pisas!
" Tal qual, nas sepulturas dispersas pela terra, as lápides pretendem manter viva
a memória dos mortos pelo aflorar das lembranças que soem pungir as almas piedosas;
assim vi, esculpidas com bem maior qualidade artística, muitas figuras sobre o lei
to da estrada que subia, ao longo da encosta.
Vi o ser mais nobre do que qualquer outra criatura, que terminou expulso do céu, q
ual raio fulgurante. Também vi Briareu, fulminado pelo projétil celeste, gelidamente
estendido sobre o solo. Timbreu, Marte e Palas vi ainda ostentando suas armas,
reunidos ao redor de Júpiter, seu pai, a fitar os esparsos membros dos gigantes de
rrotados (1). Vi Nemrod a volver o olhar espavorido para os companheiros que, co
mo ele, junto a Sanaar, se perderam pela soberba, na feitura da obra desmedida (
2). Ó Níobe, com que tristes olhos figuravas ali, entre os mortos - sete e mais sete
filhos teus! (3) Ó Saul, ali estavas, extinguida a vida pela tua própria espada, ta
l como se deu na montanha de Gilboé - a qual, depois disso, nunca mais recebeu a bênção
da chuva ou do orvalho! (4) Ó Arame enlouquecida, pude ver-te já pela metade em aran
ha transformada, entre os escombros da obra que de teus males foi a causa! Ó Roboão,
aqui temor já não causa o teu franzido cenho; antes, cheio de susto, estás de fugida
em célere carruagem. Ainda mostrava o duro pavimento como foi que Alcmeão obrigou a
mãe a pagar mui caro seu funesto adorno. Mostrava ainda, exemplo de feroz castigo,
Senaquerib assassinado, em um templo, por seus próprios filhos. Exibia a desgraça e
o cru exemplo de Tâmiris dizendo a Ciro: "Tiveste sede de sangue, sacia-te agora"
. Indicava como haviam fugido os assírios em seguida à morte de Holofernes, e os cas
tigos que nessa fuga conheceram. Pude ver Tróia, inflada de soberba, reduzida a pó e
ruínas. Ó poderoso Ílion, quão humilhante foi o teu final!"
* (1) Trata-se dos cadáveres dos gigantes que haviam ousado assaltar a morada dos
deuses.
(2) A obra mencionada é a torre de Babel.
(3) Tendo sete filhos e sete filhas, Níobe quis humilhar Latona, que só teve dois fi
lhos, Apolo e Diana; furiosos, estes dois mataram a flechadas os catorze filhos
de Níobe.
(4) Derrotado pelos filisteus no Monte Gilboé, Saul - primeiro rei de Israel - mat
ou-se com a própria espada. *
Que artista, no cinzel ou no pincel, pudera deixar sombras e figuras passíveis de
maravilhar o observador dotado do mais alto espírito crítico? Mortos os mortos e viv
os os vivos, assim os contemplei, e mesmo aquele que alcançou ver os originais des
ses fatos não viu algo mais perfeitamente verdadeiro do que eu vi no chão enquanto c
abisbaixo avançava. Curvai a fronte, abandonai a postura altiva, filhos de Eva, e
observai sob os pés o vosso caminho sombrio!
O Sol desenhara seu giro pelo céu bem mais adiante do que eu pensava, absorto; aqu
ele que sempre atentamente caminhava ao meu lado disse: "Le vanta a cabeça! Basta
de caminhar tão absorvido. Observa aquele anjo que a toda pressa vem ao nosso enco
ntro. No curso do dia, passou já a sexta hora. Reveste de reverência teu olhar e teu
s gestos, para que o anjo nos deixe subir à altura seguinte. A manhã deste dia que t
ermina não retornará".
Habituara-me a seguir o princípio do meu guia, de bem aproveitar o tempo. Foi por
isso que em suas palavras não encontrei exagero. Junto a nós chegava aquele ser form
oso, trajando branco, resplendente a face qual trêmula estrela matutina. Abertas a
s asas e estendidos os braços, bradava: "Vinde! Estão próximos os degraus pelos quais
se pode subir e o aclive é mais brando. Poucos são os que podem ouvir este convite.
Ah, raça humana, que Deus criou para voar nas altas esferas! Por que te aniquila o
mais tênue vento?"
Guiou-nos para degraus escavados na rocha, e com uma das asas me roçou a fronte, t
ranqüilizou-me na subida. Quem pela face direita subir aquele monte donde se avist
a a igreja que domina Florença, ao pé do Rubaconte, percebe que a inclinada escarpa é
vencida graças aos degraus abertos na rocha em um tempo quando ainda a malversação e a
falsificação estavam longe de turvar a tarefa cívica dos florentinos. Do mesmo modo,
onde eu me achava os degraus atenuavam a fragura da rocha, entre um e outro círcul
o; quem subisse se encontraria comprimido pela penedia de ambos os lados.
Galgávamos os degraus quando ouvimos cantar Beati pauperes spiritu! em tão suave voz
que não alcanço descrever por mais que me esforce. Ah! quão diversos são estes círculos d
aqueles antros infernais! Aqui, cantares divinos; lá, gritos irados!
Quanto mais subia eu os degraus santificados, mais ágil me sentia. Mesmo na planur
a anterior, nunca me parecera tão fácil seguir caminho. Observei: "Diz-me, mestre, q
ual fardo ingente me foi retirado. Sucede que neste rápido e íngreme caminhar não sint
o mais cansaço!"
E ele me respondeu: "Quando os PP que ainda tens traçados com nitidez sobre a fron
te forem apagados, hás de ver como a alma posta em pureza pode aligeirar o ritmo d
os pés, a ponto de nenhum cansaço desde então sentir. Ao contrário, alegria há de ser para
ti a continuação da caminhada".
Como quem, tendo algo na cabeça que lhe foi colocado sem que soubesse, começa a susp
eitar de algo estranho pelos sinais que os passantes lhe fazem, e termina por le
var a mão à cabeça - assim foi que, levando à minha cabeça os dedos da mão direita, percebi
que das letras PP traçadas pelo anjo havia apenas seis. O mestre, que me observara
, sorriu.
Canto XIII
Dante e Virgílio encontram, no segundo recinto, as almas dos invejosos; elas nada
viam, pois suas pálpebras estavam costuradas nos olhos por fios de metal. Dante fa
la com Sapia, uma dama de Siena.
Atingíramos o alto da escada, onde novamente o monte tinha a passagem estreitada n
o caminho das almas que sobem expiando os pecados.
Uma cornija cingia a colina inteira, diferindo da anterior apenas por apoiar-se
em arcos menos largos. Não exibia, como a outra, formas e figuras em relevo. Era t
oda lisa, desde a entrada escarpada, e tinha a cor neutra da pedra.
O guia me disse: "Se ficarmos esperando quem nos mostre o caminho, receio que no
s atrasemos". Erguendo os olhos para a posição do Sol, firmou o corpo sobre o pé direi
to e voltou-se para a esquerda.
Disse: "Tu, a quem por completo me entrego, pois és luz clara que tudo ilumina, co
nduz-nos, aqui, pelo caminho que melhor se oferece, aclarando o recinto. És quem a
quece o mundo, luzindo sobre ele. Se razão mais alta do que a nossa não to impede, f
az com que teus luminosos raios nos guiem sempre!"
Distância igual àquela que na Terra se conta por milha havíamos coberto, dado que o de
sejo apressava nossos passos, quando julgamos perceber, voan do em nossa direção, al
guns espíritos invisíveis, alternando em doces vozes convites para a freqüência à mesa de
amor e caridade. A primeira das vozes que por nós passou disse com clareza: Vinum
non habent!, e a frase ainda repetia, muito além do ponto em que nos achávamos. Mas
antes de perder-se aquela voz, outra nos dizia: "Sou Orestes!", e sem demora par
a o além dirigiu-se.
"Que vem a ser isso, mestre?", clamei. Mas tão logo pronunciei tais palavras, eis
que a terceira se fazia ouvir: "Amai os vossos inimigos!" o mestre foi dizendo:
"Este círculo faz purgar a culpa da inveja. É oamor quem vibra o instrumento de cast
igo, pois o corretivo desse mal é bem o seu contrário - a caridade. Antes de que ati
njas o portão que dá entrada ao círculo seguinte deverás ter disso exemplo, segundo firm
emente creio. Por ora fixa atentamente a frente e verás, ao longo da parede rochos
a, multidão de espíritos a esperar".
Pus-me mais atento do que nunca. Pude assim distinguir sombras inúmeras, envoltas
em mantos da cor da fria rocha. E quando ainda um pouco mais adiante fomos, ouvi
mos que invocaram: "Rogai por nós, ó Maria!" E outros invocavam Pedro, e Miguel, e m
uitos outros santos. Não acredito caminhe pelo mundo homem de coração indiferente a po
nto de não se comover com o que então presenciei. Aproximei-me, procurando distingui
r melhor em cada sombra qual fosse o seu aspecto e o seu gesto; quando constatav
a seu sofrimento, lágrimas sem conta me rolaram pelas faces. Um ao outro servia de
arrimo e todos na rocha buscavam alívio, cobertos de cilícios. É assim que os cegos,
aos quais falta o mais necessário, nos dias de indulgência vão pedir esmolas ao redor
das igrejas, uns aos outros sustentando, coisa que nos corações bondosos logo desper
ta a piedade, menos pelo soar das palavras rogatórias do que pelo testemunho do co
mum sofrer. E como aos olhos dos cegos o Sol não chega, assim também, no lugar que o
ra descrevo, não queria a luz do Céu alcançar aquelas sombras.
Um fio de ferro lhes fechava as pálpebras, tal qual se usa para reduzir a fúria do g
avião selvagem, o qual nem por isso se mostra tranqüilo.
Pareceu-me indigno andar ao seu redor, buscando reconhecer-lhes as feições, quando não
podiam observar as minhas. Mudamente pedi ajuda ao mestre, com os olhos. Sem es
perar que eu insistisse, ele disse: "Fala, mas sê breve e arguto!" Virgílio caminhav
a, nesse instante, daquela banda do caminho onde nenhum resguardo protege contra
o precipício. Do meu outro lado ficavam as almas cujos olhos costurados vertiam lág
rimas abundantemente.
Comecei: "Ó almas, que estais seguras de chegar a contemplar o Excelso Lume, ambição q
ue é vosso desejo único! Que a graça apague em vós todos os traços do pecado, de modo que
limpidamente perpasse por ela o fio luminoso da vontade, a fim de que me digais
se há gente que tenha vindo da Itália. Talvez possa eu reconhecer alguém".
"Todos somos cidadãos da mesma pátria, mas tu perguntas quem de nós viveu na saudosa I
tália." Tais palavras pareceu-me ter ouvido, em resposta às minhas. Mas de longe vin
ham; avancei então, para melhor conhecer a quem me devia reportar.
Uma sombra entre as demais parecia aguardarme, ereto o mento, como se em linguag
em de cego perguntasse: "Quem?" Perguntei: "Tu, que para subires te purificas no
sofrimento, se és quem há pouco respondeu ao meu apelo, dize-me quem foste, e de on
de vieste".
"Fui senesa. Choro, implorando perdão Àquele que pode perdoar; ofereço reparação pelos mui
tos pecados de uma vida daninha. Sábia não fui, embora Sapia me chamasse. Maior feli
cidade tive ao saber da infelicidade alheia do que gozando a minha própria ventura
. E para que não creias que te engane, conhecerás quão desatinada fui pelo que te vou
narrar, sucedido já no declinar da vida. Estavam os meus conterrâneos nos campos de
Colle, dando ao inimigo combate, e eu pedi a Deus que se opusesse aos que por mi
m lutavam. Derrotados, puseram-se em triste fuga e eu, vendo-os envoltos na desg
raça da perseguição, alegrei-me como nunca. A tal ponto chegou a minha ousadia que, pa
ra o céu erguendo o olhar, clamei contra Deus: Já não O temo!', sonora qual melro a go
zar no meio do inverno uma tépida bonança. Paz roguei a Deus quando o fim da vida me
chegou; não poderia resgatar a grande dívida com que minha alma estava onerada se o
bom Pier Pettinagno em suas santas orações, movido por espírito de caridade, não se hou
vesse de mim lembrado. Mas quem és tu que nos podes interrogar, podendo respirar e
enxergar livremente?"
Eu lhe disse: "Os olhos também eu os terei ligados aqui, embora por tempo curto, p
ois grande não é a minha falta no terreno da inveja. Bem maior é o receio que tenho do
tormento que se conhece no primeiro círculo, e isso a ponto de já me parecer pesarm
e sua carga".
Ela me perguntou: "Quem te conduziu até aqui, para o meio de nós, e te faz estar cer
to de que ao mundo tornarás?" E eu: "Este que ao meu lado permanece silencioso. Eu
ainda vivo e se pretendes que lá na Terra obtenha sufrágios em teu favor, usa comig
o de sinceridade".
Tornou-me ela: "Maravilha-me tanto o que dizes! Sem dúvida tens o favor divino. Ro
go-te, pois, me auxilies com tuas orações. Pelo que te for mais caro, quando voltare
s a pisar a terra da Toscam, aviva o meu nome entre meus descendentes. Irás encont
rá-los entre a gente estulta que se esforça em vão em Talamone, onde, tal como ao temp
o em que se procurava o curso do Diana, os almirantes irão nele se afundar".
Canto XIV
Ainda no segundo recinto do Purgatório - onde se encontram os invejosos -, Dante é i
nterrogado por espíritos cujos olhos estão costurados.
"Quem é este que nos vem visitar sem que a morte lhe tenha ordenado isso, e que po
de cerrar e abrir os olhos à vontade?" "Ignoro quem seja, mas sei que não vem sozinh
o. Interroga-o tu, que lhe estás mais próximo; e assegura-lhe que terá boa acolhida."
Assim, à minha direita, dois espíritos falavam a meu respeito, alçando ambos as triste
s cabeças. Disse-me um deles:
"ó alma que ainda ligada à prisão corpórea podes escalar o caminho do Céu: acede em consol
ar-nos, segundo os princípios da santa caridade, e dize-nos quem és e de onde vens. É
enorme nossa surpresa ante tua aparição".
Eu lhes disse: "Através da Toscana flui um rio que humilde nasce em Falterona e po
r mais de cem milhas estende o curso. Desde um sítio à sua margem conduzo este meu c
orpo cansado. Inútil seria dizer-vos quem sou, pois meu nome não ganhou ainda notori
edade".
E me respondeu uma das almas: "Se bem entendo, ao falar de rio, fazias referência
ao Arno". A outra sombra interrompeu: "Por que não mencionaste do rio o nome verda
deiro? Tal palavra possui talvez sentido mau?"
Quem lhe respondeu foi a sombra que falou primeiro: "Isso não sei, mas bom seria q
ue também o nome do vale por onde tal rio passa fosse esquecido por todos. Desde o
nascer, lá onde é rica de águas a serrania que Peloro unira outrora; e percorrendo re
giões menos irrigadas, até o ponto em que o mar recebe compensação pela água que o céu lhe
oma, graças à evaporação que dá vida e volume a muitos rios: todos os homens, nesse trajet
o, livraram-se das virtudes como se fossem víboras, ou por efeito do clima adverso
ou por código moral que repele o bem. Os habitantes desse triste vale tiveram tão m
udada sua condição humana que parecem apascentados pela maga Circe. Principia o rio
por abrir caminho entre porcos dignos de bolotas e não de manjares gratos ao palad
ar do homem. Baixando o curso, encontra gente acostumada a aparentar virtudes qu
e não possui, povo do qual o rio, por desdém, desvia o curso. Vai baixando rumo à plan
ura, e quanto mais engrossa esse maldito e infeliz caudal, mais encontra cães muda
dos em lobos. Irrompe em leito dilatado e depara raposas tão matreiras que armadil
ha alguma logra aprisioná-las. Do futuro direi coisas espantosas a quem me quiser
ouvir. E bom será, para este que me ouve, conservar tais palavras na memória, pois o
portunidade encontrará de verificar que a verdade é que me inspira. Vejo teu neto, f
eito caçador, perseguir aqueles lobos sobre a margem desse rio maldito, destruindo
-os todos. Vende a carne deles quando ainda vivos, mata-os depois, como se abate
rês inútil. A muitos priva da vida e a si mesmo priva da honra. Sai ensangüentado da
amarga selva, deixando-a de todo exangue".
Quem ouve um aviso de perigo mostra-se perturbado, seja qual for a desgraça mencio
nada. Assim ficou o outro espírito, que, tendo-se voltado para entender melhor, tr
iste se pôs ao conhecer tais profecias. Ouvir a um e assistir do outro ao gesto fe
z-me curioso de saber quem fossem. Roguei me satisfizessem. O espírito que iniciar
a a conversação recomeçou:
"Queres que eu diga meu nome, quando não quiseste revelar o teu. Mas sendo evident
e que por Deus é favorecido, não me furtarei ao que pedes: sou Guido del Duca. Meu s
angue por tal forma se excitou sob o mal de inveja, que sorriso surpreendido em
rosto alheio no meu rosto espargia rancor. Estou colhendo o que semeei! Ó raça human
a, por que induzes o coração a inclinar-se por aquela paixão malsã que não permite a parti
lha da felicidade? Este ao meu lado é Rinier: honra e glória da casa dos Calboii, em
cuja estirpe ninguém lhe herdou o valor. E não somente a sua gente se fez mísera de v
irtudes entre o Pó e as montanhas, entre o mar e o Reno, renunciando àquela bondade
necessária à verdade e a uma vida honesta. Mas, pior ainda, pela extensão de seus domíni
os alastram-se o vício e a desordem, de modo que nenhuma cultura sadia é ali possível.
Onde estão os bons Lizio e Arrigo Manardi? E Pier Traversaro? E Guido di Carpigna
? Bolonha, quando terás um novo Fabbro? Quando surgirá em Faenza outro Bernardin di
Fosco, tronco robusto nascido de modesta semente? Não te espante o meu prantear, ó t
oscano, pois rememoro nossos coetâneos, Guido da Prata, Azzo Ugolino; e Federigo T
ignoso e sua gente; e as grandes casas Traversara e Anastagi, dignas de meu lame
nto por se extinguirem sem herdeiros; damas e cavaleiros, de cuidados e gestos i
nspirados em amor e cortesia, já não se vêem nessas terras onde os corações se fizeram emp
edernidos! Ó Brettinoro, por que não desapareces, depois que as melhores entre as tu
as famílias fugiram para não se contaminarem com os teus pecados? Bem fazem os conde
s de Bagnacaval, que não têm mais filhos homens; mal age a estirpe de Castrocaro e p
ior ainda a de Confio, que geram fidalgos tão perversos. Bem farão os Pagan quando o
s deixar o Demônio; sem que, no entanto, jamais possam livrar-se da triste pecha. Ó
Ugolin de Fantolin, seguro ficou o teu bom nome, pois já não tens varão que o possa de
slustrar. Mas segue, agora, ó toscano; pois me amarguram tanto as lembranças da pátria
que o pranto consola-me mais do que as palavras".
Sabíamos que aquelas almas podiam ouvir nossos passos, e que, calando-se, nos asse
guravam quanto ao acerto do caminho escolhido. Tendo-as deixado, eis que nos are
s vibra esta voz repentina:
"Quem me encontrar, me mate!", que fugiu tal trovão ao se afastar, se a nuvem que
o contém se rompe. Assim que cessou esse clamor, sucedeu outro de igual fragor, co
mo um trovão depois de outro trovão: "Sou Aglauro, transformado em rocha!"
Procurando aproximar-me de Virgílio dei um passo, não avante, mas lateral. Já por todo
s os lados estava quieto o ar, e o mestre disse:
"Este troar deveria significar para o homem freio capaz de contê-lo em seus limite
s. Mas mordeis sempre o anzol, agarrando a isca que vos é dada pelo demônio, sem dar
importância a freios ou advertências. Chama por vós o Céu que vos cerca, exibindo belez
as eternas, mas vossos olhos estão fixos à terra; pelo que sois punidos pelo Todo-Po
deroso".
Canto XV
Dante e Virgílio alcançam o terceiro recinto, e deparam os iracundos. Dante experime
nta uma espécie de visão; voltando a si, vê que se adensa a sua frente uma nuvem de fu
maça.
O espaço da esfera de luz, que, tal qual uma criança, está sempre em movimento, mediav
a entre a terceira hora e o crepúsculo. Declinando o Sol como que para na noite da
r entrada, lá era o instante das vésperas; aqui, a meia-noite.
Os raios de luz feriam o nariz, mas eis que havendo em torno do monte caminhado,
dirigíamos passos na direção do ocaso, quando senti em pleno rosto fulgor muito mais
intenso que o outro. Dominou-me aquele estupor que é próprio dos prodígios. Elevei, po
is, as mãos para cima dos olhos, buscando minorar os efeitos da forte luz. Como ao
se refletir em água calma ou em espelho um raio de luz toma direção oposta, de modo q
ue o ângulo de incidência é igual ao de reflexão - conforme ensinam ciência e experiência -
assim me parecendo ter a vista ferida por luz refletida, desviei o olhar.
Indaguei: "Quem é, ó mestre amado, esse que me ofusca a ponto de não poder fitá-lo e que
parece vir ao nosso encontro?"
Respondeu-me: "Esse que se aproxima é mensageiro celestial a convidar-te para subi
r mais alto. Prontamente entenderás - e com alegria - que por efeito de tal graça te
sentirás tão gloriosamente feliz quanto é dado a ser humano".
O bendito anjo se aproximou e, com meiga entonação, anunciou: "Vinde, que este lanço d
a escada é menos difícil que os anteriores".
Subíamos, já longe da entrada, quando ouvimos atrás de nós cantar o Beati misericordes!
e o Alegra-te, ó triunfador! O mestre e eu subíamos. Pensei po der, em tal circunstânc
ia, tirar proveito dos conhecimentos seus. Perguntei: "Que tencionava dizer-nos
aquele espírito da Romanha ao aludir a gozos impossíveis de repartir?"
Respondeu-me: "Conhecendo agora as conseqüências do seu pecar, não lhe causa estranhez
a que os homens na Terra não façam algo para aliviar o seu tormento no Purgatório. A i
nveja é mal que conduz a muitos suspiros intranqüilos, pois que os desejos do invejo
so objetivam unicamente os bens mundanos, e estes, devendo por sua natureza sere
m gozados por muitos possuidores, fazem que a parte usufruída por cada qual result
e sempre menor, desprezível mesmo. Bem o contrário ocorre quando o desejo dos homens
se volta para o amor divino. Não haja receio de que, sendo muitos a gozar da beat
itude celeste, resulte menor a delícia de cada um, pois é da natureza divina que o b
em-estar do indivíduo aumente o bem-estar geral".
Eu lhe disse: "Agora estou ainda menos esclarecido a este propósito do que antes d
e haver-te interrogado, pois tuas palavras sugerem dúvidas maiores. Como pode ser
que um bem dividido entre muitos enriqueça o bem geral ainda mais do que se o mesm
o bem fosse entre alguns poucos dividido?"
E ele: "É que continuas raciocinando segundo interesses terrenos. Assim, onde bril
ha a luz mais forte não consegues senão ver trevas. Esse bem inefável, celestial, proc
ura o amor dos homens tal qual o raio de luz procura corpo que o reflita. Quanto
mais intenso for o amor da alma na busca da luz divina, tanto mais essa divina
luz envolverá e aquecerá a bendita alma. E quanto mais gente para o Céu for subindo, c
ada uma das almas terá aumentada a capacidade de amar e mais fundamente se aplicará
ao amor divino, pois cada qual, à guisa de espelho, reflete sobre as outras a sua
própria felicidade. Se ainda minhas explicações não esclarecerem tuas dúvidas, hás de encon
rar em Beatriz argumentos mais adequados para inteirar-te das razões divinas. Esfo
rça-te, pois, para que depressa te sejam canceladas as cinco manchas que ainda em
tua fronte vejo impressas. Há de apagálas contrição sincera".
Antes que eu dissesse "Começo a compreender!", eis que penetramos no círculo imediat
amente superior. Calei, para os lados voltando olhos ansiosos por novidades. Que
dei extático, acreditando vislumbrar um grande templo, onde numerosa multidão se ent
regava à prece. Meiga matrona à entrada interrogava com semblante caridoso:
"Filho, por que procedeste assim para conosco? Eis que teu pai e eu ansiosos te
buscávamos". Pronto escapou-me a visão. Mas logo divisei segunda senhora com o rosto
molhado por aquelas gotas que o sofrer destila, anunciadoras de mágoas aninhadas
por despeito em ânimo iroso. Clamava:
"Se és senhor da cidade por cuja posse os deuses guerrearam e onde todas as ciências
têm cultores, castiga os ímpios braços que ousaram, ó Pisístrato!, enlaçar a nossa filha!"
O convocado, sereno e justo, sem rancor no rosto, respondia: "Que deveremos então
fazer com aqueles que nos querem mal, se castigarmos aqueles que demonstram amar
-nos?" Em seguida assisti a multidão desvairada, em raiva acesa, lapidar a um jove
m, aos gritos de "Mata! Mata!" Já curvado para o solo, o triste moço endereça olhar ao
s portais celestes, encontrando, em tamanho sofrimento, forças para em favor dos c
ruéis perseguidores orar ao Senhor dos Céus. Em seu rosto sofrido, o piedoso sorriso
da virtude resplandecia.
Quando meu espírito retornou ao corpo, dando-me ver não visões, mas a realidade circun
dante, reconheci que no êxtase vira não ilusões falseadas, mas a face da verdade. O me
stre, que me via proceder qual pessoa do sono ainda mal desperta, perguntou: "Qu
e há contigo para caminhares assim vacilante? Mais de meia légua, por certo, vens an
dando com inseguro mover dos pés, os olhos cerrados qual indivíduo que os sentidos h
ouvesse entregue ao sono ou ao vinho". Disse-lhe: "Caro mestre, se consentes em
dar-me ouvidos, dir-te-ei quanto meus olhos contemplaram enquanto titubeantes po
dias ver os meus joelhos". Ele tornou: "Se trouxesses a face coberta por uma cen
tena de máscaras, não me seriam ocultos, por menores que fossem, os pensamentos que
ainda há pouco te enlevaram. Tudo quanto te foi dado ver lá em cima foi decretado, a
fim de que se abra mais facilmente o teu entendimento às fontes do amor que etern
amente fluem do coração de Deus. Não perguntei Que tens?' como faz aquele que só vê com os
olhos do corpo; mas sim perguntei para acelerar teus pés. Pois cumpre ativar o pa
sso aos que por lassidão retardam o andar, mesmo estando acordados".
Caminhando pela tarde, e alongando o olhar pelo caminho tão longe quanto podíamos, f
omos rumo ao fulgente raio vespertino. Eis que vimos levantar-se fumaça, que se co
ndensou à nossa frente, tenebrosa qual noite escura. Fomos cobertos por ela de tod
o.
Canto XVI
Dante e Virgílio entram na nuvem de fumaça dos iracundos. São acompanhados pelo espírito
de Marco Lombardo, que entabula com Dante uma conversação sobre a corrupção na Lombardi
a, bem como no mundo.
A fumaça nos encobria, provocando escuridão tal que nem no Inferno eu vira. Jamais a
lgo assim espesso e pungente fora estendido contra meu rosto (1). Cerrei os olho
s, não suportando tê-los abertos. O meu sábio e diligente companheiro, vindo em ajuda,
em seu ombro deu-me guarida. Qual o cego que a seu guia vai unido para não se ext
raviar ou não se chocar com obstáculo que o moleste, talvez o mate, assim eu, por aq
uele ar tenebroso, imundo, segui meu condutor, que repetia: "Cuidado para não te a
fastares de mim!"
Eu ouvia vozes; parecia-me que suplicassem misericórdia ao "Cordeiro de Deus que t
ira os pecados do mundo". Principiavam pelo Agnus Dei, sendo uniformes as preces
e a melodia, de modo a revelar geral concórdia. Perguntei ao mestre: "São espíritos o
s que ouço cantar?" Respondeu-me: "Sim. E por esse modo desatam os nós da ira que os
ataram ao pecado".
"Quem és tu, que a névoa fendes e falas a nosso respeito como criatura viva a medir
o tempo pelo calendário?" Foi dito por uma das vozes. O mestre aconselhou-me: "Res
ponde, e pergunta se por aqui se vai subindo". * (1) Uma densa fumaça envolve os i
racundos, lembrança da ira que na Terra não lhes permitiu enxergar as virtudes e seu
s méritos. *
Acrescentei: "Ó criatura afanada em tornar-te isenta de culpa junto d'Aquele que t
e criou; ouvirás maravilhas se me seguires". Respondeu: "Seguir-teei quando me for
permitido, e se a fumaça não facultar que nos vejamos, as vozes ajudarão a nos manter
mos unidos".
Comecei: "Ainda trago o espírito vestido por aquele corpo que a morte usa suprimir
. Subo desde as baixuras infernais. E se Deus me favoreceu ao permitir que eu ch
egue a ver a Sua Corte, por modo estranho aos costumes vigentes, dize-me quem fo
ste antes de morto e qual o caminho para a subida. Tuas palavras seguiremos".
"Meu nome é Marco, e fui lombardo. Conheci bem o mundo e amei aquelas virtudes às qu
ais, hoje, ninguém dá valor. Para encontrar o bom caminho, avança à frente", disse, e ac
rescentou: "Rogo intercedas por mim ao chegares lá acima".
Assegurei-lhe: "Acredito em ti. Prometo fazer quanto pediste. Mas angustio-me em
meio à dúvida que necessita ser esclarecida. No princípio era simples, mas palavras t
uas e outras, ouvidas antes, fazem-na dobrada. Segundo dizes, o mundo terreno es
tá deserto de virtudes, grávido e sepulto pelos pecados. Rogo-te aclares os motivos
de tão funesto estado, para que eu aprenda e os reproduza a outrem. Eis que alguns
o atribuem a desígnio divino, outros à perversão humana".
Um suspiro sentido escapou-lhe do peito. Depois, disse: "Irmão, o mundo é cego e bem
vejo que dali procedes. Vós, os viventes, atribuís ao Céu as causas de todos os efeit
os, como ser por ele tudo determinado resultasse. Se assim realmente acontece, d
estruído o livre-arbítrio, não seria justo receber alegria pelo bem e dores pelo mal.
De fato as vossas ações são iniciadas com a permissão divina. Não digo que todas; mas admi
tindo que assim suceda, tendes a luz da razão que permite discernir o bem do mal.
Sendo livre a escolha, quem se esforça e obtém a vitória em nome do Céu tudo o mais venc
erá, se do bem se nutre. Natureza mais poderosa vos concede o raciocínio, o arbítrio,
para que, usando-o, não fiqueis, em tudo, na dependência do Céu. Se, apesar disso, o m
undo desviou-se do bom caminho, em vós está a causa. Disto, dar-vosei agora cabal de
monstração. Sai a alma das mãos do Criador (que a ama antes que ela exista), a modo de
criança brincalhona, ora ri, ora soluça. Apenas criada, toda ingenuidade, ela incli
na-se para tudo o que lhe dá prazer, pois emana de Deus, suprema alegria. (2) Volt
a-se para os gozos fúteis, extraviando-se a seguilos, se regras ou freios não regula
ssem o próprio amor, impedindo seja perdida a visão da justiça divina. Leis, portanto,
existem; mas quem as segue? Ninguém, pois o pastor, que aos mais precede, rumina
as palavras, mas nega o bom exemplo. Desse modo, o povo, que observa o cobiçoso pr
oceder dos chefes - uns e outros ansiando pelo gozo dos bens terrenos -, ceva-se
nestes, nada mais de nobre cultivando. Agora podes facilmente deduzir que a má co
nduta dos chefes, e não a decadência ou condescendência das leis naturais, é causa de ha
ver-se o mundo corrompido. Costumava, essa Roma que modelou o mundo, iluminar-se
com dois sóis: o das leis terrenas e o das regras divinas. Ora, um ao outro apago
u; juntaram-se o báculo e a espada;
* (2) Dante resume a doutrina de Santo Tomás de Aquino. *
mal unidos, à força, mal caminham, pois não se respeitam mais, na união forçada. Se às minh
s palavras não dás crédito, repara na natureza que não mente, pois cada erva se conhece
pela semente que produz. Valor e cortesia encontravam-se em abundância nas terras
banhadas pelo Adige e o Pó, antes que Frederico movesse guerra à Igreja. Atualmente,
todo desalmado pode tranqüilamente adentrar a Lombardia, sem receio de incômodos, p
ois toda a região está viciosa, corrupta. Três anciãos há, contudo, nessa terra, que com s
uas vidas contrastam os costumes antigos e os modernos, tardando sabiamente Deus
em chamá-los a melhor viver. São eles: Conrado da Palazzo, o bom Gherardo e Guido d
e Castel, chamado, segundo o estilo francês, o Lombardo. A Igreja Romana, por reun
ir ambos os poderes antigos, enlameia-se e de fazer o bem abre mão".
Eu então disse: "Marco, ouvindo tais argumentos, percebo por que os filhos de Levi
, sacerdotes, foram excluídos de qualquer herança. Mas que Gherardo
é esse que invocaste, representante da glória e brasão de antiga raça, censurando este séc
ulo repleto de vícios?"
Tornou: "Pretendes que eu fale ainda mais ou me queres enganar! Pois como é possível
, falando italiano, que ignores Gherardo? Com outro nome não o conheço. Só posso dizer
mais ser o pai de Gaia. Bem, acompanhe-vos Deus; já não posso seguir convosco. Eis
que branqueja o dia por entre a fumaça. Devo partir, pois o dia antecede ao anjo".
Dito isso, foi-se, sem mais nada desejar ouvir.
Canto XVII
Os dois poetas alcançam a entrada do quarto recinto do Purgatório - no qual se redim
em os que negligenciaram as obras da fé e da caridade. Virgílio explica a Dante como
se distribuem as almas nos sete círculos do Purgatório.
Leitor, se alguma vez já foste surpreendido na cordilheira por névoa densa, através da
qual não podias enxergar, tal qual uma toupeira, recorda-te de que ao principiar
a descerrar-se a cortina úmida e espessa iam-se infiltrando débeis raios de Sol. Pod
es então imaginar qual foi o Sol que logrei rever. Pisando as pegadas do meu fiel
mestre, saí da cerrada nuvem para a luz solar, que já não iluminava a base da montanha
.
Ó fantasia, que podes enlevar o espírito a tal ponto que do enlevo não desperta nem co
m o soar de mil tubas, que te move, estando dormidos os senti dos? Move-te a luz
no Céu formada por si ou por um querer onipotente. Pois minha imaginação me levou a c
ontemplar aquela que por castigo de seus crimes foi transformada na ave que em c
antar encontra alento. Por tal modo ficou presa minha mente a tal visão que nenhum
a outra impressão exterior podia dominála. No mesmo êxtase, em seqüência, vi homem na cruz
distendido, conservando, enquanto morria, arrogância e altivez (1).
* (1) Trata-se de Amã, ministro do Fiel Assuero; é o segundo exemplo de ira punida.
*
Ao seu redor estavam Assuero, o grande rei, Ester, sua esposa, e o prudente Mard
oqueu, que foi sempre reto no dizer e no fazer.
Mas esta visão fugiu-me tão rapidamente quanto a bolha que, formada pela água, à falta d
a água de que nasceu rebenta. Foi-me dado ver em seguida donzela a exclamar, em pr
antos: "Por que, ó rainha, por vias da ira buscaste a morte? Não querendo perder Lavín
ia, perdeste a vida e a mim tens perdida, a chorar a tua desgraça mais do que outr
a qualquer tristeza". (2) Assim como o sono é interrompido quando luz forte e repe
ntina bate nas pálpebras cerradas, e elas pestanejam antes que tudo se desvaneça; as
sim desapareceu a visão, ao ter eu sobre as faces clarão tão vivo que igual na Terra j
amais foi observado. Voltei-me, buscando reconhecer o sítio onde me encontrava; po
rém, desse intento desisti ao ouvir voz que comandava: "Sobe por aqui!" Minha alma
foi então assaltada por desejo tão ardente de conhecer quem tal dissera que certame
nte ficaria conturbada se não o satisfizesse. Mas assim como o Sol, deslumbrando a
vista, impede-a de fixá-lo, faltaram-me forças para fixar a fonte de tal voz.
Assim falou meu guia: "Trata-se de espírito celeste que, sem ser solicitado, vem i
ndicar o bom caminho. Em sua própria luz se mantém oculto. Age para conosco qual o h
omem em relação a outro homem, pois aquele que percebendo semelhante em apuros aguar
da o pedido de socorro já está, malignamente, a excogitar recusa. Apressemo-nos em a
ceitar tão útil convite, pois convém subamos antes que a noite desça.
* (2) A Rainha Amata, supondo que Turno, noivo de sua filha Lavínia, houvesse sido
morto por Enéias, suicidou-se num acesso de ira. É o terceiro exemplo de punição. *
Mais tarde, não o poderemos fazer, senão esperando que o Sol regresse". Caminhamos e
ntão rumo à escada divisada. Chegávamos ao primeiro degrau quando percebemos ruflar de
asas; presumi sentir bafejo no rosto, e ouvi: "Beati pacifici, pois estão livres
da ira!" Já acima de nós empalideciam os raios solares que precedem a noite, surgind
o estrelas por todos os lados. "Ó ânimo! Por que me abandonas?", murmurei de mim par
a mim, ao sentir-me desfalcado das forças que às pernas dão vigor. Havíamos atingido o p
onto mais alto da escada. Ali nos quedamos imóveis, qual o navio que, finda a viag
em, na praia se imobiliza. Atentei para ver se algo podia ouvir do novo círculo, v
oltando depois a interrogar o mestre:
"Dize-me, ó pai querido!, quais pecados são purgados neste círculo? Não esteja o teu ver
bo tão silencioso quanto imóveis estão nossos pés!" E ele a mim: "Aqui, o sofrimento apl
ica castigo merecido àqueles que na prática do bem foram remissos. o tardo remeiro a
qui se apressa e pune. Para que melhor compreendas, dá-me a tua atenção, bem aproveita
ndo, desse modo, nossa parada. Nem ao Criador nem à criatura faltou jamais amor, q
uer venha da própria alma, quer seja instilado pela natureza. o amor natural é sempr
e livre de erro. o outro, porém, pode errar. Ou na direção, ou por excesso, ou por tib
ieza. Quando se endireita no rumo dos bens divinos, considerando menos os bens t
errenos, não pode dar como resultado um criminoso afeto. Se, contudo, se desvia pa
ra o mal e em proporções se excede, ofende ao Criador do qual é criatura. Podes agora
compreender que o mesmo amor, nos homens, pode ser semente de virtudes ou germe
de todos os pecados. Ora, aceitando que o amor não pode desviar o seu propósito da f
inalidade que o criou, e da qual e para a qual vive, segue-se que, havendo amor,
é impossível que o amor se torne ódio. E porque nenhuma criatura existe sem que exist
a o Criador, no próprio amor confundem-se aquela e Este, nenhum ódio entre ambas exi
stindo.
Não podendo, pois, o homem odiar nem a si próprio nem ao seu Criador, resta odiar o
próximo; e este amor ao mal por três modos diferentes atua sobre o humano limo. Há os
que, cobiçosos de grandeza e glória, intentam alcançá-las mediante a ruína de outrem, a qu
em sonham ver por terra, destruído, suprimido. Há os que, temerosos de perder glória,
poder, honra e fama, se outrem se apresenta a disputar-lhas, contristam-se ao vê-l
o progredir, pois mais apreciariam saber que recuava. E há os que, atingidos por i
njúria, fazem da vingança seu objetivo, esmerando-se em praticar o mal contra o seme
lhante. Nos planos inferiores a este, são purgadas estas três formas de perversão do a
mor. E agora atentes para o sucedido com o que desordenadamente insiste em procu
rar o bem. Cada qual idealiza confusamente o que seja o bem, e ao redor dessa iìde
alização se aflige e contende para alcançar a plenitude do bem. Aqui se dá, conforme a c
ontrição, o merecido castigo àquela forma de amor que se mostrou no mundo lento e ince
rto ao eleger e cultivar o verdadeiro bem. Outro bem existe (3) que, porém, ao hom
em não dá felicidade; pois não é a felicidade, não sendo a essência do bem, fruto e raiz de
toda virtude. O amor voltado aos bens materiais recebe castigo nos três círculos aci
ma. Melhor do que as minhas palavras, contudo, é que o vejas tu mesmo."
* (3) É o amor às coisas materiais. *
Canto XVIII
A noite cai. Virgílio mostra a Dante que a alma tende naturalmente para o bem e pa
ra o prazer, mas sofre influência da vontade. Eis que surgem as almas dos negligen
tes na prática do bem e da virtude.
Terminando seu discurso, Virgílio, observando a expressão em meu rosto, procurava sa
ber se eu ficara satisfeito. Para ele eu calava, mas dizia a mim mesmo: "Talvez
o aborreça com tantas perguntas!" Mas aquele que valia por verdadeiro pai, aperceb
endo-se do meu tímido e silencioso querer, falando, deu-me a coragem necessária. Dis
se-lhe, pois:
"Mestre, quando ensinas, tanta luz derramas em meu espírito que alcanço clara e dist
intamente quanto desejas que eu compreenda. Rogo-te, doce e paciente guia, revel
es a origem desse amor a que atribuíste a causa de todas as ações, boas ou nocivas". R
eplicou: "Concentra em mim toda a força do teu intelecto, e ser-te-á patente quanto
erra o cego que se propõe a servir de guia. Sendo a alma criada com inclinação para o
amor, corre ao encontro de tudo que lhe acene alegrias, se em nome do amor nessa
direção for convocada. Para que o instinto do amor se transforme em ato de amor, o
teu entendimento recolhe imagens que, desenvolvidas no íntimo, atraem outras almas
. E quando elas se entregam, essa entrega é o amor, é a própria natureza que, pelo lia
me do prazer amoroso, de novo se funde com o homem. É qual chama que busca elevar-
se, em virtude de sua forma que para o alto sempre tende, em direitura do centro
onde sua remota origem ainda arde; é pelo desejo que a alma se incendeia, num imp
ulso espiritual que não aplaca enquanto do objeto amado não consegue a posse ambicio
nada.
"Agora estás habilitado a conhecer quanto permanece oculta a verdade para as criat
uras que sinceramente crêem ser toda espécie de amor, por si mesma, coisa acertada e
boa. Eis que a matéria pode parecer sempre boa, mas nem todo selo será bom, ainda q
ue a cera de que se compõe seja de boa qualidade". Respondi-lhe eu: "Se tuas palav
ras e minha atenção completa puderam revelar-me a natureza do amor, estimularam em m
im outras dúvidas ainda maiores. Pois se o incentivo ao amor vem de fora do ser, e
se a alma se move em direção do amor, ao ser pelo amor atraída, o encaminhar-se pela
via do amor para um caminho bom ou mau não me parece que deva ser, para ela, certo
ou errado".
E ele: "No que toca a esse tema, posso dar-te apenas argumentos que apelam à razão.
Mas como para essa dúvida a solução se acha mais no terreno da fé que no da razão, deves a
guardar que Beatriz te elucide. A substância espiritual, distinta da matéria, mas ne
m por isso menos identificada com esta, guarda virtude específica que somente é sent
ida quando atua; de si denunciando o efeito pela ação assim como o verdor das folhas
demonstra existir vida na planta. Eis por que o homem desconhece de onde lhe ve
m o entendimento das primeiras sensações, o inclinar-se inicial das paixões, as quais
são instintivas, como é instintivo para as abelhas preparar o mel. Ora, esta primeir
a tendência - a de querer amar - não acarreta nem louvores nem admoestações.
"Mas precisamente para que, em torno e em seqüência deste primeiro querer, se acriso
lem altos objetivos é que a razão é inata em nós, incumbindo-lhe a vigilância da porta pel
a qual entram as paixões na alma. Este é o princípio donde provém o castigo ou o prêmio, s
egundo a razão faça inclinar para o bem ou para o mal a paixão amorosa. Os filósofos que
se aprofundaram em estudos sobre esta inata liberdade de escolher vo-la transmi
tiram nas lições de moral. Por ela se aprende que ainda quando, por necessidade, tod
o o amor possível em vosso imo se acendesse, restar-vos-ia, para discipliná-lo, o ex
ercício do autodomínio. Beatriz considera essa alta virtude como livrearbítrio. Ela di
scorrerá a tal respeito, mais à frente."
A Lua, quase à meia-noite, ia surgindo, e fazia as estrelas ainda mais pálidas ao no
sso olhar. Contra o fundo celeste, percorria caminho contrário àquele por onde o Sol
busca o crepúsculo, conforme é visto pelos romanos a fulgurar entre a Sardenha e a
Córsega. Virgílio rematara resposta à minha dúvida. E eu, que recebera explicações lúcidas
ompletas sobre a questão proposta, sentia-me qual homem que, sonolento, vaga enton
tecido. Desta sonolência fui subitamente acordado por multidão de almas que à nossa re
taguarda e em nossa direção se encaminhava. E como os rios Ismeno e Asopo, outrora,
viram-se cruzados por bandos desesperados de tebanos, dentro da noite clamando e
m altas vozes pelo deus Baco; assim os daquela turba penitente, por desejo reto
e por justo amor impelidos, apressavam-se, ofegantes, a cruzar o círculo. Correndo
, alvoroçada, logo alcançou-nos a multidão em cuja vanguarda dois vultos, em prantos,
bradavam: "Maria corre pressurosamente para a montanha" e "Para subjugar Lérida, Cés
ar venceu Marselha antes de voar à Espanha. Depressa! Avante! Não haja perda de temp
o, não falte o zelo de apressar o passo!", alguns clamavam; e gritavam outros: "Qu
e o desejo do bem revigore em nós a graça divina!".
"ó almas em quem o atual fervor substitui, busca apagar a incúria e a negligência do p
assado, quando na prática do bem não se aplicara, dizei a este que é vivo, e com isto
mentira não vos digo - o qual aspira a prosseguir subindo, tão logo surja a aurora -
, dizei onde está situada a escada certa!" -, foram palavras do meu guia. Responde
u-lhe um dentre os espíritos: "Acompanhai-nos e encontrareis a passagem. Não podemos
parar, tão intenso é o anelo de cumprir nossa estrada, e isto esclareço para que ente
ndais não haver injúria na pressa com que andamos. Fui abade de São Zeno, em Verona, s
ob o reinado de Barba-Roxa, o Bom, a quem Milão recorda tristemente. Alguém, que já um
pé tem dentro da cova, há de em breve nesse mosteiro ser chorado juntamente com o p
oder de que fora exornado. Pois em prejuízo do chefe verdadeiro, foi colocado ali
um filho aleijão, bastardo e estúpido".
Não sei se silenciou, tanto já se achava à nossa frente. Mas essas palavras pude ouvir
com clareza, e as memoro com prazer. Foi quando Virgílio, que me socorria em toda
s as necessidades, sugeriu: "Olha para ali, para aqueles dois espíritos que acerba
mente reprovam a lentidão dos preguiçosos". Postados à retaguarda da multidão, clamavam:
"Por preguiça foi morta aquela gente para quem se abriu o mar, antes de receber d
o Jordão a herança. Depois morreram, perdendo por seu querer alta fama e grande glória
, aqueles que desistiram de seguir o filho de Anquises".
Quando a fila das almas afastou-se tanto que eu já mais nada podia distinguir, nov
a inquietude se apoderou de mim. Desta vieram outras, e por tal forma entre uma
e outra vagueava o pensamento que cerrei meus olhos, lentamente, e do pensar des
lizei para o sonhar.
Canto XIX
Dante, guiado por Virgílio, atinge a íngreme via que conduz ao quinto terraço; o Anjo
suprime da fronte de Dante mais um sinal. Os poetas irão se encontrar com as almas
dos avarentos, e conhecer seu suplício.
À hora da noite em que o calor do dia já não é suficiente para vencer o frio que sobe da
Terra, ou que desce da Lua - momento em que os astrólogos podem observar surgirem
as constelações dos Peixes e do Aquário a precederem a alva - foi mostrada a mim, em
sonho, uma mulher; ela gaguejava, era vesga, era torta no caminhar, suas mãos eram
deformadas e sua tez macilenta (1). Fitava-a, e assim como o Sol aquece os memb
ros que pela noite o frio agrava, sob o efeito do meu olhar ela movia a língua, alça
va o corpo e já no lívido, desbotado semblante surgiam cores agradáveis, como o quer o
amor.
Tendo, pois, libertado o seu falar, principiou a entoar tão doce e inebriante cant
o que muito me custaria desviar dele a atenção. "Sou", dizia, "a sereia insinuante.
Nos mares desgarro os navegantes, tamanha sedução se desprende do meu canto. Cantand
o seduzi Ulisses. Do enlevo a que conduz este cantar, poucos logram escapar!" Não
havia cerrado os lábios quando, ao seu lado, a confundi-la com o olhar, surgiu dam
a celestial. "Ó Virgílio, ó Virgílio!", imprecou, severa, "quem é esta?"
* (1) Essa mulher simboliza a tentação que leva o homem a pecar entregando-se aos pr
azeres materiais. *
Acorreu o meu guia, respeitoso ante senhora de tão celeste aspecto, a qual, tolhen
do as mãos da funesta sereia, rasgou-lhe as vestes, pondo-lhe o ventre a descobert
o. Para acordar-me, o fedor que dali saía foi o bastante. Abri os olhos e ouvi o m
estre dizer: "Três vezes pelo menos te chamei. Eia, ergue-te, sigamos procurando a
bertura por onde possas subir". Ergui-me, pronto. Já os picos do sacro monte estav
am iluminados pelo dia. Às nossas costas nascia o Sol. Acompanhando o guia, eu tin
ha baixa a fronte, como quem leva a mente ao peso de dúvidas, curvado qual o meio
arco de uma ponte, quando ouvi esta voz: "Vinde, por aqui se pode subir!", modul
ada em tom assim suave e benigno como igual não se ouve em nosso mundo. Tendidas a
s asas, iguais às de cisne em alvura, quem nos falara indicava passagem entre alca
ntis. Moveu em seguida as penas, agitando o ar ao nosso redor e clamando: "Ventu
rosos os que choram, pois aqui terão a alma repleta de consolação!"
Passado o lugar onde o anjo pousara, o mestre perguntou-me: "Por que olhas somen
te para a terra?" Respondi: "Temor é que me mantém assim. Em sonho apareceu-me Figur
a por tal forma estranha que inda agora sua impressão não se desvaneceu". Tornou: "V
iste aquela antiqüíssima feiticeira, razão dos males que no círculo acima são purgados. Ve
rás como o homem dela se liberta. Basta desse cogitar, acelera o passo e fixa os o
lhos nesse céu que Deus criou quase como um convite para mirar".
Procedi como o falcão, que primeiro observa os seus pés e depois levanta vôo no afã de e
ncontrar caça. Expeditamente venci o que restava do caminho escavado entre rochas,
até o novo terraço onde se recomeça a caminhar em giro.
Penetrando no quinto círculo, deparei gente pranteando, posta em terra, rosto volt
ado para o solo. Adhaesit anima mea pavimento (2) murmuravam, entremeando palavr
as e suspiros, de modo tal que me foi difícil entender o sentido delas. "Ó eleitos d
e Deus, cujo sofrer encontra alívio na justiça e na esperança, dizei-nos como subir a
degraus mais altos". "Se a vossa punição já foi cumprida e ora velozes pretendeis subi
r, avançai de modo a manter sempre a vossa direita para o exterior da rocha." Assi
m perguntou o poeta e assim lhe foi respondido por alguém que adiante se encontrav
a.
Supondo que em tais palavras existisse intenção oculta, consultei com os olhos os ol
hos do meu guia, e este, com ledo gesto, acedeu ao desejo que em meu olhar perce
bera. Podendo assim dispor de meu querer, afastei-me para o lado, em direção àquele vu
lto cuja voz atraíra minha atenção. Disse-lhe: "Ó espírito que lacrimoso expias culpas, el
iminando o mal que te impede o acesso a Deus! Sustém um pouco, em meu proveito, es
se prantear contínuo. Quem foste? Por quais pecados jazes voltado para o solo? Tai
s coisas espero que me digas, se desejas que lá no mundo de onde venho, vivo, em t
eu favor impetre algo valioso".
E ele a mim: "Dir-te-ei o porquê de nos castigar o Céu por este modo; mas antes convém
que scias quod ego fui successor Petri. Entre Siestri e Chiavari corre um rio f
ormoso. Dele tirou origem o título de minha estirpe. Em mês e pouco tive a prova de
quanto pesa o grande manto papal a quem se proponha mantê-lo sem manchas.
* (2) "Minha alma rojou-se ao pó". *
Comparado a este, todos os mais fardos parecem feitos de plumas. Minha conversão,
ai de mim!, foi tardia! Apenas eleito pastor de Roma, quanto é frívolo o viver munda
no fiquei sabendo. Meu coração desconheceu a paz e a quietude. Dando-me conta de que
mais alto não poderia subir na vida terrena, ardi por completo no amor desta vida
divina. Mísera e distanciada de Deus era até então a minha alma, perdida em dura avar
eza, de que, conforme vês, vai sendo purgada. Aqui são punidos os avaros, no mais du
ro castigo purgado neste monte, pois ao céu nosso olhar não se pode erguer, fixando
apenas as mesmas coisas terrenas que, por muito amadas, desviaram de Deus o noss
o olhar. Havendo a avareza extinguido em nós a intenção do bem, a justiça divina quer-no
s punir com fazer-nos apenas olhar as coisas terreais. Pés e mãos estreitamente unid
os, enquanto aprouver a Deus aqui permaneceremos, imóveis, estendidos".
Eu havia me ajoelhado; queria falar-lhe mais. Ele, porém, percebendo meu gesto com
o só tê-lo ouvido, atalhou-me observando: "Por que te curvas?" respondi-lhe: "Em re
verência à vossa dignidade papal. Não quer minha consciência que me conserve ereto". Obs
ervou: "Fica de pé! Levanta-te, irmão! Não cometas tal erro! Iguais somos, eu, tu e to
dos os outros, obedientes a uma única potestade. Se compreendeste o sentido exato
do Santo Evangelho, quando diz Neque nubent, conhecerás o porquê deste meu raciocínio.
Segue, agora. Já te detiveste aqui demais. Ocorre que tua presença aqui diminui o te
mpo de meu chorar, e é com lágrimas que apresso o perdão. Na Terra,
o único parente que me restou chama-se Alagia; é minha sobrinha, e tem bons sentimen
tos. Que a ruindade inata dos nossos não a tenha corrompido!".
Canto XX
Os poetas - ainda no quinto recinto - deixam o Papa Adriano V e vão se entreter co
m o espírito de Hugo Capeto; este lhes faz duros vaticínios. Pouco depois disso, um
forte abalo faz tremer o Purgatório.
Uma vontade simples não pode superar uma vontade mais forte. Assim, para contentar
aquela alma tive de deixar a minha descontente. Meu guia conduzia-me pela senda
ao longo da rocha, tal qual, perlongando-se as ameias, se vai às torres de castel
o. Do lado oposto, próximo à orla, aglomerava-se turba dos que, gota a gota, de muit
o lacrimar, expurgam aquela culpa que ao mundo todo avassala. Maldita sejas, vel
ha, loba, cobiçosa mais que outras feras, jamais tendo mitigada a tua fome! O céu, a
cujo mover-se, segundo se crê, devem ser atribuídas as mutações das condições humanas, qua
do será escorraçada do mundo a avareza?
Nossos passos eram lentos e medidos. Eu pusera atenção naquelas sombras que percebia
a chorar e lamentar-se piedosamente. Eis que ouvi, à frente, "Doce Maria!" alguém c
lamar, com a entonação da mulher que padece dores de parto. E acrescentar: "O quanto
foste pobre se pode aquilatar pela humílima estalagem em que deste à luz o teu frut
o santo". E mais: "Ó bom Fabrício, que preferiste ser pobre virtuoso a viver em opulên
cia pecaminosa". Tanto me agradaram tais palavras que apressei o avanço, a fim de
conhecer o espírito do qual, segundo me pareceu, elas procediam. Seguia ele narran
do o generoso proceder de São Nicolau para com as pobres donzelas, salvando-lhes o
estado virginal.
Clamei: "Ó alma que falas com acerto, quem foste e por que somente a tua voz celeb
ra tanta virtude? Não ficará sem prêmio o teu responder se eu voltar à vida terrena". Re
spondeu-me: "Dir-te-ei quanto desejas ouvir, não pelo consolo que da Terra possa r
eceber, mas pela graça que vejo refulgir em ti, ainda vivo. Fui raiz dessa maligna
planta que esteriliza o chão da cristandade, a ponto de ser causa de espanto um só
fruto bom que por ventura venha a nascer. Porém, se a Douai, Gand, Lille e Bruges
fosse possível, prontamente tomariam a vingança que rogo Aquele que tudo julga. Na T
erra fui chamado Hugo Capeto, tronco dos Filipes e dos Luíses, que sob mando têm hoj
e a França. Nasci de um carniceiro de Paris. Quando os velhos reis se extinguiram,
sem outro descendente que um ser votado ao claustro, às minhas mãos felizes vieram
parar as rédeas daquele reino. Tanto prestígio alcancei, fiz tantas posses, tantos a
migos consegui, que logrei fosse posta à cabeça de meu filho a coroa viúva de senhor.
Teve então princípio a real estirpe. Até receberem o rico dote da Provença, os meus desc
endentes, ainda que não procedessem nobremente, nada fizeram de mais vergonhoso. C
om aquele acréscimo principiou a sua rapina. Por vias de astúcia e violência, conquist
aram o Pontois, a Normandia, a Gasconha. Carlos, entrando na Itália qual penitente
, vitimou Corradino e no triunfo, à guisa de expiação, mandou também aos Céus Santo Tomás.
ejo chegar, em futuro não distante, da França outro Carlos, que fama inda mais sonor
a dará a si e aos seus. Sem outra arma que a de Judas, tendo-a apontada contra Flo
rença, rasgar-lhe-á o peito segundo seu capricho. Não ganhará terras e sim pecados e infâm
ia, tanto mais pesados para sua alma quanto menos importância lhes der. Outro, que
vislumbro sair prisioneiro do próprio navio, venderá a filha tal como os piratas ve
ndem prisioneiros escravizados. Ó avareza!, que mais podes fazer de mal, se pudest
e arrastar o meu sangue a tal vergonha que não lhe importou a própria carne? Mas, fa
zendo que pareçam menos graves os crimes passados e presentes de meus descendentes
, antevejo o estandarte da flor-de-lis penetrando em Alagni, e Cristo em seu vigár
io ser aprisionado. De novo Ele é escarnecido; repete-se a oferta do fel e do vina
gre e entre ladrões conhece morte lenta. Vejo o novo Pilatos que, não pondo fim à sua
fúria, sem decreto escrito investe contra o Templo. O Senhor, quando terei a dita
de assistir à justa punição que por agora em Teu seio conserva o segredo da sua hora?
Quanto ao que curiosamente perguntaste, digo-te que as palavras que eu dirigia a
inda há pouco à esposa única do Espírito Santo são nossas orações durante o dia. Sobrevindo
noite, nossas palavras lembram exemplo contrário. Recordamos Pigmalião que se fez tr
aidor, ladrão e parricida, por sua sede de ouro; e a mísera condição a que Midas foi red
uzido, escárnio do mundo por efeito de seu desejo insano; relembramos o gesto louc
o de Acão ao roubar os despojos e procurar furtar-se à ira de Josué; verberamos Safira
e seu marido; memoramos os coices que repeliram Heliodoro. E todo o monte ecoa
imprecações contra Polimestor, o que foi algoz de Polidoro. E no final gritamos: 'ó av
arento Crasso, dize, pois deves sabê-lo: qual é o sabor do ouro?' Alguns bradam em a
ltas vozes; outros em baixo tom murmuram, segundo o grau do afeto que os impulsi
ona, conforme seja forte ou fraco o seu avanço. Portanto, eu não era o único a entoar
os cânticos exaltatórios da virtude, embora voz tão alta quanto a minha perto de mim não
se levantasse".
Já nos tínhamos afastado daquela alma, esforçando-nos por vencer a íngreme ladeira à nossa
frente, quando senti tremer o monte de repente. No peito, meu coração fez-se de gel
o, qual de homem que avança rumo da morte. Decerto, assim tão fortemente não tremeu De
los quando por ninho a elegeu Latona, a que desejou parir dois luzeiros do céu. De
todos os lados levantou-se tamanha grita que o mestre, voltando-se para mim, ex
clamou: "Não há perigo! Teu guia é quem o diz!" Era por muitas vozes entoado o Gloria
in excelsis DeoI, segundo pude entender, quando, havendo avançado um trecho, conse
gui entender as palavras. Quedamo-nos imóveis, suspensos quais os pastores que ouv
iram tal cantar pela primeira vez. Assim permanecemos até todos os ruídos cessarem.
E reiniciamos o caminho santo, entre as almas prostradas vertendo o pranto costu
meiro. Nunca fui acometido como então pelo desejo, filho da ignorância, de penetrar
secretos fastos. Mas nem pela pressa eu ousava perguntar; nem do que ouvia tirav
a o esclarecimento desejado. Assim ia eu, pensativo e acanhado.
Canto XXI
Dante e Virgílio procuram passar à plataforma que conduz ao sexto recinto. Falam com
o poeta Estácio, que lhes explica a razão do abalo ocorrido na montanha, entre outr
as coisas.
A sede que só pode ser saciada pela água cuja graça implorou a samaritana atormentava-
me, e o dó pelo que via, embora sabendo justo tal castigo, punha urgência em meus pa
ssos pela estrada difícil. E eis que, tal como, segundo descreveu São Lucas na Sagra
da Escritura, Jesus apareceu a dois caminhantes, surgiu-nos uma sombra. De trás de
nós viera e, andando, contemplava a turba jacente.
Não havíamos reparado nela até que falou: "Deus vos dê a paz!". Voltamo-nos e Virgílio, co
m gesto amigo, respondeu à saudação: "No bem-aventurado sítio dos eleitos sejas posto pe
la mesma santa corte que a mim relega ao exílio eterno".
"Como avançais", respondeu, perguntando, "com animoso passo, se sois espíritos que lá
acima Deus não deseja? Quem vos guia por estas plagas?" Meu guia tornou: "Se atent
ares para os sinais que este traz na fronte, aí impressos pelo devido anjo, perceb
erás que a ele está reservado entrar no reino dos eleitos. Mas, como aquela que dia
e noite fia não lhe tenha ainda consumido a estriga que Cloto consigna a cada mort
al nascituro, não teria podido, por si só, ascender até aqui essa alma que é tua e minha
irmã, embora não veja ela as coisas conforme as vemos com os nossos olhos de mortos
. Fui tirado do limiar do Inferno, para guiá-lo. E isso vou fazendo dentro das med
idas do entendimento humano. Mas, ora, dize-me, se sabes, por que há pouco tremeu
a montanha quando do pico à base ecoou da multidão um clamor pungido?"
Tal pergunta correspondia tão verdadeiramente ao meu desejo que, ouvindo-a formula
da, logo me veio a esperança de ver diminuída a grande sede. A som bra principiou: "
Não foi por razão incomum nem houve, com isso, quebra na harmonia reinante. Alterações a
qui não são possíveis. Aquele que fez o Céu e é o Céu, toda ordem e disposição se deve. Jam
araiva ou chuva, orvalho, neve ou bruma chegam acima dos três estreitos degraus da
anteporta. Nuvens não se vêem, nem tênues nem compactas; relâmpagos não fuzilam, nem se e
stende o efêmero colorido da filha de Taumante o qual, oposto ao Sol, fulge difere
ntes sítios. Nem o seco vapor excede, aqui, na sua subida, aqueles três degraus onde
o vigário de Pedro pousa as plantas.
Treme a montanha, talvez, embaixo, em suas bases, por força de ventos ocultos sob
a terra, não sei por quais prodígios. Aqui acima, contudo, jamais tre meu, por terre
moto. Treme, sim, quando alguma alma, sentindo-se afinal purificada, move-se rum
o do Céu, saudada por festivo e forte clamor. De que está alfim purificada é prova bas
tante o poder alçar-se, sentindo livres os movimentos da subida, fruindo com isso
a maior alegria. Tal desejo sempre a animara. Os movimentos, porém, eram tolhidos
pelo rigor da justiça divina - assim como na Terra o ânimo para o pecado se opusera
aos mandados celestes. Eu, que na espera sofri quinhentos e mais anos, sinto ago
ra livres os passos na direção do Céu. Essa, pois, a causa do terremoto e das vozes do
s santos espíritos aqui conglomerados, rendendo por todo o monte altos louvores, c
ada uma dessas almas rogando para que em breve seja também chamada!"
Assim falou; e meu prazer ao ouvi-lo foi indescritível. o sábio guia, por sua vez, d
isse: "Agora entendo a rede que vos detém neste páramo, como se desfazem os laços que
vos tolhem a liberdade, como ocorrem os tremores do monte e por que levantais, e
m coro, o cântico do Gloria. Ora, dize-me quem foste, se te apraz fazê-lo; e por qua
is motivos durante séculos jazeste à espera. Possam as tuas palavras trazer resposta
ao que pergunto".
"Quando Tito, com a ajuda do Sumo Rei, vingou as feridas por onde verteu aquele
sangue vendido por Judas, eu estava entre os vivos", principiou o espírito. "Sauda
vam-me com o nome que mais alto soa - poeta. Era assaz famoso, mas não conhecia a
fé. Tão altaneiro foi o som dos meus versos, que de Tolosa fui chamado a Roma, onde
ganhei coroas de mirto. Meu nome - Estácio - inda soa no mundo! Cantei Tebas e can
tava o grande Aquiles; porém a morte convocoume com a tarefa em meio. Foram sement
es do meu ardor poético essas centelhas escaldantes, quais divinas chamas a inspir
ar mais de mil outros poetas: os versos da Eneida, mãe veraz, nutriz de meu estro.
E para no mundo terreno existir ao tempo em que viveu Virgílio, passaria com sati
sfação um ano além do que os que tenho de cumprir". Isto ouvindo, Virgílio voltou-se par
a mim dizendo, embora sem falar:
"Cala-te!" Mas nem sobre todos os esforços a vontade logra vitória. O riso e o prant
o, à paixão obedecendo, vencem toda vontade, ainda a mais forte, pois o dissimular é a
rte tanto mais difícil quanto mais verdadeira seja a pessoa dissimulante. Não oculte
i, pois, um sorriso malicioso. Percebendo-o, a sombra calou-se e, fitando-me nos
olhos, sítio onde o sentimento mais se identifica, exclamou: "Que leves a bom ter
mo o forte empenho a que te propuseste. Mas dize-me a causa do riso que ainda ag
ora denunciou-se em teu semblante".
Entre dois empenhos estava eu posto: um me impunha calar; outro me rogava o fala
r. Angustiado, suspirei. Compreendendo-me, o mestre socorreu-me: "Nada impede qu
e fales. Revela a verdade pela qual ele tão exigente clama!"
Comecei: "Se meu riso, ó nobre espírito, causou-te maravilha, maior será teu pasmo com
o que te revelo agora. Este que guia os meus passos para o alto é o mesmo Virgílio
no qual hauriste inspiração para cantar os feitos dos homens e dos deuses. Se outra
causa ao meu riso atribuíste, retifica-a. O motivo exato está nas palavras que a seu
respeito disseste".
Já (Estácio) se inclinava para abraçar as pernas do meu guia, mas este o impediu, brad
ando: "Irmão, tal não intentes, pois és sombra o que de mim vês". E
o outro, erguendo-se: "Bem podes medir o profundo respeito que a ti eu voto pelo
engano ora cometido de querer, vaidade humana, tratar sombras como se fossem ma
téria".
Canto XXII
Dante e Virgílio, juntamente com Estácio, alcançam o sexto terraço, deparando os espíritos
dos que se entregaram à gula e à bebida.
Já fora ultrapassado à entrada o Anjo que nos encaminhara ao sexto giro, apagando-me
então um dos traços da fronte. A multidão de almas sequiosas de justiça cantara o beati
e com a voz de sitiunt se havia calado. Sentia-me leve quanto jamais em tal jor
nada. Rápido, sem cansaço, seguia os espíritos, velozes na subida, quando Virgílio começou
por dizer: "o amor aceso em nome da virtude, uma vez alteada a sua chama, sempr
e ateia outro amor. Eis que tão logo entre nós, os do Limbo, foi chegado Juvenal, de
ume notícias do teu afeto por mim. Retribuí tal apreço com afeição tamanha que igual não se
consagraram um ao outro entes entre si desconhecidos. É pois bem agradável avançar con
tigo nesta escalada. Mas dize - e como bom amigo perdoa se me faço exigente, pois
em nome da amizade peço que raciocines e respondas: como foi possível à avareza ocupar
lugar em teu ânimo voltado sempre para as coisas do espírito?"
Tais palavras ouvindo, Estácio primeiro riu e depois informou: "Qualquer pergunta
que me fizeres soará aos meus ouvidos como interesse amistoso. Na verdade, muitas
vezes ocorrem fatos que induzem a juízo errôneo, permanecendo oculta a sua causa ver
dadeira. Tua questão revela julgares que no mundo fui vítima de avareza, atendendo t
alvez a que estive recluso no círculo dos avaros. Pois fica sabendo que tanto fui
o contrário do avaro que essa demasia veio a ser punida com um tempo igual a milha
res de meses. E estaria incluído para sempre entre os danados do Inferno, não houves
se, em vida, encontrado cura ao ler os versos em que assim apostrofas aos vivent
es: A que excessos impeles os mortais, ó maldita fome de ouro!' Percebi que o muit
o abrir os dedos leva a prejudicar as mãos, e com isso arrependi-me daquele e de o
utros pecados. Quantos hão de ressuscitar com a cabeça rapada, por não haverem em vida
fugido a essa culpa, sem contrição morrendo com ela. Sabes bem que o pecado contrário
a outro pecado, oposto lhe sendo, é punido no mesmo círculo em que aquele é justament
e castigado. Assim, se estive a purificar-me entre a turba que lamenta o vício da
avareza foi não por haver sido avaro, mas por pródigo haver sido".
"Quando cantaste os feitos de armas que dupla tristeza causaram a Jocasta" (1),
disse o cantor da felicidade campesina, "de Clio tomando o toque e a inspiração, não m
e parece que já te houvesse tocado o ardor da fé. E para salvar a alma, o bem sem a
fé não basta. E se assim é, qual sol, qual estrela te foi iluminar em tão sombrio viver,
de modo que assim como o pescador te converteste?"
Respondeu aquele: "Primeiro tu me encaminhaste para a doce inspiração poética do Parna
so, sendo, portanto, depois de Deus, aquele a quem devo a luz do entendimento.
* (1) Referência ao poema A Tebaida, de Estácio. *
Fizeste como aquele caminhante noturno a levar após si a lanterna, inútil para seus
passos, mas que serve de farol aos outros, quando disseste: Os tempos se renovam
; regressam justiça e virtudes primitivas; nova progênie baixará do Céu! Por ti, fui poe
ta; por ti, me fiz cristão! Mas para que melhor entendas o quadro que debuxei, que
ro dar mais expressão às suas cores. Já estava o mundo inteiro ilustrado a respeito da
verdadeira fé, espargida pelos mensageiros do eterno reino, e os teus versos menc
ionados prestavam-se aos novos ensinamentos. Foi por isso que, ouvindo-os, o efe
tivo bem eu pude reconhecer. Tão santas me pareceram as lições de tais mensageiros que
, ao persegui-los Domiciano, juntei meu pranto ao deles e, enquanto vivo, ajudei
-os, chegando a admirar seus costumes puros e a desprezar outras pregações. Antes me
smo de, em versos, celebrar o fero cerco posto a Tebas, já eu renascera pelo batis
mo, embora por medo houvesse ocultado a conversão. Pagão ainda fingi ser por longo t
empo, e por isso quatro largos séculos hei padecido no quarto círculo. Merecida foi
a pena. Tu, pois, a quem devo ter podido rasgar o véu que ocultava o verdadeiro be
m a que ora me refiro, dize-me - de vez que na subida o tempo sobeja -, onde se
encontra Terêncio, nosso amigo; onde Cecílio, e Plauto, e Varro? Dize-me se estão cond
enados, e em qual círculo".
"Esses que mencionaste, e ainda Pérsio, eu e muitos outros acompanhamos o grande g
rego, o predileto das Musas, na estada no Limbo, cárcere cego. Freqüentemente tomamo
s por assunto temas do famoso monte das Camenas (o Parnaso). Eurípides está conosco,
e também Anacreonte, e Simônides, e Agatão, e muitos gregos que souberam com ramos de
louro ornar a fronte. E também heroínas, entre as que cantaste: Antígone, Deífile com A
rgia, e Ismênia, que a tristeza não abandona; vêem-se também (Isifile) a que mostrou a f
onte Langia, Tétis, a filha de Tirésias, e Deidamia em companhia de suas irmãs."
Calaram-se os poetas, atentos a olhar em torno, vencida que fora a trilha ascend
ente. Para trás estavam as primeiras quatro horas do dia, juntando-se a quinta ao
ardente carro solar, e no alto o acompanhando, quando o meu guia exclamou: "Pens
o que para a direita devemos caminhar, andando como de costume, até atingir o topo
". Com isso tomávamos por mestra a experiência, e confiadamente prosseguimos, depois
que de Estácio a aprovação nos veio.
À frente iam os poetas; eu, atrás, ouvindo-lhes o palestrar, que me ilustrava nos ar
canos da poesia. Foi esse prazeroso diálogo interrompido pelo encontro de uma árvore
em meio da estrada, carregada de pomos odorosos. Se os ramos do abeto vão decresc
endo, à medida que sobem, os desta árvore, ao contrário, descendo, diminuíam. Supusemos
que tal se dava para tolher qualquer subida. Do lado onde nosso caminho era impe
dido, cascateava da alta penedia linfa pura sobre a ramagem.
Os poetas apressavam-se para a árvore quando uma voz por entre a fronde gritou: "D
este manjar lamentareis a falta!" E logo ajuntou: "Maria mais se preocupava em q
ue houvesse a devida honra ao término das bodas que com seu próprio prazer; e por vós
ora responde. As antigas romanas contentavam-se em ter a boa água por bebida; e be
m andou Daniel ao desprezar manjares, ganhando em sabedoria. Os primitivos tempo
s - idade do ouro - fizeram que pela fome as bolotas fossem proclamadas delicios
as e a ardência da sede em néctar mudou a água ribeirinha. O Batista alimentou-se de m
el e de gafanhotos no deserto; e foi grandioso, segundo o Evangelho testemunha".
Canto XXIII
No sexto recinto, Dante e Virgílio testemunham a fome e a sede sofridas pelos gulo
sos, os quais se mostram esqueléticos. Dante encontra Forese Donati, seu amigo e c
onterrâneo.
Enquanto eu examinava os verdes ramos, o que para mim foi mais que um pai bradav
a: "Filho, aviemo-nos, é preciso dar melhor emprego ao tempo concedi do". Desviand
o o olhar da árvore, segui os poetas, em passo acelerado, atento ao que diziam, se
m me fatigar com o rápido caminhar. Eis que entre prantos ouvimos o salmo Domine l
abia mea cantado por tal modo que prazer e pena igualmente me causou. Pedi: "Int
eira-me, ó Pai, sobre as vozes que ouço!" E ele: "São almas, talvez, cumprindo o seu p
enar".
Assim como piedosos peregrinos, atentos só ao caminhar, encontrando gente estranha
, voltam-se para vê-la, mas logo aceleram o passo, assim em nossa direção avançava, mais
rápida que nós, turba de almas silentes, devotas. Olhos enegrecidos, encovados, fac
es magras e pálidas, a ponto de revelarem a forma óssea. Não creio que o próprio Erisitão
exibisse tal magreza quando totalmente carecido de alimentos. Eu pensava: "Eis a
gente que perdeu Jerusalém quando Maria do filho fez comida". Seus olhos pareciam
anéis sem pedra, e quem sabe ler no rosto humano a palavra omo naqueles rostos so
mente veria a letra eme (1).
* (1) Os místicos medievais diziam ter a capacidade de ler a palavra omo no rosto
das pessoas. Os olhos representariam as letras o e o nariz, mais as sobrancelhas
, o m. *
Não conhecendo o motivo que ali os prendia, jamais acreditaria que os alentasse ta
nto desejo de sentir o aroma de um fruto ou enxergar o cristal de uma fonte. Mar
avilhado, eu perguntava pela razão última que tal magreza produzira, quando, pondo e
m mim o fundo recesso de suas órbitas, uma das sombras me fitou, gritando: "A que
devo graça como esta?"
Quem seria, eu não alcançaria reconhecer por seu aspecto, mas a voz, sim, me deu ind
icação segura. Centelha de lembrança iluminou-me a memória e os demudados traços pude reco
mpor até identificar Forese. "Ah!, não ponhas reparo na sarna que me descolore a pel
e, nem no macilento aspecto de minhas carnes, mas dize-me a verdade a teu respei
to e sobre essas duas almas que te fazem escolta. Não permaneças calado, fala!"
Respondi: "Teu vulto, que chorei já morto, pena igual me dá vendo-o em tal estado. M
as, por Deus, enquanto passa o meu espanto, revela-me a pena que te faz sofrer,
pois costuma errar quando fala quem tem o pensamento posto em querer ouvir". E e
le a mim: "Por vontade divina, aquela água e aquela planta que viste há pouco em mim
produziram consumação tamanha. Esta turba que chorando canta, por haver-se em vida
entregado à gula, ora entre fome e sede recupera o santo estado. O aroma daqueles
pomos e o frescor daquela água espargida sobre a fronde em nós acendem insaciável dese
jo de comer e de beber. A cada volta que damos pelo círculo, reacende-se o ardor d
e nossa pena... eu chamo pena o que deveria apelidar indulto. Tal desejo, que no
s induz rumo da planta, tem a mesma origem daquele que fez dizer a Cristo Eli!,
no instante em que com seu sangue nos redimiu".
E eu a ele: "Forese, não se passaram ainda cinco anos desde o dia em que deixaste
o mundo por melhor vida. Se a possibilidade de pecar terminou antes de que chega
sse para ti a hora do arrependimento, como se explica que te encontres aqui? Na
verdade, eu te supunha no Antepurgatório, sítio onde a alma permanece por tempo igua
l àquele em que, na Terra, manteve-se apartada da lei divina".
Respondeu-me: "Foi Nela, minha esposa, quem, com seu incessante pranto e continu
ado rogo, levoume a expiar prontamente a pena, degustando as doces lágrimas do arr
ependimento. Assim, tendo em meu favor suas orações e suspiros, fui poupado ao sítio o
nde tanto se espera e a outros círculos destinado. Tanto a Deus é mais cara e mais d
ileta essa que é hoje minha viúva, e à qual muito amei em vida, quanto mais ela se esm
era em obras de piedade. Pois é certo que a Barbagia da Sardenha entre suas mulher
es mais pudor encontra do que a outra Barbagia onde a deixei. Ó irmão caríssimo, que e
speras que te diga mais? Prevejo tempo no futuro, futuro não distante em que, por
lei escrita, será proibido às desavergonhadas damas florentinas persistirem na ousad
ia de exibir os seios. As próprias mulheres pagãs ou sarracenas acaso necessitam de
disciplinas espirituais, ou de qualquer outro gênero, para andarem decentemente co
bertas? Mas se essas impudicas soubessem qual castigo o Céu lhes vai preparando, d
esde já, para uivarem de dor, teriam aberto as bocas. E se antevendo não cometo enga
no, tais tristezas serão provadas antes de que desponte a barba aos infantes que d
ormem em berço. Vamos, irmão, não mantenhas por mais tempo oculta a tua identidade. No
ta que não sou o único a esperar tal revelação, mas toda esta gente, maravilhada, observ
a o ponto onde teu corpo, obstruindo a luz, projeta sombra". Disse-lhe, pois: "S
e agora te aflorasse à mente quem foste, quem fui, quem fomos ambos na vida desreg
rada, provarias um sofrer ainda mais agudo. Da vida terrena me trouxe até aqui o q
ue me vai à frente, quando no Céu estava plena a irmã desse a quem observas". E isto d
izendo, mostrei-lhe o Sol. "Pelo profundo das trevas guiou-me entre os verdadeir
os mortos, quando ainda a carne mortal cobre-me os ossos. Vim, assistido por ele
, subindo os círculos desta montanha que em vós castiga os erros do mundo. Conforme
disse, acompanhar-me-á até o páramo onde de Beatriz eu veja o semblante e onde da comp
anhia deste guia serei privado. Virgílio se chama quem assim me guia." E indiquei-
o. "O outro é a alma cuja salvação inda há pouco abalou a encosta inteira. Vai, enfim, d
e vosso reino sendo libertado."
Canto XXIV
Forese Donati indica a Dante algumas das almas presentes ali (no sexto terraço), e
prevê o fim próximo de Corso Donati, seu irmão, chefe do partido negro de Florença. Exe
mplos de gula castigada são ainda ouvidos pelos poetas.
Conversando, íamos andando rapidamente, qual navio impelido por vento rijo. E as s
ombras, semelhando coisas mais do que mortas, exprimiam o espanto de me saberem
vivo ao verem-me com seus olhos sem brilho. Eu, porém, continuando a discorrer, ac
rescentei:
"Essa alma prefere retardar a subida a fim de conosco ir discreteando. Revela-me
, se sabes, onde está Picarda e se há quem tenha sido de nomeada ilustre entre as al
mas que curiosamente me observam." "Minha irmã, da qual não sei dizer se mais formos
a ou virtuosa, já no Paraíso recebeu a sua coroa." Isso disse por primeiro. E ajunto
u: "Aqui não conhecemos a proibição de nomear as pessoas, uma vez que o jejum tão longo
fundamente alterou as fisionomias. "Esta", e apontou com o dedo, "é a alma de Bona
giunta da Lucca e aquela que lhe está vizinha, desfeita mais do que as outras, nas
ceu em Tours, da Igreja foi supremo chefe e aqui vai purgando, em jejum sem fim,
a gula que cultivou pelas enguias de Bolsena condimentadas com vinho branco". M
uitos outros nomeou, um a um, e os nomeados todos pareciam contentes com o ser a
pontados. Não vi um só rosto conturbado. Notei, sim, devorados pela fome, a ranger e
m vão os dentes, Ubaldin dalla Pila e Bonifácio, que com seu báculo regeu bastante gen
te. Vi Marchese di Forli, que, largo tempo de sua vida havendo dedicado ao vinho
, jamais confessou aplacada a enorme sede. Mas, segundo procede o que observa a
todos e por um se decide, inclinei-me para aquele de Lucca, o qual, a meu ver, m
aior interesse por mim manifestara. Ele murmurava a palavra "Gentucca", ou outra
mal distintamente formulada, com a boca onde mais agudo sentia o castigo de des
ejar e não poder comer. Disse-lhe: "Ó alma, que tão manifestamente desejas falar comig
o. Faz com que te entenda. E tu e eu, falando, nos satisfaremos".
Começou dizendo: "Mulher nasceu e não tem marido ainda, por cuja causa hás de dizer be
m da minha cidade, embora outros dela falem mal. Com essa profecia hás de corrigir
o erro cometido ao supor que sem nexo eu murmurava. Deste fato o futuro te há de
recordar. Ora, dize-me se estou diante do autor da nova lírica que principia com e
ste verso: Mulheres, que o amor haveis posto em mente"'.
Respondi: "Realmente versejo assim: segundo inspira o amor, em meu peito o sinto
e o que me diz vou escrevendo". E ele: "Agora, ó irmão, entendo dificuldade poética e
ncontrada por Notário, por Guittone e por mim, deixando-nos aquém do entendimento do
doce e novo estilo. Compreendo que vossas penas seguem de perto o amor - inspir
ador potente -, coisa que com as nossas não sucedeu. E quem desejar com critério e p
rofundidade ajuizar as diferenças entre a velha e a nova lírica, nenhuma diferença enc
ontrará maior do que esta". Isso disse e, contente de o haver dito, calou-se.
Quais aves que pelo inverno buscam o abrigo do cálido Nilo, umas voando em bandos,
outras em fileiras, assim as almas reunidas, ao nosso redor, voltando os rostos
, apressaram os passos, tornadas mais velozes pela magreza e pela fome. E qual o
homem de quem as forças já fugiram e na corrida diminui o ritmo, carecido de descan
so, enquanto os companheiros além se afastam, Forese, que pressa não pusera nos pass
os lentos, deixou correr a turba santa e perguntou: "Quando hei de ver-te outra
vez?"
Tornei: "Não sei quanto tenho ainda de vida. Mas não será tão longo esse tempo que o não a
brevie o meu desejo de aqui volver, pois lá, no país onde nasci, dia a dia há menos vi
rtude e à triste ruína ele parece voltado".
Retorquiu: "Aquele que disso tem a maior culpa vejo ser arrastado à cauda de um ca
valo até o vale onde não conhecerá clemência. Sempre mais veloz corre a besta, com os ca
scos pisoteando e tornando em pasta vil o humano corpo. Não percorrerão grande camin
ho esses astros", isso disse de olhos voltados para o céu, "antes de que a realida
de torne claro ao teu entendimento aquilo que em minhas palavras tenha ficado ob
scuro. Ora, fica em paz, que eu me distancio, pois aqui o tempo é assaz precioso e
eu perco demasiado dele ao ir assim contigo, lado a lado".
Qual o paladino que galopando se dirige à arena a fim de ganhar as honras de ser o
primeiro a apresentar-se para o combate, mas com rapidez inda maior, de nós Fores
e se afastou. Continuei ao lado de ambos aqueles espíritos, pelo mundo proclamados
sumamente grandes. Quando Forese já se encontrava tão distanciado que mal podia min
ha vista distingui-lo - retendo embora a mente as suas palavras -, eis que meus
olhos voltaram a fixar outra árvore com ramos verdejantes, pejados de pomos. Em br
ados, mãos alçadas, multidão de almas para ela se dirigia. A turba semelhava grupo de
meninos ingenuamente furiosos ao constatarem que não lhes dava atenção aquele a quem a
pelavam. Antes, este, para mais os irritar, acenava-lhes com o objeto desejado e
negado.
Afasta-se afinal a turba desiludida e nos acercamos da árvore indiferente a tantos
rogos e tantas lágrimas. "Passai ao largo sem vos aproximar! A árvore de que Eva to
mou o fruto está lá, mais acima, embora aquela seja a origem desta!", isso uma voz n
os fez ouvir vinda dentre os ramos. Obedientes, Virgílio, Estácio e eu transpusemos
aquele passo rentes à penedia oposta à árvore. Ainda ouvimos dizer: "Lembrai-vos dos m
alditos filhos da Nuvem, homens e cavalos a um só tempo, por Teseu virilmente aniq
uilados(1), e aqueles que em beber tanto se empenharam que Gedeão os recusou por c
ompanheiros quando desceu a lutar no vale de Madiã".
Íamos costeando a margem do círculo, seguindo o clamor que a punição à gula provocava. Haví
mos avançado pela solitária estrada mais de mil passos, silenciosos, mergulhados em
muda contemplação. "Em que andais cogitando, vós três?", subitamente bradou uma voz e vi
-me sacudido pelo susto, qual ocorre com o novilho ou o poldro espantados.
* (1) Exemplo de gula castigada. Os centauros, filhos da Nuvem, embriagados, ten
taram raptar Hipodãmia, sendo mortos por Teseu. *
Levantei a cabeça para identificar quem falara e afirmo jamais se viu, em forja ou
fornalha, metal ou vidro assim ardente e rubro qual o anjo que vi, resplandecen
te, a acrescentar (2): "Se anelais a paz, este é o caminho. Mas para subir, aqui é f
orçoso dar volta". Deslumbrado, voltei o olhar para os meus guias, semelhando o ho
mem que deve ouvir instruções para seguir seu caminho. E qual a aura de maio, anunci
adora das auroras, esparge pelas brenhas doce aroma de ervas e de flores, chegou
-me pela frente, em meio a um bater de asas, brisa suave a trazer consigo odor c
eleste.
E ouvi: "Felizes os que a graça divina livrou dos estímulos da gula, e que só com o ne
cessário se contentam".
* (2) É o anjo da temperança, que monta guarda entre o sexto e o sétimo círculos, onde são
punidos os luxuriosos. *
Canto XXV
Enquanto os três poetas sobem pelo caminho que os conduziria ao sétimo - e derradeir
o - recinto, Estácio discorre acerca da geração do homem e da infusão da alma no corpo,
e explica como as sombras mantêm, depois da morte, a aparência humana, bem como sent
imentos e sensações humanos.
Era preciso que subíssemos mais velozmente, pois o Sol deixara o meridiano local p
ara a constelação do Touro, e a noite cedia o passo às estrelas do Escorpião. Qual viand
ante que não refreia o passo, nem se distrai, mas segue avante, atento à necessidade
que o impele, assim entramos pela via estreita, angusta a ponto de obrigar a qu
e seguíssemos um atrás do outro (1). O filhote da cegonha, abrindo as asas na tentat
iva de voar, receando deixar o ninho, baixa-as cauteloso; assim crescia-me e log
o arrefecia a ânsia de perguntar. Meu bom mestre, por mais rápido fosse o caminhar,
não deixou de perceber minha ansiedade e disse:
"Dispara de vez a seta da interrogação, pois ao ponto máximo tens tendido o arco do de
sejo." Tranqüilizado, inquiri: "Como pode ser que emagreça quem já não necessita de alim
ento?" Tornou Virgílio: "Se recordares como se consumiu Meleagro ao morrer com a q
ueima do tição, não será difícil entender este aparente prodígio (2).
* (1) Pela posição dada às estrelas, no hemisfério do Purgatório deveriam ser duas horas d
a tarde, e no hemisfério oposto, duas horas da madrugada. (2) Quando Meleagro - pe
rsonagem mitológico - nasceu, as Parcas lançaram uma acha ao fogo, proclamando que o
tempo de vida de Meleagro seria igual ao da madeira. A mãe salvou o tição e o esconde
u. Mais tarde, tomada de ira contra o filho, lançou o tição à lareira e Meleagro extingu
iu-se com ele. *
Igualmente fácil te será o entendimento, se lembrares como no espelho se move teu ro
sto conforme o próprio rosto movimentas. Mas a fim de que melhor penetres no arcan
o que anseias conhecer, eis Estácio, a quem rogo esclareça tuas dúvidas".
Disse o poeta Estácio: "Se me atrevo a desvelar do Céu este mistério, estando tu prese
nte, ó mestre, é porque não te posso dizer não'. Filho, se minhas pa lavras gravares na
mente, conhecerás o porquê do prodígio que te maravilha. O sangue puro não absorvido pel
as veias, mas deixado como vianda intocada sobre a mesa, ao chegar ao coração recebe
divinal virtude de compor os membros do corpo, assim como o sangue venal possui
a virtude de nutrir os órgãos. Depois, digerido, desce até aquele canal viril, cujo n
ome, por decoro, é melhor calar, e por onde vai misturar-se a outro sangue em natu
ral repositório. Este recebe aquele e um novo ser vai gerando, segundo a perfeição do
sítio onde se encontram. Pronto essa comunhão principia a ter essência, coagulando pri
meiro e depois produzindo vida pela evolução do germe primitivo. Em alma, pois, se t
ransforma a força ativa. Tal ocorre com as plantas, das quais no entanto difere, p
ois enquanto à alma é dado progredir, é a planta criada em apogeu. Crescendo em vida,
semelhando fungo marinho, o novo ser, movendo-se e sentindo, vai formando órgãos par
a os sentidos de que é dotado. Ora nele se contrai, meu filho, ora se distende a v
irtude vinda do coração que o gerou e em todos os membros diferentemente manifesta.
Falta ainda saberes como é que tal criatura recebe o dom do raciocínio, ponto este e
m que errou mesmo homem bem mais sábio do que tu(3); em sua doutrina ensinou ser o
raciocínio separado da alma, por não ver no corpo humano órgão que a ambos comportasse.
Agora, abre tua mente a esta verdade: já no feto está perfeito o cérebro. Deus, o Pri
meiro Motor, comprazendo-se com tal primor da natureza, lhe instila alma plena d
as virtudes naturais, as quais virtudes reúnem e congregam - formando um todo indi
viso - o que de ativo e bom houver no feto. E este vive, sente, pensa. E para qu
e bem avalies tal maravilha, medita em outra: o Sol, por seu calor unindo-se ao
sumo da uva, transforma-se em vinho. Quando Láquesis já não tem linho para fiar, a alm
a deixa a carne, levando consigo quanto possua em virtudes humanas e divinas. Na
mudez do jazigo ficam as potências corpóreas, enquanto as divinas - memória, vontade
e entendimento - mais alento cobram. De imediato, seguindo movimento natural, pr
ecipita-se para uma ou outra margem das eternas plagas, para ali saber de seu et
ernal destino. Chegando ao lugar a que foi destinada, aquela força que lhe deu ori
gem volta a envolvê-la e exercer o mesmo influxo que cumprira em vida. O ar, quand
o prenhe de unidade, reflete e decompõe um certo raio, ficando, em conseqüência, por m
uitas e belas cores adornado. Por igual modo o ambiente assume a conformação que lhe
empresta a alma, fazendo que esta em seu centro permaneça.
* (3) Referência a Averróis. *
E semelhantemente ao fogo que acompanha a labareda, assim cada alma segue aquela
nova forma. Essa espécie de visibilidade é chamada sombra e, uma vez formada, compõe
sentidos, entre eles o da visão. Por essa razão podemos falar e rir, chorar e suspir
ar, o que já deves ter notado por aqui. Quando sobre ela atuam desejos e afetos, i
sso altera a conformação da sombra - o que explica a magreza que observaste em nós".
Tendo chegado ao recinto final do círculo, voltamo-nos para a direita, solicitados
por outros cuidados. Da penedia brotavam chamas, enquanto da ou tra banda um ve
nto favorável rebatia as labaredas, deixando livre estreito vau. Forçoso se fez segu
irmos de um em um pela passagem mínima, de tal forma que de um lado eu receava o f
ogo e do outro temia precipitar-me. Meu guia alertou-me: "Neste local, aquele qu
e não deseja dar um passo perigoso convém aos olhos pôr bom freio".
Summae Deus clementiae - ouvimos cantar entre o grande incêndio, com tal ardor que
me deu vontade de para ali voltar os olhos. Vi espíritos caminhando por entre as
chamas, com o qual espetáculo minha atenção foi dividida, alternando olhares entre os
passos deles e os meus. Terminado o hino, aquelas almas gritaram: Virum non cogn
osco!; e logo, em voz baixa, ao cântico retornavam. Findo este, em coro bradavam:
"Diana corre ao bosque, a expulsar Hélice por haver provado o filtro do amor". Rec
omeçavam a cantar, e, logo mais, esposas e maridos enalteciam a fidelidade conjuga
l imposta pela virtude e pelo juramento matrimonial. Acredito que tal modo de ca
ntar e de gritar continuará enquanto houver almas envolvidas pelas chamas: pois só e
sse purgar de fogo, esse clamar constante são purificadores.
Canto XXVI
Dante, acompanhado de Virgílio e de Estácio, observa mais atentamente o grupo que ma
rchava na mesma direção que eles, mas em meio às chamas. Vê aproximar-se outro grupo, em
sentido contrário. o primeiro grupo era de luxuriosos de acordo com a natureza; o
segundo, de lascivos contra a natureza - conforme explicou o poeta Guido Guiniz
elli.
Íamos pela borda do precipício, um depois do outro - lentamente -, e o meu bom mestr
e repetidamente alertava: "Atenção! Caminha com cuidado!" o Sol chegava-me pela dire
ita, já mudando no céu o luminoso azul em alvura reluzente.
Minha sombra fazia as chamas parecerem mais roxeadas, e as almas que passavam, d
ando acordo desse fato, denunciavam sua estupefação. E este foi o motivo para que de
mim principiassem a falar entre si, clamando: "É um corpo de verdade!" E logo em
minha direção avançaram o quanto lhes foi possível, sem deixar os limites das labaredas
em que ardiam.
"Ó tu que segues depois de outros, não por preguiça, mas por respeito evidente, fala c
omigo que em fogo e sede estou ardendo. Não sou o único a desejar ouvir-te; todos qu
antos vês por tua resposta anelam, mais que etíope ou índio pela água. Explica-nos como
pode o teu corpo constituir-se em muro que se opõe à luz do Sol, como se ainda não tiv
esse sido colhido pela rede da morte." Assim me falou uma daquelas sombras. E qu
em sou, em resposta, lhe teria dito, se interesse bem diverso não me houvesse atraíd
o a atenção. Pelo caminho incendido avançava multidão ao encontro daquela. Sustive a fal
a, mirando a novidade. E vi, de parte a parte, sofregamente, alma dirigirse a ou
tra alma, oscularem-se e logo se afastarem, como que do breve encontro satisfeit
as. Assim é que se encontram e afagam, em seus carreiros, as formigas, a intercamb
iar informações da estrada ou da rapina. Separando-se após o cordial encontro, antes d
e retomar da jornada o ritmo, ambas as coortes se afadigam em gritar, uma à outra:
"Sodoma e Gomorra!" e "Pasífae entrou na vaca para que o touro lhe saciasse a luxúr
ia!" (1) Quais grous a repartirem o bando, para a Líbia esta parte encaminhando-se
, para os montes Rifeus outra facção se dirigindo; uma para o lado do Sol, outra par
a o lado do gelo distanciaram-se as turbas, de volta a seus cânticos e gritos.
Aquelas sombras, porém, que já antes me haviam interrogado, aproximaram-se outra vez
, demonstrando no aspecto o desejo de me ouvir. E eu, que duas vezes lhes havia
notado o propósito, comecei por dizer:
"Ó sombras, que tendes como certo, cedo ou tarde, alcançar a bem-aventurança: não morri.
Comigo trago o corpo e todo seu sangue e suas articulações naturais. Aqui transito
em busca de luz para o entendimento, pois excelsa dama obteve do Céu a graça de que,
vivo, por esta trilha eu ascenda à Maior Altura. Faço votos de que breve sejais rec
ebidos no Céu que de puro amor é cheio.
* (1) O primeiro exemplo de luxúria punida foi Sodoma e Gomorra. Pasífae, esposa do
rei de Creta que, transida pela luxúria, quis unir-se a um touro; meteu-se então em
uma capa de madeira. O Minotauro teria nascido dessa união. *
Dizei-me, para que melhor eu possa descrever, quem sois e que turba é aquela vinda
ao vosso encontro".
A surpresa que intimida o rude, ignaro montanhês, quando pela primeira vez adentra
uma cidade, não é maior que o pasmo então sofrido por aquelas almas. Mas depressa del
e se libertaram, pois o espanto pouco dura em peito altivo. Respondeu, o que por
primeiro me havia interrogado:
"Ditoso és, pois de nossa experiência podes colher a lição de viver melhor para bem morr
er! Os que marcham em sentido contrário ao nosso purgam o pecado de haver César de R
ainha (2). Eis por que, ao se apartar, vão-se acusando aos gritos de Sodoma!', acr
escentando o pejo à punição do fogo. Nosso crime foi o do hermafrodito, ao transgredir
o normal nas relações amorosas, copiando, quais brutos, o apetite das bestas. Para
aumentar nossa vergonha e castigo, na ocasião em que os outros gritam, bradamos o
nome daquela mulher que fingiu ser vaca para saciar seus desejos maus. Ora, sabe
s quais foram os nossos pecados, os crimes de que fomos réus. Quanto aos nomes que
desejas conhecer, não os sei, nem tempo resta para perguntar aos outros. O meu de
bom grado to revelo: sou Guido Guinizelli (3) e por me haver arrependido a temp
o é que expio apenas o lustral castigo".
* (2) Júlio César, segundo Suetõnio, mantivera relações carnais com o rei oriental Nicomed
es. A fim de aborrecê-lo, seus soldados, após a vitória contra os galos, saudaram-no a
os gritos de "Viva a Rainha!"
(3) Guido Guinizelli, poeta bolonhês, deu início ao chamado dolce stil nuovo, que fl
oresceu na Toscana (1235-76). *
Como os filhos do infeliz Licurgo correndo apressados ao encontro da mãe, revendo-
a, assim me atirei para aquela sombra, cuidando, no entanto, não cometer excesso,
pois o ardor do fogo me impedia amplexos, tal o impacto em mim causado por aquel
e nome, inspiração para meus versos e para os de muitos outros poetas que em doces r
imas cantaram amores. Calado, sem procurar ouvir ou falar, longamente o contempl
ei, em poético enlevo. Pus-me depois a seu dispor, proferindo juramento".
Ele disse: "Tão fundamente gravaram-se em mim os teus protestos de filial estima,
que não bastaria, para apagá-los ou deslustrá-los, o furor do Letes. Mas se tuas expre
ssivas palavras continham sinceridade, faz-me conhecer a causa de tamanha afeição, a
nunciada no falar e no olhar". E eu a ele: "Foram os teus maviosos versos, os qu
ais hão de ser amados enquanto nosso novo idioma existir".
Tornou-me: "Irmão, este que te indico", e com o dedo indicou-me a sombra ao lado,
"foi melhor artista do que eu no versejar em língua italiana. Nos versos, nas nove
las, superou a todos: só os tolos atreveram-se a dizer ter sido pelo Limosino ultr
apassado. A simples vozes e não a fatos esses inclinaram o juízo, formando conceito
prejudicado, sem à razão ou à arte fazer justiça. Assim outrora sucedeu com Guittone, de
voz em voz exaltado até que a verdade reclamou seu lugar, o mesmo sucedendo com o
utros. Mas uma vez que alcançaste o privilégio de entrar nesse grande claustro do qu
al é abade o próprio Cristo, reza por mim um padre-nosso piedoso, mas só até aquele pont
o da oração que se refira a nós". (4)
* (4) Ou seja, "Não nos deixeis cair em tentação"de nada valeria às almas que se no Purg
atório penavam. *
Depois, para dar lugar ao espírito que o ladeava, sumiu em meio ao fogo, qual peix
e a afundar na água. Acerquei-me do indicado e proclamei que ao seu nome, em meu a
feto, estava reservado lugar de destaque. A resposta ele deu em fluente provençal:
"Tão grato é para mim o teu rogo que, ouvindo-o, me escusar não poderia nem haveria d
e querer. Arnaldo sou e chorando e cantando vou purgando os tristes pecados meus
. O dia feliz da salvação alegremente espero. Agora quero pedir, em nome da suma vir
tude que ao alto te vai erguer, lembres no mundo o meu tormento". Depois, no mei
o do fogo purificador, desapareceu.
Canto XXVII
Os três poetas seguem pelo sétimo recinto. Na metade da subida do monte, num caminho
íngreme, são surpreendidos pela noite. Alcançam pela manhã o Paraíso; Virgílio diz a Dante
que siga viagem sozinho dali em diante.
O Sol brilhava no ponto em que seus primeiros raios fulgem onde o Criador verteu
Seu sangue, e a Libra esplendia a pleno sobre o Ebro, lançando luz ardente sobre
o Ganges (1). Declinara, e muito, o seu luzir quando eis, ledo a nos defrontar,
surge um anjo de Deus. Postava-se no caminho, para além das chamas, entoando com v
oz mais clara do que possa ser a voz humana Beati mundo corde, acrescentando: "P
or aqui, ó almas santas, não se avança sem antes cruzar o fogo purificador. Ao fazê-lo,
não sejais surdos às vozes que além estão cantando". De perto ouvindo a sua voz poderosa
, tremi e ganhei aquela cor que ostentam os danados mergulhados em fossas tenebr
osas. Estendi as mãos como se elas pudessem proteger-me; olhos fixos no flamejar,
recordei-me de quantos corpos já vira em meio aos tormentos das chamas.
* (1) Indicação das horas. em Jerusalém, centro do mundo, o sol raiava; meianoite na E
spanha, extremo ocidental; meio-dia no Ganges, extremo oriental, e no Purgatório o
pôr-do-sol. *
Os dois poetas voltaram-se para mim; Virgílio disse: "Filho querido, aqui pode hav
er sofrimento, mas não morte. Recorda-te! Se até sobre o dorso de Gerião te conduzi a
salvo, estando agora mais próximos de Deus, maior é meu empenho em bem guiar-te. Tem
como certo que ainda quando por mil anos no centro desse chamejar permanecesses
, nem a um só dos teus cabelos seria feito dano. Mas se duvidas que a verdade eu d
iga, por ti mesmo intenta a prova, avançando para o fogo e à ação das chamas expondo a fím
bria das tuas roupas. Põe de lado temor sem fundamento, e conosco avança!"
Eu acreditava, porém não me movia. Vendo-me estático, obstinado e temeroso, ele insist
iu: "Atente, filho, entre Beatriz e ti existe este único obstáculo!" Assim como o mo
ribundo Píramo descerrou os olhos ao ouvir de Tisbe o chamado quando a branca amor
a se tornou vermelha, fixei meu guia ao som do nome que permanentemente em meu ínt
imo ecoa (2). Meneando a fronte, sorrindo qual homem que convenceu ingênuo infante
ao acenar-lhe com formoso pomo, ajuntou: "Como assim? Ainda queres que aqui fiq
uemos?"
À minha frente, então, penetrou as chamas, acenando a Estácio para que o seguisse, o q
ual, até ali, de nós ambos viera ao meio. Tão logo por minha vez penetrei o fogo, veio
-me a vontade de, para encontrar refrigério, atirar-me em vidro fervente, tamanho
o calor provado. Procurando proporcionar-me alento, meu bom guia falava-me de Be
atriz: "Já me parece ver-lhe os olhos!"
* (2) Píramo e Tisbe iam se encontrar debaixo da copa de uma amoreira. Chegando pr
imeiro, Tisbe fugiu de um leão; o véu que na fuga deixara cair foi estraçalhado pela f
era, que o manchou com o sangue de presa recente. Chegando em seguida, Píramo depa
rou com o trapo manchado de vermelho. Acreditando que a namorada estivesse morta
, suicidou-se. Tisbe retornou ao lugar, chamou pelo amado, viu-o morto e matou-s
e também. Dante preferiu a versão, corrente na sua época, de que das amoras saíra o soco
que manchara o véu. *
Atraiu-nos o canto de voz peregrina, e por aqueles sons guiando os nossos passos
e transpondo o fogo, atingimos o poial. Venite, benedicti Patris mei!, dizia
o canto em meio de fulgente luz. Mas tão forte era tal fulgir que, deslumbrado, não
consegui fitá-lo. Prosseguiu a voz: "Vai-se o dia, aproxima-se a noite. Não vos demo
reis; avançai a passo ligeiro antes que o Ocidente mergulhe em trevas".
O caminho subia entre escarpas, de modo que os frouxos raios do Sol à minha frente
eram cortados. Tínhamos subido uns poucos degraus quando, pelas inclinadas sombra
s, deduzimos, meus sábios guias e eu, que já nenhuma luz nos vinha do Sol. Aproveita
mos, enquanto de trevas não se cobriu a esfera inteira, para cada qual fazer de um
degrau um leito, pois a lei que proibia a escalada durante a noite nos desanima
va.
As cabras agilíssimas que, rápidas, velozes, galgam penhascos à procura de pasto, logo
depois de saciadas são apenas mansidão e brandura no rumi nar demorado, à sombra sile
nciosa. Vigia-as o pastor diligente, apoiado em cajado que é também o arrimo delas.
De seu lado o zagal que nos plainos pernoita vigilante, junto de seu gado, perma
nece atento contra assaltos de feras noturnas. Assim estávamos os três: eu como se f
osse uma cabra, eles como os pastores - um ao lado do outro, aconchegados sobre
a fria rocha.
No alto, uma estreita abertura mostrava fulgores de estrelas, maiores, mais bril
hantes do que costumeiramente eu vira. E mais nada lobrigava do mundo ao redor.
Mergulhando em cismar e em vigília, fui tomado pelo sono, por esse tipo de sono qu
e muitas vezes é anúncio do futuro.
Na hora em que Vênus, do Oriente - salvo engano - espalhava seus raios sobre o mon
te Citeréia, que de amor parece sempre estar ardendo, formosa donzela julguei enxe
rgar, a qual, passeando por ameno vergel a colher flores, cantarolava: "Saibam o
s que por meu nome perguntarem que sou Lia, e com minhas mãos atentas vou tecendo
uma grinalda. Quero, com ela, ver-me no espelho mais formosa. Minha irmã é Raquel, a
que jamais repousa o espelho, sentada diante dele o dia inteiro. Seus olhos não s
e cansa de olhar, como eu de enfeitar-me não me fadigo; enquanto eu me agrado com
movimentos, ela satisfaz-se na contemplação!"
Já os albores matutinos se desdobravam no céu com as luzes que dão ânimo ao peregrino. F
ugia a treva ante a luz do amanhecer, e, com as trevas, o meu dormir. Ergui-me,
encontrando já de pé os mestres. "O doce pomo que pelos angustiados mortais é procurad
o em tantas frondes hoje saciará a tua fome!", anunciou Virgílio. E jamais em minha
vida desfrutei de prazer maior, ao ouvir aquelas palavras. Tanto em mim crescia
o desejo de atingir o cimo que, a cada passo, suspeitava estivesse sendo por asa
s ajudado na subida. Quando a comprida escalada terminou e os pés firmamos no último
degrau, Virgílio pôs em mim o olhar e disse: "Viste, filho, o fogo eterno e o fogo
temporâneo e chegaste ao ponto além do qual eu nada posso mais. Até aqui, com engenho
e arte guiei teus passos. Toma agora por guia o teu querer. Superaste as veredas
íngremes, perigosas. Contempla o Sol que brilha à tua frente, e as ervas, as flores
, os arbustos que sem trabalhos este solo faz viçar. Antes que possas fitar os olh
os bem-aventurados que por virtude do seu prantear a ti me enviaram, podes repou
sar ou passear pelo campo. Não esperes mais de mim - nem voz nem aceno; guia-te pe
lo teu arbítrio livre, reto e bom. Consagro-te senhor de ti mesmo, com mitra e cor
oa."
Canto XXVIII
Dante caminha pela floresta do Paraíso; aproxima-se de um pequeno rio, o qual lhe
impede o avanço. Na margem oposta, uma dama - Matelda - passa a falar a Dante.
Na ânsia de vagar pela belíssima floresta virgem, que a luz do novo dia descerrava a
o meu olhar, apressei-me em deixar o patamar da encosta, adentrando a campina, a
qual exalava aroma delicioso. Uma doce brisa, que soprava constante e brandamen
te, bafejava-me a fronte como um grato afago e agitava as frondes da parte onde
o santo monte deitava já as primeiras sombras.
Não ficavam as frondes, porém, afastadas da sua posição natural a ponto de perturbar na
ramada os pássaros a entoarem cantares com que saudavam a alvorada. Antes parecia
que a folhagem, a murmurar cicios, lhes acompanhava o canto. É por modo igual que às
margens do Chiassi as aves se acolhem aos ramos do pinhal quando Éolo deixa livre
o caminho para o Siroco. Meu caminhar vagaroso já me havia levado tanto para dent
ro da antiga selva que não mais podia ver o lugar de onde partira. Eis que ribeiro
vem tolher-me os passos, a deslizar para a esquerda, afagando com débeis ondas a
erva às suas margens debruçadas. Tão pura era tal linfa que a seu confronto turvas par
eceriam as mais límpidas águas do mundo. Essa transparência extrema ela mantém fluindo e
mbora em valezinho umbroso, onde jamais chega raio de sol ou luz de lua.
Fazendo alto, só com o olhar cruzei o rio, querendo bem apreciar a beleza dos vari
ados ramos que entrevia além, como se ali eternamente verdejasse o mês de maio. E ap
areceu-me, como costumam aparecer os prodígios que, nossa atenção requisitando, de out
ra qualquer preocupação no-la retiram, dama divinal, solitária a cantar, colhendo as m
ais formosas dentre as flores que salpicavam de beleza o seu caminho (1).
Saudei-a: "Bela dama, agraciada com favor divino, se pelo teu semblante posso ac
ertadamente julgar os ardores que te animam! Se avançares até a margem do ribeiro, e
u poderia entender as palavras do teu canto. Neste lugar, assim formosa, fazes l
embrar Prosérpina arrebatada à mãe, ao perder ela também a primavera".
Com os pés resvalando o solo e curvando as débeis plantas, os seus passos mais parec
iam graciosos movimentos de dançarina. Foi assim que entre flores vermelhas e amar
elas a mim se encaminhou aquela graça virginal, os olhos puros voltados para a ter
ra. Atendendo ao meu pedido, tanto se aproximou que, deliciado, pude enfim compr
eender o sentido dos versos que seguia dizendo. Chegada ao ponto em que a fina e
rva era banhada pela água cristalina, concedeume a graça de nos meus olhos descansar
os seus. Não creio, sequer, dos próprios olhos de Vênus tanta luz fosse vertida ao fe
ri-la o seu filho, por engano.
Sobre a margem oposta ela sorria, entretecendo algumas daquelas flores prodigame
nte espargidas em solo tão feraz.
* (1) É Matelda, citada nominalmente no Canto XXXIII. *
Três passos apenas o rio nos fazia distantes, mas, porque não me permitiu que eu par
a além cruzasse, mereceu-me ódio maior do que o votado por Leandro ao Helesponto, qu
e o separava de sua amante (Heros), ao nadar entre Abidos e Sesto; mas que deixo
u passar a Xerxes em episódio ainda exemplar para prevenir o orgulho humano (2).
Ela disse: "És novo aqui, razão suficiente para estranhares o meu cantar na região par
adisíaca escolhida para berço da espécie humana. Se julgares que nisso não há consenso div
ino, basta lembrar o salmo Delectasti (3) para que a dúvida seja esclarecida. Tu q
ue aos outros te adiantaste e a mim rogaste ajuda, se algo mais queres conhecer,
pergunta, pois estou pronta a responder".
"Esta água", disse-lhe, "e o som desta floresta opõem-se, com seu movimento e rumor,
à lição que a este propósito recebi há pouco." E ela: "Como tal coisa pode suceder, dir-t
e-ei, e bem assim a causa de tua surpresa, dissipando, com isso, as nuvens que o
bscurecem o teu espírito. O Sumo Bem, que a Si próprio basta, criou o homem apto ao
bem e por arras lhe concedeu este lugar de paz eterna. Por sua culpa, o homem aq
ui pouco demorou, transformando a vida entre prazeres num viver de desgostos. Pa
ra que os maus efeitos dos eflúvios resultantes das perturbações das águas e da terra, a
companhadas de calor violento, ao homem não causassem danos é que da porta do Purgatór
io até o alto esta montanha não padece perturbações atmosféricas. O ar gira sempre em círcu
o, seguindo impulso recebido de seu Primeiro Motor - Deus.
* (2) o Helesponto é hoje o Estreito de Dardanelos. Na mitologia, separava Leandro
de sua amada Heros, pois uma habitava Abidos e o outro Sesto. Helesponto, porém,
deixou passar livremente o rei persa Xerxes, embora assistisse ao retorno deste úl
timo, derrotado.
(3) Salmo 91, 4. *
Neste alteroso cimo, a todo ar exposta, sensível a qualquer movimento dele, a flor
esta repercute o perpassar da brisa, fazendo com que as plantas destilem os seus
perfumes para que o vento a toda parte os conduza. Sendo a terra fértil, por si o
u por obra do Céu concebe e produz plantas de variado gênero e virtudes. Não deveria,
pois, ser causa de estupor o verificares que tantos lenhos brotam e vicejam sem
proceder de comuns sementes. O santo solo em que te encontras contém em si germes
de todas as espécies e de espécies que os humanos jamais viram. Essa água que aí vês não te
origem em nascentes alimentadas por gelo liquefeito, como sucede aos rios cujos
leitos ora intumescem ora ressecam, mas sim procede de fonte inexaurível. E esta,
na vontade divina, busca nascimento para dois fluxos que verte. De uma parte fl
ui levando a virtude de apagar a lembrança do passado; de outra, assegura a memória
eterna das boas ações. O primeiro veio se chama Eunoé, o outro, Letes; mas somente pod
e ser provado o efeito de um depois de haver do outro provado a linfa, a qual, e
m matéria de sabor, a todas sobrepuja. Não deveria seguir falando, pois respondi suf
icientemente ao que desejavas. Contudo, desejo completar o que iniciei, supondo
que por espontânea não te desagrade a informação que mais do que o respondido te pode es
clarecer. Os poetas que cantaram a idade de ouro e o seu estado feliz, situando
no Parnaso tão radiante lugar, certamente vislumbravam um lugar como este. Aqui a
raiz da espécie humana viveu em feliz inocência; aqui a primavera é eterna, eternos os
frutos e esta água é o néctar ao qual os poetas se referiam".
Virei-me para onde Estácio e Virgílio se achavam. O sorriso em seus olhos me revelou
haverem escutado quanto fora dito. Voltei então o rosto para a formosa dama.
Canto XXIX
Caminhando pelas margens do Letes vão Matelda e Dante. Uma forte luz ilumina a flo
resta; e parecia que tal luz ia na direção deles. O poeta então vê sete candelabros aces
os, juntamente com um magnífico préstito.
Como se estivesse enamorada, assim se pôs a cantar: Beati quorum tecta sunt peccat
a! (1) E como se integrasse um bando de ninfas que pelo umbroso bosque perambula
ssem, algumas procurando o sol, outras evitando-o, pôs-se a caminhar ao longo da m
argem. Quanto a mim, resolvi segui-la. Não havíamos dado cem passos quando as margen
s estenderam-se paralelamente e assim me vi caminhando rumo do levante. Pouco ha
víamos avançado neste rumo quando, voltando-se para mim, disse ela: "Irmão, observa e
ouve!"
Refulgiu por toda a floresta luz tão forte que julguei tratar-se de relâmpago. Mas f
ulgor tamanho não perdura depois do relâmpago e aquele aumentava, mais e mais esplen
dente, e eu me questionava: "Que prodígio é este?"
* (1) Salmo 31. *
Sons dulcíssimos fluíam pelo ar tornado luminoso, com o que, ardendo em zelo, observ
ando quão prontamente céus e terras obedeciam a Deus, eu reprovava mentalmente o imp
rudente proceder de Eva, pois dava-me conta de que ela, origem da vida humana, v
iolara preceitos divinos, rompendo o véu da simples obediência. Houvesse permanecido
fiel, e eu, mais cedo e por mais tempo, desfrutaria aquela divina morada e suas
indescritíveis delícias.
Enquanto divagava, entre primícias de prazeres eternos, desejoso de conhecer outra
s letícias, eis que à nossa frente, sob claridade intensa, o ar tornava-se brilhante
sobre as ramas, ao tempo em que a melodia ganhava suavidade igual a doce cantar
. Ó Musas - se a fome, o frio e as vigílias que por vós padeci merecem prêmio, é chegado o
momento de vos pedir proteção. Ora convém que (a fonte) Hipocrene verse sobre mim as
suas águas inspiradoras e que Urânia com o seu coro inspire-me a narrar em versos os
prodígios que me foram dados ver.
Acreditava enxergar, não muito longe dali, sete árvores de ouro. Era aparência a que a
distância dava aspecto de verdade, pois assim que delas me acerquei a evidência pro
vou-me o quanto a parecença induz a erros, emprestando às coisas identidade falsa. A
faculdade que permite à razão corrigir os enganos fezme saber que se tratava de can
delabros e que os versos da melodia eram hosanas (2). Mais do que no céu, pela noi
te em meio, brilha a luz da Lua quando plenamente cheia, assim refulgia cada qua
l dos candelabros. Tomado de admiração, voltei-me para o sábio Virgílio. Porém, ele encaro
u-me com estupor igual ao meu. De novo fixei o lampadário que não imobiliza, antes v
ai prosseguindo, suave, lento, quais pudicas noivas a caminho do himeneu.
* (2) No Apocalipse, São João vê sete candelabros de ouro, símbolos dos sete sacramentos
. *
Então me disse a dama: "Por que apenas com essas vivas luzes te deixas encantar, s
em reparar naquilo que vem em seguida a elas?" Tratava-se de gente vestida de co
r bem alva, tendo os sete luzeiros por guia, mostrando candor que igual na Terra
jamais vi. A água à esquerda refletia o brilho das luzes, um brilho tão puro que repe
tia, qual se fora espelho, a minha imagem.
Quando tanto me aproximei dos candelabros que entre eles e eu só havia, então, o rio
, fiz alto, para melhor observar. Vi-os desfilar, deixando atrás de si
o ar rasgado em faixas coloridas, pela sua fulgurante luz, qual ocorre com o traço
de pincéis; de tal modo que o ar tingia-se com as sete cores que tingem o cinto d
e Délia e figuram no arco do Sol. Tanto se estendiam tais estandartes que eu os pe
rdia de vista, havendo entre um e outro dez passos aproximadamente. Sob dossel tão
belo seguiam, emparelhados, vinte e quatro anciãos, cingidas as frontes por bem a
lvos lírios (3). Cantavam, juntos e compassados: "Bendita sejas entre as filhas de
Adão! Benditas as tuas altas virtudes!" Quando da margem fronteira, guarnecida co
m flores frescas e relva, afastou-se a santa grei, como às vezes sucede no céu que a
luz de um astro siga a de outro, assomaram ali quatro animais tendo a cabeça orna
da de verdes flores (4). Cada qual dotado de seis asas, sendo as penas destas gu
arnecidas de tantos olhos quantos possuía Argos ao tempo em que com todos eles enx
ergava. Em descrevê-los, leitor, não empenho rimas, eis que outro tema requer os meu
s cuidados, impedindo que neste eu mais me estenda.
* (3) Os 24 anciãos simbolizavam os 24 livros do Velho Testamento.
(4) Os quatro animais simbolizavam os quatro evangelhos. *
Mas deves ler o texto de Ezequiel, que os descreve tal como os viu baixar do nor
te, qual vento, qual nuvem, qual lampejo de fulgor. Assim os descreveu, assim os
contemplou, vendo diferença apenas nas asas. E agora, deixando o relato de Ezequi
el, o de João eu sigo.
Entre os quatro (animais) rodava, resplendente, um carro triunfal de dupla roda,
por um grifo altivamente dirigido. Estendendo as asas, mostrava o grifo a sua p
ujança: estando sob a mediana das sete faixas coloridas, três mantinha a cada lado s
eu e a nenhuma tocava ou malfazia.
Não pode a vista atingir a altura a que se alçavam as suas extremidades. De ouro os
membros do grifo na sua parte pássaro; branca e vermelha a parte leonina. Prodígio i
gual Roma nunca vira, nem mesmo quando do triunfo do Africano ou de Augusto; ant
e o fulgor deste, seria pálido bruxuleio o do próprio carro solar, que mal guiado fo
i incendiado por Júpiter, em ato de justiça, aos rogos dos humanos horrorizados.
À direita, dançando, três damas seguiam o sulco da roda. Era uma tão vermelha, que difícil
seria distingui-la em meio de chamas; outra mostrava os ossos e a carne por tal
modo verdes que sugeriam esmeralda; a terceira, de branca neve semelhava ser co
mposta. Ora a branca, ora a rubra esforçavam-se por dirigir a dança; o cantar de uma
sustentava os movimentos, enquanto os passos da outra regulavam o ritmo. A esqu
erda, surgiram outras quatro damas de púrpura vestida (5). A da frente guiava-as,
e três olhos ostentava em plena testa. Fechavam a marcha dos grupos descritos dois
anciãos (6)
* (5) As virtudes cardeais: justiça, fortaleza, temperança e prudéncia. (6) São Lucas e
São Paulo. *
vestidos de modo diferente, semelhantes porém no aspecto grave. Parecia um ser mem
bro da escola criada por Hipócrates visando ao bem da humanidade. Exibia o outro e
special seriedade, levando tão grande e aguda espada que, embora a distância, assust
ei-me. Vinham atrás destes dois outros quatro (7) de modesta compostura; e bem iso
lado, um velho que, tendo embora cerrados os olhos, trazia bem aclarada a face (
8). Estes sete vestiam-se como os quatro do primeiro grupo, mas não com lírios, e si
m com rosas vermelhas, ornadas as frontes. Vendo-os, parecia-me que trouxessem,
cada qual, incendiada a testa. Chegava o carro à minha frente quando ouviu-se um t
rovão, e a santa grei obedeceu de pronto àquele sinal. Como se houvesse algum impedi
mento, o cortejo parou, inclusive os que abriam a marcha.
* (7) São Pedro, São João, São Tiago e São Judas.
(8) Trata-se de São João. Diz-se, e Dante o confirma nesta passagem, que contaria no
venta anos quando escreveu seu Evangelho. *
Canto XXX
A divina procissão estacou, e Dante viu uma dama velada surgir sobre o carro, entr
e cânticos e aclamações. O poeta, emocionado - pois intuiu quem era a dama -, voltou-s
e para falar a Virgílio; não encontrou porém seu guia, que havia partido.
Quando o setentrião do primeiro céu - que nunca conheceu ocaso nem oriente, nem outr
a névoa que não a da culpa, tornando os culpados cientes de seus deveres futuros, as
sim como o outro setentrião, o mais baixo, do mundo terreno é guia permanente, condu
zindo o navegante a bom porto - estacou, a santo séquito, que ia logo depois do gr
ifo, ao carro voltou o olhar, símbolo da paz (1). Um entre eles, qual arauto celes
tial, cantou por três vezes Veni, sponsa, de Líbano!, e a turba repetiu esse canto.
Assim como no dia do juízo universal, hão de lestos ressurgir os eleitos, entoando h
osanas com voz revigorada; assim uma centena de anjos, mensageiros da vida etern
a, ad vocem tanti senis ergueu-se do divino carro, aleluiando: Benedictus qui ve
nisl, e ao redor do carro espargindo flores: Manibus, o date, lilia plenis!
* (1) Dante compara os sete candelabros com as sete estrelas do setentrião da Ursa
Maior. Os sete candelabros, símbolos dos dons do Espírito Santo, no setentrião do Empír
eo (primeiro céu criado), guiam a procissão mística tal como o setentrião do mundo, isto
é, a Ursa Maior, guia os navegantes ao porto. *
Já contemplei as rosadas barras da alvorada ruborizarem o nascer do dia enquanto u
m trecho do céu em puro azul, sem nenhum vapor, deixa o Sol surgir envolto em névoa
para que o homem possa encarar-lhe o natural fulgor. De igual modo, nuvem de flo
res, erguida por mãos de anjos, subia do carro e para ele retornava mansamente. At
ravés de tal nuvem floral, por sobre o branco véu, vislumbrei sob coroa de ramos de
oliveira formosa dama envolta em manto verde, trajando vestes cor de chama viva.
Por um longo tempo, meu espírito, ignorando esse tipo de encantamento, arrebatado
e pasmo recolheu-se ante a visão divina. Sem que meus olhos lhe pudessem reconhece
r as feições, meu espírito sentiu, mercê da força oculta nele deixada por amor antigo, sua
profunda influência. Vi que estava de novo sob o império do sentimento que já na pueríc
ia me arrebatara. À esquerda me voltei, com ansiedade própria do menino ao buscar o
regaço materno, sob impulso do medo ou da aflição. Pensava dizer a Virgílio: "Em minhas
veias não há uma só gota tranqüila de sangue; eis que me sinto arder nas chamas do antig
o amor!" Virgílio, porém, partira! Virgílio, o pai dulcíssimo; Virgílio, a quem eu confiar
a a salvação! Nem a lembrança de tudo quanto, em tal local, perdera a primeira das mães
pôde fazer-me conter as lágrimas, que caíam copiosamente.
"Dante, não te desesperes por Virgílio ter-se ido. Reserva a disposição e as lágrimas para
mais intensa dor." Qual almirante experiente que da proa à popa observa o trabalh
o da maruja das naus sob seu mando, e a incentiva a proceder com brio, assim fiz
correr o olhar pelo lado esquerdo do carro, ao ouvir meu nome que, aqui, tal co
mo pronunciado eu o registro, pela necessidade de ser fiel ao ouvido. Vi a mesma
dama que antes vislumbrara em meio do cortejo divinal, quando para aquém do rio o
olhar a mim voltara. Embora trouxesse agora a fronte velada pela cortina de flo
res e pelos ramos de oliveira gratos a Minerva, pude ver que era à mesma. Com gest
o altivo e o modo soberano dos que reservam as admoestações para o fim do seu discur
so, continuou:
"Teus olhos não te iludem; sim, sou eu, Beatriz! Como ousaste subir até aqui? Não sabe
s que este lugar se reserva ao homem ditoso?" Baixei os olhos para o rio, mas, n
otando minha imagem refletida na água, volvi-os para a relva, tamanha era a vergon
ha que me dominara. Se me pareceu que Beatriz falara com o tom severo utilizado
pela mãe ao repreender o filho, tal ocorreu porque ao castigo resulta amarga a pie
dade com que é observado. Calou-se e os anjos cantaram Inte, Domine, speraui, sust
endo porém o doce salmo nas palavras pedes meos? Assim como a neve se congela entr
e as árvores das italianas montanhas, batidas e contraídas pelos ventos da Eslavônia,
mas logo se liquefaz ao sopro quente subido do sul e, liquefeita, corre em cauda
l; por igual modo enregelado permaneci, sem lágrimas e sem suspiros, antes de ouvi
r o cantar angélico modulando hinos próprios das eternas paragens. Mas ao notar que
em seu cantar havia mais compaixão por mim do que se explicitamente houvessem dito
: "Senhora, por que tanto o reprovas?", o que parecia paralisado em meu peito su
bitamente transformou-se em chorar e suspirar.
Ela, contudo, ereta na parte esquerda do carro, voltou-se para a direita e falou
àquelas piedosas criaturas, respondendo ao canto: "Vós, que vigiais durante o longo
dia que é a eternidade, e a quem o sono ou a noite nada podem esconder, bem conhe
ceis o que sucede no mundo. Se nesse dizer incluo pormenores a vós desnecessários, f
aço-o para que bem o entenda esse que chora, a fim de que a sua culpa pela dor sej
a medida. Não é apenas por efeito de influxo celeste que toda criatura cumpre seu de
stino, segundo a estrela sob cuja luz nasceu; mas também por efeito da graça divina
baixada de tão alto que à sua origem não pode chegar a nossa vista. Esse homem, na men
inice, foi ornado de tais graças divinas que, se as tivesse utilizado proveitosame
nte, poderia ter alcançado a excelência de todas as virtudes. Mas sucede que o mau t
erreno se faz tão mais danoso e selvagem quanto mais vigorosa for a semente ruim q
ue gera, maligno. Mantive-o por algum tempo, com meu olhar de menina, em trilha
amena e segura. Porém, ao encetar o término da segunda idade, deixei a vida terrena
e ele, pronto, a outra dedicou-se. Quando de carne a espírito fui mudada, beleza e
virtude em mim cresceram, mas, apesar disso, aos olhos seus fui menos querida.
Dirigiu assim os passos por caminho errado, seguindo o que do bem era apenas fal
sa imagem - enganadora promessa de constância. Em vão, por meio de sonhos, procurei
guiá-lo, e em vigílias fiz com que divisasse o verdadeiro bem. Com nada disso se imp
ortou. Tão fundo mergulhou no pecado que, para reerguê-lo, não havia senão um remédio: mos
trar-lhe as penas que no Inferno aguardam as almas danadas. Com tal intenção é que pen
etrei o mundo dos mortos, e àquele que o guiou até aqui dirigi rogos e prantos. A ju
stiça de Deus estaria ultrajada se ele cruzasse o Letes com a permissão de provar ta
l linfa restauradora, sem pagar com lágrimas e dores o preço devido".
Canto XXXI
Beatriz continua a repreender duramente Dante, expondo-lhe as fraquezas e os err
os. Angustiado ao extremo, o poeta desmaia. Depois, encontra-se diante de Beatri
z, face a face com ela; e ela, retirando o véu, lhe sorri.
"Ó tu, à frente do rio sagrado", continuou a falar-me, com palavras que antes me fer
iram obliquamente, e agora se voltavam diretamente contra mim; "confessa a verda
de! É mister que ouvida a acusação se ouça a confissão do culpado."
Tão desnorteado fiquei que minha voz nem mesmo pôde chegar aos lábios. Ela aguardou um
momento; depois insistiu: "Que pensas? Responde-me: inda não fizeste apagar pela ág
ua santa as lembranças do passado pecaminoso?" Turbação e temor, em porções iguais, impuse
ram-me um sim; tão inexpressivo, porém, que para entendê-lo seria preciso que os olhos
ajudassem os ouvidos. Assim como de arco estendido, a ponto de romper-se a cord
a, a flecha chega ao alvo mas não tem força para penetrá-lo, estava meu espírito tão angus
tiado que, rompendo-se-me a alma em suspiros e lágrimas, terminei por perder de to
do a voz.
Ela continuou: "Se, obediente ao meu desejo, teu propósito foi o de realizar o bem
- além do que nada existe a que aspirar se possa -, quais os tremendos fossos a t
ranspor, quais as pesadas cadeias que terminaram por tirar-te daquele caminho? Q
uais os atrativos e os lucros com que os bens mundanos te acenaram a ponto de tê-l
os abraçado?"
Um suspiro amargo saiu-me do peito, mal sobrado alento com que lhe falasse, a cu
sto os lábios permitindo que a voz saísse. Chorando, disse eu: "Deixei me transviar
pelos falsos prazeres mundanos, tão logo te partiste".
E ela: "Se calasses ou negasses a culpa que confessas, maior seria o crime, igua
lmente claro Àquele por quem serás julgado. Mas nesse juízo, quando é da boca do pecador
que se ouve a acusação, a alta justiça torna-se mais branda. Contudo, para que teus e
rros te envergonhem, e a fim de que, no futuro, tais sereias ouvindo, saibas res
istir, esquece a razão do prantear e ouve-me: saberás a qual e tão diverso rumo se pro
punha conduzir-te a minha morte. Jamais a natureza ou o engenho humano exibiram
ao teu entendimento algo tão prazeroso quanto a minha formosura, pela morte desfei
ta. Assim, se comigo se foi para sempre o que era teu prazer maior, como te foi
possível que te deixasses seduzir pelos atrativos de outra beleza menor e mortal?
Deverias, ao descobrir-se assim tentado, elevar aos Céus a mente, até a minha condição d
e eternidade infalível, e não baixar para a comezinha terra o vôo da alma, expondo-a a
novos pecados, ou por mulheres ou por vaidades momentâneas. O pássaro inexperiente é
alvo certo para o caçador, mas uma ave já provada não se deixa apanhar tão facilmente".
Quedei-me como um menino que, mudo e com a cabeça baixa, ouve a repreensão materna a
rrependido, e se confessa culpado. E Beatriz prosseguiu: "Se apenas ouvindo te s
entes magoado, levanta para mim tua barba e provarás dor maior ao fitar-me!" Com m
enor resistência do que a minha em obedecê-la o robusto carvalho se desraíza ao impact
o do frio vento austral, ou do cálido tufão africano. E quando ela disse barba e não r
osto, entendi-lhe a ironia. Erguendo enfim os olhos, prontamente me dei conta de
que a falange de anjos radiantes não mais lançava flores ao ar. A tímida vista endere
cei a Beatriz, voltada a fitar o grifo que, em sua única pessoa, reunia duas natur
ezas (1). Assim velada, distante, além do rio, pareceu-me ainda mais formosa do qu
e o fora em vida, ela que em vida fora a mais formosa de quantas de formosura ti
nham fama. Foi então que fundamente me pungiu a urtiga do remorso, isso a ponto de
perceber o quão vivamente odiava aquelas coisas que na Terra altamente amara, por
que haviam me separado de Beatriz. Tal remorso golpeou-me duramente o espírito; pe
rdi os sentidos, apenas tendo ciência do meu estado aquela que o causara.
Recobrando a consciência, vi, sobre mim inclinada, a dama que por primeiro eu vira
junto ao bosque, a me dizer, agora: "Apóia-te em mim". No rio me fez mergulhar até
o pescoço, e caminhou à flor da água, arrastando-me junto. Chegando à sagrada margem (op
osta àquela da qual partira) ouvi cantar o Asperges me em tom indescritivelmente s
uave. Deixando minhas mãos, a formosa dama cingiu-me a fronte e submergiu-me, com
o que forçoso foi que eu tragasse água. Assim purificado, conduziu-me ela para onde
as quatro outras damas executavam formosa dança, e cada uma delas estreitou-me nos
braços. "Aqui somos ninfas; no céu estrelas; antes que Beatriz baixasse ao mundo, f
omos eleitas para servas dela.
* (1) Beatriz fita em adoração o grifo, que representava a natureza humana e divina
de Jesus Cristo. *
Vamos levar-te até onde possas fitar os olhos seus, mas antes é necessário que o teu p
róprio olhar seja preparado para suportar tão poderoso lume. Isso farão três altas damas
cuja virtude é mais alta do que a nossa." Tal disseram em ritmo de cantiga, e, de
pois, ante o grifo me conduziram. Ali, voltada para nós, estava Beatriz. Aconselha
ram-me as que me guiavam: "Observa com toda atenção os seus olhos, embora fites as e
smeraldas que contra ti já atiraram dardos de amor". Mil desejos, mais ardentes do
que chama, prenderam os meus aos seus luzentes olhos, insistentes na adoração ao gr
ifo. Como sol refletido em espelho, na fera eu via natureza dupla - ora divina,
ora humana. Imagina, leitor, meu pasmo ao constatar que o grifo não mudava de aspe
cto, ao passo que a sua imagem reflexa continuamente se alterava. Entre prazer e
espanto eu gozava daquele manjar espiritual que, ao tempo que sacia faz aumenta
r a vontade de fruí-lo, quando, demonstrando pertencerem à mais alta ordem celeste,
as três damas (mencionadas) adiantaram-se, cantando em ritmo angelical: "Volve, ó Be
atriz, volve teus santos olhos ao servo fiel que para te ver tantos passos camin
hou. Concede-nos a graça de para ele desvelar teu rosto, a fim de que divise, por
segunda vez, a formosura que trazes oculta!"
o resplendor de viva luz eterna venha cantar quem pálido se tornou à sombra do Parna
so ou bebeu inspiração em sua fonte, e transtornado ficará esse poeta se tentar descre
ver qual te apresentaste (ó Beatriz) quando, já sem véu, na bela enquadratura do céu, ao
ar expuseste a face!
Canto XXXII
Recomeça a marcha a procissão dos sete candelabros; chega a uma árvore enorme, e o gri
fo prende nela seu carro. O poeta adormece; ao acordar, vê Beatriz sentada sob a árv
ore, ao lado do carro.
Eu tinha os olhos tão fixos e absortos, tão ocupados em saciar o santo anseio de dez
anos que em mim ficaram anulados os outros sentidos (1). Seu sorriso me atraía ta
nto que meus olhos pareciam reclusos entre muralhas levantadas pelos encantos an
tigos. Mas eisme forçado a desviá-los para a esquerda, para ouvir o que diziam as três
divinas damas: "Observa com atenção!" Provei então a incapacidade de firmar a vista c
onhecida por quem é golpeado por raio de sol.
Mas quando à luz ali reinante pude acomodar novamente os olhos, notei que para a d
ireita volvia a celestial falange, marchando à frente os sete candelabros e o sol
flamante. Qual o evoluir de esquadrões que, antes de iniciar a marcha coletiva, er
guem o estandarte e empós dele seguem quando a frente da formação inclina-se para nova
direção, assim agiu a milícia celeste, desfilando, em marcha, antes de que o santo ca
rro principiasse a se mover. Para junto das rodas voltaram as damas e o grifo fe
z rodar o sacro lenho, em manobra tão delicada que, em meio ao movimento, nem mesm
o uma pena foi agitada.
* (1) Beatriz falecera em 1290, e o encontro celeste se dera supostamente em 130
0. *
Aquela que me arrastara pelo rio, Estácio e eu seguíamos, acompanhando a roda pelo l
ado em que era menor a órbita descrita pelo adiantar-se do carro. Assim avançávamos pe
la floresta tornada erma por culpa daquela que deu crédito às falas da serpente; cad
a um de nós regulando os passos pelo divino cântico. Havíamos caminhado distância talvez
igual a três vezes um tiro de flecha quando Beatriz desceu do carro. A grei intei
ra exclamou: "Adão!", caminhando em direção à planta despojada por inteiro de flores e s
em folhas em qualquer dos ramos (2). Sua fronde mais se dilatava à medida que subi
a, prodígio capaz de causar espécie aos próprios índios afeitos às árvores gigantescas. "Fe
iz de ti, ó grifo, que isento de culpa não provaste desse tronco, agradável ao gosto,
porém causa intestina de cruéis tormentos!", cantou a procissão inteira, disposta em t
orno do tronco assaz robusto. O grifo respondeu: "Assim, para sempre, se faz jus
tiça!" E ao carro que conduzira pela floresta ele tornou, para trazê-lo ao pé do tronc
o despojado. E tronco e carro fez que estivessem unidos.
Quando, depois do luminoso signo dos Peixes, o astro-rei brilha dardejante sobre
as terrenas plantas, eis que, túrgidas, elas se renovam, ganhando novo esmalte, e
tal maravilha ocorre tão rápido que o Sol ainda não entrou no campo de outro signo. F
oi assim que subitamente floresceu aquela árvore seca, desfolhada, exibindo cores
vivas entre o rosa e o violeta. Não entendi, nem jamais em outra parte ouvi cantar
o cântico entoado então; jamais também por outro alguém ouvido.
* (2) Trata-se da árvore do bem e do mal. *
Se pudesse descrever como foi que se fecharam os olhos do impiedoso Argos ao doc
e canto de Sírinx, sono pelo qual pagou alto preço aí, então, qual pintor que trabalha c
opiando de modelo, eu descreveria como sucedeu que adormeci. Mas isso deixo a qu
em melhor possa fazê-lo e passo ao momento em que despertei, sacudido por fulgor i
ntenso que rompia o véu do sono, e por forte chamamento: "Desperta, que fazes?" Co
mo, a ver as flores da macieira, cujo pomo delicioso é sempre cobiçado pelos anjos n
as bodas eternas do Céu, João, Pedro e Tiago foram levados e depois da prostração reanim
aram-se ao brado desse que rompeu sonos ainda mais profundos do que o meu; e ten
do-se reanimado, aperceberam-se de que fora diminuída a companhia em que antes se
encontravam, estando ausentes Elias e Moisés, do mesmo passo em que na túnica do mes
tre as cores haviam mudado - assim eu, ao despertar sob os resplendores de forte
luz, vi a dama que já me fora guia à margem do rio, sobre as flores e a relva. Ela
estava próxima. Desconcertado, perguntei-lhe: "Onde está Beatriz?"
Respondeu-me: "Podes ver como se acomodou sobre as raízes da planta rediviva; obse
rva a companhia que a circunda. Seguindo o grifo, todos os outros subiram ao Céu,
ao som dos cânticos mais lindos". Não sei dizer se ela continuou falando, pois tinha
ante meus olhos aquela que era objeto da minha atenção inteira. Sobre o solo bendit
o tomara assento, sozinha, como se designada para guardar o carro atado ao tronc
o. Circundavam-na sete ninfas, tendo suspensos das mãos esses lumes que dos piores
ventos - o Aquilão ou o Austro - atrevem-se a zombar.
"Por curto tempo habitarás esta selva. Irás, depois, comigo, à morada eterna, essa Rom
a em função da qual Cristo é romano. Por isso, em benefício do mundo que persiste no err
o, fita o carro com atenção, e tudo quanto observares descreve em detalhes ao retorn
ar à Terra." Assim falou Beatriz e havendo posto a seus pés o entendimento e o quere
r, para o carro voltei os olhos. Jamais com maior velocidade, arremessado dos co
nfins imotos, algum raio desfez espessa nuvem de chuva carregada, como, surgindo
em meio à ramagem, fendendo a fronde, derrubando flores e folhas, surgiu águia fero
z. Com tamanho impulso abalroou o carro que este adernou, qual nave batida a est
ibordo e a bombordo pelo vento e pelas ondas. Em seguida, uma raposa (3) precipi
tou-se para dentro do carro, indicando estar há muito sem alimentar-se. Minha dama
, porém, fê-la fugir com velocidade igual à magreza extrema. Depois, vindo por onde de
scera pouco antes, vi retornar a águia, deixando no estrado do carro boa parte de
suas penas. Qual parte o clamor de coração ferido, ouvi baixar do céu um triste lament
o: "Ó minha barca, carga bem ruim levas agora!" Pareceu-me então que a terra se abri
a por entre as rodas, dela surgindo dragão a aferrar com a comprida cauda o carro
sagrado transfixando-o. Logo, o dragão, com a cauda em retirada, arrancou o fundo
do carro e se foi, coleando, malévolo sempre. O que restou do carro lembrava terra
fértil que se veste de erva, coberto da plumagem da águia, talvez ali semeada com i
ntenção honesta e pura. Assim, também, o timão e as rodas. E tudo acontecera em tempo me
nor do que o exigido pela boca para exalar suspiro.
* (3) A águia simboliza o Império Romano, responsável por duras perseguições à Igreja. A ra
osa simboliza as heresias que ameaçaram a unidade da Igreja, nos seus primórdios. *
Do santo lenho assim mudado brotavam cabeças nos vários ângulos, uma de cada lado e três
pelo timão. As primeiras tinham cornos iguais aos de boi; as demais, apenas um ch
ifre. Monstros iguais jamais se viram! Ereta, qual rocha saliente em alto monte,
sentada sobre o carro, vi então nua meretriz, os lascivos olhos girando à volta. Co
mo pretendendo, sozinho, possuí-la, à sua retaguarda postava-se um gigante, e os doi
s se beijavam (4). Contudo, notando que em mim ela pusera os olhos cobiçosos, pass
ou a espancá-la com violência. Depois, tomado de suspeitas e incendido pela ira, des
prendeu o monstro e o conduziu para o bosque tão depressa que logo aos meus olhos
se ocultaram a besta e a prostituta.
* (4) O gigante é o Rei Filipe, o Belo, ou toda a casa de França, ora amiga ora inim
iga da Cúria Romana, a qual buscava silenciar mediante benefícios. *
Canto XXXIII
Beatriz vaticina o surgimento de um líder que porá fim à desordem política e espiritual.
Matelda conduz Dante ao Rio Eunoé, o rio da Boa Memória, onde o mergulha; assim pur
ificado, ele poderá subir ao Paraíso.
Deus, uenerunt gentes, alternando três ou quatro vozes, as ninfas suavemente salmo
diavam, lacrimejando (1). Beatriz ouvia; e era tanta sua dor que pouco mais do q
ue ela, junto à cruz, Maria mostrou sofrer. Mas logo que as outras virgens lhe der
am oportunidade para falar, pondo-se ereta, afogueada pelo ardor disse-lhes: "Mo
dicum, et non uidebitis me; et iterum - irmãs caríssimas - modicum et vos uidebitis
me! (2) Em seguida, fazendo-se preceder pelas sete virgens, acenou a mim, a Mate
lda e ao poeta que restara - era um sinal para que a seguíssemos. Caminhamos com d
isposição e, acredito, dez passos não avançáramos quando seus olhos os meus encontraram, e
com voz tranqüila disse: "Apressa-te, para que possas facilmente entender se me d
ispuser a falar contigo!" Segui suas recomendações, e ela continuou: "Irmão, por que não
tomas a iniciativa de fazer perguntas, caminhando ao meu lado?" Senti-me como a
quele que, alimentando por seus superiores respeito extremo e devendo falar dian
te deles, não consegue dar clareza e ritmo às palavras.
* (1) Neste trecho do Salmo 78, Davi lamenta a profanação do Templo.
(2) Evangelho de São João, XVI, 16. *
Assim, foi truncando o falar que principiei: "Conheceis, senhora, tudo quanto de
sejo perguntar e também que vos é dado esclarecer-me".
E ela me disse: "Deixa de lado o receio e a vergonha, de ora em diante; deixa de
falar como quem sonha. Que o carro profanado há pouco pelo dragão já não está, como foi o
fendido. E o criminoso saberá que à justiça divina nenhuma sopa se sobrepõe (3). Não há de
icar por todo o tempo sem herdeiros a águia que o carro cobriu com as suas penas,
fazendo-se antes monstro e depois presa. Com os olhos no futuro, percebo o que a
nunciam as mais próximas estrelas sem que sombras ou obstáculos prejudiquem a visão do
porvir: um quinhentos, dez e cinco virá, enviado por Deus, a fim de trucidar a la
dra e o gigante seu cúmplice (4). É provável que não me compreendas perfeitamente, pois
o obscuro é próprio das profecias, tal como sucedeu com Têmis e a Esfinge. Os fatos, c
ontudo, farão com que venhas a me dar razão; quais Laiade (5) eles resolverão este eni
gma, sem causar dano ao trigo e ao gado. Atenta bem ao que te disse e tais quais
de mim as ouves repete estas palavras aos vivos cujo viver é corrida sem detença ru
mo à morte. Mas toma cuidado, para que estas palavras (mais tarde) escrevendo, rec
ordes que aflitamente viste esta árvore por duas vezes agredida. E adverte que tod
o aquele que a destrói ou mutila comete ofensa a Deus, com sério crime, pois foi par
a a Sua glória que Ele a criou.
* (3) Isto é, o culpado seria inevitavelmente punido. Segundo uma crendice toscara
, o assassino que durante nove dias tomasse sopa sobre a tumba de sua vítima nenhu
ma vingança teria a temer.
(4) DXV- quinhentos, dez e cinco - é anagrama de DUX, líder, imperador.
(5) Édipo, o herói que solucionou o enigma proposto pela Esfinge. *
Por haver mordido uma de suas frutas, por mais de cinco mil anos ardeu a primeir
a das almas, sofrendo e esperando pela vinda d'Aquele que sobre si tomou todos o
s pecados. Em sonolência trazes o espírito se não consegues atinar com as razões de ser
a copa dessa árvore mais larga à medida que se alteia. E se o prazer dos pensamentos
vãos, quais as águas do Rio Elsa, não te tivesse obscurecido a visão da árvore como fez c
om Píramo o sumo da amoreira, entenderias por que a justiça divina proibiu o acesso à ár
vore. Mas trazes o entendimento afeito ao pecado. Assim, não alcanças entender os me
us conceitos, que te ofuscam. Quero, pois, que os leves incisos na alma por sina
l sensível, como as palmas com que o peregrino orna o seu bordão".
Tornei-lhe eu: "Como o sinete imprime sobre a cera a figura de seu cunho, assim
está o vosso dizer perpetuado em mim. Mas por que é que sempre escapam a meu entendi
mento as vossas palavras?"
Respondeu: "É para que notes a falsidade da doutrina que orientou o teu modo de vi
da, tornando-te incapaz de compreender-me, a mim que somente a verdade exponho.
Tão distante corre o caminho que seguiste da vereda reta que conduz a Deus, quanto
o céu está remoto do ponto em que mais alto a Terra se levanta".
Observei, por minha vez: "Não me lembro haver jamais me furtado às vossas leis. Quan
to a isso, nenhum remorso trago na consciência".
"É bem possível que hajas tal coisa esquecido", retorquiu a sorrir. "Observa que ain
da há pouco bebeste da água do Letes. E se à vista do fumo se pode depreender a existênc
ia de fogo, o teu esquecimento demonstra que teu desejo se perdeu no erro. De ag
ora em diante, porém, mais claras serão as minhas palavras para ti."
Com brilho mais intenso e passo mais vagaroso, o Sol já atingira o meridiano que d
ivide ao meio os climas diferentes, quando fez alto o grupo das sete damas, segu
ndo procede o guia avançado, ao deparar à frente novidade ou prenúncio dela. Tratava-s
e do limiar de sítio com bem pouca sombra, semelhante aos bosques de verdes ramos
e troncos negros que orlam as frias espaldas alpinas. Pareceu-me que diante dela
s surgiram, oriundos de fonte única, o Tigre e o Eufrates, separando-se a custo, c
omo amigos muito próximos.
"Ó luz, ó glória da raça humana! Que água é essa que aí conjunta nasce e se separa?" E ela:
ede a Matelda que te dê a explicação!" A formosa dama, com
o tom próprio de quem se quer escusar de culpa, disse: "Esta e outras coisas já lhe
expliquei e estou segura de que as águas do Letes não o podiam fazer esquecê-las".
Beatriz então disse: "Quem sabe, desusado interesse por maravilhas de maior expres
são obscureceram-lhe a mente e os olhos. Eis Eunoé a deslizar. Leva
o para ali e, tal como se costuma fazer, mergulha-o, reanimando a virtude obnubi
lada".
Alma gentil que à obediência jamais se furta, antes tornando sua a vontade alheia, d
esde que por simples sinal isso lhe solicite, Matelda conduziu-me para junto de
Estácio, dizendo-lhe com majestade: "Vem com ele!". Se eu dispusesse, ó leitor, de m
ais espaço para meu escrito, dedicaria trecho especial ao doce gozar então fruído. Ent
retanto, estando preenchidas as páginas destinadas a esta parte do poema, a arte p
oética não me permite ir além. Assim, emergi daquela santíssima água, purificado como as p
lantas que ganham nova floração - e pronto para alçar-me às estrelas.
Terceira parte
Paraíso
Canto I
Dante, buscando inspiração em Apolo, canta sua subida ao Paraíso.
A glória d'Aquele que a tudo deu vida penetra no universo inteiro; acima resplande
ce mais, e resplandece menos abaixo. Ao céu que recebe do Criador mais luz logrei
chegar, e contemplei as maravilhas que nem pode nem sabe repetir quem de lá veio.
Porque, à medida que o intenta, percebe que à memória não é dado invocar tanta perfeição.
Quanto a mim, tudo que daquele reino santo minha mente pôde reter será matéria para no
vo canto. Nesta última parte do meu trabalho, ó Apolo, nesta derradeira tarefa faze-
me pleno de virtude poética! Que meus versos mereçam tua preciosa aprovação!
Até aqui, foi-me suficiente um só dos picos do Parnaso. Mas para a tarefa que me res
ta, penetra tu mesmo em meu peito, com o vigor por ti usado ao esfolar Mársias (1)
. Ó divina virtude, que eu possa descrever a visão do esplendor celeste tal qual o v
i; e hei de me esforçar para receber de tuas mãos a coroa de louros, tornado digno d
ela pelo assunto e por tua ajuda. Raros os que podem receber tais louros, triunf
ando como guerreiros, ou poetas. Mas isso ocorre por culpa da humanidade - e par
a sua vergonha -, que não se dedica à conquista dessas glórias verdadeiras.
* (1) O Monte Parnaso, segundo se imaginava, tinha dois cimos: Elícona, reservado às
Musas, e Cirra, do próprio Apolo. O auxílio das Musas bastara para os cantos refere
ntes ao Inferno e ao Purgatório; mas agora, ao cantar o Paraíso, tinha de invocar Ap
olo, deus da poesia. *
A deidade délfica se alegra quando algum mortal faz por receber sobre a fronte o a
dorno de ramos de louro. Pequena faísca, grande incêndio provoca: é crível que meu exemp
lo induza poetas futuros a solicitarem auxílio de Cirra.
De diversos pontos do mundo a luz se mostra aos olhos mortais; porém o Sol é mais fe
cundo daquela parte em que três cruzes vêem-se unidas a quatro cír culos. Vinda de sob
benfazeja estrela e percorrendo curso mais favorável, pode essa luz temperar e mo
delar a matéria. De um lado viera a luz; do outro chegara a noite. Assim, um dos h
emisférios branquejava, enquanto o outro mergulhava em trevas, quando Beatriz volt
ou à esquerda sua atenção, fitando o alto Sol com firmeza incrível. E como um raio incid
ente provoca raio reflexo que retorna à altura de que o primeiro partira, qual rom
eiro ansioso pelo regresso - movido por seu olhar enderecei a mente e os olhos.
Fitei o Sol com determinação - algo impossível para o homem. É lícito no Paraíso muito do q
e na Terra nos é vedado. Não pude suportar por longo tempo a luz solar, mas pude obs
ervar o Sol disparando chispas, como o ferro quando sai da forja. Logo percebi s
omar-se outra luz àquela, como se o Onipotente houvesse desejado adornar o céu com u
m segundo Sol. Beatriz prosseguia com os olhos fixos no eternal luzeiro, mas eu,
que desviara os meus do Sol, passara a contemplá-la com adoração. Sentia-me transform
ar qual sucedeu a Glauco, que ao comer da erva fez-se igual a deuses marinhos. V
isto que não posso descrever de modo exato o que essa transformação significa, é forçoso c
onsignar que o exemplo basta para satisfazer àqueles a quem Deus concedeu a graça de
experimentar o prodígio. Ó Deus! Tanto me elevaste, mas bem sabias que eu não era som
ente espírito, mas ainda carregava meu corpo mortal. Os Céus, que criaste para a ete
rnidade, prenderam-me inicialmente pela harmonia que afinas e diriges. Vi o Sol
tomar grande parte do céu; jamais, na Terra, a chuva e os rios puderam formar lago
tão extenso. Tais sons, tais luzes - a meu ver inteiramente novos - acenderam em
mim vivo desejo de conhecer-lhes as origens.
Beatriz, capaz de ler meus pensamentos tão bem quanto eu mesmo os conhecia, disse-
me: "Teu espírito se deixa perder em raciocínio errado, pois julga-te ainda na Terra
. Assim, não vês o que poderias estar vendo. Compreende que nem o raio desce tão veloz
para a terra quanto estás subindo ao céu".
Enfim libertado da dúvida por aquelas palavras, logo em outra me enredei. Disse-lh
e: "Aquietei-me da grande maravilha que me empolgara, mas eis-me ain da mais sur
preso de como atravesso os corpos leves". (2) Ela suspirou profundamente, e em m
im pôs os piedosos olhos. Com o tom de mãe que se dirige ao filho, ensinou-me: "Toda
s as coisas criadas seguem uma disciplina harmoniosa; o universo semelha a Deus.
Os espíritos perfeitos podem perceber nele nítida a perfeição divina, fim supremo que é a
Ordem Universal. As criaturas todas guardam inclinações segundo suas condições naturais
, para situarem-se em menor ou maior vizinhança de Deus.
* (2) Referência ao ar e à luz. *
Eis por que buscam aperfeiçoar-se, por caminhos diversos, através do vasto mar de si
próprias, cada qual seguindo o instinto por Deus concedido. Graças a isso, o ardor
logra chegar à Lua; por isso é que se agitam os corações humanos; por isso a Terra pross
egue em suas expansões e contrações. O arco do instinto não dispara flechas unicamente c
ontra os seres mais rudes, mas também contra as criaturas que têm a razão apta para o
reconhecimento de Deus. A Providência, que dispõe tal lei, com sua luz mantém aquietad
o o céu, onde gira o que vai mais rapidamente. Para ali, como em direção a posto deter
minado, o arco do instinto o amor divino aponta aos que a esse amor se entregara
m. Verdade é que, muitas vezes, a forma final da matéria não corresponde à intenção do arti
ta. Do mesmo modo, a criatura humana pretende escolher seu próprio rumo, desviando
-se amiúde do correto e elegendo o que é errado. Se a vã felicidade mundana leva-a a d
esviar-se daquele impulso natural, divino, ela cai por terra, qual se pode ver d
a nuvem tombar o raio. Não há, pois, que admirar a tua ascensão; é natural que teu espírit
o suba, como é natural que o rio baixe da montanha ao vale. Seria de admirar se não
subisses, nenhum impedimento te detendo, como se na terra pudesse a chama ardent
e ficar imóvel".
E voltou novamente os olhos para o céu.
Canto II
Dante chega à Lua - o primeiro Céu. Das nove esferas concêntricas do sistema ptolemaic
o, a Lua é a que está mais perto da Terra, e mais longe do Empíreo. Beatriz fala ao po
eta sobre as manchas da Lua.
Ó vós, que tripulando frágil barca, ansiosos por ouvir, seguistes minha nau que entre
cantos singra - volvei aos portos de que haveis saído. (1) Não penetreis o mar abert
o, onde, perdendo-me, estareis perdidos. Pois esta água jamais se viu sulcar antes
. Minerva me inspira; Apolo me guia; e as nove Musas indicam-me a Ursa. (2) Vós ou
tros, porém, poucos entre muitos, que a tempo voltastes a atenção para esse pão dos anjo
s (a ciência divina) que alimenta mas não sacia jamais, podeis levar sem medo o voss
o barco ao alto-mar, seguindo a minha esteira antes que se apague nas águas iguais
. Vosso pasmo será maior do que o experimentado pelos heróis que em Colcos viram Jasão
atrelar touros ferozes ao arado.
A sede inata de alcançar o Paraíso nos impulsionava. Beatriz olhava para o alto; eu
olhava Beatriz. Em menor tempo talvez do que o necessário à flecha para atingir o al
vo, minha vista foi atraída por estranho objeto. Beatriz, vendo patenteado o desej
o que em mim intuíra, voltou-se e, leda quanto formosa, disse-me: "Em agradeciment
o, eleva a mente a Deus:
* (1) A barca a que Dante se refere é metáfora para conhecimento. Dante dirige-se ao
s leitores que não contam com preparo filosófico suficiente para compreender seu Par
aíso.
(2) A Ursa, isto é, o rumo a seguir. *
chegamos ao primeiro céu!". Era como se estivéssemos cobertos por nuvem lúcida, espess
a, sólida, polida qual diamante ferido pelo Sol. Penetramos o seio daquela margari
da eterna do modo pelo qual a gota de água recebe o raio de sol sem se desfazer. S
e eu era corpo, o mundo ignora como seja possível a um espaço comportar outro espaço s
em que um corpo penetre outro; tal prodígio com maior veemência acenderia em nós o des
ejo de avistar a Suma Essência em que a natureza humana fundiu-se com a divina. Al
i se fará patente aquilo em que se crê por força da fé, sem exigir provas, consagrando a
primeira verdade a que o homem se deve agarrar.
Eu disse a ela: "Senhora, tão humildemente quanto me seja possível, rendo graças Aquel
e que me guindou até aqui, desde o mundo dos mortais. Mas dizei o que são essas manc
has escuras que desde a Terra se percebem neste céu e que deram origem a tantas fábu
las a respeito de Caim".
Sorrindo, ela me disse: "Erra sempre o juízo dos homens sobre as coisas, se a chav
e da sabedoria divina não acorre a lhes abrir a porta dos sentidos. Certo
é que não deverias ser tomado por tanta admiração, pois já pudeste conhecer quanto são curt
s os vôos do conhecimento quando a razão entrega-se apenas aos impulsos dos sentidos
. Mas dize-me: o que pensas a respeito disso?"
E eu: "Acredito que tal aconteça por serem os corpos ou mais densos, ou mais tênues"
. Ela retrucou: "Verás ser falso esse teu entendimento quando ouvires minhas razões
em contrário. Na oitava esfera luzem muitos lumes, distintos entre si pelo vulto e
pela qualidade da luz que emitem. Se a tenuidade ou a densidade originassem as
sombras e as luzes, todas teriam virtudes similares e todas seriam iguais. Para
que existam aspectos diversos, é forçoso que procedam de causas formais diversas, po
rém, segundo o teu raciocínio, todos os princípios, menos um, deveriam ser anulados. E
mais, se a menor densidade fosse origem das manchas lunares, o astro em algum p
onto apresentaria vácuos na espessura de sua matéria, tal como podes observar num co
rpo animal em que partes magras e partes gordas por vezes se sobrepõem; e se tal não
ocorresse, faltariam folhas no livro da natureza.
"No primeiro caso, durante os eclipses, esses vácuos estariam patentes sob os efei
tos da luz. Mas não é o que acontece. Quanto à outra hipótese - a de que
o denso e o rarefeito apresentem-se dispostos em camadas -, provarei que também es
tá errada. Não se estendendo a camada rarefeita de um a outro lado deste astro, é forços
o existir um ponto onde a sua contrária não possa pelo corpo ser atravessada. Desta
camada, o raio solar que ali incide é refletido, tal qual a camada plúmbea do espelh
o repele o lume que a face polida vai tocar. Replicarás que em alguns pontos o rai
o solar parece mais escuro por ser refletido de ponto mais interno. Dessa postur
a equivocada pode tirar-te uma experiência, se a ela te abalançares; pois a fonte do
saber humano é a experiência. Toma três espelhos; coloca dois deles a curta distância e
o terceiro, afastado. Servindo-te dos primeiros, fixa o último. Faz com que acend
am, atrás de ti, luz que ilumine os três espelhos e, triplicada, volte a ti. Se bem
que a imagem mais distante não pareça tão grande quanto as outras, ela brilhará tanto qu
anto estas.
"Assim como o calor do Sol derrete e funde a neve, deixando ver o que ela oculta
va, desejo que a verdade cintile em teu rosto depois que a inteligência for aclara
da. Lá no céu da divina paz gira o corpo em cuja força animadora tem origem a vida de
tudo quanto nele está contido. O céu seguinte encontra-se repleto de astros luminoso
s, diferentes dele, variados na essência, mas dele recebendo ânimo. Os outros sete céu
s giram submissos a leis diversas, por vezes contrastando uns e outros, porém gove
rnados por harmonia perfeita, graduada pelo efeito e pela causa. Como poderás veri
ficar, esses órgãos do mundo obedecem, no geral, a uma regra invariável: recebem influ
xos dos imediatamente superiores e os transmitem aos imediatamente inferiores. M
edita acerca de quanto ouviste sobre a Verdade que almejas conhecer, a fim de qu
e, uma vez deixado só, saibas orientar-te para Ela. Sobre o movimento e a ação destes
céus atua o princípio do ferreiro e de seu martelo, a impulsionar os santos motores.
O céu, tornado formoso por tantos lumes, daquela Mente Prodigiosa que o mantém no e
spaço toma a imagem e dela faz seu próprio selo. E qual alma que, vestindo a poeira
do corpo humano, atuando nos diferentes membros impele-os a cumprirem diversas m
issões, assim a Inteligência criadora e motriz das estrelas em todos os astros infun
de sua bondade, permanecendo imutável na unidade. Virtudes diferentes unem-se de f
orma diferente ao Corpo único, rutilando qual alegria a extravasar por pupila espe
rta. Daí resulta que uma luz é diferente de outra luz não por ter corpo mais denso ou
mais rarefeito. O princípio divino é que produz o claro e o escuro".
Canto III
Dante depara as almas dos que, estando votados ao bem, foram impedidos de dar pr
osseguimento a sua vocação religiosa. O poeta encontra Picarda Donati.
O sol que fez arder de amor meu peito, outrora, agora desvendara, argumentando à p
erfeição, aos meus olhos a beleza da verdade divina. Reconhecen do meu erro e conven
cido da verdade, tanto quanto me foi possível ergui a fronte, intentando confessar
-lhe tais coisas. Ao fazê-lo, porém, apareceu-me uma visão, e de tal modo me atraiu qu
e a confissão não realizei. Se alguém olha através de vidro transparente e limpo, ou de
espelho de água tranqüilo, puro e não profundo a ponto de ocultar o fundo, divisa imag
ens tão fracas em seus reflexos, que não afetam a pupila mais do que pérolas expostas
em muito branca fronte. Por modo igual sucedeu ali, eis que vi rostos prontos a
falarem comigo, o que me levou a incorrer em erro contrário àquele que estabeleceu e
lo de amor entre homem e fonte. De fato, apenas dei acordo de tais rostos, cuide
i fossem efígies espelhadas. De imediato dediquei-me a identificá-los. Não o conseguin
do, dirigi o olhar para o viso de minha doce guia, que sorrindo trazia os olhos
plenos de santo amor, a me dizer:
"Não te cause estranheza o meu sorrir. É que o teu pensamento pueril revela que teus
pés ainda não calcam a base da verdade. E uma vez que ainda pisas em falso no campo
do conhecimento, fica sabendo que tais faces correspondem a figuras reais, deti
das aqui por não haverem cumprido os votos formulados. Fala com elas; põe fé em quanto
disserem, pois a luz da verdade, que as atrai e conforta, não lhes permite afasta
rem-se do bom caminho".
Voltando-me para a sombra que supus mais propensa a dialogar, disse, com o acent
o próprio do homem animado pela impaciência de obter ensinamentos: "Salve, afortunad
o espírito a gozar a doçura dos raios que informam a eternidade, doçura que nem ao men
os se pode idealizar, mas apenas santamente fruir. Revela-me teu nome e destino"
.
Sem hesitar e com meigo sorriso respondeu: "Seguimos aqui as leis da caridade, q
ue Deus impõe à Sua corte. Assim sendo, não posso cerrar ouvidos ao teu justo pedido.
No mundo, fui monja, virgem. E se a tua memória não está ofuscada, concluirás que ora, a
qui, sou mais bela do que fui lá. Reconhecerás que sou Picarda, entre estas almas be
m-aventuradas; apenas espero, nesta esfera que é de todas a mais lenta. (1) Nossos
afetos flamejam continuamente, abrasados que são pelo Espírito Santo, alegrando-se
no conformar-se com o desejo seu. A sorte que nos coube, que parece inferior, de
vemo-la uns ao mau cumprimento de votos religiosos, outros ao esquecimento total
de tais votos".
Tornei-lhe: "Há em vosso inefável aspecto algo celestial a tornar vossas feições diversa
s daquelas que ostentáveis na Terra. Por isso foi difícil reconhecer vos.
* (1) Picarda Donati, que professou na Ordem de Santa Clara. hFoi retirada à força d
o convento pela família, para desposar Rosselino delia Tosa - num casamento com ob
jetivos políticos. *
Porém, auxiliado pelas vossas palavras, isso torna-se fácil. Mas, dizei-me se, mesmo
sendo felizes neste sítio, aspirais a subir a mais alto páramo, mais próximo da Suma
Sabedoria, para dela haurir maior contentamento".
Sorriu para suas iguais um sorriso breve, e respondeu-me, tão plena de alegria com
o se ardesse no mais puro amor: "Irmão, a virtude da caridade nos induz a desejar
aquilo que possuímos, sem aspirar ao que não temos. Se anelássemos ser levadas a céus ma
is altos, estariam os nossos desejos em desacordo com os d'Aquele que aqui nos m
antém. Entenderás não ser possível tal incoerência. Tal disposição é essencial a esta forma
em-aventurança, pois, aqui, os desejos destas almas e os de Deus tornaram-se um de
sejo único. Disposição igual à nossa encontra-se por todo este reino, de céu em céu, segund
é do agrado de Deus, cujo querer é que queiramos aquilo que Ele quer. Seguir a Sua
vontade é toda glória que buscamos - a qual é mar para onde confluem todas as coisas,
seja produto direto de Sua vontade ou resultado de evolução natural".
Não tive a partir de então mais dúvidas de que qualquer das partes dos céus é o mesmo Paraí
o, e que, contudo, a graça divina não reside por igual em todas aquelas partes. Assi
m também, se já nos saciamos de um alimento, o apetite permanece em relação a outro, e a
este se procura, alegria havendo no encontrá-lo. Assim procedi, manifestando, com
gestos e palavras, o desejo de conhecer a causa que a impedira de cumprir seus
votos integralmente. Explicou-me: "Perfeição e méritos altíssimos ornam excelsa dama que
acima se encontra. Hábito, véu e santas regras deixou no mundo. Até à morte quis dedica
r-se inteiramente ao Esposo que aceita todo voto proferido em conformidade com o
Seu querer. Para segui-la, ainda adolescente abandonei o mundo, encerrando-me e
m suas vestes e prometendo seguir-lhe as regras. Mas homens cruéis roubaram-me ao
doce claustro e só Deus sabe qual foi a minha vida a partir de então. Repara, porém, n
o resplendor que à minha direita fulge com toda a luz possível nesta nossa esfera. Q
uanto disse de mim aplica-se a ela. Como eu, foi monja e também de sua fronte arra
ncaram as santas faixas. Mas, embora no mundo profano a repusessem por violência e
contra seu desejo manifesto, jamais despiu da alma o véu sagrado. Essa é a luz e o
espírito de Constança, excelsa, que ao segundo imperador da Suábia deu o herdeiro em q
uem a dinastia teve fim".
Assim ela falou; depois pôs-se a entoar a Ave Maria, e cantando desapareceu, tal q
ual desaparece pesado corpo em águas profundas. Voltei os olhos para alvo mais val
ioso. Eles se fixaram em Beatriz, mas a luz que dela emanava era tal que me ofus
cou os olhos. E por essa razão não pude falar-lhe logo.
Canto Iv
Dante, que se encontra no primeiro Céu, vê-se às voltas com duas intensas dúvidas, as qu
ais Beatriz procura esclarecer.
Um homem, vendo-se entre dois manjares igualmente irresistíveis e a distância igual,
e tendo liberdade para escolher, morreria de fome antes de meter os dentes em u
m deles. Agiria do mesmo modo um cordeiro entre lobos, temendo a ambos; e um cão q
uedaria indeciso entre dois gamos. Eis por que permaneci em silêncio, guardando mi
nhas dúvidas para mim mesmo. Calava; mas era tão evidente meu desejo de perguntar qu
e nem seria preciso expressar tal vontade. Beatriz agiu, no ato, como Daniel out
rora a fim de apaziguar Nabucodonosor, inclinado à ira injusta e violenta. Disse e
la:
"Noto com clareza teu duplo desejo de conhecimento, e entendo tua hesitação para tom
ar partido entre um dos dois. Raciocina assim: se a vontade persistia no bem e s
omente pela violência de outrem no bem não continuaram, como pode essa violência dimin
uir o mérito de tais almas? Encontras aí argumento para duvidar da teoria de Platão se
gundo a qual as almas retornam aos astros de que provieram. São estas as dúvidas que
com tanta intensidade te perturbam. Começo por elucidar-te a mais importante.
"O Serafim de maior hierarquia extasia-se em Deus, bem como Moisés, Samuel e o João
que escolheres (o Batista e o Evangelista), e mesmo Maria - todos desfrutam a cl
aridade da mesma esfera em que se acham estas almas aqui vistas. Nem a duração da et
ernidade é menor para estes do que para aqueles. Todos convivem no primeiro círculo
e gozam em gradação diversa a beatitude divina, pois sentem em menor ou em maior gra
u o amor do Criador. As almas que viste nesta esfera, a ela não estão circunscritas;
mas o estarem aqui indica a gradação de sua beatitude. Este é o modo de fazer com que
teu entendimento penetre tais coisas, pois o ser humano aceita pelos sentidos a
ntes fazê-lo pelo espírito. É por isso, aliás, que a Escritura faz ao entendimento morta
l a concessão de representar Deus com pés e mãos, mesmo estando certa do contrário. Pela
mesma razão, a Santa Igreja representa Gabriel e Miguel com feições humanas, e também a
quele que livrou Tobias da cegueira. Vês, pois, que o ensinado por Timeu, em relação a
o destino das almas, com o que testemunhas aqui não combina, se é que o entendimento
costumeiro seja o mais correto para tal texto (1). Ele ensina que a alma retorn
a aos astros de que baixou num corpo terreno. Bem pode ocorrer que a intenção do aut
or tenha sido diferente do que se usa depreender do texto. Portanto, não convém desp
rezá-lo. Aceitando-se haver ele afirmado que das estrelas descem às almas influxos q
ue justifiquem a glória ou a desdita, não atirou sua seta muito longe do alvo da ver
dade. A afirmativa, interpretada de modo errado, conduziu ao erro os antigos pagão
s, levados a adorar Júpiter, Marte e Mercúrio, por lhes encontrarem essência divina.
* (1) Referência a Timeu, diálogo de Platão que contém a teoria do filósofo quanto à imorta
idade da alma. *
"Quanto à tua outra dúvida, acredito que seja menos passível de afastar de mim tua alm
a. Que a justiça divina pareça injusta para os mortais é argumento de fé, não de má-fé heré
E sendo o entendimento humano apto a penetrar esta verdade, breve a terás, como q
ueres. Se quem sofre violência nada consente a quem a pratica, se isenta; pois a v
ontade não se deixa vencer sem resistência: o sopro mil vezes pode curvar a chama, q
ue mil vezes esta chama se erguerá. Mas se fraqueja, ou cede muito ou pouco à violênci
a, com ela condescende. Isso se deu com estas almas que não voltaram para o claust
ro quando a força que as mantinha violentadas cessou. Não conservaram inteira a sua
vontade, qual fez São Lourenço sobre as grelhas, e Múcio, deixando a mão consumir-se ao
fogo. Tivessem conservado intacta sua vontade, voltariam a percorrer o caminho a
ntigo. Mas é muito rara tanta integridade. "Se fizeste bom proveito do que eu diss
e, terás sanado dúvidas atrozes. Mas já se te apresenta outra dificuldade, a qual, sem
o necessário auxílio, não conseguirias superar. Consegui, penso, imprimir em tua ment
e, como verdade absoluta, que não é dado à alma eleita mentir, por estar sob o influxo
da Verdade Primeira. Trata-se de que ouviste dizer a Picarda, haver Constança man
tido sempre os votos, com relação aos véus aceitos no coração. E isso te parece em contrad
ição com minhas palavras. Sucede, muitas vezes, meu irmão, que por receio a malefícios p
raticam-se atos que repugnariam à consciência no mais das vezes. Foi por isso que Al
cmeão, cedendo aos rogos do pai, sacrificou a mãe; por fidelidade à lei da obediência ag
iu de modo cruel. Se a vontade do violentado segue o impulso da violência, ele não p
ode se apegar a nenhuma escusa. Uma vontade firme não se cumplicia ao mal; quando
ameaçada, retrai-se, temerosa de cometer males maiores. Ao falar, Picarda referiu-
se à vontade absoluta, e eu, à vontade relativa; mas nós duas falamos a verdade, igual
mente".
Fluindo daquele santo rio, vindas da Fonte da Verdade, tais palavras satisfizera
m-me e devolveram-me a paz. Exclamei, portanto:
"Ó querida de Deus, ó senhora, vossa palavra me inunda de glória, exalta-me e eleva-me
! Não pode o meu afeto ser tão grande que logre agradecer-lhe suficientemente. Supra
minha falta Aquele que tudo vê e tudo pode! O intelecto humano só pode penetrar os
mistérios divinos se iluminado pela Verdade, sem a qual não há luz. Uma vez penetrados
, encontram-se neles fruição e sossego, qual a fera reentrando em seu esconderijo. C
ompreendê-los não é vedado ao homem; se o fosse, todos os intentos seriam vãos. Bem por
isso a dúvida, qual vergôntea, nasce ao pé da certeza e, seguindo sua natureza, leva-n
os de grau em grau para junto de Deus. Este raciocínio, ó senhora, assegura-me que p
osso, com a devida reverência, rogar-vos que me esclareça outra verdade que se mostr
a obscura a mim. Desejo saber se é permitido aos homens que romperam votos redimir
-se com a prática de significativas obras pias, para equilibrar a balança da divina
justiça".
Beatriz fixou em mim seus olhos, tão cheios de ardor divino que transido recuei; f
iz então enorme esforço para não sucumbir.
Canto V
Beatriz fala a Dante acerca da natureza do voto religioso, bem como do problema
da compensação de tal voto. Dante e Beatriz alcançam o segundo Céu - o céu de Mercúrio -, o
de se encontram as almas dos que realizaram o bem para obter fama e glória.
"Se meu brilho te ofusca mais que o comum entre mortais, despojando-te da força do
s teus olhos, não te espantes: tal provém da Visão Suprema, sempre revelando o bem aos
nossos olhos. Posso assim perceber o quanto já resplende em teu entendimento o et
erno lume, o qual, visto uma só vez, acende para sempre a luz do amor. E se na Ter
ra outro alvo atrai o teu amor, trata-se de mal conhecido vestígio dele, a translu
zir na matéria. Perguntas se com obras pias é dado às almas compensar o abandono dos v
otos sagrados."
E Beatriz, com talento oratório inigualável, deu início a sua explanação: "O maior dom que
Deus concedeu ao mundo - aquele dom que melhor revela a Sua bondade -, o que El
e tem em mais alta conta, é o anseio de liberdade, do qual foram dotadas todas as
criaturas pensantes. Isto dito, podes considerar qual seja diante de Deus a alta
valia de um voto, pois nesse ato a aceitação d'Ele une-se ao querer humano. Ao real
izar-se tal pacto entre Deus e o homem, este sacrifica o valioso tesouro do livr
e-arbítrio, e o faz exercendo esse mesmo privilégio. Que outro bem pode compensar o
rompimento de tal voto? Se pensas novamente usar o que já tenhas oferecido, estarás
querendo fazer bom uso de mérito ganho por meio de fraude. Assim, chegamos a bom t
ermo quanto ao ponto principal. Mas pensarás que a Igreja, ao dispensar alguém dos v
otos, age contrariamente àquilo que ensinei. É preciso que, raciocinando com empenho
sobre estes temas complexos, aguardes melhores esclarecimentos, sem os quais es
ta doutrina se mostrará obscura para ti. Presta atenção ao que explico e encerra-o na
alma; pois não logramos aprender o que ouvimos e não guardamos.
"Duas coisas são necessárias para constituir a essência do sacrifício (o voto religioso)
: um é o objeto que se sacrifica, o outro é o pacto assumido. Quando não observado, es
te último nunca conhece cancelamento. Mas a tal propósito já fiz bem ampla exposição. Daí q
e os hebreus estiveram obrigados a cumprir perenemente o voto feito, embora, em
alguns casos, conforme sabes, tenha sido possível permutar o objeto das promessas.
Da matéria do voto é permitida mudança quando haja ensejo, sem que com isso se cometa
falta. Mas ninguém ouse, sem o consentimento da Igreja, mudar o peso que livremen
te aceitou. Esteja, além disso, seguro de que toda permuta será inútil se o objeto sub
stituto não for maior do que o substituído, da forma pela qual o quatro está contido n
o seis. Assim, se o voto feito for de tal grandeza que incline ao máximo o prato d
a balança, naturalmente não haverá voto maior que o compense. Assim sendo, ó mortais, não
contraí votos em vão! Sede fiéis a tal objetivo, não agindo como Jefté agiu com sua filha.
A ele melhor fora haver dito Não fiz bem!', descumprindo o voto, do que agir pior
ainda ao cumpri-lo. Igualmente insensato foi o voto do chefe supremo dos gregos
quando, pela lembrança de Ifigênia, fez chorar sábios e tolos, todos enfim que ouvira
m narrar a história de seu trágico sacrifício. Ó cristãos, sede ponderados em vossos votos
! Evitai agir qual pluma sensível a todos os ventos, acreditando em que qualquer v
oto vos eleve aos olhos do Criador. Para orientar-vos, tendes o Velho e o Novo T
estamento e o chefe da Igreja. Isso vos baste para alcançar a salvação! Não permitais qu
e a cobiça material empane vossa virtude; sede homens e não inermes, a fim de que os
judeus entre vós não zombem de vossa fé. Observai o cordeirinho que, mal deixando de
sugar o leite materno, por capricho contra si mesmo age, vivaz e tolo, caminhand
o com descuido".
Exatamente assim falou Beatriz; depois, ansíosa, voltou-se para o alto, de onde pr
ocede a luz que ilumina o mundo. O haver calado e transmudado o semblante fez-me
abafar o desejo de a ela comunicar que eu já concebera outras perguntas. E, qual
flecha que atinge o alvo antes de que cessem as vibrações do arco, penetramos no seg
undo Céu rapidamente. Tão leda eu via a bem-aventurada Beatriz penetrando as luzes d
aquele céu, que mais esplendoroso o planeta se me afigurou. E imaginei, se o astro
sorriu, transformando-se, como não me transformei eu, que, por efeito da natureza
humana, estou sujeito a toda fantasia! Quando em pesqueiro de água tranqüila e pura
cai algo que se pareça com comida, logo cardumes de peixes vêm para saciar-se. Com
sofreguidão igual foi que vi acorrerem mais de mil resplendores, clamando em coro:
"Eis que chega quem nosso ardor nutrirá!"
Quando se aproximaram de nós, em todos eles percebia-se divina alegria, denunciada
pelo fulgor por eles irradiado. Leitor, qual não seria a tua angústia se eu interro
mpesse a narração neste ponto! Ajuiza, pois, à base desse raciocínio, qual tenha sido o
meu desejo de conhecer a condição daquelas almas, desde o momento em que as revelei.
"Ó ser bem-nascido, ao qual é facultado presenciar a glória eterna do Céu quando ainda i
nscrito no rol da milícia terrestre. Pela luz da verdade que se esparge por todo o
Céu estamos envoltos, e desejas obter informações a nosso respeito, de bom grado as d
aremos." Isto me foi dito por uma das almas que ali se achavam. E Beatriz acresc
entou: "Formula tuas perguntas com clareza e calma, e nas respostas deposita a m
esma fé que em Deus".
"Vejo que te serve de manto a luz que de ti mesmo irradia. Sei que é dos teus olho
s que ela dimana, pois aumenta quando sorris. Mas ignoro, alma nobre, quem sejas
, e por que vieste ocupar este degrau da escada velada aos olhos dos mortais por
mais vivo lume." Assim falei à deslumbrante alma que se dirigira a mim, e deparei
-a mais brilhante do que me parecera no início. Assim como o Sol, ao esvaecer-se,
esconde em seu próprio esplendor o excesso de luz, em plenitude de alegria desapar
eceu entre seu mesmo refulgir aquela figura santificada; e oculta respondeu-me o
que no próximo Canto se segue.
Canto VI
No segundo Céu, Dante encontra a alma do Imperador Justiniano, o qual relembra as
glórias do Império Romano.
"Após Constantino ter conduzido a águia sagrada contra o curso do Sol, que até então ela
seguira, invertendo o caminho de Enéias, a ave divina permaneceu duzentos anos na
quele extremo da Europa, perto das montanhas de Tróia, onde se criou (1). Dali gov
ernou o mundo; sucederam-se os imperadores, até que o cetro viesse parar em minhas
mãos.
"Sou Justiniano, e fui eleito César; por inspiração do Espírito Santo, expurguei as leis
do que tinham de injusto e excessivo. Antes disso, porém, vivi tranqüilo sob a crença
de que uma só natureza houvesse em Cristo. Contudo o bem-aventurado Agapito, o qu
al foi decerto pastor genuíno, converteu-me, com suas santas palavras, à verdadeira
fé. Vejo agora que tudo quanto ensinou é certo, tão claramente quanto entre duas afirm
ações opostas percebe-se a verdadeira com facilidade. Logo que pelos passos da Igrej
a acertei os meus, Deus inspirou-me o trabalho a que me consagrei. Confiado o ma
ndo das armas a Belisário [o grande general de Justiniano], sua mão guerreira foi tão
abençoada pelo Céu que interpretei isso como sinal para que me ocupasse de outra mis
são.
* (1) A águia sagrada é a insígnia do Império Romano. Constantino levou a águia do Ocident
e para o Oriente (contra o curso do Sol), ao passo que Enéias, ao deslocar-se de T
róia para a Itália, seguira o curso do astro. *
Até aqui respondi à primeira parte da tua pergunta; o assunto, contudo, exige que al
go seja acrescentado, para que percebas como são desprezíveis as razões que movem cont
ra a águia romana os que dizem falar em seu nome, e os que a ela se opõem. Verás quant
a virtude fê-la digna de suma reverência, desde quando Palante morreu para dar-lhe s
oberania. Sabes o que fez ela em Àlba por mais de trezentos anos, até que lutaram três
contra três em sua disputa (2). Sabes quanto foi feito durante o reinado de sete
reis para dominar os povos vizinhos, desde o rapto das Sabinas até o ultraje a Luc
récia. Conheces os feitos de tantos heróis romanos nas lutas contra Breno, contra Pi
rro e muitos outros reis e coligações reais; guerras que deram fama a Torquato, a Quín
cio - que da grenha tirou o apelido de Cincinato -, aos Décios e aos Fábios, que rev
erencio, comovido. Fez desabar o orgulho dos cartagineses mandados por Aníbal na t
ravessia das alturas alpinas, de onde correm as águas do Rio Pó. Jovens ainda, à sua s
ombra Cipião e Pompeu conheceram o triunfo; e à colina junto à qual nasceste mostrou-s
e violentíssima. Mais tarde, o Céu, desejando paz ao mundo inteiro, ditou leis confo
rmes às leis de Roma e nas mãos de César colocou as nações. As façanhas que este praticou,
o Varo ao Reno, tiveram por palco o Isara, o Ero, o Sena, e esse vale imenso ond
e o Ródano é dos rios o soberano. O que realizou foi tão importante, depois de sair de
Ravena e atravessar o Rubicão, que não há como devidamente ser descrito. Levou seu exér
cito contra a Espanha; contra Durazzo depois;
* (2) Ascánio, filho de Enéias, foi o fundador de Alóa Lona, onde o poder da águia mante
ve-se por três séculos, até que os três Horácios romanos lutaram contra os três Curiáceos.
ceram os primeiros, e o império foi unificado. *
Farsália acometeu para perturbar-se em seguida com os efeitos da ardência do Nilo. R
eviu afinal o Simoente e o Antandro - seu berço original -, onde as cinzas de Heit
or se acham; mas contra Ptolomeu se atirou, e fulminou Juba sem demora, volvendo
, para o Ocidente, de onde ouviu sons de desafio lançados pelas tubas seguidoras d
e Pompeu. Mercê dos atos praticados por aquele que em seguida empunhou a águia (Augu
sto) é que gemem, no Inferno, Cássio e Bruto, junto com Módena, e Perúgia. Sofre também a
mesquinha Cleópatra, que, com o auxílio de uma serpente, deu cabo a si própria. Tudo,
até o Mar Vermelho, pertenceu à águia, e sobre o mundo desceu paz tão serena que foi pos
sível as portas do templo de Jano cerrar.
"Tais maravilhas, que narro a propósito da sagrada águia, ocorreram nos primeiros te
mpos, quando ela fez, com total virtude, tudo quanto os negócios materiais exigiam
. E tudo isso é nada se comparado ao que ocorreu nos dias do terceiro imperador [T
ibério], se com ele for julgado de modo justo. Pois foi quem, com viva justiça, conc
edeu a glória de fazer aplacar a ira que nós, homens, lhe despertamos. Não cause espan
to agora o que te vou dizer: aprouve a Deus vingar-se daquela vingança do pecado a
ntigo, servindo-se de Tito. E quando as presas longobardas morderam a Santa Igre
ja, à sombra da ave augusta, salvou-a Carlos Magno do perigo. Podes agora bem julg
ar os crimes daqueles a quem me referi há pouco, os quais são a causa dos males ital
ianos. Eis que, contra o santo estandarte, um desses partidos hasteou lírio de pra
ta, enquanto o outro o quer para sua insígnia de guerra. É tarefa difícil dizer qual d
entre eles tem mais culpa. Que os gibelinos pratiquem suas torpezas sob outro es
tandarte, pois este, que é santo, é contra os que a justiça desprezam. Nem pretenda o
novo Carlos [Carlos 11 de Anjou] abatê-la com os guelfos; tenha, isso sim, receio
das garras que souberam arrancar a juba inteira de fortíssimo leão. Sabe-se que mais
de uma vez os filhos choraram por culpa dos pais; não pense Carlos de Anjou que D
eus transferiu sua predileção da águia para a flor-de-lis.
"Nesta pequena estrela, muitos espíritos justos se esforçaram bastante no mundo para
nele deixar honra e fama marcantes. Se demasiado empenho as almas põem em tal int
ento, tornam-se menos vivos os raios do verdadeiro amor que, então já esmaecidos, ch
egam ao Céu. Porém é parte de nossa dita comparar o mérito adquirido e o prêmio recebido,
percebendo qual seja o equilíbrio justo, não os supondo nem menores nem maiores do q
ue sejam de fato. Assim, a divina justiça abranda e amolda os nossos afetos, de mo
do que nem malícia nem inveja os embotem. Tal como várias vozes produzem harmonia de
sons, os vários graus da beatitude geram a harmonia do Céu. Nesta gema brilha a luz
de Romeu, cuja obra mais valiosa foi recompensada com ingratidão. Os provençais que
contra ele conspiraram acabaram por não obter nenhum lucro; pois muito erra quem
julga colher um bem do mal feito a outrem. Teve quatro filhas [o conde] Raimundo
Berenger, e todas foram rainhas: e os quatro tronos deveram-se a Romeu, homem h
umilde e esforçado. No entanto, conselhos repletos de inveja levaram Raimundo Bere
nger a pedir explicações injustas àquele que, além de honesto, multiplicou o patrimônio co
nfiado à sua guarda. Partiu então o homem velho e probo; e se o mundo o visse mendig
ando o pão aos passantes, Romeu haveria de ser muito mais exaltado do que é hoje".
Canto VII
Dante tem grandes dúvidas a respeito da crucificação de Jesus e o castigo que o Império
Romano depois impôs a Jerusalém por isso. Beatriz põe fim a essas dúvidas.
'Uosanna sanctus Deus sabaoth, Superillustrans claritate tua Felices ignes horum
malacothf" (1) *
Ao ritmo deste canto movia-se a alma sobre a qual dupla luz se insinuava, até sumi
r na distância - juntamente com outras que a seguiam - quais chispas. Tomado por dúv
idas, dizia-me: "Pergunta de que se trata a essa dama que tem saciado tão plenamen
te tua sede de saber". Mas tanta emoção sinto apenas à menção de Be ou iz que fico calado,
sem voz. Porém Beatriz não tardou a perceber meu constrangimento. Sorrindo de um mo
do que faria feliz mesmo o homem imerso em labaredas, disse: "Trazes turbado o e
spírito; não conseguindo entender como é possível que uma vingança justa tenha sido mais t
arde justamente punida, como te narrou Justiniano. Atenta para as minhas palavra
s, que a expressão delas se ajusta com a mais alta verdade. Por não haver desejado c
olocar freio à sua liberdade de escolher e agir, aquele homem [Adão] que não nasceu de
mulher deu sofrimento a si mesmo e à humanidade.
* (1) "Salve, ó Deus sagrado dos exércitos, que do alto lanças tua luz sobre este rein
o, sobre as almas!" *
Esta, enferma do pecado, por muitos séculos sofreu, avolumando o montante do erro,
até que o Verbo Divino condescendeu em descer ao mundo, para, num ato de amor sup
remo, incorporar-se à natureza humana, que de seu Criador andava divorciada. A nat
ureza humana, quando unida ao Criador, foi veraz, foi boa. Tão logo ficou entregue
a si mesma, por sua culpa resultou expulsa do Paraíso, pois afastou-se do caminho
da verdade e da vida. Assim sendo, se se considera a natureza humana assumida p
or Deus, a pena da cruz foi muito justa. Igualmente, pena alguma jamais foi tão in
justa, se se leva em conta a natureza divina da Pessoa que a padeceu.
"O mesmo ato provocou resultados contraditórios: a Deus e aos judeus aprouve aquel
a morte, pela qual a Terra tremeu e o Céu se abriu. Não te cause pois admiração o ouvir
que uma vingança justa cabia ser vingada por alto e justo tribunal. Contudo, vejo
que tua mente, hesitando entre um e outro pensamento aflito, deseja muito ser li
bertada da confusão em que se acha. Dizes: Entendo o que dizes, mas não compreendo q
ue para remir-nos Deus escolhesse este e não outro caminho'. O porquê dessa decisão se
mantém oculto aos olhos dos que ainda não possuem o grau de entendimento adquirido
através de estágio nessa flama de amor. Sendo certo que a propósito deste mistério pouco
se indaga e pouco se aprende, eu te direi por quais razões se lançou mão desse proces
so de redenção. A divina bondade, que afasta de si todo rancor, arde por si mesma, e
m virtude das belezas eternas que contém e irradia. O que provém dela, sem intermédio,
é eterno. Assim, tudo quanto imprime jamais perde seu cunho. O que nasce dessa fo
nte é livre de influências de outras substâncias. Agrada-lhe o que mais se lhe assemel
ha. Por isso, aquele santo ardor, que reveste os objetos criados, está mais presen
te nos objetos que com ela mais se pareçam. Toda esta graça é repartida entre os homen
s.
Porém, se um a deslustra e a perde, sua condição logo decai. o pecado é que faz descer o
homem, que, não mais semelhando o Sumo Bem, não reflete mais o Seu lume. Nem pode r
ecuperar a dignidade primitiva se, com justas penitências, não expiar o acúmulo dos pe
cados. Quando a natureza humana pecou - pela ação dos primeiros pais -, foi-lhe reti
rada aquela dignidade e, ao mesmo tempo, o Paraíso. Se atentares para a sutileza d
a questão, verás que o homem não podia reentrar no gozo de tal dignidade sem que se cu
mprisse uma destas condições: alcançar perdão proveniente da mera graça de Deus, ou pagar
por seu pecado impondo-se penitências.
Agora, agora, a profundeza dos desígnios do Criador, seguindo atentamente minhas p
alavras. Sendo limitado o seu valor, por decaído, não poderia o homem oferecer-se ja
mais como justo holocausto, incapaz que é de atingir a humildade necessária. Tanto q
uanto elevar-se enganosamente ele desejara, deveria curvar-se então. Por isso o ho
mem não estava em condições de remir a si mesmo. Portanto, a Deus se impunha, por Seus
meios, restaurar o homem na plenitude da via íntegra, ou por Sua bondade, ou por
Sua justiça, ou por ambas. Mas por ser verdade que a obra tanto mais satisfaz ao a
utor quanto mais reproduz as virtudes do coração que a tenha ideado, diligente e amo
roso; a divina bondade que em toda parte transparece, podendo proceder em prol d
a Redenção por um dos modos mencionados, quis combinar ambos os caminhos.
Não houve tal ato de grandeza nem entre a noite do Juízo Final e o dia da Criação do Mun
do, seja no campo da justiça, seja no da piedade. Eis que mais generoso mostrou-se
Deus utilizando Seu sangue para redimir o homem do que se meramente lhe perdoas
se. Outro processo empregado não bastaria a aplacar a alta justiça, necessário se faze
ndo que o Filho de Deus, humilhando-se, quisesse revestir-se de matéria. A fim de
que toda esta doutrina bem apreendas, insisto em um ponto. Dizes tu: Observo que
a água, o fogo, o ar, a terra e todos os seus compostos duram um tempo curto e so
frem alterações. E também são criações divinas e, pois, lógico seria que da corrupção estiv
sentos se os princípios por ti expostos representassem a verdade'. E eu te respond
o: os anjos, irmão, e o Paraíso inteiro onde ora te encontras foram criados na pleni
tude da sua essência. Os elementos, porém, que citaste, e todos os derivados deles,
são criados por influxo dos Céus, isto é, de coisa já existente. Assim foram criadas a m
atéria de que constam e a virtude formadora predominante nos astros que os cercam.
A essência própria dos brutos e das plantas recebe a sua virtude potencial através do
lume das estrelas santas, ao passo que a alma procede diretamente da Bondade Su
prema, e recebe desta amor poderoso.
"Podes disso deduzir a ressurreição, ligando, no raciocínio, o ser e a essência da vida
humana, quando o primeiro par foi criado."
Canto VIII
Dante e Beatriz alcançam o terceiro Céu - ou céu de Vênus -, onde encontram as almas dos
que, não obstante terem sido suscetíveis ao amor físico, foram agraciados com a salvação.
O mundo acreditava que a bela Vênus, que gira no terceiro epiciclo celeste, infund
isse no homem o amor carnal; por isso lhe tributava preces, rendia-lhe sacrifícios
, adorando juntamente com ela sua mãe Dione e seu filho Cupido, Dido embalou suave
mente, segundo se dizia. Deriva dela, de Vênus, o nome da estrela que às vezes acomp
anha o Sol, às vezes o precede.
Não me dei conta de que subira para tal astro; senti que tal ocorria ao notar que
ainda mais formosa minha dama se ia tornando. A centelha acaba por resultar em c
hama; entre duas vozes que cantam, percebe-se qual sustenta a nota e qual vocali
za. De modo igual vi nessa luz diversas luzes, mais ou menos velozes em seu movi
mento, naturalmente de acordo com a intensidade de graça divina que cada um trazia
consigo. De nuvem fria jamais sopraram ventos visíveis ou não que, em comparação com ta
is lumes, não parecessem demasiado lentos aos olhos de quem pudesse observar a mar
cha das luzes ao nosso encontro, deixando dança iniciada pelos Serafins nas derrad
eiras alturas. Além dos que primeiro se apresentavam, ecoava um hosana por tal mod
o suave que para sempre desejei tornar a ouvi-lo. Eis que um espírito, aproximando
-se mais, começou a falar, e disse:
"Estamos prontos a te satisfazer; pergunta o que for de teu agrado! Aqui, giramo
s num só grau de ardor com o coro angélico dos príncipes celestes, a respeito dos quai
s, tu, no mundo, cantaste assim: Vós, os motores do terceiro Céu... Tal é nosso empenh
o em te agradar que toda demora em fazê-lo será prazerosa".
Voltei-me para a minha dama, e ela, feliz em poder dar-me consentimento. À alma qu
e me fizera tão generosa promessa perguntei: "Quem és?", tendo a voz trêmula de gratidão
. A felicidade que tal pergunta infundiu naquela alma fez com que sua luz brilha
sse com intensidade ainda maior. E o espírito respondeu: "Foi curto o tempo que vi
vi na Terra. Mais tivesse ali permanecido e muitos males ora lamentados não teriam
ocorrido(1). Minha alegria por aqui estar mantém-me oculto nesta luz tal qual o b
icho-da seda em seu casulo. Muito me admiraste, e não o fizeste em vão, pois, se mai
s eu houvesse continuado no mundo, haveria de demonstrar com fatos meu afeto por
ti. A margem esquerda daquela região que o Ródano banha, depois de receber o Sorga,
esperava receber-me um dia por seu senhor hereditário, como também aquele corno de
Ausônia, que tem por burgos Bari, Gaeta e Crotona, que ao Verde e ao Tronto dão saída
ao mar. Já fulgia em minha fronte a coroa da região que o Danúbio rega [Hungria], depo
is que deixa as terras alemãs.
* (1) Trata-se de Carlos Martel, filho de Carlos II de Anjou, rei da Hungria (12
94). *
E a bela Trinácria [Sícília], que fumega, não por culpa de Tifeu mas por emanações vulcânic
naquele golfo onde ruge o vento Euro, ainda estaria obedecendo aos reis de sua
própria estirpe e de minha. Mas um governo que aflige e aterroriza o povo exaspero
u Palermo aos gritos de: Morra! Morra!" (2) Se mais prudente fosse meu irmão, teri
a fugido à avara indigência dos catalães, não dando azo a que ocorresse tal desgraça; pois
é mister que alguém, ao exercer mando supremo, por si ou por seu representante, ado
te cautela suficiente para não deixar seu barco afundar por excesso de carga. Eis
que sendo avaro, não por ascendência, mas por índole, cumpria que meu irmão escolhesse p
ara ministros homens menos preocupados com entesouramento".
"Acredito", disse-lhe eu, "que a alegria de ouvir provenha de Deus, no qual tudo
principia e termina; quero supor que sintas, com o falar, alegria igual, certez
a essa que faz aumentar meu contentamento. Quanto disseste, me é sobremodo caro, p
ois falas olhando para o espelho que é Deus. Pela jucundidade assim fruída, esclarec
e-me esta dúvida, suscitada por tuas palavras: como é possível que de doce semente res
ulte outra amarga?"
"Se eu te oferecer resposta correta, voltarás o rosto à verdade, assim como agora lh
e voltas as costas. O Bem que alegra este reino a que acabas de subir - Deus - f
az com que a Sua obra, nestes corpos celestes manifestada, torne-se virtudes apt
as a influírem nos mundos inferiores. Na mente divina, não somente é prevista a nature
za das coisas, mas também os meios para a salvação delas. Portanto, quanto de si despe
de este arco, vai atingir fim determinado, como toda flecha se dirige contra um
alvo.
* (2) Aos gritos de Morte aos franceses!"; Palermo derrubou o poder dos reis da
casa de Anjou, na ocasião das Vésperas Sictilianas. *
Se assim não fosse, o Céu que percorres não seria ordenado com razão e harmonia, mas um
lugar arruinado. Isso, contudo, não ocorre, pois as inteligências que regem estes mu
ndos não têm defeito, e nem poderia Deus ter falhado quando lhes deu a própria essência.
Gostaria que lhe desse razões mais relevantes?"
Tornei: "Não; não acredito que a Providência possa falhar". Ele continuou, então: "Seria
talvez pior se o homem não vivesse em consórcio organizado?" "Sim", respondi, "e ne
m preciso perguntar pelas razões dessa verdade." "E pode o homem ser na Terra cida
dão prestante sem ocupar-se em misteres diversos e por modos diversos? Não, se o mes
tre filósofo [Aristóteles] estiver certo." Assim prosseguiu ele a comentar, concluin
do: "Cumpre, em conseqüência, que efeitos diferentes procedam de causas diferentes.
Eis por que, no mundo, um nasce Sólon, outro Xerxes, ou qual Melquisedeque, ou com
o o que perdeu o filho voando nos ares [Dédalo]. Os céus giram incessantemente, e en
viam influxos aos mortais, sem cuidar de qual a casa em que venha a baixar esta
ou aquela essência. Assim se explica haver sido Esaú tão diferente de Jacó, do qual, não o
bstante, era irmão sangüíneo; e que Rômulo tenha nascido de pai tão humilde que, para nobi
litarem sua ascendência, disseram-no filho de Marte. Não fosse o influxo dos Céus, os
filhos resultariam sempre iguais aos seus pais. Penso agora estar claro para ti
o que antes permanecia obscuro. Para que bem conheças, contudo, a estima que te de
voto, desejo que por ti mesmo descubras outra verdade. A natureza humana, se o c
aminho da fortuna não encontra, fracassa sempre, como a planta colocada em solo in
apropriado. Se os mandatários do mundo indagassem de cada criatura qual a sua natu
ral inclinação, encontrar-se-iam sempre artesãos afeitos ao seu ofício. Mas, ao contrário,
fazem com que se torne religioso aquele que nascera para guerreiro, ou fazem re
i a quem teria sido sacerdote exímio. Por essa razão, é quase sempre fora de sua estra
da que os homens rumam".
Canto IX
No terceiro Céu, depois de ter deparado Carlos Martel, Dante ouve de Cunizza de Ro
mano previsões sombrias acerca da Marca Trevisana. Dante também encontra Folco di Ma
rsiglia, que por sua vez lhe aponta a prostituta Raab, a qual acolheu em sua cas
a.
Depois de esclarecer minhas dúvidas, bela Clemência, Carlos narrou os males que atin
giriam sua descendência. "Cala-te!", disse-me ele. "Deixa os anos se passarem." As
sim, só posso dizer que justo pranto virá em seguida aos vossos danos. E aquela fulg
urante alma voltara já para o Sol que de muitas virtudes a exornava, sendo, como é,
o Bem que supre as criaturas. Ó fúteis, vãos mortais que do Bem Supremo afastais os co
rações, por vaidade apenas!
Entretanto, outra luzerna de mim se avizinhou, demonstrando, com o aumentar do c
larão circundante, seu agrado em fazê-lo. Os olhos de Beatriz, fixos em mim, como ha
viam permanecido durante o diálogo anterior, estimulavam-me a ouvir. Então, eu disse
: "Aceda ao meu desejo sem hesitar, provando que em ti se reflete meu pensamento
". A isto, o resplendor, ainda ignoto desde onde cantava, disse, atendendo-me: "
Naquela parte malvada da bela Itália, entre Rialto e as nascentes do Brenta e do P
iave [província da Marca Trevisana], há uma colina de pequena elevação. Dela, em tempos
idos, baixou fogo que atiçou em todo o país terrível incêndio(1).
* (1) O "fogo" causador do incêndio é Ezzelino II da Romano, que governou Pádua; ele f
icou famoso pela crueldade com que dominou os habitantes da região da Marca Trevis
ana. *
Da mesma raiz procedemos, ele e eu. Cunizza foi meu nome, e se nesta estrela me
encontro é porque venceu-me a atração de Vênus, que rege os amores. Alegremente, a mim m
esma perdôo o caminho que em vida percorri, o qual não me causa desgosto; entre os h
omens seria mal compreendido este meu modo de pensar. A fama desse alma luminosa
[Folco di Marsiglia], que mais próxima de mim cintila, foi grande e será bem longa,
pois, antes que ele se extinga, há de conhecer cinco inícios de século. Decide se con
vém ou não ao homem ser virtuoso; se morto sendo para a vida terrena, existe, com vi
da nova, na eternidade. Não é porém este o ideal do povo que vive entre os rios Adige
e Tagliamento; é gente que não consegue se desgarrar dos malefícios, apesar dos infortún
ios que estes lhe acarretaram. Assim é que, em breve, a obstinação maldosa de Pádua ting
irá de vermelho as águas do paul (2). Lá onde o Cagnan e o Sile se reúnem, há quem agora a
ltivamente exerça mando e, contudo, já está aberto o laço que o derrubará. Feltro há de cho
ar a traição de seu pastor, o maior criminoso que Malta [presídio para condenados à prisão
perpétua] já deparou. O vaso que pudesse conter o sangue a ser derramado pelos ferr
areses teria de ser enorme; e seria impossível pesá-lo. Sangue vertido por aquele ma
ldoso pastor, por ardor partidário movido. Tal oferenda condiz com os feros hábitos
daquela terra! No Empíreo existem espelhos aos quais vós, homens, chamais Tronos, ma
s que, por refletirem a vontade de justiça de Deus, fazem com que eu tenha esta pr
ofecia por certa".
* (2) Os paduanos iriam sofrer uma sanguinolenta derrota lutando contra seu inim
igo Cangrande della Scala, em 1314. *
Silenciou então, e eu percebi que sua atenção voltara-se para outros alvos, retornando
ao círculo do qual viera a falar comigo. Aquela outra alma a que aludira [Cunizza
], fulgindo com esplendor especialmente vivo, brilhou aos meus olhos qual rubi g
olpeado por raio de sol. Assim como no mundo o riso demonstra alegria, no Céu ela é
demonstrada pelo fulgor; assim como no Inferno os gestos soturnos denunciam o pa
decimento. "Deus vê tudo", disse-lhe, "e o teu ver se aclara no Criador. Assim, ne
nhum desejo passa despercebido ao teu conhecimento. Tu que cantando deleitas o Céu
com voz igual à dos Serafins, e que te cobres com seis asas, por que não satisfazes
o meu desejo? Eu, de mim, falaria sem mesmo ser solicitado, se percebesse tal d
esejo em ti, como estou certo de que estás percebendo em mim."
"O maior dos vales por água inundados", começou a responder, "afora o oceano que cir
cunda toda a Terra, estende-se entre as opostas plagas, em direção contrária à do Sol; t
anto que a linha do horizonte, para quem está a ocidente, é meridiano, para quem está
a oriente. Nasci nas proximidades desse imenso vale, ali entre o Ebro e o Magra,
divisa entre a Toscam e Gênova. Tendo praticamente o mesmo nascente e poente, estão
no mesmo meridiano Buggia e a cidade que foi meu ninho, e cujos habitantes ting
iram-lhe o porto com seu sangue [Marselha]. Sou Folco; e agora, mercê deste lume,
vou ardendo pelo Céu tal como outrora este mesmo lume me fez arder de zelo. Mais d
o que eu, enquanto tive idade, não conheceu ardor amoroso a própria cilha de Belo [D
ido], a que encheu de ciúmes a Siqueu e a Creusa; nem mesmo foi igual a mim aquela
Rodopéia, abandonada por Demofoonte; nem o antigo Hércules, a Íole devotado.
"Aqui cabem risos, não remorso, mas não pela culpa de haver amado - essa o esquecime
nto já apagou - e sim pelo encontrar no amor a vontade divina que a ele nos dispôs. É
por esse preceito que se observa aqui sabedoria cujo efeito motiva graças que poss
ibilitam à Terra nivelar-se ao Céu. Desejo satisfazer todos os teus anseios de conhe
cimento; devo, portanto, ir um pouco além com o meu discorrer. Almejas saber quem é
essa alma luminosa próxima de mim, a resplandecer qual raio solar reverberante. Sa
be, pois, que ali está Raab, incluída em nosso coro, onde brilha com sumo esplendor.
Neste céu, onde chega a ponta do cone de sombra projetado pela Terra, ela foi rec
ebida antes de qualquer outra alma, elevada por Cristo em triunfo. Justo foi que
se lhe reservasse lugar num dos céus como sinal da grande vitória alcançada na cruz,
por Cristo.
"Raab cooperou para a primeira vitória de Josué na Terra Santa, glória que hoje pouca
importância tem para o papa. A tua cidade [Florença], tendo sido assento daquele espír
ito que primeiro voltou as costas ao Criador, tornando-se causa, por inveja, de
aflição universal, produziu também uma flor maldita [a moeda florentina], que, transvi
ando as ovelhas e os cordeiros, transformou em lobo o pastor. Por ela votam-se a
o abandono os Evangelhos e os doutos ensinamentos, utilizando, ao contrário e em d
emasia, as páginas das Decretais, já gastas pelo uso. Tendo posta nestas leis a sua
atenção inteira, papa e cardeais esquecem-se de relembrar Nazaré, que viu abertas as a
sas do Arcanjo Gabriel. Entretanto, o Vaticano, cemitério da milícia que seguiu Pedr
o, em breve será libertado dos infiéis."
Canto X
O poeta sobe ao quarto Céu, ou céu do Sol. Depara as almas dos teólogos, cuja luz bril
ha mais do que a da própria estrela em que se acham. Uma dessas almas é a de Tomás de
Aquino.
Deus Pai, a contemplar seu Filho mediante o Espírito Santo, que emana de Um e de O
utro eternamente, criou o visível e o invisível, de modo tão perfeito que quanto à divin
dade de seu Autor dúvida não paira. Ergue comigo, leitor, os olhos para o alto e obs
erva o ponto onde o equador e o zodíaco se cruzam. Dali podes imaginar a grandiosi
dade da obra do Criador, que por muito amar a Sua obra nunca o Seu olhar dela de
svia. Nota como desse ponto parte o zodíaco, que contém os planetas e se alonga, cum
prindo, nesse ponto, os reclamos do mundo, que quer benefícios dos astros. Se a su
a estrada não guardasse tal obliqüidade, muita força no Céu seria inane e sua potência, na
Terra, não existiria. Se tal linha se afastasse um pouco mais do que na realidade
ela diverge, a ordem universal se perderia. Medita, leitor, nestes prodígios de c
uja grandeza antecipei-te algo; pois sei que aprecias a satisfação antes do cansaço. P
reparei-te o prato, serve-te dele se for de teu agrado. Quanto a mim, a matéria de
que trato não me permite nem por momentos que em outro assunto ponha a atenção. É o min
istro maior da natureza [o Sol], que faz sentida na Terra a influência do Céu e faz
com que o tempo seja medido por sua luz. Do cruzamento a que me referi, ele se a
proximava, avançando em espirais para o ponto mais próximo de nós. No seio de tal astr
o eu já me encontrava sem, no entanto, me dar conta disso; tal qual ocorre ao home
m que não conhece seus pensamentos antes de que os tenha formulado.
Beatriz apareceu, demonstrando aumento em tudo para melhor, e isso ocorreu tão rap
idamente como nunca antes havia visto. Radiosa que era antes, agora em pleno Sol
tornara-se resplendente em altíssimo grau, não porque houvesse ocorrido mudança em se
u brilho, mas porque este aumentou. Embora eu invoque engenho e arte, não descreve
rei tal prodígio de modo que por outros possa ser compreendido. Mas pode-se acredi
tar nele e desejar vê-lo. Não haja estranheza se baixa permanece minha fantasia quan
do desejara erguer-se, pois vista alguma além do Sol alcançou. Ali resplandeciam as
almas destinadas ao quarto céu do Deus Pai, que as mantém extasiadas na contemplação dos
mistérios da Encarnação e da Trindade. Beatriz disse: "Rende graças, infindas graças, ao
Sol dos Anjos que por Sua bondade te permitiu subir até aqui, ao Sol!" Coração de mort
al jamais esteve tão disposto à gratidão e a abandonar-se a Deus com todo seu reconhec
imento como eu estive ao ouvir tais palavras. Meu amor por Ele foi tão forte naque
le momento que superou até meu amor por Beatriz. Ela não se aborreceu, sorriu até; e p
ercebi tamanho brilho em seus olhos que se dividiu em direções diversas a atenção que so
mente em Deus eu colocara.
Inúmeros fulgores, claros e vivos, circundavam, qual coroa de que fôssemos o centro.
Mais doce era o seu canto do que forte sua luz. Por vezes, é assim que vemos a Lu
a, circundada por bem definido halo, quando o ar, saturado de vapores, reflete o
luar.
No Paraíso, de onde vou regressando, há maravilhas tão preciosas e raras que apenas al
i podem ser vistas e, pois, não é possível descrevê-las. Tais vozes eram uma daquelas ma
ravilhas! Assim, quem não se empenha em subir a escutá-las, age como quem espera ouv
ir um mudo contar novidades. Os sacros lumes, cantando, deram três voltas ao nosso
redor, como astros que em torno do seu pólo vão rodando. Lembraram-me as damas que
dançando param por instante, no aguardo de notas que de novo as embale. Deles ergu
eu-se uma voz:
"O raio da graça, onde prende ardor o amor mais puro [Deus] e cresce por influxo d
ela, tanto resplende em ti, a guiar-te na escalada celeste pela qual ninguém desce
sem tornar a subir, que aquele de nós que não satisfizesse teus desejos de conhecim
ento não estaria no gozo de sua liberdade. Buscas saber como se enflora essa coroa
que cinge a fronte da formosa dama que te guia e estimula na caminhada. Fui cor
deiro do rebanho santo que vai clamando na voz de Domingos, grei que propicia a
salvação daquele que do Bem não se desvia. Esse que pela direita me está mais próximo foi
meu irmão, meu mestre. Em Colônia chamou-se Alberto e eu chamei-me Tomás de Aquino. Se
desejas conhecer os demais lumes, segue com os olhos o meu falar, fitando essa
coroa de beatos. Aquela alma ridente é a de Graciano da Chiusi, que no foro civil
foi tão nobre quanto no religioso, a ponto de merecer o Paraíso. O seguinte a adorna
r o nosso coro foi aquele Pedro Lombardo, que, semelhando à viúva da história, ofertou
à Igreja o seu tesouro. A quinta das luzes, ultrapassando as mais em brilho, arde
em tanto amor que o mundo terreno espera ainda receber seus bons influxos (1).
Tão alta foi sua mente, tão vasto e profundo seu saber, que certo quanto a verdade o
utro igual não se ergueu na Terra. A seu lado está alma a exultar em seu lume, tal q
ual o círio ilumina-se com sua própria chama. Entre os mortais, foi o que mais fundo
alcançou conhecer a natureza e a hierarquia dos anjos (2). Na luz menor, serena e
pura, escarnece dos atuais desvios dos cristãos o advogado [Paulo Orósio] cujos esc
ritos tanto agradaram a Agostinho. Creio que já tenhas identificado o oitavo dentr
e eles. Na contemplação de Deus se enleva essa alma santa [Mânlio Torquato] que o mund
o falaz castigou injustamente, por meio da pessoa que dele apenas ouviu e recebe
u o bem. Seu corpo jaz em Cieldauro; sua alma subiu a estas paragens divinas dep
ois de exílio e de martírio demorados. Eis Isidoro, Beda [Beda de Weremouth] e Ricca
rdo [Riccardo di San Vittore], que foi mais que homem ao tratar de teologia e de
filosofia - foi sobrehumano. Esse de quem acabas de desviar a vista pondo-a em
mim considerou, imerso em profundos estudos, que a morte talvez demorasse a cheg
ar. Essa é a luz eterna de Siger [Siger de Brabante], cujas verdades, ditas sem re
ceio, despertaram o ódio."
Como na hora em que a esposa de Deus inicia o dia cantando para delícia do Esposo,
e o tintim dos sinos, com vibrantes notas, comove a alma boa, assim vi mover-se
a roda gloriosa dos lumes, uma a uma entoando seu canto, com harmonia que apena
s no Paraíso - onde a perfeição e a alegria são eternas - poderia ser encontrada.
* (1) Trata-se do Rei Salomão.
(2) É o espírito de Dionísio Areopagita, convertido por São Paulo, e suposto autor da De
Coelesti Hierarchia. *
Canto XI
Entre os teólogos, no quarto Céu, Tomás de Aquino continua a falar a Dante. Tomás de Aqu
ino faz comentários sobre São Francisco e São Domingos.
Ó traiçoeira ambição humana! Como são falsos os argumentos com que os homens prendem-se ao
chão! Uns se escondem atrás das leis; outros atendem a aforismos; um faz-se sacerdo
te; outro governa valendo-se de força ou de fraude; dedicando-se ao roubo; a gerir
negócios; consumindo-se em orgias; dando-se ao ócio. Mas eu, liberto destas inclinações
, com Beatriz, alcei-me ao Céu, e fui acolhido com glória. Cada qual dos lumes regre
ssara ao ponto do círculo onde estivera antes, firme a luzir qual círio em candelabr
o. E ouvi, provinda da luz que primeiro falara [Tomás de Aquino], voz suave, acent
uando a pureza do seu brilhar:
"Assim como reflito essa luz eterna, ao fitá-la posso entender os teus pensamentos
e as causas deles. Estás em dúvida e esperas que te esclareça, utilizando linguagem d
ireta e clara, à altura do teu entendimento. Palavras que te dirigi há pouco deram o
rigem a tais dúvidas: encontra salvação a alma daquele que do Bem não se desvia' e outro
igual não se ergueu na Terra'. Necessária se faz uma explicação. A Providência governa o
mundo com tamanha sabedoria que ofuscado se perde o entendimento de quem pretend
a desvendar-lhe os mistérios. À Esposa d'Esse que em alto brado na cruz lhe deu o be
ndito sangue, em penhor de união, foram dados pela Providência, a fim de robustecer-
lhe o ânimo e a fé, dois príncipes [São Domingos e São Francisco de Assis] que a seguissem
por onde fosse, e em todas as circunstâncias. Um deles guardou sempre amor seráfico
em relação a ela. o outro, por seu saber, espalhou pela terra querúbica fama e glória.
Apenas de um deles eu te falarei, dado que louvar a um é louvar a ambos, pois os d
ois perseguiram o mesmo objetivo.
"Entre Tupino e o Rio Chiascio, que rola do monte Inzino, escolhido outrora para
eremitério de Santo Ubaldo, fértil encosta pende da montanha. É dali que, pela Porta
do Sol, descem a Perúgia o frio e o calor, enquanto na outra vertente do monte Subás
io Nócera e Gualdo padecem cruel jugo. No ponto onde tal encosta mais se acentua,
nasceu para o mundo um sol que brilha tanto quanto aquele contemplado pela gente
de junto ao Ganges.
"Aquele que pretender dizer o nome daquele lugar, não o convoque unicamente por As
sis, pois estará dizendo pouco; chame-o Oriente, que é o berço do Sol. Não havia ainda e
ssa luz se afastado bastante de seu nascimento quando já a Terra começou a receber o
conforto de suas altas virtudes. Muito jovem entrou em conflito com o pai por a
mor daquela dama [a pobreza]) à qual, assim como à morte, ninguém abre a porta com pra
zer. Então, na corte episcopal, diante de seu pai, recebeu tal dama por esposa ama
da e votou-lhe, desde aí, amor. Viúva e desprezada viveria ela onze séculos, e mais ai
nda, sem por outro amado ser procurada. Não é dizer a mesma coisa o afirmar que esse
guerreiro [César] temido pelo mundo encontrou-a - hóspede constante - na choupana d
o pescador Amiclas. Também não é o mesmo proclamar que ela própria, fiel, íntegra, enquant
o Maria permanecera ao pé da cruz, subira com Cristo para o alto da cruz. Para que
possas entender-me bem, direi os nomes de tais esposos: Francisco e Pobreza cha
maram-se. Sua alegria, suas feições serenas, o meigo semblante, o amor perfeito, ger
avam em todos pensamentos santos, tanto que o venerável Bernardo, o primeiro a des
calçar-se para correr ao encontro daquela santa paz, ainda supunha fazê-lo com muita
lentidão. ó riqueza oculta, és o verdadeiro bem! Eis descalço Egídio, descalço também Silv
re, seguindo o esposo por amor à esposa. Dali parte para o mundo aquele pai e mest
re, com a sua consorte, tendo já família consigo, distinguida, na cintura, pelo cordão
humilde. Não leva os olhos baixos, nem tíbio o coração por ser filho de Pedro Bernardon
e ou por sofrer humilhações sem conta. Cheio de santo zelo, revelou sua dura vida mo
nástica ao Papa Inocêncio, do qual obteve o primeiro consenso para sua ordem.
"E quando progrediu, a família pobre daquele cuja vida heróica recebe no Céu louvores
de anjos foi distinguida pelo Espírito Santo, com segunda coroa, ao tempo de Honório
, em atenção ao piedoso desejo de seu fundador. Depois que, por sede de martírio, dian
te do sultão do Egito pregou a lei de Cristo e as palavras dos apóstolos, percebendo
aquele povo imaturo para o batismo e não desejando que seu zelo resultasse inútil,
regressou ao trabalho da messe italiana. Em dura rocha - o Monte Alverne - entre
o Tibre e o Àrno, recebeu de Cristo o sinete maior, que por dois anos apresentou
no corpo. Quando Aquele por quem praticou tanto bem chamou-o a Si, a fim de dar-
lhe a merecida recompensa por sua caridade, recomendou a seus irmãos, seus herdeir
os, amassem a dama [a pobreza] por ele tão querida e fossem constantes na fé. Do sei
o da pobreza partiu então, regressando ao legítimo reino, desejando para o corpo a t
erra nua, tão-somente.
"Assim sendo, pensa quem foi o digno seguidor de Pedro no conduzir por mar encap
elado a Santa Barca em seu rumo correto! Tal o nosso Patriarca: quem lhe aceita
os ensinamentos assume, segundo percebes, grave encargo de praticar obras pias.
Mas o seu rebanho, novo pasto apetecendo, viu-se forçado a procurar e a derramar-s
e por variados rumos. E quanto mais erradias e dispersas se encontrem as suas ov
elhas, menos fartas de leite retornam ao redil. Existem ainda as que, temendo pe
rigos, aconchegam-se ao pastor; mas estas são pouquíssimas.
"Se fui bastante claro; se me ouviste atentamente, e guardaste na mente o que eu
disse, ao menos em parte terei satisfeito o teu desejo; mas ainda verás onde
é que a ordem se desmerece, estando a correção nisto: Encontra salvação aquele que não se d
svia do caminho do Bem.
Canto XII
Ainda no quarto Céu, um outro círculo brilhante de teólogos se coloca ao redor do prim
eiro. Um dos teólogos desta nova grinalda é São Boaventura, que narra a Dante a história
de São Domingos.
Assim que a nobre alma luminosa pronunciou a última palavra, a santa coroa se pôs em
movimento; e não dera volta completa quando foi envolvida por um círculo ainda maio
r, ambos no canto e no movimento coincidindo. Tal canto superava o das Musas e d
as sereias, na proporção em que o raio incidente supera em luminosidade o raio refle
xo. Rodavam os dois arcos, paralelos, iguais nas cores lembrando o arco-íris, anci
la de Juno a surgir entre nuvens tênues. O arco externo parecia nascer dos efeitos
do interno, qual ocorreu com a ninfa que por amor se consumiu, assim como o Sol
consome a névoa.
Deles decorre a crença humana de haver sido firmado um pacto entre Deus e Noé, segun
do o qual o mundo não conhecerá outro dilúvio. Seguiam girando ao nosso redor as duas
grinaldas de rosas sempiternas; a interior ia respondendo às vozes da exterior. Ac
elerava-se a dança e crescia o gáudio da festa animada por cantos e flamejantes espl
endores de tais luzes afáveis e ledas, quando pararam, sustidas ambas por um só coma
ndo, assim como se fecham e se abrem os nossos olhos, alertados por algo que lhe
s interesse. Do imo de uma das luzes recém-vindas desprendeu-se voz para a qual me
volvi, pelo modo como a agulha da bússola se volta em direitura à estrela polar. E
disse:
"A graça que ora brilha em mim impõe-me falar sobre esse outro grande homem da Igrej
a [São Boaventura], pois nele se refletem os elogios dirigi dos ao primeiro. Ambos
militaram pela mesma causa; cabe, pois, resplenderem ambos com a mesma glória. O
exército de Cristo, custosamente reorganizado e diminuto, lento e pelo temor trans
ido, seguia a bandeira divina quando Aquele Imperador que reina eternamente [Deu
s], reparando na milícia que avançava não por méritos próprios, mas por infusão da graça, d
diu, como já ouviste dizer, enviar em socorro de Sua esposa dois campeões ao redor d
e cuja pregação e de cujas obras o povo cristão, disperso, viesse a congregar-se. Na r
egião onde o zéfiro suave faz germinar o primeiro verde primaveril [Espanha] para só d
epois, pouco a pouco, reverdecer a mais Europa; não distante da costa onde quebram
as ondas do mar no qual o Sol, concluído o seu curso, vai repousar, situa-se Cala
ruega, em solo protegido pelo poderoso escudo em cuja representação um leão domina e é d
ominado. Nela nasceu o defensor ardente da fé cristã, o santo atleta, amável para os s
eus, feroz para os inimigos. Ao ser criado, foi a sua alma exornada de tamanha v
irtude que ele fez profecias ainda no ventre de sua mãe (1).
* (1) A mãe de São Domingos, grávida dele, viu em sonho um vigoroso animal branco e ne
gro- as cores dos dominicanos-, levando na boca uma tocha com que incendiava o m
undo. *
Logo entre ele e a fé, na pia batismal, foram celebrados solenes esponsais, com vo
to de mútua salvação. Sua madrinha, que as respostas deu por ele no batismo, viu, como
em sonho, a colheita admirável que na seara de Deus haveriam de fazer ele e seus
seguidores. E para que no próprio nome demonstrasse o que efetivamente era, inspir
ação divina sugeriu fosse batizado com o possessivo que o ligava a Deus. Por isso, D
omingos foi chamado e falo dele como do hortelão a quem Deus elegeu para ajudá-Lo no
amanho do seu horto. Mensageiro e servo quis ser e o primeiro amor que demonstr
ou no mundo foi ao primeiro ditame dado por Cristo.
Muitas vezes encontrou-o a ama prostrado em terra, desperto e silencioso, como a
dizer: Para isto fui destinado!' Ó pai feliz de fato o seu! Realmente bem-aventur
ada sua mãe - se o nome Joana tem o significado que o povo lhe atribui (2). Não o at
raía o mundo, que se esforça por seguir ao Ostiense e a Tadeu, mas por apetite quant
o ao alimento espiritual em breve tempo se fez doutor sapiente, vigilante custódio
da santa vinha, que prestes se estiola se tratada por vinhateiro negligente. Re
correu à sede pontifícia - hoje tão pouco atenta ao clamor de pedintes justos, não por c
ulpa propriamente sua, mas de quem imerecidamente a ocupa. Não foi pedir dispensas
lucrativas, nem a primeira vaga a ocorrer em postos bem rendosos, nem dizíamos qu
e pertencem aos pobres por direito. Rogou, sim, permissão para combater os erros d
os hereges, defendendo a semente da fé, da qual vês vinte e quatro luminosas plantas
. "Armado da doutrina santa, por seu esforço, qual torrente que das alturas desce,
espantou o mundo com apostólico fervor.
* (2) O pai de São Domingos chamava-se Feliz, e a mãe, Joana - nome que em hebraico
significa portadora de graças". *
No extirpar as raízes da heresia, mais se incendiava o seu ímpeto onde mais tenaz en
contrava a resistência. Desse caudal (de ardor) derivaram arroios que, agora irrig
ando o orbe católico, mais vida e força dão-lhe aos arbustos. Tal foi ele - uma das ro
das sobre as quais se moveu, em defesa, o carro da Santa Igreja, levando os bons
cristãos a derrotar os corruptos.
Talvez devesse patentear diante de ti as excelências da outra roda a respeito da q
ual Tomás, antes de mim, falou com tanta sabedoria. Mas a trilha que essa roda [a
ordem dos franciscanos] traçou com as regras de seu fundador jaz abandonada, de mo
do tal que o bolor, agora, impera no tonel onde houvera bom vinho. Os franciscan
os, que lhe seguiram os passos, da vereda primeira tanto se desviaram que pratic
am agora o contrário daquilo que o santo pregara. Desta ruim sementeira ver-se-á o r
esultado quando o joio for atirado fora, em vez de recolhido. Bem sei que, volve
ndo folha a folha os nossos registros, acharia um, ainda, em que se pudesse ler:
Sou quem deveria ser'. Mas este não veio nem de Casale nem de Acquasparta; pois d
ali vêm apenas os que ou falseiam ou amesquinham as normas.
"Sou Boaventura; nasci em Bagnoregio, e no desempenho de elevados cargos procure
i sempre deixar os interesses materiais em segundo plano. Nesta mesma coroa de l
uz encontram-se O Iluminado' e Agostinho, dois entre os primeiros que, tornando-
se frades descalços, cingidos de cordão, serviram a Deus. Ugo da San Vittore está com
eles e bem assim Pedro Mangiadore e Pedro Hispano, o que obteve fama pelos seus
doze livros. Estão ainda aqui o Profeta Natã, o metropolitano João Crisóstomo, Anselmo e
Donato, incomparável na arte da gramática. Vê ainda a Rabano e sabe que ao meu lado b
rilha o calabrês Abade Giovachino, que tem o dom de profetizar. Se exaltei o grand
e paladino, eu o fiz movido pela inflamada cortesia de Frei Tomás em sua oração perfei
ta. E toda esta companhia está perfeitamente de acordo com isso".
Canto XIII
Tomás de Aquino volta a falar a Dante (ainda no quarto Céu, ou céu do Sol). Ele esclar
ece ao poeta a dúvida acerca da incomparável sabedoria de Salomão.
Quem desejar compreender o que eu pude então ver, que grave minha narração na mente co
mo se em rocha firme. Imagine quinze astros, em diversos pontos, iluminando o céu
com luz capaz de penetrar a nebulosidade sideral; as refulgentes rodas do carro
luminoso que no espaço imenso encontra espaço onde girar dia e noite, sem sair de no
ssa vista; imagine a boca daquele corno que principia junto ao eixo em torno do
qual vai girando a primeira esfera; considere esses dois astros signo idêntico àquel
es que a morte da filha de Minos originou. De ambas estas constelações imagine que s
e cruzam os raios, girando a primeira inclusa na segunda, rodando porém as duas em
sentido oposto. Assim imaginando, terá o leitor idéia pálida de qual fosse a dupla co
nstelação que eu via ao contemplar a dança dos bem-aventurados a circundarem o ponto e
m que me encontrava.
Tanto esse mistério transcende a compreensão humana quanto o lento fluir das águas do
Rio Chiana é menos rápido que o velocíssimo girar do primeiro céu que a todos os mais pr
ecede. Naquele cantar, nem Baco nem Apolo foram louvados, mas sim a divina essênci
a da Santíssima Trindade, numa delas honrando o Ser Humano de Deus descendido. Ter
minados ao mesmo tempo o canto e a dança, puseram os lumes santos em nós a sua atenção,
transferindo a sua felicidade do cantar e do dançar para a satisfação de esclarecer a
perplexidade e as dúvidas que me atormentavam.
Rompendo o silêncio, levantou a voz entre as almas aquela que narrara a admirável vi
da do "mendigo de Deus". Disse:
"Já dissipei algumas das tuas dúvidas, havendo separado o que é verdadeiro do que não é. A
esclarecer as outras, o santo amor me impele. Acreditas ter existido peito do q
ual a retirada costela originou a boca gentil cujo pecado de gula é pago pelo inte
iro gênero humano; e igualmente crês nesse outro peito que, varado pela lança, compens
ou o pecado original e todos os mais pecados cometidos depois deste, de modo a e
quilibrar de novo os pratos da justiça.
Assim também acreditas que toda ciência que um homem possa mostrar lhe vem de Deus -
O qual criou tanto Adão quanto Jesus e está em todos os homens. Por isso te causa e
spécie que eu dissesse: tão profundo o seu saber que outro igual não se ergueu na Terr
a', quanto ao eleito que na quinta luz se acha [Salomão]. Abre teu entendimento ao
que ora explico e verás, por fim, que a tua crença e a minha demonstração coincidem na
pura verdade, tão exatamente quanto é um só o ponto central de uma circunferência. Aquil
o que não pode morrer e aquilo que de morte é passível não passam de esplendores de uma
idéia concebida por Deus como ato de amor. Essa luz que de seu Foco [o Padre] derr
ama, jamais d'Ele separa-se nem do outro amor que fica sendo o terceiro [o Espírit
o Santo]. Por mercê de Sua graça, que, por ser Sua, é como se em espelho se refletisse
; em nove coros angélicos é dividida, embora eternamente uma permaneça. Daí vai baixando
gradativamente às últimas potências, atenuando tanto o fervor da graça que, ao final, g
era apenas breves existências. E nesta contingência entendo incluídas aquelas criações - q
ue o céu, em seu movimento, vai multiplicando - com sementes ou sem estas. A matéria
de que são compostas e o obreiro que lhes dá forma nem sempre concordam com a idéia d
ivina relativa à criação. Disso resulta que plantas iguais produzam frutos desiguais,
e que vós, homens, nasçais com diferentes índoles.
Se tal matéria fosse oferecida ao Criador no ponto adequado, e se a virtude celest
e, ao baixar, não se atenuasse, em todas aquelas coisas a luz da virtude divina br
ilharia por igual. A natureza, porém, se faz imperfeita, qual artista que, embora
conhecendo a sua arte, executa-a com mão tremente. Por isso, o ardente Amor divino
[o Espírito Santo], a lúcida visão (o Filho) da primeira das virtudes (o Pai) sobre t
al criação, faz que nesta se acrisole a perfeição. Com tal perfeição foi criada a Terra, a
im de receber o mais perfeito dos animais; e, permanecendo pura, concebeu a Virg
em. Neste ponto do nosso discorrer, aprovo o teu pensamento de que a natureza hu
mana nunca se apresentou nem se apresentará jamais qual foi nestas duas criaturas.
Mas se aqui eu terminasse o meu discurso, com razão poderias objetar: Como, então,
Salomão pôde ter sido igual em sabedoria?' "Assim, para que resulte bem claro aquilo
que aparentemente não o é, anota de quem se tratava e o pedido que fez quando Deus
lhe ordenou: Pede!' Falei bem claro a fim de que tua mente facilmente compreende
sse que foi digno rei quem então pediu sabedoria para discernir entre o que um rei
deve praticar e o que não deve. Não quis saber quantas fossem as inteligências angélica
s motrizes do Céu; nem se de uma premissa necessária e de uma outra não necessária possa
derivar uma conseqüência necessária; nem se non si est dane primum motum esse ou se e
m um semicírculo é possível inscrever um triângulo sem pelo menos um ângulo reto. Se enten
deste o que até aqui eu disse, terás advertido que minhas palavras louvavam a prudênci
a do mais sábio entre os reis.
Assim, se meditares no que eu disse, entenderás que me referia aos reis, os quais,
sendo muitos, contam entre si poucos sábios e prudentes. Com esta acepção é que deves g
uardar o meu dizer. "Serve-te dela como chumbo para os pés que te permita avançar le
ntamente. Não tenhas pressa em responder "sim" ou "não", pois revela-se o mais tolo
entre os tolos quem sem meditação afirma ou nega; eis que num e noutro caso cumpre t
er ponderação, sendo a afoiteza causa de que muitas vezes a opinião geral conclua erro
neamente com a paixão e não com o raciocínio. Mais do que inútil é deixar o porto - pois a
ele não retorna ileso da procura - aquele que busca o vero mas a sua virtude não pr
atica. Disso deram prova ao mundo Parmênides, Melisso, Brisso e muitos outros que
partiram nessa viagem sem saber como nem para onde iam. Assim fizeram Ário, Sabélio
e outros estultos, como espadas a mutilar as Escrituras, a corrompê-las.
"Quem se apressa em julgar imita aquele que pretende calcular a safra de trigo a
ntes que a seara amadureça. No inverno vi espinheiro mostrando puas duras e agress
ivas, para cobrir-se de flores na primavera, e barco vi navegar em rumo certo, e
, depois de vencer a rota inteira, naufragar junto ao porto já alcançado. Não creiam D
ona Berta e Dom Martinho que, embora um furte e a outra dê esmolas, possam antecip
ar o julgamento divino; pois é bem provável que um se perca e a outra seja salva".
Canto XIV
Chegam novos espíritos ao quarto Céu, os quais formam outra coroa luminosa - a terce
ira - em torno das duas que já havia. O poeta é alçado, juntamente com Beatriz, ao qui
nto Céu.
Quando a alma iluminada de Tomás terminou sua fala, veio-me à mente a imagem da água e
m um vaso, que, ao ser tocada no centro, move-se em direção à borda, e da borda ao cen
tro. Esta imagem me acorreu à mente pela similitude de seu discurso e daquilo que
em seguida a Beatriz disse: "O que este mortal necessita conhecer não o disse com
voz e menos com o pensar. Aliás, nem cogita de que lhe expliqueis a origem de outr
a verdade. Informai-o se a radiosa substância em que vos enflorais será igual pela e
ternidade. E se assim deve suceder, dizei como será isso possível após o Juízo Universal
, quando houverdes readquirido o invólucro carnal, e como poderão os vossos olhos su
portar luz tanta, e tão forte".
Vez por outra, impelidos por excesso de júbilo, aqueles que andam à roda avivam os g
estos e elevam a voz. Tal ocorreu nos círculos daqueles espíritos eleitos que, ao ou
vir a piedosa rogatória, sublimaram-se no dançar e no cantar. O que se lamenta no mu
ndo, ao perder a vida terrena para viver no Céu, o faz por não conhecer o encanto de
sta alegria eterna. Quem reina aqui é Uno, é Duplo, é Triplo e eternamente perdura em
três, em duas, em uma pessoa - não circunscrito e tudo circunscrevendo. Cada espírito
entoou três vezes este louvor com melodia tão grata que por si só fora prêmio suficiente
. Ouvi o círculo menor e que por primeiro aparecera - com voz modesta [a voz de Sa
lomão] qual deve ter sido a do Arcanjo Gabriel quando anunciou a Maria - dizer est
a resposta: "Enquanto a bem-aventurança do Paraíso existir, estaremos envoltos na ro
upagem de luz que nos circunda. Sua luminosidade é proporcional ao ardor do afeto;
o afeto iguala-se à graça concedida por Deus. Ao retomarmos a carne gloriosa e sant
a, mais felizes nos sentiremos, pois então mais completos seremos, avivando-se com
isso a luz bendita com que o Sumo Bem nos exorna, a fim de que O possamos conte
mplar. Nossa visão será mais penetrante, maior o ardor que em nós se incenderá, mais cor
uscante o esplendor que dele emanará.
"O carvão, quando incendiado, despede brilho intenso que, não obstante, não oculta a s
ua forma. O mesmo modo o fulgor que ora nos contorna, sem se perder, permitirá sej
a visto o ressuscitado corpo hoje recoberto pela terra. E não seremos ofuscados en
tão por luz tão forte, porquanto nossos sentidos serão adaptados a quanto for parte de
nosso deleite".
Os coros tão alegre e apressadamente clamaram "Amém!" àquelas palavras, que nesse dize
r demonstraram o desejo em que estavam de reaver seus corpos sem vida. Não talvez
por si mesmos, mas por amor às mães, aos pais e a outros seres que conheceram e amar
am antes de que se tornar almas iluminadas. Entretanto, eis que de encontro a lu
mes tão vivos avança outro clarão que àquele sobrepuja, qual ocorre no céu quando o horizo
nte se inflama de luz. E assim como ao cair da noite aumentam as sombras e no céu
surgem estrelas, com dúbia luz brilhando aos nossos olhos, assim me pareceu brilha
rem alguns novos e indecisos lumes, a girar ao redor daqueles dois círculos. Ó vero
fulgor do Espírito Santo! quando de súbito te mostraste, fulgente, meus olhos vences
te, pondo-os deslumbrados. Porém, Beatriz rebrilhou tão formosa naquele instante que
tal visão passou a figurar entre as que a mente não pode recordar. Quando meus olho
s reabriram, encontrei-me transportado para um céu de maior beatitude, a sós estando
com minha dama. De que havia subido obtive logo maior certeza pelo afogueado es
plendor da nova estrela, em rubor não costumado. De todo coração e com a prece mental
que constitui língua universal, a Deus louvei por mais uma graça. Não havia de meu pei
to exalado todo o ardor da prece e recebi provas de que ela fora bem aceita e ju
lgada propícia. Eis que esplendoroso e rubro surgiu-me entre dois raios; exclamei:
"Hélios, quão brilhantemente os trazes adornados!" A Via-Láctea, que em suas estrelas
é ou mais ou menos brilhante, em uma porção de seu espaço permanece misteriosa, deixand
o os sábios confusos. De igual feição, qual constelação luzindo em Marte, aqueles raios fo
rmam, cruzando-se em retângulo, o sagrado sinal-da-cruz. Minha memória bem recorda o
entrevisto, mas não basta o meu engenho para o descrever. Naquela cruz lampejava
o Cristo e não alcanço dizê-lo com palavras. Aquele, porém, que for salvo por abraçar a Cr
isto, depois de ter visto fulgurar naquela cruz o próprio Cristo, desculpar-me-á por
quanto eu não houver dito. De uma a outra extremidade dos braços e do mais alto ao
mais baixo da cruz, milhares de fogos movimentavam-se, rutilando ainda mais ao e
ncontrar-se e ao afastarem-se. Assim é que se costumam ver no mundo terreno corpúscu
los, ou retos ou ondulados, velozes uns, vagarosos outros, com sempre diverso as
pecto, estes longos, curtos aqueles, a bailar em réstia de sol entradiça em aposento
ao qual o engenho humano quis dar frescura e sombra. Igualmente, a lira e a har
pa, de cardas bem afinadas, produzem melodias doces o suficiente para encantar a
té os ouvidos incapazes de distinguir as notas.
Era assim que dos luzeiros mencionados defluía pela cruz melodia certamente angélica
, pois que, sem entender qual hino fosse, caí extático. Deduzi tratar se de altos lo
uvores, mas não entendendo senão as palavras "ressurge" e "vence", confusamente era
que soava para mim tal melodia. Ouvi-a, porém, com tamanho enlevo que ainda agora
nada mais ocorreu comigo que com vínculos tão suaves me houvesse atado. Tal conceito
pode parecer ousado se medido pela alegria que fruo da contemplação dos olhos de Be
atriz, nos quais minha angústia encontra sossego. Porém, que se leve em consideração que
esses lindos olhos iam ficando mais belos à proporção que subíamos, e eu não podia então f
tá-los.
Acusando-me, busco o perdão; seja pois em meu favor essa verdade. Nem dela se excl
ui o prazer mais santo, que é o de contemplá-la - prazer que tanto mais se apura qua
nto mais se ascende.
Canto XV
No quinto Céu, ou céu de Marte - onde se acham as almas dos que combateram pela Igre
ja e nesse mister morreram -, Dante depara o espírito de Cacciaguida, seu trisavô, q
ue o acolhe muito afetuosamente e lhe fala da Florença de outros tempos.
A vontade benigna apresenta-se como permanente inclinação à prática do bem, ao passo que
a cobiça dos valores terrenos traduz inclinação para a prática do mal. Aquela santa von
tade silenciou o doce cantar, mantendo em repouso as maviosas cordas distendidas
e afinadas pela mão do Criador. Como poderiam os nobres espíritos permanecer indife
rentes aos meus rogos, se para dar o seu consenso a tal pedido foram unânimes em c
alar? É justo que sofre para sempre quem renuncie ao amor divino em troca de bens
materiais. às vezes acontece, com céu tranqüilo e puro, que o olhar seja atraído pelo fu
lgir de repentina fagulha. Dir-se-ia estrela a mudar de sítio se uma delas faltass
e naquele ponto celeste onde tal luz surgiu e brilhou por instante. Foi assim qu
e do braço direito para os pés da cruz partiu um dos astros da constelação de lumes que
resplende acolá. Não se perdeu a pérola do seu fio, ao descer pela fulgurante linha, q
ual chama a luzir sob alabastro. Assim pia foi vista comportar-se - segundo a de
scrição do nosso poeta maior - a alma de Anquises quando encontrou o filho Enéias nos
Elísios. "O sanguis meus! O superinfusalGratia Dei; sicut tibi cuiBis unquam coeli
janua reclusa?" (1) Assim falou aquele espírito. Minha atenção concentrou-se na alma
que falava. Voltei o rosto para Beatriz e em uma e em outra obtive por resposta
confusão.
Brilhava nos olhos da minha dama tal sorriso que ao encará-la julguei chegar ao im
o da graça no eterno Paraíso. E aquele outro espírito - feliz no as pecto e no tom da
voz - ajuntou às palavras que antes pronunciara outras que, por demasiado profunda
s, não pude compreender. Não voluntária, mas necessariamente, foi que as formulou assi
m complexas, pois o conceito delas estava acima do mortal entendimento. Em segui
da, contudo, o distendido arco de elevado afeto afrouxou tanto a sua tensão que as
palavras posteriormente pronunciadas estiveram ao nível da minha compreensão. E for
am estas: "Louvado sejas, Tu que és Uno e Trino e benigno Te mostras para com os m
eus!" Foi isto o que inicialmente pude distinguir. Mas ele continuou:
"Vens cumprir, ó filho, o meu longo, ardente anelo, sonhado desde quando me foi po
ssível ler no grande livro da eternidade, onde não se muda o que é bran co ou escuro.
Agraciado por esta luz que me deu Aquele que também concedeu-te asas com que foi p
ossível a subida, alcanço atingir o teu pensamento, pela virtude d'Esse que é o Primei
ro em tudo, assim como o número cinco ou o número seis pela mesma unidade primeira s
e formam. Quem eu seja e por que te apareço com mais brilho que os outros desta gr
ei venturosa, não demonstras curiosidade em saber.
* (1) "ó sangue meu! Ó infinita graça de Deus! A nenhum outro duas vezes as portas do
Céu se abrirão?" É Cacciaguida quem fala, reconhecendo Dante. *
Ages corretamente, pois o espelho desta vida eterna vai refletindo o pensamento
ainda antes que ele nasça, e a todos - os mais e os menos exornados - instantaneam
ente vai patenteando.
"Apesar disso, o grande amor que em mim perpetuamente arde em nome da santa cari
dade mais se acenderá e me estimulará se ouvir a tua voz segura, franca e leda formu
lar pergunta, revelar desejo; pois a tal pedido já foi dado consentimento."
Voltei a atenção para Beatriz. Ouvindo-me antes que eu falasse, acedeu com gesto e s
orriso tais que do meu desejo ainda mais se estenderam as asas. Comecei então por
dizer:
"Em todos vós, ó bem-aventurados, o amor e o engenho foram dispostos igualmente em m
edida e peso, quando vos apareceu, pela primeira vez, Deus, que possui todas as
qualidades em grau perfeitíssimo. Ele, a quem deveis a ardência, vos exorna com calo
r e lume de tal forma idênticos que nenhuma comparação o explica à suficiência. Mas, entre
os mortais, a vontade e os modos para fazê-la atuante têm forma e poder diferentes,
por motivos que a vós são patentes, mas escapam ao nosso discernimento. Eu, portant
o, mortal, sujeito a tal desigualdade, posso retribuir apenas com o ardor da alm
a ao bondoso acolhimento. Ó figura resplendente, me dês a alegria de conhecer teu no
me".
Respondeu-me com voz maviosa: "Ó descendente que sofregamente eu aguardava, sou um
teu ancestral!" E prosseguiu: "O que te deu o nome familiar, há já mais de cem anos
aguarda no Purgatório, no primeiro círculo. Meu filho foi o teu bisavô. Será convenient
e, pois, que procures diminuir o seu penar no Purgatório através de preces e boas ob
ras. Florença vivia em paz, casta, sóbria, cingida por antigos muros dentro dos quai
s fora erguido templo que mesmo hoje assinala a passagem das horas. Não havia aind
a por ali colares encadeando jóias, nem diademas, saias recamadas e cintas adornad
as, mais valiosas do que sua dona. Não sucedia que já no berço as filhas atormentassem
o pai, pois então o tempo de casá-las e o seu dote combinavam-se de modo adequado.
As residências não eram maiores do que o necessário para bem acomodar as famílias, não sen
do ainda corruptos os usos florentinos, como se tornaram depois que os costumes
de Sardanapalo induziram-nos a mostrar na praça o que deveria se restringir à alcova
. Montemalo não havia ainda sido vencido pelo vosso Uccellatoio, o qual, superando
o outro em magnificência, há de superá-lo ainda mais na queda.
"Cheguei a ver Bellincion Berti vestindo couro com botões de osso, enquanto a espo
sa baixava o espelho sem haver tingido as faces. Também testemunhei os Nerli e os
Vecchio cobrindo-se com peles, sem indício de riqueza, enquanto suas consortes se
ocupavam da roca e do fuso. Pois todas estavam certas do sítio de sua sepultura e
nenhuma via o leito conjugal abandonado pelo marido em viagem pela França. Uma vel
ava junto ao berço do filho, ninando-o naquele ingênuo linguajar que faz o encanto d
e pai e de mãe com criança pequenina. Outras, enquanto na roca trabalhavam o fio, na
rravam aos familiares as legendas dos troianos, de Fiesole e dos antigos romanos
. Causaria nessa época enorme pasmo a existência de uma Cianghella e de um Lapo Salt
erello tanto quanto hoje a presença entre vós de Cornélia ou de Cincinato despertaria.
Em tempo assim tranqüilo, em tão belo viver, reinado de concórdia entre as famílias, de
u-me Maria à minha mãe, que entre gritos me recebeu. Na pia batismal recebi os nomes
de cristão e de Cacciaguida. Meus irmãos foram Moronto e Eliseu. Minha esposa nasce
u em Val-di-Pado: daqui teve origem seu sobrenome. Acompanhei depois o Imperador
Comado, pelo qual fui sagrado cavaleiro, tanto se agradou ele dos meus atos. Se
gui-o na guerra contra o infiel que usurpa o vosso direito na Terra Santa, por c
ulpa do pastor que a negligencia. Por aquela torpe gente fui tirado ao mundo; pe
lo martírio da morte subi ao Paraíso, encontrando a paz eterna".
Canto XVI
Cacciaguida continua a falar a Dante sobre a Florença de seu tempo, e sobre as ilu
stres famílias que a habitavam. O trisavô de Dante acreditava que o crescimento deso
rdenado da cidade levara-a ao declínio.
Ó nobreza do sangue - estulta, vã! Se os homens dela se gabam neste mundo, onde todo
afeto é frágil, não há de causar espanto que por ela eu me tenha ufanado aqui no Céu, ond
e toda aspiração se volta para o bem. És manto que encolhe demasiado se dia a dia não se
põe emenda à sua fímbria, que a tesoura do tempo vai retalhando. Minha resposta princ
ipiou por aquele vós que Roma foi a primeira a tolerar na Antiguidade e hoje está em
desuso entre seus próprios filhos. Beatriz então sorriu, trazendo-me à memória a tosse
que acusou o primeiro dos erros de Genoveva.
Disse eu: "Vós sois meu genitor; de vós recebo ousadia suficiente para todo falar; vós
me elevais com o falar-me, a me fazer mais do que sou. Tantas fontes deitam ale
gria em meu espírito que ele se esforça por conter, sem se partir, tamanha felicidad
e. Ora dizei-me, caro trisavô, quais os vossos ancestrais e os feitos mais assinal
ados da vossa juventude. Ilustrai-me a respeito do rebanho acolhido ao redil de
São João e quantos, ali, foram dignos de ocupar postos de projeção".
Como o vento acende a chama de incendido carvão, assim mais se avivaram os fulgore
s do santo lume à proporção que me ouvia. E quanto mais formoso ia-se pondo aos meus o
lhos, tanto mais doce e suave era a voz com que me dizia, numa língua mais singela
que a nossa: "Desde o dia em que o Anjo anunciou a Maria até aquele em que minha
mãe, hoje santa, me deu à luz, calcula o tempo decorrido. Quinhentas e cinqüenta e mai
s trinta vezes este astro reacendeu sua luz e ativou seu calor junto das estrela
s da constelação do Leão. Meus ancestrais e eu nascemos naquele bairro que era então o p
rimeiro em nobreza e é hoje o derradeiro nas festas anuais.
"A respeito de meus maiores, bastam estas palavras. De como aí chegaram e quem for
am, é mais conveniente calar. Naquele tempo, os habitantes da cidade em condições de f
azer guerra, contados entre Marte e São João Batista, eram a quinta parte do que são a
gora. Mas então esse povo, que hoje se vê misturado com a gente recém-vinda de Campi,
de Certaldo e de Fegghine, era florentino até o último de seus artesãos. Oh! quanto me
lhor fora que tal gente ainda continuasse vizinha e que a fronteira ainda se est
endesse por Galluzzo e Trespiano, do que tê-la dentro dos muros e suportar o vilão A
guglione e as trapaças do de Signa, sempre pronto para enganar. Oxalá essa gente, or
a no mundo a mais perversa, não se houvesse declarado cruel madrasta de César em vez
de mãe benigna. Hoje, ela é florentina e só cogita de enriquecer negociando e fazendo
câmbio; estariam melhor retornando a Simifonte, onde seus avós, esfarrapados, eram
mendigos. Montemurlo pertenceria ainda aos Conti; ainda Acone estaria sob os Cer
chi; e talvez Valdigrivia coubesse aos Buondelmonti.
"A mistura de povos sempre foi prejudicial às comunidades, assim como é causa de mal
es para o corpo o alimento que se ingere sobre outro ainda não digerido. Touro ceg
o cai mais depressa que cordeiro cego e muitas vezes uma só espada causa mais feri
das do que cinco lâminas. Observa Luni, vistoria Urbisaglia e mede a sua decadência,
caminho este que vão seguindo Sinigaglia e Chiusi. Se ouves, pois, dizer que deca
em as famílias, não te cause isso maior espanto do que verificar como decaíram as cida
des. Tal como ocorre a vós outros, também fenece tudo o que é vosso, e mesmo as mais d
uráveis das coisas terrenas têm um termo pouco além da breve existência humana. Qual a L
ua que, girando sem cessar, vai cobrindo e descobrindo as terras, tal faz com Fl
orença a Roda da Fortuna: dito isto, não te deve parecer estranho o que vou narrar a
respeito de alguns florentinos cuja fama a mão do tempo apagou.
"Os Ughi, os Catellini, os Filippi, os Greci, os Ormanni e os Alberighi, já decaídos
, outrora foram muito prósperos. As antigas e potentes estirpes dos Sanelli, dos A
rca, dos Soldanieri, dos Ardinghi e dos Bostichi - eu as conheci. Bem conheces a
porta de São Pedro, vergada hoje ao peso de tanta felonia que poderá afundar a barc
a do Estado florentino. Aí assistiam os Ravignani, de quem descende o Conde Guido
e todos quantos têm diante do nome a marca dos Bellincione. O primogênito dos Della
Pressa estava já no governo e em sua casa Galigaio trazia espada de áureos copos. Já a
vultava a coluna dos Vaio, Sacchetti, Giuochi, Fifanti, Barucci, Galli e aqueles
[os Chiaromonti] que não se envergonharam de usar pesos falsos. Era robusto então o
tronco dos Calfucci, e os Sizi e os Arrigucci haviam já ocupado altos cargos civi
s.
"Oh! Vi também famílias desfeitas, pela soberba vitimadas! Foi isso quando os globos
áureos (dos Lamberti) luziam nos maiores atos de Florença. Eram estes pais dos que
encontram aumento para suas glórias cevando-se com as vantagens obtidas nos consis
tórios convocados para preencher as vagas episcopais. Outro bando [os Adimari] - o
usado, a perseguir ferozmente os que fogem, humildes quais cordeiros diante dos
fortes e dos ricos - ascendia então, procedendo de gente tão vulgar que a Ubertin Do
nato desagradou que a um deles seu sogro unisse a outra filha. Já Caponsacco estav
a no mercado, proveniente de Fiesole, encontrando ali Giuda e Infangato, notórios
pelo nome.
"Ora direi coisa difícil de se crer, mas verdadeira: no estreito recinto de Florença
antiga, existia porta que tomara seu nome à estirpe Della Pera. Muitos que trazem
a nobre insígnia do barão, cujo nome e fama são memorados quando da festa de São Tomás, d
evem-lhe o haverem sido armados cavaleiros, embora sejam hoje aliados do partido
popular, trazendo suas bandas ornadas de ouro. Já os Gualderoti e os Importuni er
am mencionados amiúde, mas Borgo gozaria maior paz se ainda não contasse com tais mo
radores. Uma dessas famílias foi causa da desgraça de vós outros florentinos. Ó Buondelm
onti, foste tu a atear a justa cólera que te deu a morte e pôs fim à paz de Florença! Ta
l estirpe que te deu esposa merecia respeito; mas tu a renegaste por outros amor
es. Viveriam ainda alegres muitos dos que hoje choram, se Deus te houvesse afoga
do nas águas do Ema a primeira vez em que foste a Florença! Mas era forçoso que em hol
ocausto ao mármore mutilado [do deus Marte], que está diante da grande ponte, termin
asse para sempre a paz em Florença.
"Com tais pessoas, descrevi Florença a gozar sossego, sem ter motivos para lamenta
r. Com esses varões, era tão unido e glorioso o nosso povo que até aí jamais o seu lis h
avia sido deitado ao solo por lanças inimigas; nem tampouco lutas fratricidas torn
aram vermelha sua bandeira branca".
Canto XVII
Cacciaguida decifra e explica a Dante as profecias ouvidas pelo poeta no Inferno
e no Purgatório, sobretudo as que dizem respeito ao seu exílio.
Eu tinha então a mesma ansiedade que levou aquele que fez pais reprimirem seus fil
hos a interrogar Climene acerca do que ouvira contra ele (1). Beatriz pressentiu
essa minha angústia; pressentiu-a também aquela santa alma que deixara o lado da cr
uz para falar-me. Minha dama disse: "Mostra teu desejo de saber, e que tuas pala
vras tornem claro tudo quanto em teu anseio esteja oculto. Não que o nosso conheci
mento dos arcanos celestes possa aumentar com ouvir-te, mas sim porque é bom teres
bem saciada a sede".
Assim falei a Cacciaguida: "Ó amado ancestral, glorioso a ponto de ascender ao Céu;
assim como foi possível à mente humana entender que em um triângulo não podem estar cont
idos dois ângulos obtusos, assim tu, mirando aquele Ponto de onde todos os tempos
podem ser devassados, consegues ver o futuro.
"Enquanto eu acompanhava Virgílio, subindo o monte onde os pecados encontram cura
ou descendo para o mundo dos perdidos, ouvi, a respeito de minha vida futura, mu
itos ditos sombrios, que me habilitaram a sofrer impávido os golpes da má sina.
* (1) Ofendido com certas insinuações que ouvira, Faetonte foi perguntar à mãe, Climene,
se era realmente filho do Sol. Isso, de acordo com Dante, teria feito com que o
s pais se tornassem severos com seus filhos. *
Não obstante, grato ser-me-ia conhecer o alcance de tais golpes, pois parece que v
oa com mais vagar a frecha que se vê ser disparada." Foi assim que, obedecendo ao
conselho de minha dama, expus os meus desejos àquele espírito que, havia pouco, tão am
istosamente me falara. Respondeu-me sem se utilizar daqueles obscuros vaticínios m
uito do agrado dos pagãos antes de que fosse imolado, para remissão dos pecados, o C
ordeiro de Deus. Foi com palavras claras e em latim preciso que o amoroso ancest
ral satisfez meu pedido, envolto na ridente luz que patenteava sua alegria em fa
zê-lo:
"As contingências vãs de vosso mundo material estão claramente representadas no conspe
cto de Deus. Tais contingências caducas, no entanto, não recebem de Deus o caráter da
indispensabilidade, precisamente como a nave que desce o rio a favor da corrente
za não é minimamente influenciada por quem a observa. Decorre daí que tão suavemente com
o a doce harmonia do órgão impressiona os ouvidos, desfilam ante meus olhos os tempo
s futuros que dizem respeito a ti. Qual Hipólito que, por intrigas da madrasta mal
iciosa, foi forçado a partir de Atenas, assim cumpre que te afastes de Florença. Ist
o se quer, isto se requer e em breve há de ser alcançado por quem o vem buscando, da
do que ali o próprio Cristo, a todo instante, vai sendo mercantilizado. E toda cul
pa há de ser atribuída ao vencido, como sempre ocorre. Mas a teu respeito, a vingança
de Deus dará testemunho da verdade. Deixarás atrás tudo quanto te for mais querido, po
is é esta a primeira grande dor que o exilado padece. Provarás como sabe a sal o pão a
lheio e quanto é fatigoso subir e descer degraus de escadas estranhas.
"Contudo, o que mais te fará sofrer será a necessidade de partilhar a companhia néscia
, mesquinha, com que deverás cruzar o vale do desterro. Perversa quanto dissoluta,
ingrata, voltar-se-á contra ti; mas em pouco, ela, e não tu, conhecerá a ruína. Seu pro
ceder será prova de sua bestialidade, por tal modo categórico que a ti resultará bem o
haveres deixado de participar das lutas políticas. Teu primeiro refúgio, primeiro c
onsolo, será a fidalguia do Grande Lombardo, que ostenta por brasão a ave santa. A t
eu respeito será tão solícito que, em matéria de carecer e oferecer, entre vós dois será pr
meiro aquele que em outro ambiente seria o último. Junto dele hás de ver o herói que,
nascido sob o influxo deste poderoso astro [Marte], será celebrado por seus grande
s feitos. Aquela gente descuidada ainda não se apercebeu disso, por ser pouca aind
a a sua idade; apenas nove vezes ao seu redor giraram as estrelas. Ver-se-ão, porém,
centelhas de seu valor, de seu desprezo pelo ouro e o perigo, bem antes de que
o Gascão engane o altivo Henrique. Sua atuação será tão eficaz que mesmo seus inimigos não
eixarão de proclamá-la, conservando muda a língua. Deves contar com ele e com seus fav
ores, pois ele mudará o destino de muita gente, trocando a condição de ricos e de mend
igos. Dele, o que digo levarás gravado na mente, sem jamais o revelar..." e descre
veu-me então proezas inacreditáveis, mesmo àqueles que as presenciaram. E acrescentou:
"Esta, filho, é a explicação de quanto obscuramente te foi dito, essas as insídias que
dentro de pouco surgirão diante de ti. Porém não deves invejar a teus conterrâneos, pois
o teu renome há de ultrapassar em muito o tempo em que as perfídias daqueles recebe
rão o merecido castigo".
Quando se calou aquela santa alma, após haver terminado de dispor a trama da tela
cuja urdidura eu havia antecipado, comecei a falar como quem estando em dúvida bus
ca aconselhar-se com alguém mais experiente e por quem se sabe estimado:
"Eu percebo, pai, como se prepara esse tempo que há de desfechar-me golpe tanto ma
is penoso porque opor-me a ele não me é possível. Por isso, é bom que me arme de prudência
, a fim de que, se terminar sendo exilado da pátria que me é cara, não perca também outr
os refúgios mercê das afirmações contidas em meus versos. Percorri o mundo onde as penas
não têm fim, subi o monte até o formoso cimo para onde me guiaram os olhos da minha d
ama. Depois, pelo Céu, de lume em lume peregrinando, aprendi maravilhas tais que,
se as repetir, minhas palavras terão para muitos o travo do azedume. Se faltar à ver
dade, porém, é de se temer que a minha fama se perca entre os que chamarão de antigos
a estes tempos em que sou vivo."
A luz na qual se ocultava o tesouro que eu havia descoberto fez-se tão coruscante
quanto raio de sol refletido por espelho de ouro. E respondeu: "A consciência abal
ada por vergonha própria ou pecado alheio se irá ofender pelo teu ousado versejar; m
as não hesites, deves repelir toda mentira! Expõe o teu pensar sem meias-palavras; c
ada qual cure a própria ferida! Teu dizer poderá ser molesto no início; porém, bem compr
eendido, produzirá resultados salutares. Teus brados serão quais ventos que mais agr
idem os alterosos cimos, e este fazer será para ti razão de não pequena glória. Nestas c
elestes paragens, no Monte do Purgatório e no Vale Doloroso, foram-te mostradas de
propósito muitas almas vestidas com o brilho da fama. Isto porque os ouvintes dar
iam pouca atenção aos teus versos se eles fossem baseados em exemplos de gente desco
nhecida, ou em argumento vago".
Canto XVIII
Depois de indicar algumas almas de combatentes que naquela estrela (o quinto Céu)
se encontravam, o ancestral de Dante desaparece. O poeta é transportado ao sexto Céu
, o de Júpiter, onde se acham os espíritos dos príncipes justos.
Aquela santa alma silenciou, ficando só com os seus pensamentos; e eu cuidava dos
meus, entre alegre - por tê-lo ouvido - e apreensivo - por suas predições. A certa alt
ura, a dama que me levava rumo a Deus disse: "Não te aflijas tanto. Lembra-te de q
ue estou perto d'Aquele que alivia as dores!" Voltei-me, ao som da voz que sempr
e me confortava, e qual fosse o santo afeto que então descobri em seus olhos, nem
tento reproduzir. Não que eu descreia da minha capacidade, mas porque sem ajuda di
vina não pode mente humana subir àquela altura. Mirei-a então, e meu pensamento distan
ciou-se de outro qualquer desejo. Refletindo sobre mim a bem-aventurança que em se
u rosto recebia do alto, ela me deslumbrara.
Ela me disse, despertando-me do êxtase com um sorriso: "Atenta em que não está em meus
olhos tudo o que diz respeito ao Paraíso!" Por vezes se vê, aqui no mundo, refletir
-se no semblante todo o amor que, por grandemente intenso, logra apoderar-se da
alma por inteiro. Foi assim que, fixando o fulgir do albor tão santo, compreendi q
ue Cacciaguida ainda desejava falar-me. Começou:
"Neste quinto céu do firmamento, que à semelhança de árvore perene estende ramadas para
Deus, habitam espíritos que no mundo terreno alcançaram fama tamanha que para as Mus
as seriam ótimas sugestões. Observa bem os braços da cruz: ali verás, fulgindo qual relâmp
ago em nuvem fugidia, os vultos que eu nomear." Vi então, na cruz, luzir o espírito
de Josué, mal acabara de ser o seu nome pronunciado. Isso de modo tal, que nem sei
dizer se primeiro vi ou ouvi. Dito que fora o nome do grande Macabeu, outro espír
ito surgiu a girar qual pião, impelido pela mais intensa alegria. Tal fez Carlos M
agno, o mesmo fez Orlando. Atento fui seguindo os movimentos seus, quais falcoei
ros a seguir, no céu, da sua ave as evoluções. Surgiram depois aos meus olhos, que fit
avam sempre a cruz, Guilherme, Renoardo, o Duque Godofredo e Roberto Guiscardo.
E então, Cacciaguida, foi reunir-se às companheiras; pôs-se a cantar, exibindo seu val
or entre o coro celeste. Voltei-me para o lado direito, procurando des cobrir qu
al fosse a intenção de Beatriz. Em seus olhos percebi contentamento e fulgor que exc
ediam aqueles entremostrados pouco antes. E como o prazer decorrente da prática co
tidiana das virtudes faz sentir ao homem que seus méritos aumentam, acordei com se
ntimento igual, dando-me conta de que se fizera bem mais amplo o arco do céu em qu
e então eu girava. Como retorna rapidamente a cor natural ao níveo rosto de mulher a
cometida pelo pudor que acende o pejo, foi assim que, pelo candor que minha visão
experimentava, percebi haver sido recebido pela sexta estrela (a de Júpiter). Vi,
na esfera argêntea, cintilarem espíritos de amor, compondo, com seus movimentos, des
enhos de letras inteligíveis na Terra.
Quais aves de bando que, deixando as margens do ribeiro, felizes com o alimento
encontrado, estendem vôo, formando círculo ou linha; aquela grei, em seus lumes bem-
aventurados, voando e cantando, formava ora um D, ora um I, ora um L. Principiav
a movendo-se ao ritmo de um canto, para assumir a forma de uma letra, mantendo-s
e então, por um momento, calada e imóvel. Ó Pegásea diva do Parnaso, tu que dás maior gran
deza aos gênios e imortalizas reinos e cidades, inspira-me para que eu logre descr
ever em palavras aquelas santas figuras tal como as tenho gravadas na mente, de
modo que tua virtude e teu poder fiquem patentes em meus versos. Vi com clareza
cinco vezes sete vogais e consoantes, divididas em grupos segundo a sua natureza
.
Diligite justitiam: era desse modo, com o nome e o verbo, que por primeiro vi in
scritos; com qui judicatis terram terminaram. Desenhado que foi o M da palavra q
uinta, agruparam-se ali as almas bem-aventuradas, de tal modo que com seus lumes
pareciam ornar Júpiter de ouro. Outras luzes desceram para o cimo daquele M, ali
pousando e iniciando um canto, supondo eu que seja o amor ao Bem o que para ali
as atraía.
Aquele tição que, ao ser batido, expede de si centelhas abrasadas fornece aos supers
ticiosos elementos para augúrios. Centelhas assim brilhantes, em número superior a m
il, do M partiam para o alto, subindo umas mais e outras menos, segundo a determ
inação de Deus, que as vivifica e as ordena, estando cada qual satisfeita em seu lug
ar. Com os fulgores dali assim partidos, assisti formarem-se a cabeça e o pescoço de
uma águia. O Pintor [Deus] que ali vai pintando não carece de mestre; é antes dele qu
e provêm todas as luzes e todas as formas.
Aquelas outras almas agrupadas sobre o cimo da letra M a modo de torná-la semelhan
te a um lírio, moveram-se um pouco, completando a figura da águia. Ó astro refulgente,
bem me demonstraram aqueles muitos e rutilantes lumes que a nossa justiça tem ori
gem no céu de que és gema preciosa. Imploro àquela Mente Altíssima de que provêm tua belez
a e teu poder: que se esclareça qual a causa da névoa que o teu brilho embaça. e que d
e novo Ele, tomado de ira, expulse os mercadores do Templo [a Igreja] que tem po
r paredes os sinais dos milagres e dos martírios. Ó celeste milícia, em cuja visão me ex
tasio, suplica a Deus em favor desses pervertidos que na Terra vêm seguindo maus e
xemplos. Outrora, era com espadas que se faziam as guerras; mas, agora, ela é feit
a tirando-se aos inimigos aquele pão espiritual que o Pai Celestial nunca nega a n
inguém. E tu, que excomungas e perdoas tão generosamente, adverte que Pedro e Paulo
- os quais morreram pela vinha que vais assolando - estão bem vivos no Céu. Bem pode
s clamar: "Sou muito devoto desse que, amando o deserto, conheceu martírio devido à
mulher que amava a dança; de modo que tal devoção me fez esquecer Paulo e o Pescador".
Canto XIX
O símbolo da justiça divina, a águia - formada pelas almas dos príncipes bons, no sexto
Céu - fala a Dante, e lhe esclarece nova dúvida.
Diante de mim, com as asas distendidas, a maravilhosa imagem do grande pássaro; ca
da uma das almas luminosas que o compunha semelhava um pequeno rubi no qual arde
ssem os raios do Sol, a ponto de resplenderem em meus olhos.
O que descreverei agora, e que testemunhei, jamais foi ouvido ou lido; nem mesmo
pôde ser imaginado. Pois vi e também ouvi falar aquele rostro, eu e meu colocando n
as palavras, mas significando nós e nosso. E isto foi o que disse:
"Por ter sido pio e justo, fui exaltado a esta glória, que sobreleva qualquer dese
jo humano. Deixei na Terra lembrança tal, que mesmo a pervertida gente louva minha
s ações justas e generosas, posto que não lhe siga os exemplos." Assim como de brasas
numerosas resulta calor único, de todas aquelas almas resultava uma só voz. E eu lhe
s disse: "Ó flores eternas dos jardins do Céu, que em um só perfume trescalais vossos
múltiplos olores, saciai a fome de conhecimento que me consome há já muito tempo na Te
rra, onde tal alimento não se encontra. Bem sei que, muito embora em outra e super
ior ordem angélica [a dos Tronos] reflita-se a grandeza de Deus, também vós espelhais
a divina justiça. Bem sabeis, pois, que estou pronto para vos ouvir com atenção. Sabei
s também que, jamais saciado, vai-se fazendo bem antigo meu jejum".
O falcão a quem foi retirada a venda prontamente moveu a cabeça, distendeu as asas e
deu mostras de querer alçar vôo, contente. Assim agiu aquela ave composta de lavore
s da divina graça, a entoar loas que o Céu, tão-somente, ouve. E começou por dizer: "Aqu
ele que pôs limites ao extremo do mundo, e dentro deste dispôs coisas que são e outras
que não são do nosso conhecimento, não podia deixar patente a sua virtude em todo o u
niverso sem que ao entendimento do homem algo permanecesse inexplicado. Deixa-no
s isso patente aquela criatura que foi o primeiro entre os soberbos, pois, embor
a gerada à perfeição, não esperou pela graça iluminante e caiu na imperfeição. Desse exempl
esulta claro que as criaturas inferiores àquela [Lúcifer] são recipientes pequenos dem
ais para aquele Bem que apenas pode ser medido com a sua medida. Por isso impõe-se
que vossa razão seja constituída e fortalecida por raios emanados da Mente que ocup
a todo o espaço criado, pois não pode a vossa razão, por sua natureza e a despeito de
sua vontade, entender Deus para além daquilo em que Ele próprio desejar. "A visão dada
ao homem espraia-se sobre a Justiça Sempiterna como o olhar distendido sobre o oc
eano: se junto da orla pode enxergar o fundo, no mar alto isso não lhe é dado; sabe
que ele existe, oculto pela própria profundidade. Não há luz de sabedoria que não proced
a do foco divino, que não diminui jamais. Fora disso, o que há são trevas, sombras da
carne ou venenos dela.
"Em boa parte já foram esclarecidas as dúvidas que muitas vezes confundiu teu entend
imento a respeito da divina justiça, a ponto de raciocinares por esta forma: Nasce
um homem junto ao rio Indo, onde não há quem escreva, quem fale, quem ensine a resp
eito de Cristo. Contudo, seus desejos e seus atos, tanto quanto possa julgar a r
azão humana, não contêm matéria de pecado, nem no agir, nem no falar. Morre sem batismo
e sem fé. É justo que seja condenado? Se não sabe nem crê, que culpa tem?' Contudo, quem
és tu que pretendes, de cátedra, julgar o que ocorre à distância de milhares de quilômetr
os, se podes enxergar somente poucos palmos? Certamente, quem deseja discorrer c
omigo a respeito de tais sutilezas, bem poderia cair em muitas dúvidas se não se val
esse dos textos da Escritura. Ó vermes terrenos! ó estultícia! A Primeira Vontade, sen
do como é o Sumo Bem, jamais se afasta de Si mesma. Assim, é justo o que com ela se
coadune. Nenhum dos bens criados avoca-a para si. Contrariamente, é ela que cria t
odos os bens".
Encerrando o seu falar, a águia completou um giro, como faz a cegonha que sobrevoa
o ninho depois de alimentar os filhotes, que a observam atentos. Er gui os olho
s para a imagem santa, que agitava as asas, sustentadas por tantas almas ilumina
das. Volteando, cantou. Depois, disse: "Assim como não entendes o que canto, também
os homens não penetram as ações de Deus". Ordenaram-se ainda aqueles vivos luminares c
ompondo o símbolo do Espírito Santo - que fez dos romanos os senhores do mundo. A águi
a continuou:
"Jamais subiu a estes reinos quem não acreditasse em Cristo, nem antes nem depois
que Ele fosse cravado ao lenho. Não obstante, há muitos que, embora bradando Cristo!
Cristo!', quando levados a juízo serão mandados para lugares mais afastados do que
muitos que não O conheceram. Esses maus cristãos serão desprezados pelos próprios pagãos,
no dia em que por fim houver apenas dois bandos: o dos eleitos e o dos danados.
Que de coisas poderão dizer os reis persas contra os soberanos cristãos, quando pude
rem ler nos livros onde estão anotadas as malfeitorias destes? Ali se poderá ler, en
tre os feitos de Alberto, outros que serão em breve registrados e que assolarão o re
ino de Praga. Também se há de ver o Sena coberto de luto pelos efeitos da falsa moed
a cunhada por esse rei que morrerá em caçada por força de um cerdo. Ver-se-á descrito o
orgulho que dementa os reis da Escócia e da Inglaterra, nenhum dos quais satisfeit
o dentro de seus limites. Ver-se-á a luxúria, o epicurismo dos reis da Espanha e da
Boêmia, que não praticam o valor viril, nem desejam fazê-lo. Ver-se-á que ao Manco de Je
rusalém, com um I, foram assinaladas as boas obras, enquanto as obras más serão marcad
as com um M. Será vista claramente a avareza, a vilania daquele que governa a ilha
de fogo, onde Anquises terminou sua longa vida. E para que o seu grau de mesqui
nhez seja bem conhecido, os assentos a seu respeito serão reduzidos a cifras, a fi
m de que digam muito, ocupando pouco espaço. Serão patentes, aos olhos de todos, as
ações vis do irmão deste, e do tio também; ações que desonram duas nobres nações e duas cor
"Serão ali dados a conhecer os males praticados pelos reis de Portugal e da Norueg
a, bem como o de Rascia, que em seu proveito adulterou os cunhos das moedas de V
eneza. Feliz de ti, Hungria, se persistires em manter afastados os governos vis!
Feliz de ti, Navarra, se dos teus montes fronteiriços fizeres contra a França defes
as. Tão verdadeiro é o que digo que já Nicósia e Famagusta erguem e preparam rebeliões con
tra o seu tirano, que não é o melhor entre os já mencionados".
Canto XX
A águia continua a falar a Dante, mostrando-lhe algumas almas de reis e de príncipes
cuja virtude se celebrizou.
Quando astro que o mundo aclara se desprende desse nosso hemisfério, o dia tem fim
em todos os lugares; e o céu, que só por obra dele mostrava-se iluminado, passa a e
xibir a claridade das estrelas, que não mais fazem do que refletir o grande astro.
(1) Esta imagem veio-me à mente quando emudeceu o símbolo do mundo [a águia] e de seu
s imperadores. Todas aquelas almas iluminadas, alteando o brilho, iniciaram cant
os que a minha memória não soube reter.
ó doce amor, que em risos te ias velando e mesmo assim tanto sobressaías entre aquel
es fulgores ateados por santos pensamentos apenas! Quando as almas refulgentes q
ue eu vira adornar o sexto Céu calaram seus cantares angélicos, pareceu-me ouvir som
igual ao de riacho murmurante cujas águas claras de pedra em pedra descem, mostra
ndo a abundância de sua fonte original. E como o percutir da cítara resulta em som,
como o sopro do flautista arranca da flauta sons maviosos, assim formou-se suave
murmúrio que, subindo pelo colo da ave formosa, em som de voz foi-se externando p
elo bico, em forma de palavras que em minha alma ansiosa ficaram retidas:
* (1) Acreditava-se ao tempo de Dante que a luz das estrelas fosse reflexo da lu
z do Sol. *
"Fixa atentamente o meu olho, olho que às águias mortais permite suportar o ardor do
Sol", começou por dizer. "Destes lumes de que sou a estrutura, aqueles que compõem
os meus olhos cintilantes sobrepujam em virtude a quaisquer outros. Esse que bri
lha no centro, qual pupila, foi o alto cantor do Espírito Santo, que de vila em vi
la a Arca conduziu. Agora, usufrui o mérito de tal cantar, conhecendo o efeito de
seu esforço, pois recebe o prêmio em dobro. Meus cílios são formados por cinco lumes; aq
uele que do bico está mais próximo foi o que deu consolo à viúva pelo filho perdido. Ali
destacado, pode avaliar o preço de não crerem Cristo, comparando a vida que leva aq
ui com a oposta, que lá embaixo conheceu. E o que se inculca na arcada superior a
que me refiro logrou adiar sua morte mercê de esforçada penitência; e sabe que não se po
dem mudar os decretos do Eterno, se bem que uma fervorosa oração possa adiar, lá no mu
ndo, os seus efeitos. O que se segue a ele, o Estado transferiu para a Grécia, dei
xando ao papado o seu lugar - intenção que produziu maus resultados, não obstante ser
excelente.
"O mal decorrente de seu bom intento não lhe foi nocivo, muito embora para o mundo
haja desastroso. E o que vês ali, no declive já do arco, é Guilherme por quem clamam
os territórios que choram sob o domínio de Carlos e de Frederico. Fica, pois, sabend
o que todo o Céu se rejubila quando um rei é bom, do que faz prova, ainda, o brilho
que lhe fulge no semblante. Quem, no mundo terreno que tão mal ajuíza, poderia crer
que o troiano Rifeu viesse a ser a quinta dessas luzes santas? Ele tem agora ciênc
ia de parte do mistério da graça divina, da qual o mundo conhece apenas uma ínfima par
te. Mas ainda assim ele não logra penetrar seus mais profundos segredos."
Como a cotovia que canta em vôo e, calando-se, permanece enlevada com os sons fina
is de sua própria melodia, pareceu-me assim a imagem vista da Eterna Bem-aventurança
, que dispõe que todas as coisas criadas sejam conforme seu desejo. Conquanto minh
a dúvida se assemelhasse ao vidro que pela transparência denuncia a cor do conteúdo, não
pude esperar em silêncio que ela viesse a ser esclarecida. Bradei: "Que mistério é es
se?" e ao impacto de tal grito vi resplenderem de satisfação os santos espíritos. Logo
, com o olhar mais incendido, o Santo Símbolo, não desejando decerto que por mais te
mpo eu padecesse à espera, respondeu:
"Entendo que pões fé em quanto estás ouvindo, porque sou eu a dizê-lo, mas não alcanças as
azões de tais prodígios. Procedes como aqueles que apren dem o nome das coisas, mas
permanecem na ignorância do que seja a essência delas, se essa ignorância por outrem não
é desfeita. o Reino dos Céus cede à força de um amor ardente e de uma viva esperança, a p
onto de estes triunfarem sobre as disposições divinas. Mas em tal caso, essas virtud
es não triunfam como usa um homem vencer a outro, mas porque a Suma Vontade consen
te em ser vencida - e, vencida, é quem vence pela graça da bondade. A primeira e a q
uinta das luzes do meu cílio causaram-te admiração por terem sido quem foram e adornar
em agora a morada dos anjos. Eles não deixaram seus corpos como pagãos, mas sim quai
s cristãos de fé vigorosa, um acreditando em Cristo antes de Sua vinda, o segundo, d
epois dela. Outra das almas luminosas [a de Trajano], lá do Inferno onde jamais se
ama o bem, retornou aos ossos em recompensa de fé muito viva, de um ardor santo e
mpenhado em obter de Deus tamanha graça a ponto de haver logrado comover Sua vonta
de e levar o favorecido a praticar a fé verdadeira. Essa alma gloriosa de que fala
mos, retornando à carne onde pouco permaneceu, acreditou que Ele a poderia salvar;
e perseverando na fé, ardeu em amor com tanta intensidade que, ao sofrer segunda
morte, foi considerada digna de subir a este Céu. A seguinte luz salvou-se por amo
r de graça tão profunda que nenhum olho mortal pôde jamais penetrá-la até o fundo. Lá na Te
ra amou sobremodo ao Bem. Por isso, de graça em graça, Deus fê-la digna da redenção, pelo
que, entregando-se à virtude e furtando-se ao erro do paganismo, viveu a verberar
os vícios e a impiedade. As três damas que viste à direita da roda do carro, batizaram
-no mil anos antes (de Cristo). (2)
"Ó predestinação! Estendes raízes tão longe que os olhos que as fitam não atingem nunca a s
a inteireza! E vós, mortais, convém sejais prudentes em julgamentos, pois mesmo nós, q
ue gozamos da contemplação de Deus, não conhecemos todos os seus eleitos; percebemos i
sso, e tal aceitamos, pois nosso bem pelo Sumo Bem se afina!"
Assim a divinal figura ministrou-me ensinamento, para alongar e aclarar o meu en
tendimento parco. E qual procede o bom cantor, que se faz acompanhar por hábil músic
o, tornando com isso mais harmonioso o seu narrar, lembra-me que, durante o seu
falar, ambas as santas luzes [Rifeu e Trajano] agitavam suas flamas em perfeita
harmonia, como olhos no movimento de abrir e fechar.
* (2) As três damas são as virtudes teologais. *
Canto XXI
Dante logra alcançar o sétimo Céu, ou céu de Saturno, onde se acham os espíritos voltados à
contemplação. Um deles é São Pedro Damião, o qual fala ao poeta.
Tinha eu os olhos novamente fixos no rosto da minha dama, e a mente nela perdida
; de nada mais cuidava. Ela não sorria, e disse: "Se eu sorrisse, ocorreria contig
o o mesmo que a Sêmele quando transformou-se em cinzas; pois minha formosura, conf
orme pudeste verificar, aumenta à medida que subimos os degraus desta eterna escad
a. Se eu não abrandasse os fulgores, ante tanto brilho o teu corpo sofreria qual t
ronco que o raio atinge. Eis que subimos ao sétimo Céu que, juntando a sua luz àquela
do Leão, exerce alta influência sobre a Terra. Agora, faz com que tua mente e teus o
lhos reflitam a figura de divinal virtude que verás neste céu a espelhar com justiça f
orma celestial".
Quem pudesse avaliar o quanto os meus olhos se extasiavam na contemplação do bem-ave
nturado rosto de Beatriz, quando fui levado a cogitar de outro objeto, poderia c
onhecer a satisfação obtida ao obedecer o guia celeste, substituindo um prazer por o
utro. Plantada naquele cristalino e luzente planeta que, girando ao redor da Ter
ra, leva o nome do grande rei [Saturno], sob cujo mando nenhum mal foi praticado
- pois o mundo vivia a idade áurea - vi em seu centro uma escada de ouro que se e
levava tão alto que a mais atilada vista não lhe poderia perceber o fim. Pelos degra
us dessa escada desciam tantos lumes brilhantes que fui levado a pensar que ali
se houvessem concentrado as luzes do Céu. Seguindo lei natural, a gralha tem por c
ostume, ao abrir do dia, agitar-se sem cessar, a fim de aquecer as enregeladas p
enas. Em seguida, algumas delas partem para não mais voltar, enquanto, ao fim do d
ia, muitas outras voltam. Porém, várias, volteando, nem se afastam do mesmo sítio. Ass
im pareceu-me proceder a turba luminosa a mover-se até que cada qual ocupou lugar
nos vários degraus. Aquela das luzes que se colocou mais próxima de nós por tal modo c
intilou que pensei: "Entendo bem a mensagem de amor que me transmites!" Mas Beat
riz, cuja indicação para falar ou calar eu sempre espero, permaneceu muda; isso me f
ez optar por calar. Ela, porém, que conhece os meus quereres, pois Aquele que tudo
provê lhe faz bem manifestos tais pensamentos, disse: "Dá satisfação ao teu desejo mais
ardente!"
Eu então disse: "Sei que meus méritos não bastam para merecer a tua resposta. Mas em n
ome dessa que me permitiu perguntar, satisfaz meu anelo de sa ber, ó alma eleita,
que ocultas em luz a expressão de teu gozo celestial! Dize-me por que tal aproximação.
E por que nesta clara esfera emudeceu a doce sinfonia do Paraíso tão claramente ouv
ida em outras paragens".
Respondeu: "Teus ouvidos são tão mortais quanto tua vista. Aqui, os cantos celestiai
s não soam pelo mesmo motivo por que Beatriz não sorri. Desci tantos degraus desta e
scada santa para te dar mostra evidente do prazer que aqui se frui com a luz e a
voz de que sou ornado. Descendo um degrau mais do que as outras, não o fiz por es
tar possuído de mais amor que elas, pois mais acima ardor maior se encontra, segun
do podes ver de seu fulgir brilhante. Mas a alta caridade que nos leva a obedece
r prazerosamente à Vontade que governa o mundo indica os lugares que devemos ocupa
r".
E eu: "Para mim é claro, ó lume santo, que neste ponto do Paraíso o mais puro amor faz
cumprir os mandados da Vontade Eterna. O que, porém, não alcanço conhecer é a razão pela
qual, entre tantas almas dignas, foste tu a predestinada para este diálogo". Não pro
nunciara a última destas palavras e a resplendente alma girou ao redor de si mesma
, qual mó em torno do eixo. E o amor divino, que em tal chama estava incluso, diss
e:
"Graça divina ora em mim vai incidindo, penetrando através da luz que continuamente
me reveste. A minha visão e mais a virtude dela, combinadas, tanto me elevam que a
o meu entendimento se descortina a Suprema Essência de onde ela promana. Daí origina
-se a felicidade em que fulguro, pois quanto mais minha vista se aclara tanto ma
is aumenta o fulgor da minha chama. Contudo, mesmo a alma mais distinguida - o S
erafim que no próprio Deus tem fixo o olhar - não poderá esclarecer tua dúvida, pois a p
ergunta feita por tal modo se aprofunda nos abismos de decretos estabelecidos po
r Deus para a eternidade, que a solução está além de todo ser criado.
"Quando regressares ao mundo dos mortais, repete o que ouviste a fim de que home
m algum procure a solução do mistério da predestinação. A mente que no Céu se faz luz, na T
rra existe circundada por nebulosidade. Considera, pois, não ser possível entender n
a Terra aquilo que não se pode compreender nem no Céu".
Diante de tais palavras, desisti de formular novas perguntas; limitei-me a pergu
ntar seu nome, humildemente. E ele recomeçou a falar:
"Entre as duas costas da Itália, próximo da tua cidade natal, ergue-se serra tão alter
osa que os trovões ribombam mais baixo do que elas. Um cimo en contra-se ali, o Ca
tria sob o qual existe eremitério votado tão-somente ao amor de Deus".
"Nele dediquei-me ao serviço divino, alimentando-me de parcos alimentos e de azeit
e, suportando alegremente verão e inverno, em contemplação deixando decorrer a vida. C
ostumava aquele claustro preparar muitas almas para o Céu! Mudou, porém, e sob tal a
specto o quanto é inútil logo mais o mundo ficará sabendo. Naquele eremitério fui Pedro
Damiano ao passo que me chamaram Pedro Pecador enquanto estive no Convento de Sa
nta Maria, junto do Adriático. Pouca vida me restava quando fui revestido do capel
o que atualmente de mal a pior é transmitido. Cefas e esse Vaso de Eleição, descalços, m
agros, assentavam-se a qualquer mesa, alimentando-se de quase nada. Os pastores
modernos, no entanto, de uma a outra parte se movendo, sempre precisam ter servo
s por perto, para ajudá-los a manter-se em pé - tão gordos acabaram ficando -, e os au
xiliar a permanecer eretos. Com o próprio manto cobrem a sua montada e assim uma só
pele veste ambos os brutos! Ó paciência, até quando!"
Ao ouvir tais palavras, vi que, girando, desciam os degraus novos lumes, e a cad
a giro faziam-se mais belos. Reunindo-se qual multidão àquele que falara, desferiram
todos um tão forte grito que nenhum som na Terra poderia igualar-se-lhe. Não compre
endi o que diziam, pois o brado fora ensurdecedor.
Canto XXII
Ainda no sétimo Céu, entre as almas contemplativas, o poeta ouve o espírito de São Bened
ito. Depois sobe ao oitavo Céu, ou céu das estrelas fixas, no ponto em que se encont
ra a constelação de Gêmeos.
Entorpecido, à doce guia voltei-me, qual menino a buscar sempre a pessoa na qual c
onfia cegamente. E ela, como faz a mãe pressurosa em atender ao filho caro e espav
orido, socorreu-me: "Esqueceste de que te encontras no Céu? Ignoras, acaso, que no
Céu tudo é santo, pois tudo provém da Suma Caridade? Imagina qual não seria a impressão e
m ti do meu riso ou do canto dos bem-aventurados se este grito impressionou-te t
anto! Se pudesses penetrar o sentido dele, conhecerias, desde agora, a vingança qu
e verás consumada antes que venhas a morrer. Eis que a espada celestial não é fulmínea o
u lenta senão quando assim pareça para aquele que a receia, ou deseja. Desvia, porém,
de mim os olhos e verás outros nobres espíritos".
Conforme aprazia a ela, volvendo o olhar deparei com centenas de esferas luminos
as que uma à outra embelezava com suas luzes entrecruzadas. Quedei me como quem, s
ofrendo silenciosamente pontadas de desejo, receia tornar-se importuno se formul
ar as perguntas que tem prontas.
Mas eis a maior e mais luminosa daquelas pérolas celestiais adiantar-se para dar s
atisfação ao meu anseio. E a voz vinda de seu imo fez-me ouvir: "Conhecesses, como e
u, a caridade que em nós arde perenemente, terias expressado o teu pensamento. Mas
para que, esperando, não retardes a caminhada para o alto, darei resposta à pergunt
a que não ousaste formular. (1) Esse monte que hoje ostenta o mosteiro Cassino em
sua encosta foi outrora, em seus cabeços, habitado por gente perversa, afeita ao m
al. Ali, fui o primeiro a pronunciar o nome d'Aquele que fez baixar à Terra a verd
ade que sobreleva o homem. Tamanha graça sobre mim foi acumulada pelos Céus, que pud
e, então, libertar do erro e do culto à impiedade várias cidades vizinhas.
"As luzes que aí vês foram outros tantos ermitãos, tocados por aquele ardor divino que
faz desabrochar as flores e sazonar os frutos santos. Este é Macário; aquele, Romua
ldo; todos os mais meus irmãos que têm firmes os pés no chão do claustro!"
"O afeto", eu disse, "que demonstras ao falar comigo e o aspecto amável desses lum
es que te cercam aumentam minha confiança, assim como a linda rosa, aberta ante o
raio de sol, mais exibe sua grande formosura. Por tal estímulo é que te suplico, ó pai
: acede a que eu receba a suprema graça de ver teu semblante".
Tornou ele: "Irmão, teu desejo será satisfeito na mais alta esfera, onde serão satisfe
itos os anelos santos, inclusive o meu. Ali se cumpre, inteira, perfeita, madura
, qualquer aspiração, pois ali somente todas as coisas estão onde sempre cumpriu estiv
essem. O Empíreo não está contido em nenhum espaço, não é limitado por nenhum pólo e ali te
im a escada cujo cimo teus olhos não alcançam.
* (1) Trata-se de São Bento de Núrsia, fundador de inúmeros mosteiros. *
Viu-a porém o patriarca Jacó, ao atingir-lhe o topo, em visão durante a qual ela mostr
ou-se circundada por multidão angélica. Mas, para subi-la, já hoje ninguém destaca o pé da
terra e com isso as minhas regras monásticas, inúteis, jazem no papel. Tornaram-se
espeluncas os muros que serviam de abadias, e o capuz monástico transformou-se em
saco para farinha de má qualidade.
"Mas a prática da feroz usura ofende menos ao querer divino que esse amor às riqueza
s que ensandeceu o coração dos monges; pois, na verdade, os bens da Igreja não são dela
mas por ela custodiados em nome dos que pedem por amor de Deus, e, portanto, não p
odem ser distribuídos entre parentes e piores ainda do que estes. A matéria que compõe
o homem é tão débil que as melhores intenções não duram mais tempo do que o gasto pelo car
alho desde que nasce até dar bolotas. Pedro iniciou a sua missão sem possuir ouro ne
m prata; eu, com orações e com jejuns; e Francisco, com humildade ergueu o seu conve
nto. Se comparares o passado destes com o que hoje vemos, concluirás que o branco
se fez preto com o passar do tempo. Correção para estes males seria milagre maior do
que haver o Rio Jordão invertido seu curso e o Mar Vermelho abrir-se em obediência à
vontade divina".
Ao terminar de falar, voltou para junto dos seus, e toda a luminosa grei estreit
ou-se para nas alturas desaparecer. A doce minha dama com um gesto fez me seguir
pela escada empós deles, suprindo com sua virtude a minha fraqueza humana. Jamais
na Terra houve quem subisse ou descesse como então ali eu velozmente pratiquei. B
em aspiro, ó leitor, tornar ainda ao devoto triunfo pelo qual choro os meus pecado
s e bato no peito: em menor tempo do que levarias para meter e retirar o dedo ao
fogo, eu vi e me senti integrado na constelação que segue a do Touro. Ó gloriosas est
relas! ó lume impregnado pela alta virtude, a que reconheço dever o meu engenho, val
ha ele o que valer! De vós nascia e em vós se escondia esse [o Sol], gerador de toda
vida mortal, quando principiei a respirar o ar da Toscana. Eis que havendo alca
nçado a graça de elevar-me à mais alta esfera, cumpre-me passar pela região que é vossa! M
inha alma vos implora infundais nela a necessária virtude para triunfar do ingente
passo a que foi constrita.
"Tão perto estás de deparar o rosto divino", começou Beatriz, "que cumpre esteja a tua
vista clara e firme. E antes que avante te internes, é proveitoso que baixes o ol
har e te dês conta de quantos mundos estão abaixo dos teus pés. Com essa constatação, mais
venturoso o teu ânimo se há de apresentar à turba triunfante que alegremente acorre a
este orbe circular."
Lançando, pois, a vista por todas as sete esferas, e observando quão mesquinha em ta
manho era a nossa Terra, sorri constrangido, aprovando o conceito de quantos a c
onsideram um astro de somenos e por grande sábio tenho aquele que em outros mundos
põe os seus cuidados. Vi a filha de Latona, agora sem aquelas manchas que me leva
ram a crer fosse astro espesso ou tênue. De teu filho, Hiperião, pude aqui afrontar
o rosto e observar como próximos e vizinhos dele movem-se os filhos de Mala e de D
ione. Do mesmo modo vi o fulgurar de Júpiter, que tempera o frio do pai [Saturno]
e o calor do filho [Marte]; vi como é que os astros variam movimentos e posições - poi
s os sete planetas fizeram-me patente quão grandes e velozes são, assim como as distân
cias guardadas entre si na imensidão do Céu. Do seio dos dois eternos Gêmeos pude obse
rvar a Terra inteira, com montes e vales; ilhota conturbada pelos que vivem, de
que o homem tanto se gloria. Depois, os olhos sempre ternos voltei a mirar.
Canto XXIII
Agora no oitavo Céu - ou céu das estrelas fixas, Dante conhece a magnífica alegoria do
triunfo de Cristo.
Para a ave que passa a noite escondida na fronde, junto ao ninho, em meio à noite
que tudo esconde, e espera que o Sol dê início ao dia para que ela possa rever seus
filhotes e alimentá-los, as tarefas mais exaustivas parecem suaves. Minha dama ass
im permanecia ereta e atenta, a fitar aquele ponto no qual o Sol se move mais le
ntamente. Vendo-a absorta e fixa, quedei-me qual homem que, almejando determinad
o bem, aguarda, acalentando esperança. Mas pouco decorreu entre o momento em que m
e dispus à espera e o instante em que notei tornar-se o céu mais e mais abrilhantado
.
Minha dama exclamou: "Eis as cortes do triunfo de Cristo e todos os frutos colhi
dos no girar destas esferas!" E nisso o seu rosto pareceu-me tão flamante, com ard
er em seus olhos alegria tamanha, que o melhor é sequer tentar descrevê-la. Assim co
mo Trívia nos plenilúnios esplende entre ninfas eternas que pintalgam o céu, refulgind
o sobre milhões de lumes, vislumbrei um Sol que a todos aqueles lumes emprestava o
s seus clarões, conforme faz o nosso com os demais astros. (1) Tão brilhante fulgura
va a Divina Substância, por entre o aceso lume, ante o meu olhar, que o não pude sus
tentar.
* (1) Era Cristo, cujo brilho empanava todas as demais luzes. *
Beatriz, guia meiga e querida, disse-me: "O que te faz curvar os olhos é força inven
cível, incomparável. É todo o Poder e toda a Sabedoria, que abriram o caminho da Terra
para o Céu, por muito tempo desejado em vão".
Como o raio se liberta da nuvem que já não consegue contê-lo e violentando lei natural
fuzila para a terra, assim a minha mente, em meio àqueles prodígios espirituais, me
rgulhou no êxtase, saiu de sua natureza e agora não logra recordar o que então lhe suc
edeu: "Abre os olhos e observa como sou. Viste coisas que ora te possibilitam su
stentar o meu sorriso".
Encontrava-me como aquele que, acordando de visão desfeita, esforça-se inutilmente p
or recompô-la na mente, quando ouvi esse convite, merecedor de gratidão tamanha a po
nto de jamais poder ser cancelada do livro do passado. Ainda que ressoassem para
ajudar-me as línguas de todos os poetas inspirados por Polínia e outras musas, do m
odo mais genial, seu dulcíssimo e alto canto não bastaria para que eu cantasse digna
mente a milésima parte daquele santo sorriso em face à luz da divina presença. Igualme
nte, ao descrever o Paraíso, cumpre fazer saltos no poema sacro, conforme procede
o viajante que encontra seu caminho fechado. Os que cogitarem de quanto é pesado o
tema e quanto é frágil o ombro que o sustenta, não me culparão de que diante do encargo
eu trema. Não é para pequeno barco este mar que a proa ousada singra, nem para pilo
to incauto.
"Por que te concentras tanto em meu rosto e não te voltas para esse jardim formoso
onde ao sol de Cristo abrem-se todas as flores? Ali está a rosa em que o Verbo Di
vino se fez carne; ali, os lírios a cujo suave odor abriram-se os caminhos da verd
ade."
Assim falou Beatriz, e eu logo obedeci, forçando meus débeis olhos. Qual oculto sol
que, filtrando-se entre nuvens, ilumina campina em flor conservando se porém à sombr
a, assim notei turbas de esplendores a receberem do alto o fulgor de que se orna
vam, sem divisar o fogo de que o recebiam. Ó Benigna Virtude, que os fazes esplend
entes; e que então tomaste altura para que eu lograsse ver o que naturalmente ao m
eu olhar não se permitia! Ouvindo o nome da bela flor [Rosa Mística] que sempre invo
co pelas manhãs e tardes, atentei para o maior dos lumes a fulgir. Vi essa viva es
trela, maior em grandeza e luzimento, que todas as outras supera, no Céu e na Terr
a.
Baixou então do alto centelha em forma de diadema e, tendo-a cingida, girou ao red
or dela. A mais doce melodia terrena, a que mais extasiasse a alma, soaria qual
trovão de rota nuvem se comparada com a daquela lira a cujo som era coroada a divi
nal safira, a mais formosa de que o Céu se orna. "Sou o amor angélico, a girar indic
ando o prazer que vem do seio santo onde o Nosso Desejo [Cristo] encontrou abrig
o; e continuarei a girar ao teu redor, ó Rainha do Céu, enquanto ao teu Filho fazend
o companhia com teu esplendor adornares esta suprema esfera." Ao fim da melodia
entoada em círculo, em suave cantar repetiam o nome de Maria as outras almas ilumi
nadas.
O régio manto dos mundos, que próximo ao sopro de Deus mais se abrasa, tanto de nós en
tão distava que de onde me encontrava não lhe podia distin guir a forma. Por isso me
us olhos não alcançaram a Coroada Chama que se alteou, remontando ao Filho. Como a c
riança que, já saciada, para a mãe estende os braços pequeninos, alegremente, assim outr
os esplendores endereçaram suas luzes para o alto, patenteando o afeto a Maria. En
quanto à vista permaneceram, modulavam o Regina coeli, tão brandamente que o prazer
de ouvi-los ainda ecoa, inefável, em meu espírito. Oh! quão grande é a uberdade contida
nessas arcas riquíssimas, guardiãs dos frutos colhidos nas boas sementeiras deste mu
ndo! No Paraíso se vive e se goza do tesouro acumulado com o pranto do exílio de Bab
ilônia, sofrimentos ante os quais de nada vale o ouro! Ali triunfa, sob o Excelso
Filho de Deus e de Maria, unido aos eleitos segundo as Leis Antigas e Novas, ess
e que guarda as chaves da eterna glória. (2)
* (2) São Pedro, a quem Cristo confiou as chaves da Igreja e, portanto, da salvação da
s almas. *
Canto XXIV
São Pedro interroga Dante sobre questões relacionadas à Fé; o poeta responde-lhe as perg
untas com tanta propriedade que granjeia a admiração do santo.
"Ó gente escolhida para a ceia celestial, que vos nutre e satisfaz! Se por graça de
Deus este homem alcança prelibar as delícias inumeráveis em vossa mesa antes que chegu
e o tempo da sua morte, tendo em conta o seu desejo enorme de conhecimento, rore
jai-o com as gotas da verdade que manam da fonte em que bebeis e que ele anseia!
"
Assim falou Beatriz, e aquelas ledas almas, quais cometas flamejantes, rodaram v
elozmente ao redor de seus eixos. As rodas do mecanismo de relógio fazem parecer,
em seu girar, que a primeira está imóvel e que a última voa: assim aqueles círculos dançan
tes em velocidades variáveis anunciam a escala de sua hierarquia. Do círculo em que
notei maior beleza vi destacar-se lume tão glorioso que nenhum outro sobre ele ava
ntajava. Ao redor de Beatriz evoluiu três vezes, entoando canto tão mavioso que nem
mesmo fantasiando poderia descrevê-lo. Porém, a pena escapuliu-me da mão e nada escrev
o ou digo, pois nem com palavras nem com matizes tanta beleza pode ser reproduzi
da.
"Teu ardente apelo, ó doce irmã, fez que eu deixasse aquela formosa guirlanda de luz
." Parando seus movimentos, o excelso lume dirigiu-se à minha dama, com as palavra
s que aqui transcrevo. E ela tornou: "Ó luz eterna do varão a quem Nosso Senhor conf
iou as chaves destes páramos celestes que levara para o mundo terreno, rogo-te, se
gundo teu alvitre, interrogues a este homem, sobre pontos simples e complexos, a
respeito da fé que fez com que sobre o mar andasses. Visto que gozas da contemplação
d'Esse em quem tudo se vê nitidamente impresso, a ti é patente se este alimentou a c
aridade, a esperança, a justa crença. Mas como só pela fé se alcança o reino divino, convém
que o recém-chegado exalte-a com suas palavras".
Como o aluno que ouve calado a tese exposta pelo mestre, a fim de discuti-la, as
sim eu me preparei, e enquanto Beatriz falava, muni-me de argumentos dig nos tan
to do argüidor quanto da matéria em si. "Torna-me claro, ó bom cristão, o que pensas ser
a fé." Ergui a fronte para aquela luminosidade que assim me interrogava. Voltei-m
e depois para Beatriz, que por acenos me instigava a fazer jorrar a água do conhec
imento da interna fonte onde a tinha guardada. Então, comecei: "A graça divina que m
e concede fazer minha confissão diante do primeiro grande paladino da fé, conceda cl
areza aos meus conceitos!" E prossegui: "Segundo escreveu a pena apraz de teu am
ado irmão [São Paulo] que, contigo, conduziu Roma ao bom caminho, fé é a substância do que
se espera e argumento que, mesmo sem prova, leva à convicção. Esta definição parece-me bo
a".
"Bem terás falado", disse ele, "se bem compreendeste a substância definida, pois tua
argumentação foi inteligente". Respondi: "As maravilhas que nestes altos sítios me fo
ram presentes estão ocultas aos olhos do mundo terreno. São aceitas através da crença em
que o homem baseia sua mais alta esperança; eis por que substância é chamada. Mas com
o impõe que sobre ela unicamente seja baseado o raciocínio, por argumento é também nomea
da".
Ouvi então: "Se a doutrina ensinada lá no mundo fosse compreendida como o foi por ti
, não haveria ali lugar para os sofistas". Tais palavras disse aquele lume de amor
ardente. E acrescentou: "Bem enunciados foram a liga e o peso desta boa moeda.
Mas, dize-me se a trazes em tua bolsa". E eu: "Sim, tenho-a e tão luzidia, tão redon
da, que de seu bom cunho estou perfeitamente certo". Do imo, então, da luz fulgent
e, ouvi dizer: "E essa preciosa gema sobre a qual se erguem todas as virtudes, d
e onde a recebeste?"
"Da chuva abundante vertida pelo Espírito Santo sobre a Velha e a Nova lei", respo
ndi-lhe. "Este é o argumento que me convenceu a respeito da fé verdadeira, com tal c
lareza que em face dela a mais clara demonstração parecer-me-ia totalmente equivocad
a". Ouvi em seguida: "E por que acreditas que foram divinamente inspirados o Vel
ho e o Novo Testamento, em que tamanha confiança depositas?" "A prova de que são ver
dadeiros dão-me os milagres, os quais a natureza jamais pôde forjar nem moldar em su
a bigorna." Foi-me perguntado: "Dize: quem te assegura que esses milagres foram
efetivamente realizados? Depositas tua fé exatamente nas obras que ora deves prova
r!" "Se o mundo se houvesse convertido ao Cristianismo", disse eu, "sem milagres
, seria este fato um milagre cem vezes maior do que outro qualquer. Tu mesmo, po
bre, sem recursos, foste ao campo semear a excelsa planta que um dia foi vinha,
mas hoje é espinheiro." Concluíra este dizer quando a corte santa entoa nas suas gui
rlandas de luzes um Te Deum laudamus com a doce melodia que apenas no Céu se canta
. Aquele varão que com seu exame tanto me havia exaltado recomeçou:
"A mesma graça divina que te ornou a mente fezte falar até aqui de modo perfeito. Po
rtanto, aprovo quanto respondeste. Mas ora é preciso que definas a tua crença e a fo
nte de onde crês que ela se tenha originado".
"Santo pai, em espírito podes ver aquilo em que acreditaste pois tamanha foi a tua
crença que antecipaste no Sepulcro a pés mais jovens", eu disse; "queres que eu pat
enteie a essência do meu firme acreditar e a origem dele. Respondo: creio em um De
us único, eterno, que acede ao mover-se dos céus, não por mandado alheio, mas por clemên
cia para com o anseio humano. A física e a metafísica provam essa existência, que é também
provada por Moisés, pelos profetas, pelos salmos, pelo Evangelho e pelas páginas qu
e escreveste depois de iluminado pelo Espírito Santo.
"Creio em três pessoas eternas, em que a sua essência seja una e trina, de tal forma
que a ela se possa referir usando o são e o é. Do que proclamo a propósito dos mistério
s da condição divina, muitas são as confirmações que tenho; com freqüência são elas avivada
minha mente. Este é o princípio, a centelha que logo em viva chama se transmuda e, q
ual estrela celeste, brilha em mim".
E tal qual o bom senhor que atento e contente ouve seu servo transmitir-lhe boas
notícias, e abraça-o quando ele se cala - assim, tão logo silenciei, o iluminado espíri
to de São Pedro abençoou-me volteando três vezes ao meu redor, em atitude de aprovação.
Canto XXV
Ainda no oitavo Céu, assim como a alma de São Pedro interrogara Dante sobre a Fé, São Ti
ago interroga o poeta acerca da Esperança.
Se porventura este poema sagrado, para o qual o Céu e a Terra contribuíram e em cuja
feitura definhei por longos anos, puder amenizar a crueldade dos que mantêm cerra
do para mim o doce redil onde, cordeiro, dormi, infenso aos lobos que lhe movem
guerra; com voz mais sonora e os cabelos embranquecidos, retornarei poeta e na f
onte do meu batismo receberei a coroa de louros.
Ali fui iniciado na fé que em face de Deus assinala as almas e isto foi causa de h
aver-me Pedro concedido aprovação depois do exame. Eis encaminha-se para nós outra das
luzes do grupo de que viera a primeira, aquela que por seu vigário nos deixara o
Cristo. A minha dama, tomada de júbilo, indicou-me: "Repara! Eis o santo pelo qual
se vai em romaria à Galícia!"
Quando o pombo amorosamente acerca-se da companheira, um e outra, em giros e em
arrulhos, procuram mostrar o mútuo ardor. Assim vi procederem os dois gloriosos prín
cipes, louvando o manjar que somente no Céu se degusta. Depois desse congratular r
ecíproco, puseram-se à minha frente, mudos, tão fulgurantes que me vi obrigado a baixa
r o rosto. Sorrindo, então, Beatriz explica:
"Ó alma iluminada, que à perfeição descreveste os imensos tesouros de nossa fé! Neste alto
do Céu, interroga a este a respeito da esperança. Bem o sabes fazer, pois tantas ve
zes figuraste a esperança quantas vezes Jesus demonstrou a seus três discípulos maior
benevolência".
"Ergue a fronte, pois quem sobe a este ponto desde o mundo mortal deve sazonar-s
e a seus vivos raios!" O consolo de tais palavras me foi dado pelo segundo dos s
antos lumes e por virtude delas volvi àquelas montanhas de valor os olhos que me h
aviam feito baixar. "Permite a divina graça que antes da morte possas contemplar,
nos paços mais recônditos, o nosso Imperador com os seus nobres, a fim de que, conhe
cendo a verdade aí contida, faças com que a esperança que a tantos serviu de alento ai
nda possa no mundo servir a ti e a muitos. Mas, por ora, dite-me o que é a esperança
, como ela se acendeu em teu íntimo e onde a recebeste."
Isto disse o segundo lume; porém, a caridosa dama que a tais alturas guiara minhas
débeis asas antecipou-se, explicando: "A Igreja Militante não conta filho mais plen
o de esperança, como podes ver escrito nesse Sol (Deus) que a todos nós ilumina. Por
isso lhe foi concedido que do Egito viesse a Jerusalém antes de que seu tempo vit
al expire. Interroga-o, sim, a propósito de outros dois pontos, não por supô-los ignor
ados, mas para que no mundo ele avive essa virtude que muito amas. Deixo que ele
dê, sozinho, as respostas, sem disso tirar vanglória, pois nela não encontrará dificuld
ades se Deus a Sua graça lhe concede".
Qual discípulo atento que para o mestre vai discorrendo sobre tema de que tem domíni
o, satisfeito de patentear seus conhecimentos, fui dizendo: "A esperança é o aguarda
r, sem nenhuma dúvida, a glória futura, por efeito da graça divina e de mérito precedent
e. De alterosas estrelas me vem esta luz, mas quem por primeiro instilou-ma no p
eito foi o sumo cantor do Sumo Senhor. Afirmou ele em seus divinos salmos: Esper
em em Ti os que conheçam Teu nome'. E quem não conhece tal nome, possuindo a fé que me
anima? Tu também, com tua epístola, assim como ele fez com seu cantar, instilaste e
m mim a esperança que, por abundante, vou repartindo com outrem". Enquanto eu fala
va, do íntimo fulgurante daquele incêndio erguia-se chama intensa, qual relâmpago, a m
e responder:
"O amor por essa virtude [a esperança], que me acompanhou até alcançar a palma do martír
io e da morte, ainda aqui me tem abrasado. É a força que te atrai a mim, pela felici
dade que encontras nela. Dize-me, pois, o que é que te promete a esperança".
E eu: "As Escrituras Antiga e Nova exibem o símbolo da esperança qual pendão a ser seg
uido pelas almas às quais Deus é caro. Afirmou o Profeta Isaías que cada uma delas será
cingida, na pátria celestial, de dupla veste; e a pátria delas é esta bem-aventurança et
erna. Teu irmão, na passagem em que se refere às brancas vestes, mais claramente est
e conceito descreveu".
Tais palavras havia apenas proferido, quando Sperant inte acima de nós se ouviu ca
ntar, despertando ecos nos círculos ao nosso redor devotos. E logo entre eles fulg
urou um lume por tal modo brilhante que se estrela igual houvesse na constelação do
Câncer, o inverno teria meses de um só dia. É qual a jovem pura que, em honra da amiga
recém-desposada, alegre entra no baile, sem nos gestos ter malícia ou vício - aquele
clarão resplendente vi aproximar-se do par de lumes que em círculos girava conforme
convinha ao seu amor ardente. Formou o novo lume no canto e na dança que os outros
executavam. A minha dama contemplava o trio, qual esposa tácita, imóvel.
"É este o que repousou ao peito do nosso Pelicano, por quem, do alto da cruz, foi
destinado a elevado ofício!" Assim falou Beatriz, tendo o olhar embebido de novo n
a terceira luz, tal qual estivera antes de que tais palavras eu tivesse ouvido.
Aquele que ousa encarar o Sol supõe que em pouco tempo lhe falte a vista, pois tod
o o seu esforço a luminosa potência anula. Isso ocorreu comigo ao fixar o terceiro r
esplendor, enquanto estas palavras eram ditas:
"Por que te cegas procurando ver o que no Céu não pode ser visto? Lá na Terra, em terr
a se transformou o meu corpo, e assim será com o de outros, até que o número dos morto
s alcance a cifra prevista nos desígnios divinos. Mas com a alma e o corpo estão nes
te santo claustro aqueles dois lumes que se elevaram. Repete lá no mundo esta verd
ade".
Ditas tais palavras, silenciou o luminoso giro e com sua voz calou-se também a sua
ve melodia que da tríplice luz evolava. Assim é que se imobilizam, ou para repouso o
u para evitar perigo, ao som de um assobio, os remos que antes fendiam as águas. M
as, ai! por viva comoção fui abalado quando, ao procurar Beatriz, volvi-me e não a vi,
embora lhe estivesse ao lado naqueles páramos de delícias!
Canto XXVI
Dante ainda se acha no oitavo Céu. A alma de São João Evangelista interroga Dante sobr
e a Caridade.
Receava ter perdido a visão; porém, da rútila chama que a ofuscara uma voz se ergueu:
"Enquanto esperas recuperar a visão, anulada por haveres em mim fixado os olhos, c
onvém que compenses a sua falta com honestos conceitos. Principia a expor o que te
vai pela alma, ficando desde logo certo de que a tua vista está desfalecida e não d
efunta, pois a dama que por este mundo divino te conduz possui no olhar virtude
semelhante à das milagrosas mãos de Ananias".
Eu disse: "Quando lhe aprouver, cedo ou tarde, dê ela remédio a estes olhos, portais
por onde entrou em mim o fogo do amor em que ainda vou ardendo. O bem que desta
corte faz enlevo é Alfa e Ômega de toda a Escritura que ou mais ou menos me acendeu
eterno amor no peito.". A voz que me retirava o medo à eterna cegueira insistiu p
ara que no tema eu continuasse a discorrer, dizendo:
"É bom que exponhas com mais clareza e pormenores o teu pensamento e indiques quem
te fez apontar o arco para tal objetivo." E eu: "Argumentos filosóficos e impulso
s que do Céu provêm - tal amor, como é de natureza, infundiram em mim. O bem, segundo é
conhecido, em sua essência instila ardor tão intenso quanto é abundante a caridade que
em si encerra. Em conseqüência disso, a divina essência da caridade é por tal modo avan
tajada, que todo e qualquer bem porventura existente fora dela não será senão reflexo
pálido da sua virtude. Mais do que outra, atrai a alma que, voltada sinceramente a
o vero amor, penetra, por tal arte, a verdade desta prova.
"Essa verdade esclarece ao meu entendimento a certeza de que o primeiro amor de
todas as criaturas imortais é o seu Criador. Esclarece-o também a voz do Supremo Aut
or, quando disse a Moisés, falando de Si: Far-te-ei conhecer a verdade mais perfei
ta!' Também tu mo esclareces por meio da alta pregação, que supera qualquer outra reve
lação em verdade".
Ouvi, então: "Tendo em vista a perfeita concordância entre teu intelecto humano e a
letra das Escrituras, o teu amor maior é consagrado a Deus. Mas se a tal amor és com
pelido por outras forças, dize quais são". Não me passou despercebida a intenção da Águia d
Cristo [São João]; ao contrário, bem percebi para onde desejava que eu conduzisse min
ha exposição. Continuei, portanto:
"Os estímulos que levam o coração humano a voltar-se para Deus atuam, sem exceção, sobre m
eu espírito de caridade. A essência que formou o mundo formou-me também: Deus sofreu m
orte para que eu vivesse na esperança da eternidade, com todos os demais fiéis. A co
nsciência de tal verdade é que me desviou do amor das coisas mundanas, endireitando-
me para o caminho do amor divino. Em todas as criaturas que adornam o horto univ
ersal encontro o amor do Hortelão Supremo, pois entendo que só o bem o Criador infun
diu nas criaturas." Apenas me calei, suavíssimo canto ressoou pelo Céu e a minha dam
a entoou com os mais espíritos: "Santo, Santo, Santo!"
Quando a capacidade de enxergar desperta bruscamente, indo ao encontro da lumino
sidade que pungentemente lhe invade os refolhos do órgão visual, o homem, acordado,
não pode de imediato fixar a vista, pois tal despertar é inconsciente enquanto o uso
da razão não auxilia o da visão. Foi assim que Beatriz, com um raio de seus olhos, re
tirou dos meus olhos todos os empecilhos, por menores fossem, fulgindo o seu mes
mo olhar num espaço de mil milhas a mais. Pude então enxergar mais longe do que ante
s, e estupefato perguntei quem era o quarto lume ali presente. Minha dama explic
ou-me:
"Dentro desses raios, a primeira das almas criadas pela Alta Virtude contempla s
eu Criador" (1). Qual arvoredo que ao perpassar do vento dobra a fronde, mas vol
ta a erguê-la por virtude da força que em si traz contida - sucedeu comigo que emude
ci de pasmo, enquanto ela falava, para logo depois patentear o desejo que em mim
se acendera de interrogar. Exclamei: "Ó único homem criado já adulto, ó primeiro dos pa
is, da qual toda esposa é filha e é nora! Com reverência te rogo, atende ao meu desejo
, fala-me. Bem conheces o meu desejo; e não o repito, para sem demora ouvir-te".
O animal envolvido em uma manta às vezes tanto se agita que deixa ao homem entende
r os seus intuitos, pelos movimentos que imprime à tela. Por igual modo, a primeir
a das almas criadas, agitando-se em seu luminoso invólucro, revelava o prazer fruído
no atender ao meu anelo.
* (1) Trata-se de Adão. *
Disse-me assim: "Sem que o reveles, conheço o teu desejo com clareza maior do que
aquela que possas ter a respeito de algo que seja de teu inteiro conhecimento. I
sso porque vejo no Espelho Verdadeiro, que, refletindo-as, faz todas as coisas i
guais a Si e que em coisa alguma pode ser refletido.
"Perguntas quando colocou-me Deus no Jardim Terreal; para o alcançares, fez-se nec
essário que esta senhora tão longamente te houvesse preparado. Queres também conhecer
quanto tempo ali permaneci; qual a causa verdadeira da cólera divina contra mim, e
qual idioma, por mim criado, ali usei. Sabe, filho, que o fato de haver eu prov
ado da maçã não foi a causa única de tamanho exílio, mas a desobediência a ordens divinas.
onde a tua dama foi buscar Virgílio (para te guiar), durante quatro mil trezentos
e dois anos anelei o Paraíso. Na Terra vi passar o Sol pelos símbolos do zodíaco por n
ovecentas e trinta vezes. A língua que falei extinguiu-se por completo ainda antes
que a gente de Nemrod se ocupasse em dar início à obra interminável.
"A língua, filha da razão, como toda obra humana, nunca é perdurável, sujeita estando ao
s influxos naturais. É natural que o homem fale, mas que se expresse com este ou a
quele acento é detalhe que a natura deixa ao alvitre humano. Assim, antes que eu b
aixasse ao Limbo, El era som que traduzia o Sumo Bem, que de alegria me cinge po
r inteiro, e Eli foi chamado mais tarde. Essa mudança é bastante aceitável, por ser próp
rio das coisas mortais que na mesma baste uma folha caia ao tempo em que outra v
ai brotando. No monte que mais se alteia sobre as águas [o Jardim do Éden] vivi em t
otal pureza, que depois tornei culpada da primeira hora até depois da hora sexta.
Canto XXVII
São Pedro volta a falar a Dante - ainda no oitavo Céu -, e demonstra toda a sua indi
gnação contra os desvios da igreja temporal. Dante está próximo de alçar-se ao nono Céu, ju
tamente com Beatriz.
Todo o Paraíso entoava seu louvor "Ao Pai, ao Filho, ao Espírito Santo!", num canto
inebriante. Era como se sorrisse universo inteiro, e me houvesse posto extático, p
enetrando-me pelos olhos e ouvidos. ó existência de paz! ó tranqüilidade isenta de angústi
as, felicidade inefável!
Rutilavam ante meus olhos as luzes puríssimas dos três apóstolos e de Adão; mas mais bri
lhante tornou-se aos poucos aquele que por primeiro se apresentara [São Pedro]. Lo
go, sua aparência sugeriu-me a de Júpiter e a idéia de que, se aves fossem este e Mart
e, houvessem entre si trocado de plumagem. A Providência, que determina também ali o
que cada criatura deve fazer e como deve fazê-lo, dispusera, então, silenciasse aqu
ele mavioso coro. E nisto ouvi:
"Não te maravilhes por ver alterada a minha coloração, pois, à medida que eu for discorr
endo, verás também em todos estes mudança igual. Eis que esse que na Terra usurpa o me
u lugar, o meu lugar sim, o meu lugar - que, porém, o Filho de Deus considera vago
- converteu o meu túmulo em sentina de sangue e podridão, sítio onde o perverso expul
so do Céu goza delícias." Notei, então, que todo o Céu se fazia daquela mesma tonalidade
purpúrea com que em certas albas e crepúsculos o Sol usa tingir as nuvens.
E assim como treme e enrubesce dama virtuosa, segura de seu proceder, ouvindo na
rrar as faltas de outra mulher, assim Beatriz teve alterado o seu as pecto. Não cr
eio tenham sido maiores a comoção e o eclipse registrados quando da Paixão de Cristo.
o grande Apóstolo pronunciou em seguida algumas palavras, com timbre tão estranho qu
e reconheci haver na voz alteração maior do que na cor. Dizia:
"A Igreja não foi alimentada com o meu sangue nem com o de Lino e o de Cleto, para
que tal sangue fosse transmudado em ouro por ganância desmedida. Foi decerto para
garantir aos fiéis a fruição destas delícias que, depois de muito pranto, verteram também
o próprio sangue Sisto, Calisto, Pio e Urbano. Não foi nosso propósito que o povo cri
stão viesse a sentar-se, uma parte à direita e outra à esquerda dos nossos sucessores,
nem jamais foi determinado que as chaves a mim confiadas viessem a tornar-se es
tandartes na luta de irmãos contra irmãos; nem que a minha efígie servisse de selo nas
concessões de privilégios comerciados e pervertedores, situação que me faz corar e arde
r em ira.
"Com vestes de pastor, vêem-se daqui lobos vorazes ocupando os redis. Ó cólera divina,
por que não te fizeste sentir ainda? Para beber nosso sangue preparam-se os caors
inos e os gascãos. Ó doutrina santa, que tão bom princípio tiveste, quão baixo foste preci
pitada! Mas a Alta Providência, que pela espada de Cipião deferiu a Roma o mando uni
versal, depressa virá em teu socorro, segundo espero. E tu, filho, que ainda retor
narás à Terra como mortal, repete-lhe o que digo, sem nada ocultar!"
Assim como o ar aqui se coalha de flocos de neve pelo tempo em que o signo do Ca
pricórnio toca a estrada do Sol, assim vi o éter ocupado por espíritos bem aventurados
, que à nossa altura se encontravam na triunfal subida. Com a vista segui sua esca
lada, até onde a distância permitiu-me fazê-lo. Percebendo a minha dama que inutilment
e eu mantinha os olhos levantados, disse: "Baixa o olhar e repara quanto espaço pe
rcorreste". Desde o momento em que pela primeira vez do alto eu contemplara a Te
rra do meio até o fim, já avançara todo o arco celeste que determina o primeiro clima.
Divisei, pois, para além de Cádiz, a passagem que a Ulisses foi adversa; aquém, eu vi
a a plaga onde Europa fora precioso fardo.
Poderia ter reconhecido uma parte bem maior da Terra, não houvesse já o Sol, debaixo
das plantas dos meus pés, avançado distância igual à de um sig no. Então, a alma que eu t
razia sempre enamorada, no desejo incessante de contemplar a dama sua senhora, m
ais do que nunca ia ardendo. Se a natureza ou a arte humana houvessem produzido
algo capaz de conquistar a alma pela via dos olhos, nada representariam tais art
ifícios se postos em cotejo com o ridente viso de Beatriz quando voltou-me seu ros
to iluminado pela luz divina. A virtude que o seu olhar infundiu em mim bastou p
ara arrancar-me ao doce ninho de Leda e lançar-me para o alto com velocidade. As p
artes do céu, as próximas tanto quanto as mais distantes, eram tão uniformes em seu br
ilho e formosura, que fiquei sem saber a qual delas Beatriz me endireitava. Mas
ela, compreendendo o meu embaraço e sorrindo com alegria tamanha que dir-se-ia o p
róprio Deus sorrir nela, disse:
"O movimento universal, que mantém a Terra imóvel e faz girar ao seu redor os demais
astros, daqui se endereça ao universo inteiro. Este céu e esta força derivaram apenas
da mente divina, donde lhe vem o amor que o faz mover-se e a virtude que em out
ros céus infunde. Luz e amor em um círculo o têm cercado; este circunda aos mais e o m
istério desta possibilidade somente entende Aquele que criou. Não é de nenhum outro móve
l dependente; os outros é que se medem por este, assim como o dez é medido pelo cinc
o e pelo seu quinto. Podes agora compreender como é dado ao tempo conter as suas r
aízes neste céu, enquanto suas ramagens por todos os mais céus se estendem.
"Ó cobiça que tão fundo submerges o homem, a ponto de ser-lhe inútil com a cabeça emergir
desse pélago! No querer dos homens a boa vontade enflora, porém, as continuadas chuv
as (dos erros) fazem com que murchem e pereçam os frustrados frutos. A fé e a inocênci
a puras, que tão-somente entre as crianças se encontram, destas desertam antes que a
primeira barba o mento lhes revista. Aquele que ainda balbuciante faz jejum, tão
logo fale corretamente já se entrega a todo comer, mesmo em tempo de preceito. Há ta
mbém os que, ao tempo do balbucio, atendem e amam à sua mãe; porém, tão logo percebem-se c
rescidos, não se comovem ao vê-la debaixo da mortalha. É assim que de alva torna-se ne
gra a cútis da filha formosa desse que se nos apresenta com a manhã e nos deixa com
a noite.
"Não estranhes, porém, ao saber o gênero humano tão transviado; têm culpa disso os governo
s que não governam. Mas antes que janeiro exclua da estação do inverno aquela fração de te
mpo desprezada, hão de rugir estes mundos superiores por tal forma que a fortuna -
alvo dos desejos mais humanos - terá a popa no lugar da proa; as naves vogarão sob
bom comando, e de boas flores virão sadios frutos em seguida."
Canto XXVIII
Tendo alcançado o nono Céu, Dante divisa, no alto, um foco de luz fortíssimo, em torno
do qual nove anéis se moviam sem parar; seu brilho e sua velocidade diminuíam à medid
a que eles se afastavam do centro.
Após ouvir de tal maneira falar sobre a mísera existência dos mortais aquela que da mi
nha mente faz paraíso [Beatriz], agi como quem, percebendo em espelho a claridade
de tocha acesa à sua retaguarda, volta-se a fim de verificar se é real o que lhe exi
be o cristal, e fazendo-o constata corresponder a imagem à verdade tão bem quanto a
nota musical corresponde ao seu metro. Assim minha memória recorda que agi, enleva
do na contemplação dos belos olhos dos quais o amor prendeu-me. Ao desviar a vista,
porém, foram os meus olhos impressionados por efeito prodigioso que naquele sítio se
revela a quem nele bem atenta. Divisei ponto do qual radiava luz tão intensa que
a vista, ofuscada, não tinha senão que cerrar-se ante fulgor tamanho. A menos radios
a estrela se comparada à Lua teria proporção bem menor do que a mais rutilante confron
tada com aquele ponto. Um astro envolvido por denso nevoeiro faz com que, a distân
cia, pareça estar cingido por luminoso anel.
Assim, um Círculo ígneo girava com velocidade superior à do Primeiro Móvel [nono céu] - o
que abrange o mundo e é o de giro mais pressuroso. E o primeiro círculo estava circu
ndado por um segundo e este por um terceiro, e o terceiro por um quarto, e um qu
into círculo envolvia o quarto, e um sexto envolvia o quinto. Em seguida ao sexto
vinha um sétimo, já tão vasto que não lograria abrangê-lo nem mesmo o arcoíris que de Juno
ensageiro. Seguiam-se, na série, o oitavo e o nono círculos, cada qual com mais tard
o movimento, à proporção que distanciavam do primeiro. Fulgurava com luz mais intensa
e pura aquele que do luminoso ponto mais próximo se encontrava, dele recebendo, cr
eio, poderoso influxo. Minha dama, percebendo que a grave aflição em que eu me encon
trava, disse-me: "Desse Ponto dependem o Céu e a natureza inteira. Observa o círculo
que lhe está mais vizinho e fica sabendo que seu girar velocíssimo é devido ao ardent
e amor por que é estimulado".
E eu a ela: "Se aos céus todos fosse imposta a mesma ordem em que giram esses círcul
os luminosos, bastar-me-iam ao entendimento as palavras que me deste. Mas no mun
do sensível vejo que ardem mais de amor divino os orbes que do Centro são mais remot
os. Se, pois, o meu desejo de conhecimento deve ser saciado neste maravilhoso e
angélico templo que tem por limites apenas o amor e a luz, impõe-se que me expliques
como o original e a cópia são entre si diversos".
"Em vão irás te esforçar para desatar o nó de tal mistério com tuas mãos; a nenhum ser vivo
foi dado ainda tentar fazê-lo!", principiou por dizer Beatriz, para em seguida con
tinuar: "Atenção ao que vou dizer e mantém alerta a mente, se desejas conhecer a solução.
"Os círculos corporais têm crescimento determinado pela proporção menor ou maior de virt
ude de que são imbuídas as suas partes componentes. A bondade realiza maior bem na p
roporção da sua grandeza; assim um corpo sensível recebe o bem na medida de sua própria
extensão, se seus membros são bem proporcionados. Este círculo, por exemplo, que atrai
todo o universo, é o orbe onde se concentra maior capacidade de amor e de conheci
mento. Se quiseres medir com tua medida os efeitos de tal virtude, não te atenhas à
aparência das substâncias angélicas que vês dispostas em forma circular. Perceberás quão ad
irável é a correspondência existente neste céu, entre este grau e aquele; cada céu com sua
inteligência, em acordo pleno".
Vê-se a atmosfera bela e serena se Bóreas, inflando a boca, sopra, dando egresso à bri
sa suave, pois se esgarça e se dissolve o nevoeiro que toldava o ar. E então o céu sor
ri pelas garridices de todas as suas partes. Assim aconteceu comigo depois que m
inha dama encorajou-me com tais palavras e a verdade pude então fitar qual estrela
em firmamento. Assim que rematara ela o seu dizer, cintilaram aqueles círculos lu
minosos com maior intensidade que a de ferro a faiscar, fervente. Cada centelha
seguia de perto o respectivo círculo ígneo, e eram tantas estas centelhas que supera
vam elas em dobro a progressão geométrica das casas do jogo de xadrez. Ouvi ressoare
m hosanas de coro em coro, dirigidas àquele Ponto que os mantém nos lugares a eles d
estinados. Aquela que podia perceber em minha mente os pensamentos interrogativo
s explicou:
"Os primeiros círculos são formados por Serafins e Querubins. Assim velozes, seguem
os liames que os mantêm unidos a Deus, no desejo de se assemelhar ao Ponto quanto
possam, e tanto mais podem quanto mais sublime é a visão que pela proximidade têm do P
onto. Os anjos que ao redor desses giram chamam-se Tronos, pelo divino aspecto.
E com eles se conclui a primeira hierarquia angélica.
"Deves saber que, nas três categorias, eles tanto mais gozam quanto mais contempla
m a Verdade, que é o supremo anelo do intelecto. Disto se deduz que a bem-aventura
nça celeste tem por base a contemplação de Deus e não o amor, ato que sucede àquele da visã
. A medida do grau dessa visão são a graça e o vivo desejo que de grau em grau escalon
a o gozo da contemplação divina. Também a segunda hierarquia angélica floresce aqui, em
primavera eterna, que as estrelas de Áries não alcançam perturbar. Perpetuamente entoa
m hosanas ritmados em tríplice harmonia, a ressoarem e tríplice ordem de bem-aventur
ança. Nesta hierarquia encontram-se três divinas essências: a primeira são as Dominações; s
guem-se as Virtudes; as Potestades são a terceira essência. Girando nos penúltimos círcu
los estão os Principados e os Arcanjos, e o dos Anjos festivos é o último. Unidas, tod
as estas ordens mantêm fixo o olhar para o ponto que no último Céu resplende.
"O bom Dionísio entregou-se com tal amor ao estudo desta ordem que lhe deu as dist
inções e os nomes, tal qual eu os dou. Gregório, mais tarde, discordou dele; porém tão log
o pôde abrir os olhos neste céu, riu-se do erro, ao percebê-lo. Não te deve espantar o f
ato de um mortal na Terra ter percebido este mistério. Quem já o havia visto descrev
eu a ele, com muitas outras verdades sobre o celestial arcano." (1)
* (1) São Paulo, que teria em vida ascendido ao Céu, aprendeu a ordenação celestial e re
velou-a a Dionísio. *
Canto XXIX
Mais rápido que os filhos de Latona [o Sol e a Lua], um sob a constelação de Áries, outr
o na de Libra, mudam de hemisfério após brilhar na mesma zona, vi Beatriz silenciar;
sorrindo, ela contemplava o Ponto que me deslumbrara. Disse-me:
"Respondo à tua pergunta sem que a tenhas formulado, pois teu desejo de saber me f
oi dado ver lá onde estão refletidos todos os onde e quando [Deus]. Não para adquirir
maior virtude, que tal não é possível sendo Deus perfeito, mas para que Seu esplendor,
fulgurando, proclame: Subsisto. Em sua eternidade, alheio ao tempo e a qualquer
módulo de compreensão, condescendeu o eterno Amor em manifestar-se sob a forma de o
utros amores [os anjos]. Antes deles, porém, não jazera inerte; nem antes nem depois
, quando Deus formulou a Criação do mundo.
"Formas e matérias, puras e distintas, foram criadas, sem qualquer defeito, assim
como de arco de três cordas partem, irmãs, três setas. Por igual modo, incidindo em vi
dro, âmbar ou cristal, a luz do Sol é refletida com tal velocidade que da incidência à r
eflexão não decorre tempo algum. Assim a obra triforme do Sumo Autor instantânea radio
u, sem entre elas haver primeira. Contemporaneamente à substância, foi criada ordem
que a regesse. Por isso, na sumidade do universo foram colocados os anjos - form
a pura. Também recebeu virtude pura a parte mais baixa [os céus], que-as ordens cele
stial e terrestre une com laços que não podem ser desatados. São Jerônimo escreveu que m
uitos séculos antes de criado o vosso mundo, já o mundo angelical fora criado.
"A verdade também figura nos escritos de muitos que proclamaram inspirados pelo Es
pírito Santo, verdade que poderás constatar se prestares atenção bastante. Por outro lad
o, a própria razão demonstra que não existindo os anjos para reger os céus, deveriam ele
s, na Criação, preceder a estes. Ora, já sabes como, onde e quando os anjos foram cria
dos.
"Eis satisfeitos três dos teus desejos de conhecimento. Porém, em menos tempo do que
se gasta em contar de um a vinte, se tanto, uma parte dos anjos turbou a paz do
vosso mundo. A outra parte perseverou, assumindo a missão que ora a vês desempenhar
, e isso com tamanho empenho que jamais cessa de girar. Causa da queda dos anjos
foi a maldita soberba daquele que viste, lá no Inferno, suportando o peso do mund
o inteiro. Os que vês aqui foram modestos ao reconhecer haverem sido criados pela
bondade divina, que os fizera aptos ao reconhecimento do Sublime. Exaltados pela
visão, enriquecidos em méritos pela graça iluminante, orientam-se por vontade reta e
firme.
"Certo é que a recepção da graça divina é conseqüência do merecer de quem a recebe segundo
enor ou o maior ardor com que a deseja. Se o que eu disse em ti causou efeito, p
odes, sem mais auxílio, contemplar este sítio angélico. Mas, ensinando as escolas lá do
mundo que a natureza dos anjos é de tal forma que podem eles perceber, memorar e m
anifestar vontade, acrescentarei algo para dar-te a conhecer a verdade completa
que na Terra é confundida por equívocas leituras.
"Tais criaturas, depois de conhecerem a alegria inigualável de fitar a face de Deu
s, jamais desviaram d'Ele os olhos. Desse modo, não se distraem; não têm lembranças por
cultivar. No mundo, os homens sonham mesmo acordados, creiam ou descreiam na ver
dade do que dizem, ganhando, pois, ou mais culpa ou maior vergonha. A preocupação fi
losófica encaminha os homens por veredas diferentes, impelidos pelo azo de ostenta
r sapiência ou de considerar vaidades. Esse divagar ao Céu ofende menos do que quand
o os mesmos homens pospõem ou falseiam os ensinamentos das Divinas Escrituras. Não c
onsideram esses homens quanto sangue custou o disseminá-las pelo mundo e o quanto
agradam a Deus os que nelas depositam fé. Pelo gosto de fazer figura, muitos inven
tam, e com tais invenções se distraem mesmo os pregadores, enquanto o Evangelho perm
anece mudo. Afirma um que pela Paixão de Cristo a Lua tornou atrás em seu curso e, i
nterpondo-se entre o Sol e a Terra, privou a esta da luz daquele. Afirma que o l
ume solar apagou-se por si mesmo, quando o haver então ocorrido milagre é provado po
r terem os hindus, os israelitas e os espanhóis avistado o eclipse ao mesmo tempo.
Não há em toda Florença tantos Lapi e tantos Bindi quantas fanfarronadas se dizem em
um só ano, aqui e ali, acerca das coisas divinas. Desse modo, as inocentes ovelhas
, desconhecendo o engano a que são induzidas, deixam as prédicas nutridas apenas de
vento, sem se saberem enganadas.
"Cristo não disse aos seus apóstolos: Ide disseminar fantasias', mas Fazei da verdad
e o fundamento'; e somente a verdade foi pregada por aqueles que, das lutas em p
rol da fé, dos Evangelhos fizeram escudo e lança. Atualmente, é com desatinos e estult
ices que se compõem os sermões, os quais, despertando o riso, fazem inchar o capuz d
e pregador que de outro propósito não se ocupa. Se, no entanto, os fiéis pudessem enxe
rgar o pássaro nefando [o Demônio] que se aninha dentro de tal pregador, entenderiam
que nenhum valor possuem as indulgências obtidas de um símil sacerdote.
"Tamanha insensatez venceu a Terra que sem ter prova ou testemunho, todos acorre
m ao encontro das mais errôneas promessas de perdão. Com essas promessas falazes, os
frades da Ordem de Santo Antônio cevam os seus porcos e outros animais piores do
que os cerdos, pagando com a moeda da indulgência sem valor. Mas por termos feito
tão longa digressão, volvamos, cuidadosos, os olhos para o caminho reto e aproveitem
os bem o tempo que nos resta. São tão numerosos os anjos, que não podem ser contados n
em por voz nem por mente humana.
"Compreendeste, pelos escritos de Daniel, que os seus milhares de milhares não def
iniram o número exato de anjos. A Primeira das Luzes, que todas as mais luzes ilum
ina, é por tantos modos recebida nelas quantos são os anjos que testemunham a sua glór
ia. Porém, seguindo-se à concepção o afeto, a doçura do amor divino diversamente se manife
sta e aquece nas diversas ordens. Assim sendo, aprecia a imensidade do alto Valo
r, que, criador de tantos cristais nos quais tem seu brilho multiplicado, conser
va-se Uno como era antes [da Criação]."
Canto XXX
Os nove coros de anjos foram se apagando, e ia crescendo a formosura radiante de
Beatriz; Dante foi transportado ao Empíreo, sede da divindade.
Enquanto a seis mil milhas rumo ao oriente a hora sexta se esvai, e a Terra incl
ina a sua sombra em plano quase horizontal, o meio do céu, para nós estrelado, começa
a clarear de tal modo que o brilho das estrelas já não nos chega. E à medida que baixa
do céu a sua brilhante núncia - a aurora -, uma a uma apagam-se as estrelas, até a ma
is radiante. Assim vai girando o triunfante coro dos anjos ao redor daquele Cent
ro.
A ciranda angélica parecia conter a Quem na verdade a sustinha contida. Meu olhar
foi se apagando pouco a pouco, a ponto de não ver mais. Foi quan do o não ver e o am
or fizeram com que me voltasse para Beatriz. Pretendesse eu resumir em louvor únic
o os louvores que a ela tenho levantado, baldado e vão seria tal intento. A formos
ura que nela divisei transcende a todo entendimento, não só o humano mas também aquele
elevado a ponto tão alto que, acredito, somente ao Sumo Fautor é dado apreciá-la. Nes
te empenho confesso-me vencido, mais do que em qualquer tempo haja sido superado
pelo tema escolhido o mais brilhante escritor versado em temas divinos ou profa
nos. Pois, assim como o Sol ofusca mais fortemente a vista menos robusta, ao gra
to memorar daquele doce sorriso a minha mente se debilita e prostra. Desde a pri
meira vez em que fixei o seu semblante na vida terrena até este momento, jamais ca
nseime de louvá-la. Mas ora é forçoso que desista.
Não consigo retratar com versos a sua beleza, qual artista que percebe haver chega
do ao apogeu de sua capacidade criadora. Deixo, pois, a mais sonoro canto o empe
nho de louvá-la devidamente. Enquanto punha-me em paz com tal certeza, ela, com ge
sto e voz de guia que leva a termo sua difícil empresa, disse: "Passamos do nono céu
para o Empíreo, que é luz pura, luz espiritual, plenitude de amor, amor ao verdadei
ro bem, bem da completa alegria, alegria que sublima todas as dores. Aqui verás as
duas milícias do Paraíso - os anjos e os bem-aventurados. Uma delas hás de ver na for
ma com que se apresentará no Juízo Universal".
Como o raio que súbito retira aos olhos dos mortais a potência da visão, de forma tão co
mpleta que a ofendida vista não nota nem mesmo luzes fortes - assim terminei por f
icar quando um vivo clarão cercou-me, e o véu em que me envolveu impediu-me reconhec
er algo.
"O amor que neste céu abunda é com semelhante saudação que acolhe a quem na vida elegeu
o ardente fogo da caridade para iluminar o seu caminho." Ouvidas estas palavras,
senti-me estimulado por forças muito superiores àquelas próprias de minha natureza hu
mana. E recobrei a visão em tão elevado grau que percebi ter os olhos prevenidos par
a enfrentar a luminosidade mais poderosa. Vi luz a fluir qual rio fulgurante ent
re margens orladas pela obra da primavera divinal. Da corrente luminosa partiam
centelhas que por todos os lados se uniam às flores, quais rubis a engastar-se em
ouro. Depois, parecendo inebriadas pelo perfume das prodigiosas flores, as cente
lhas voltavam ao riacho luminoso; quando umas partiam, outras retornavam.
"O desejo que mostras, e que te estimula a conhecer a razão dos prodígios a que assi
stes é agradável mesmo em seu excessivo ardor. É bom, no entanto, que proves dessa água
antes de ver saciada a vontade de conhecimento." Isto disse aquela que era luz d
os meus olhos, acrescentando depois: "o rio e os topázios que saem e voltam para o
leito, e o matiz das milagrosas flores, são apenas pálida antecipação da Verdade. Não são
ifíceis de ser entendidos estes símbolos; mas falta-lhes ainda o grau de sublimidade
necessário à compreensão verdadeira".
Não há criança que tão rapidamente acorra ao seio materno, se desperta em hora mais tard
ia do que a usual, quanto rapidamente fui debruçar-me sobre o rio, procurando melh
or espelho para os olhos e onde imergi-los. Tão logo molhara as pálpebras nas suas águ
as pareceu-me que o rio, de comprido, tornara-se circular. Qual pessoa que, apre
sentando-se mascarada, ao descobrir o rosto revela semblante bem mudado, aquelas
centelhas e flores revestiram-se ao meu olhar de alegria maior, desvendando-me
os anjos e os bem-aventurados sitos naquela corte celeste. Ó esplendor de Deus - q
ue ao meu olhar antecipou o triunfo do verdadeiro reino -, inspira-me para que m
eus versos reflitam o que vi! Ali reside luz a tornar o Criador visível para as cr
iaturas que encontraram a felicidade ao contemplá-lo. Dilata-se tal luz em forma c
ircular, por vastidão tamanha que a sua área inteira marcaria ao redor todo o orbe s
olar. Um seu raio iluminava o Primeiro Móvel, levando-lhe influxo vital. No fio líqu
ido, que saído de seu imo lhe escorre pela falda, espelha-se a colina, adornada de
verdura e flores. Em meio aos resplendores da luz, miravam-se, dispostas em círcu
los ordenados, milhares de almas para ali subidas do mundo terreno. Se naquele i
nferior degrau da escada é tão viva a claridade, qual não será no cimo o fulgor da excel
sa rosa! A minha vista alçava-se à amplitude sem perder pormenores de quão dilatada e
viva fosse a alegria da bem-aventurança. Ela resplandecia por igual, de perto ou l
onge, pois não vige lei da natureza onde Deus impera sem mediação. Levando-me para o c
entro áureo da rosa eterna, a recender por muitas e dilatadas pétalas, louvando a De
us que lhe concede a eterna primavera, Beatriz me disse:
"Repara em quão elevado é o número dos bem-aventurados! Observa a amplidão desta cidadel
a e o quanto estão cerradas as fileiras, poucos mais beatos sendo aguardados. Esse
assento, que por ostentar coroa atrai o teu olhar, será ocupado antes de que venh
as a morrer e para aqui ser chamado, àquela alma augusta do grande Henrique, o qua
l descerá à Itália a fim de repô-la no caminho reto.
"Cobiça cega é o que leva à perdição os homens, qual criança que chorando fome recusa a nut
iz. Sucederá, assim, ser feito papa a tal que pela força e por estratagemas irá opor-s
e aos desígnios daquele herói. Deus, no entanto, por curto tempo a este indigno cons
ervará no santo encargo, fazendo-o mergulhar lá onde está Simão, o Mago. E sua queda car
regará ainda aquele que foi de Anagni ainda mais para baixo."
Canto XXXI
Ainda no nono Céu - ou Primeiro Móvel -, Dante procura Beatriz, porém já não a encontra. E
m seu lugar surge São Bernardo, que o convida a olhar na direção da gloriosa figura de
Maria.
A meus olhos aparecia, pois, na forma de branca rosa, a santa milícia dos eleitos
que em seu sangue Cristo sagrou esposa. A outra hoste, a dos anjos, enquanto ade
java, prosseguiu a contemplar e a louvar a glória d'Esse em cuja visão permanece ext
asiada, pois foi a Sua bondade que a fez tal qual é.
Do mesmo modo que sai o enxame, indo e tornando, para colher nas flores aquele s
umo que na colmeia sabe converter em mel, assim da rosa de pétalas inumeráveis baixa
vam mílites e logo retornavam ao centro, o foco sempre iluminado pelo eterno Amor.
De viva flama traziam as faces; de ouro as asas; e o corpo de tal brancura que
a tanto não chega a candidez da neve. Ao descerem, de sólio em sólio, pela flor, iam e
spargindo o ardor e a paz hauridos nos vôos junto de Deus. A interposição da tão numeros
a falange, entre a Suma Altura e a rosa mística, não impediu que minha vista se este
ndesse pelo esplendor celeste, pois a luz divina penetra o universo na proporção em
que este se faz digno dela, sem que nada lhe possa servir de impedimento.
Este reino tranqüilo e grandioso, povoado por gente que no mundo antecedeu e suced
eu a Cristo, tinha o Senhor como seu único objetivo. Ó Trina Luz que em uma só estrela
refulgindo trazes aquelas almas assim inebriadas! Ilumina e acalma as procelas
deste nosso mundo! Se os bárbaros, descidos das terras [frias] jamais iluminadas p
ela Ursa Maior a girar na vizinhança de seu filho, ao chegarem a Roma, observando
as maravilhas ali construídas, quedaram estupefatos, em tempos em que Latrão mantinh
a a primazia sobre as coisas materiais; eu, em situação igual, do profano passando a
o sagrado, do finito à eternidade, vindo da gente florentina para o meio de povo tão
casto e puro, qual pasmo não deveria sofrer!
Emudecido, mergulhado em júbilo e em admiração, eu não desejava fazer perguntas. Estava
tal qual o peregrino que, chegando ao templo, objeto de sua viagem, procura obse
rvá-lo nos pormenores, para bem descrevê-lo ao regressar: corria a minha vista pelos
vários sólios, ora acima e logo mais abaixo; por todo o derredor mirava e remirava.
Vi semblantes que convidavam à caridade, iluminados pela luz divina e por lume próp
rio, ornados, ademais, de todas as virtudes.
Devassara o Paraíso com o olhar, sem em nada haver por mais tempo demorado a atenção,
quando, voltando-me a arder no desejo de formular perguntas à minha dama, e supond
o falar-lhe, percebi que outra alma respondia. Quando pensava ver Beatriz, vi um
ancião [São Bernardo] vestido pelo mesmo modo que os eleitos. Nos olhos e no todo t
ransluzia nele a divina alegria, pois era o seu aspecto o de um pai a toda bonda
de afeito. "Onde está ela?", perguntei, aflito. E ele: "Baixar de meu assento ela
me fez a fim de satisfazer ao teu desejo. Mas se olhares para o terceiro sólio, hás
de vê-la ocupando o lugar mais que merecido". Sem responder, elevei o olhar e vi-a
coroada por raios que, descidos do Céu, refletiam-se nela, circundando-a de luz.
O olho do mortal que jaz no mais profundo oceano não dista mais daquele alto céu ond
e se formam os trovões, quanto minha vista distava de Beatriz. Mas tal não importava
, pois era-me dado divisar os seus traços, sem que nada, nem mesmo o ar, entre nós s
e interpusesse. Disse de mim para mim, como numa oração:
"Senhora minha, minha constante esperança, que não receaste, para me dar certeza, de
ixar teus vestígios no chão do Inferno! Em tudo quanto nesta viagem experimentei, re
conheço tua forte presença, tua alta virtude. De servo que eu era, fizeste-me livre,
exercendo, nesse caridoso intento, todos os meios e todos os gestos que a emergên
cia requeria. Que ora eu seja fortalecido pelo teu valor; conservada em mim seja
a tua munificência, até que minha alma, que purificaste, deixe, ainda pura, o corpo
terreno!" E ela, embora parecendo estar tão distante, olhou-me e sorriu, para log
o voltar a contemplar a Fonte da Eternidade.
"Para que possas perfeitamente chegar ao fim da peregrinação", disse-me então o santo
velho, "moveram-me a ser teu guia as preces e o divino amor dessa que veneras. A
dmira com os olhos as flores deste jardim, pois tal prática há de preparar tua vista
para contemplar a Suprema Beatífica Visão. A Rainha do Céu, pela qual ardo em constan
te amor, não me recusa auxílio.
"Se alguém, acaso, vem da Croácia em romaria, para ver o nosso Santo Sudário, não se far
ta de venerálo, movido pela antiga tradição. Mas em pensamentos recolhidos, expressa a
dúvida: "Senhor meu Jesus Cristo, Deus verdadeiro, foi este realmente vosso sembl
ante?" O mesmo sucedeu comigo, vendo a alta caridade desse que já no mundo antegoz
ara vivos elementos desta paz.
"Filho da graça", o santo disse, "a completa alegria do Paraíso não poderás conhecê-la int
eira se mantiveres o olhar fixo no plano mais baixo. Eleva-o para o círculo mais r
emoto, onde verás a Rainha sentada no trono ao redor do qual o Céu lhe é súdito devoto."
Levantei o olhar. Assim como pela alvorada aquela parte do céu em que o Sol se er
gue supera em claridade a outra onde a noite ainda domina; ou assim como aquele
que do vale ao fundo ergue o olhar para descobrir o dia no cimo do monte - pude
distinguir, no ápice de toda a altura, face por tal modo luminosa que a todo e qua
lquer lume superava. E como pelos lados do Oriente, onde se aguarda o surgimento
daquele carro tão mal guiado por Faetonte mais rutila o Sol, ao passo que para os
bordos do horizonte desmaia esse ardor luminoso, assim esta pacífica Auriflama fu
lgia mais intensa no centro, e seu brilho nas extremidades ia aos poucos diminui
ndo. Estava o centro rodeado por milhares de anjos voejantes, festivos, diverso
cada qual no brilho e no aspecto. Vendo-os e ouvindo-os, manifestava alegria aqu
ela beleza que era, por sua vez, a alegria presente nos olhos angelicais.
Ainda que dono de rica fantasia, e de eloqüência capaz do maior encanto, eu não poderi
a descrever um único traço de tal beleza. Notando Bernardo que eu tinha os olhos fit
os na muito amada luz, volveu para ela os olhos seus, nos quais havia tamanho af
eto que dobrou meu ardor em vê-la.
Canto XXXII
São Bernardo mostra a Dante como a Rosa Paradisíaca se dividia num corte vertical -
reunindo as almas do Velho Testamento e as do Novo Testamento - e ainda num cort
e horizontal, reunindo adultos (na parte superior) e crianças (na parte inferior).
Absorto na visão de seu encanto, o espírito de São Bernardo recomeçou seu discurso santo
: "A chaga que Maria sanou e ungiu fora aberta e pungida por essa bela [Eva] a s
eus pés. Abaixo desta, na terceira ordem, está Raquel, resplandecente como podes ver
, ao lado de Beatriz. Seguem-na Sara e Rebeca, Judite e a que foi bisavó do salmis
ta que, expiando erro, entoou contrito o Miserere mei. À medida que as nomeio, fácil
será para ti reconhecê-las, uma após outra, sobrepostas segundo as diversas pétalas des
ta imensa rosa.
Da sétima ordem para baixo, como até ali, sucedem-se mulheres hebréias, dividindo a ex
tensão da flor com uma linha que do alto chega à base. Desse modo é que separam, da sa
nta rosa, em todo o comprimento, as almas que se agrupam conforme o modo pelo qu
al, a seu tempo, se acreditava em Cristo. Do lado esquerdo, onde não há espaços vazios
, assistem as que acreditaram em Cristo antes que Ele viesse; do lado direito de
Maria, situam-se os que creram em Cristo vindo ao mundo.
De um lado, essa divisão é assinalada pelo trono da Rainha do Céu, que a todos os mais
sobrepuja e tem sotopostos. Do lado oposto, está o lugar preparado para aquele gr
ande São João Batista que no deserto e na solidão encontrou a santidade e que por dois
anos ainda permaneceu no Limbo. Logo abaixo dele estão Francisco, Bento, Agostinh
o e muitos outros, em ordem diferente de lugares. "Observa o alto proceder divin
o que desejou fosse este jardim celeste dividido por igual entre a fé antiga e a n
ova. Naquela ordem de lugares que secciona horizontalmente, e pelo meio, as duas
grandes divisões de santos, ninguém conquistou assento por mérito, mas por caridade d
e Cristo, dado que seus espíritos abandonaram os corpos antes que pudessem abraçar a
Fé. Basta observar seu semblante infantil e ouvir suas débeis vozes para perceber a
verdade do que digo. Agora, duvidas, e duvidando te calas. Mas pretendo desatar
os laços do pensamento angustioso em que te estreitas. Na amplidão deste reino, não e
ntram causas acidentais de dano, nem fome, sede ou melancolia. Tudo quanto vês foi
decretado por lei eterna, e na perfeição absoluta a criatura corresponde ao Criador
, tal como o anel ao dedo. Portanto, não é sem razão precisa que mesmo estes infantes,
de prematura morte, subam cada qual com menos ou mais excelência. O Rei que este
reino criou dotando-o de tamanha paz e de tanto amor, provendo-o de delícias tais
que ninguém ousou desejar um pouco mais - ao criar, à sua própria Face, os vários espírito
s, dotou-os a Seu alvitre. Conhecer isso é o bastante; tal certeza está claramente e
xpressa nas Santas Escrituras, no episódio dos gêmeos que desde o ventre materno ent
re si lutavam.
Assim a altíssima luz da justiça distribui a grinalda da graça segundo os méritos de que
cada inocente é exornado. A estes, portanto, que nenhum mérito alcançaram na vida, ca
bem aqui gradações diversas, segundo a virtude que de Deus houverem recebido. Nos te
mpos antigos, para que a inocência do infante alcançasse a salvação, bastava que estives
se unida à fé dos pais. Mas decorrida a idade primitiva, para que os inocentes fosse
m salvos, legislou-se que aos varões se circuncidasse, até que, chegado o tempo da R
edenção, Cristo determinou que a inocência morta sem batismo permanecesse conservada n
o Limbo.
"Fixa com atenção à face de Maria, que à de Cristo mais se assemelha; só ela pode preparar
-te devidamente para contemplar o próprio Cristo." Aspergida pela perfeição angélica, vi
então chover sobre Maria tanta alegria, que nenhuma de quantas maravilhas eu cont
emplara até então com aquilo de longe se comparava, pois era esta a maravilha anunci
adora da vizinhança de Deus. O primeiro dentre os anjos, aquele que viera cantando
Ave, Maria gratia plena!, diante dela distendeu as asas. E qual resposta ao can
to angelical, por toda parte da celeste corte todas as faces resplandeceram, mai
s tranqüilas. "Ó santo pai, se mereço de ti atenção tamanha que em meu socorro baixaste do
sólio que pela eternidade te foi concedido, dize-me que anjo é esse, tão feliz que po
de fixar o olhar em nossa Rainha, a ponto de parecer em puro ardor incendiado?"
Ao dizer isto, de novo recorri à sabedoria daquele que se enlevava na contemplação de
Maria, como a estrela da manhã faz com o Sol. Respondeu-me ele: "Franqueza e segur
ança, tanto quanto possa existir em anjo ou espírito bem-aventurado, existem nele, e
com isso fruímos nós também grande alegria. Foi quem anunciou a Maria a vontade de De
us de revestir a Seu Filho com a carne humana (1). De ora em diante, contudo, ac
ompanha com o olhar as minhas indicações, para que conheças os nobres patrícios deste im
pério tão elevado.
"Os dois que mais acima brilham, felizes por se encontrarem próximo à Soberana Augus
ta, são como que duas raízes desta rosa. O que se posta à esquerda da Senhora é o pai co
mum [Adão], cujo apetite incontrolado resultou em amargo travo para a espécie humana
. À direita está aquele vetusto pai da Igreja a quem Cristo confiou as chaves que gu
ardam esta flor divina. Perto dele, à esquerda, está [São João Evangelista] o que antes
de morrer previu duros tempos para a Bela Esposa [a Igreja] que Cristo conquista
ra ao ser lanceado e crucificado.
"Junto ao outro, desfruta a santa glória aquele capitão inabalável [Moisés] sob cujas or
dens alimentou-se de maná o povo ingrato, volúvel e rebelde. Diante de Pedro vês senta
da Ana, que tem imóveis os olhos na contemplação feliz de sua excelsa filha, enquanto
canta hosanas. Ante o mais antigo pai de família está Lúcia, da qual valeu-se a tua da
ma quando cegamente tombavas.
* (1) O Arcanjo Gabriel. *
"Visto, porém, que o tempo concedido à tua visão se vai esgotando, suspendamos o recon
hecimento, qual prudente alfaiate que talha a roupa segundo o pano de que dispõe.
E para o Primeiro Amor eleva os olhos, com ardor tão intenso que, atentando n'Ele,
o mais possível penetres o Seu Ardor. Para evitar, entretanto, que retrocedas em
tua exaltação acreditando que avanças, impõe-se que, orando, rogues auxílio à Mãe Divina, q
só com ela podes contar agora. Escuta-me com fervor."
E, contrito, a uma oração deu início.
Canto XXXIII
Dante finalmente é habilitado à contemplação da essência divina. O poeta vê representado o
istério da Encarnação.
"Ó Virgem mãe, filha de Teu Filho, a mais humilde e mais alta das criaturas, termo d
os desígnios eternos! Enobreceste tanto a natureza humana que o Criador não desdenho
u tomar a forma de sua criatura.
Em teu seio fulgiu o amor que, ardendo pela eternidade, germinou esta imensa ros
a! No Céu, és a meridiana luz da caridade; na Terra, a fonte viva da esperança para a
frágil humanidade! Tanto podes, Senhora, és tão grande, que pedir graças ao Céu sem teu au
xílio é o mesmo que querer voar sem ter asas! Tua benignidade não socorre unicamente a
quem ora, pedindo; mas antes, vezes sem conta, antecipa o pedido e a prece! Em
ti a misericórdia, a piedade, a doçura estão somadas a uma bondade infinita!
Este, que do mais baixo degrau do mundo subiu a esta altura, observando os degra
us da vida espiritual um a um, de ti suplica a graça de receber virtude suficiente
para, com os olhos, elevar-se à Suma Virtude. Eu, que com meu ardor jamais pedi t
anto, rogo-te atendas ao seu apelo! Com tua virtude seja dissipada a densa nuvem
de sua condição mortal, a fim de que lhe seja possível divisar o Sumo Fautor. E mais
ainda te rogo, ó Rainha: depois de haver alcançado tão alta visão, que a sua alma seja c
onservada pura, inimiga do pecado. Que tua proteção vença, nele, as paixões humanas. Olh
a Beatriz, olha os santos todos que, de mãos unidas, comigo vêm orar!"
Os olhos tão admirados do bom Deus [os olhos de Maria], fitando o meu intercessor,
demonstrando aprovação à ardente oração. Então, os olhos da Rainha voltaram-se para o Eter
o Lume, como a nenhuma outra criatura jamais foi dado fazer. E eu, que me aproxi
mava do Termo de Todos os Desejos, sentia cessar em mim o ardor de todos os dese
jos.
Sorrindo, Bernardo acenava-me para que elevasse os olhos; mas por minha iniciati
va já nesse ato me encontrava. Depurada, minha vista penetrava cada vez mais os ra
ios da Luz Altíssima que por si mesma existe, verdadeira. A partir daquele instant
e, tudo quanto me foi dado ver esteve além de toda possibilidade de ser descrito e
m linguagem humana, ou mesmo de ser refeito pela memória. Qual homem que enxerga m
aravilhas em sonhos e uma vez acordado retém na memória apenas a impressão de haver di
visado maravilhas, sem que o todo dela lhe retorne à mente - assim comigo ocorreu.
Quase por inteiro apagou-se-me a visão que tive, mas trago ainda no coração a doçura que
nasce de um êxtase tamanho. Assim se funde a neve ao Sol, e as sim o vento disper
sa os oráculos de Sibila, escritos em frágeis folhas. Ó Suprema Luz, que tanto sobrepu
jas o entendimento humano! faze com que o meu próprio entendimento recorde agora c
omo foi que a ele Te revelaste. Sublima bem alto a minha voz, para que eu possa
legar ao menos uma centelha da Tua glória às gerações futuras; pois ainda que um mínimo de
lembranças me seja concedido, será suficiente para que a gente vindoura entenda mel
hor a Tua vitória, cantada em meus versos! Confio em que, pela agudeza do esplendo
r que então sofri, estaria perdido para sempre se os olhos houvesse naquele instan
te desviado de tão ardente lume. Recordo-me, sim, que ao fixálo ganhei fortaleza tal
que meus olhos, alfim, devassaram a Deus - a Suprema Perfeição!
Socorrido por Ti mesma, Graça Altíssima, ousei mirar a Luz Eterna com meus olhos mor
tais, e ali fruí o divinal milagre! Internado em tão ardente foco, vi unido pelo amo
r em um ser único tudo quanto contém o universo. Substâncias, acidentes e sua união, apr
esentando-se na sua própria forma gloriosa (1).
Acredito ter visto, naquele estreito nó, a forma universal; pois tanto mais sinto
meu ser inundado de alegria quanto mais falo de tal maravilha! Um só instante de t
empo decorrido depois daquela visão parece-me equivaler a esquecimento maior do qu
e os vinte e cinco séculos calados sobre o feito dos Argonautas, epopéia que impress
ionou ao próprio Netuno. Desse modo minha mente esteve presa, absorta na sublime c
ontemplação. Retirar meus pobres olhos de Luz que tanto me atraía fora para mim impossív
el: pois o Bem que é objetivo da vontade humana estava diante da minha vontade; n'
Ele, tudo era perfeito; fora d'Ele, tudo era imperfeito.
Para narrar o que vi, a voz humana é mais falha do que o balbuciar de uma criança qu
e ainda se nutre do seio materno. Não que o aspecto daquela Luz sublime que eu viv
amente contemplava tivesse mudado; era o mesmo.
* (1) Substância é o que existe por si. Acidentes são as coisas contingentes. *
À medida, porém, que minha vista se apurava, o Egrégio Ser parecia ganhar aspectos var
iados. Na profunda e clara essência de Deus, três círculos surgiram, parecendo de três c
ores distintas, mas de uma só conformação Semelhando íris que fosse reflexo de íris, acred
itei que de ambos, por modo igual, derivava a flama do terceiro. Ah, como é insufi
ciente a expressão humana para descrever o que vi! Toda ela, a mais alta, não bastar
ia para reproduzir o mínimo que eu pretendesse referir. Ó Lume Eterno, que em Ti própr
io tens sede, só Tu a Ti entendes e por Ti és entendido, e só por Ti és compreensão e amor
! Aqueles três círculos que pareciam por Ti gerados, qual luz reflexa, eu contemplav
a extático, e eis que me pareceu ver a luz assumir forma e cor da figura humana, d
etalhe que me fez mais atentamente mirá-la. Como o geômetra concentrado em medir o cír
culo, na vã procura de princípio para seu propósito, assim sucedeu comigo ante a visão d
ivina - ansiava por ver como pode a imagem humana adaptar-se ao círculo. As asas d
a mente não me levaram a tão alta compreensão; todavia, um relâmpago sacudiu-me, e satis
fez meu desejo de compreensão. Aqui findou minha inspiração; mas o Amor - esse que mov
e Sol e estrelas - tomava já as rédeas do meu querer, guiando-o a seu talante.

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