Aula 9 • A Jornada do Escritor (Vogler), Pantera Negra e Transmídia
A JORNADA DO ESCRITOR
Primeiro Ato Mundo Comum Chamado à Aventura Recusa ao Chamado Encontro com o mentor Travessia do Primeiro Limiar
Segundo Ato Provas, Aliados e Inimigos Aproximação da Caverna Oculta Provação Recompensa
Terceiro Ato O Caminho de Volta Ressurreição Retorno com Elixir
A JORNADA DE T’CHALLA
Qual é a transformação vivida por T’Challa?
Ele termina a história como rei. Começa a história como rei – ainda a ser oficializado. Seu mundo externo muda pouco. Sua transformação é interna e sugerida por dois eventos: os dois encontros com seu pai.
O que muda em T’Challa é o exercício de seu papel de rei. Como ele enxerga que deve agir, uma vez no cargo. No início, ele carrega o legado do pai. No final, ele transforma Wakanda, iniciando seu próprio legado. Para essa transformação ser possível, o primeiro evento necessário é que ele se torne rei. Portanto, é esse seu Chamado à Aventura. Ele está presente parcialmente em outro filme: Capitão América – Guerra Civil. Após a morte do pai, T’Chaka (John Kani), ele herda o cargo, mas precisa oficializá-lo.
T’Challa cresceu em Wakanda, seu Mundo Comum, instruído e destinado aos papéis de rei e de Pantera Negra. Portanto, ele não chega a viver uma Recusa ao Chamado. Em sua mente, é seu destino.
Ele conta com a ajuda de diferentes Mentores, no entanto. Zuri (Forest Whitaker) o ajuda a viver o ritual de passagem para deixar de ser o Pantera Negra, para as lutas pelo trono. Depois da vitória, o auxilia a voltar a ser o Pantera Negra e ter seu primeiro encontro com o pai. Ramonda (Angela Basset), a mãe, o ajuda a “calçar os sapatos de rei”, a tomar para si o peso e responsabilidade do papel de rei e de sucessor de seu pai. Shuri (Letitia Wright), a irmã, é sua mentora tecnológica, ajudando a tornar tanto Pantera Negra quanto Wakanda em entidades mais avançadas e eficientes.
O ritual de luta com chefes das cinco tribos de Wakanda para legitimar o rei é uma prova, a primeira que T’Challa precisa superar. Essa prova acaba ocorrendo um pouco antes da Travessia do Primeiro Limiar. Uma vez vitorioso e legítimo dono do trono pelo ritual de Wakanda, T’Challa atravessa o limiar. Ele bebe o líquido das rosas violetas que o “mata” para permitir o encontro com os antigos Panteras Negras, já falecidos.
Ele conclui a travessia do primeiro limiar ao concluir seu encontro com o pai. A partir desse momento, ele é testado no papel de rei, o que significa o teste de suas próprias resoluções sobre seu cargo e o destino de Wakanda. Ele conta com um conselho e uma guarda real, e precisa tanto ordená-los como ser capaz de escutá-los. O contexto para as provas e aliados está posto. Existe certa pressão, prenunciando inimigos como W’Kabi (Daniel Kaluyaa).
O protagonista tenta capturar Ulysses Klaue (Andy Serkis), um inimigo, como primeira prova de seu valor como rei. Enfrenta desafios na captura como a presença da CIA pelo agente Everett Ross (Martin Freeman), por ora inimigo. A captura é bem sucedida, apesar de conflituosa, e aos poucos Ross se transforma em aliado.
É quando Killmonger aparece e recupera Klaue das garras de T’Challa. Começa a Aproximação da Caverna Oculta. A derrota soa mal no reino de Wakanda, virando ânimos contra ele.
Killmonger então aparece em Wakanda com o corpo de Klaue como oferenda e exigindo o direito de batalhar pelo trono. Ele é um sobrinho esquecido de T’Chaka e tem esse direito legítimo.
O desafio funciona como um segundo Chamado à Aventura, que T’Challa resiste, inicialmente recusa. Por fim, ele aceita a luta por saber que o direito de Erik/N’Jadaka é legítimo. Sua Provação começa. O ritual pelo trono, a luta com Killmonger, é a caverna oculta. Não é só a vida de T’Challa que está em risco. É também sua visão sobre o papel de rei e de seu próprio reino. Como sua visão, seu ideal, estão em risco, é aqui que a “Sintonia com o Pai” metafórica de Campbell acontece, na forma de embate com o primo. A luta entre os dois é a luta entre os ideias de seus pais.
Sua visão perde. O herói “morre”, perde o trono, Killmonger ascende ao poder. T’Challa não chega a sair da Provação com uma Recompensa comum. Após a ajuda das incríveis Ramonda, Nakia (Lupita Nyongo) e Shuri, e até de um Aliado inesperado como M’Baku (Winston Duke), T’Challa ganha uma nova chance à vida, graças ao líquido de Pantera Negra. Ele atravessa mais uma vez a fronteira para o mundo do pai, mas, dessa vez, para ser capaz de retornar à Wakanda, ao Mundo Comum.
O segundo encontro com o pai reflete a Apoteose para T’Challa. A Provação não só quebrou sua noção de continuidade, de legado. Escancarou algo que ele sentia no íntimo, mas de que duvidava. Algo que alguém como Nakia já havia percebido e que Erik pleiteava. Wakanda não podia fechar os olhos para o resto do mundo. Portanto, é nesse encontro mágico que ele confronta o próprio “deus de Wakanda”, Bast, e a união dos antigos Panteras, representados na figura de T’Chaka. Esse confronto que “despe” esse deus Wakanda, suplantando uma visão antiga por uma nova, é o momento em que T’Challa finalmente se iguala aos antigos, por formar sua própria visão.
O Pantera Negra então retorna, realiza o Caminho de Volta, um retorno com auxílio externo. Confronta Killmonger mais uma vez, com uma visão de mundo renovada. Uma visão que abraça as necessidades de Killmonger, mas que não se dobra à fúria vingativa do antagonista.
A Ressurreição é a própria luta com o primo. Quando os dois ideais se chocam, T’Challa prova ser agora um rei digno, capaz de projetar um caminho mais forte. Sua transformação está completa.
Vitorioso, o rei de Wakanda demonstra que seu ideal não se resume ao mundo abstrato. Regressando com o Elixir, ele lança Wakanda para o mundo, projetando uma nova forma de relação entre o reino e o resto do planeta. T’Challa se tornou um legítimo Senhor de Dois Mundos.
A JORNADA DE ERIK KILLMONGER
É comum só entendermos as motivações de um vilão com um flashback. Não é diferente com Killmonger. Ainda criança, seu Mundo Comum, um gueto pobre da sociedade estadunidense, é abalado.
N’Jobu (Sterling K Brown), seu pai, incapaz de fechar os olhos para o sofrimento das pessoas pretas, da desigualdade formada no racismo, planeja usar o poder de Wakanda para virar a escala. T’Chaka, o rei, protetor de Wakanda, mantém o norte do isolacionismo que sempre guiou o reino. Na rebeldia de N’Jobu, que ataca Zuri, T’Chaka acaba matando o próprio irmão e abandonando o sobrinho. O Chamado à Aventura de Erik está posto.
A força de seu chamado também não suscita uma recusa. Erik se mostra sempre certo do que quer. Também não são mostrados Mentores claros, mas alusões são feitas a duas figuras: o pai, cujo legado Erik planeja concretizar; e o imperialismo de nações brancas, cujas táticas Erik internalizou, se tornando mestre para usá-las em sua vingança e resgate ao povo negro.
É difícil apontar uma travessia do primeiro limiar na vida do vilão. No filme, porém, pode-se dizer que o roubo ao museu, no início, representa essa etapa. É a partir dela que ele conclui as tarefas necessárias para buscar a entrada em Wakanda.
Sua etapa de Provas, Aliados e Inimigos é curta. É claro que ele tem uma namorada aliada e um aliado prestes a virar inimigo em Klaue. A primeira prova é o resgate do traficante de Vibranium. Em seguida, quando os dois se confrontam e Klaue usa a namorada de escudo, Killmonger mostra sua resolução, matando a namorada e caçando Klaue. Ela não representava nada perto de seu ideal.
Erik se aproxima da caverna oculta ao se aproximar de Wakanda e do trono. Sua Provação é cruzada com a de T’Challa. O ritual de desafio para se tornar rei. Killmonger se preparou a vida toda para esse ritual, seu ideal é mais forte que o de T’Challa e ele vence. A Recompensa é a coroa.
Uma vez conquistado o Mundo Especial de Wakanda, Erik planeja o Caminho de Volta, projetar Wakanda contra o mundo. Ele utiliza as forças e tecnologias de Wakanda para preparar um ataque coordenado em várias nações, ao Mundo Comum.
O retorno de T’Challa e o novo confronto trazem a fase de Ressurreição. É a hora de comprovar seu ideal. Porém, ele já não batalha mais com a visão isolacionista de Wakanda. Dessa vez, ele perde. Sua Ressurreição falha, pois ele não foi capaz de evoluir seu ideal frente a outro mais forte e corrigido.
Ao invés de um Regresso com o Elixir, o nome “Liberdade para Viver” se adequa mais ao fim de Erik Killmonger. Ele escolhe a morte, uma saída mais honrada do que a prisão, a atual forma de manutenção do preto como subjugado. Ele morre contemplando o pôr do sol em Wakanda, a Recompensa prometida por seu pai.
A JORNADA DE WAKANDA
Herói e vilão, protagonista e antagonista, vivem fortes jornadas no filme. Suas jornadas estão intrinsecamente ligadas à Wakanda. Ao posicionamento desse reino frente ao resto do mundo. Ao ideal defendido por esse povo.
Somado aos aspectos cinematográfico, é esse embate que faz de Wakanda uma personagem com uma jornada poderosa.
Apesar de o povo propriamente dito não ser explorado, a diversidade de visões em Wakanda é mostrada através das diferentes personalidades ao redor do rei. Nakia como espiã, Okoye como Guarda Real, Shuri como cientista, W’Kabi e M’Baku como líderes das cinco tribos formadoras do reino.
O início da trama até a captura de Klaue é o Mundo Comum de Wakanda. A sucessão de reis, a execução do ritual, as reuniões do conselho, são parte das oscilações naturais de um reino. Pode haver pressão política interna para T’Challa provar seu valor rapidamente, mas uma personagem abstrata como Wakanda precisa de tempo para se estabelecer.
O Chamado à Aventura para o reino é tardio: a chegada de Killmonger com o cadáver de Klaue como oferenda. Ocorre a Recusa ao Chamado na divisão do conselho sobre atender à exigência ao trono de Killmonger. Aquelas são as vozes que representam o reino. Nesse momento, o próprio T’Challa, mesmo resistindo, se torna uma espécie de Mentor, desatando o nó da Recusa com sua responsabilidade de rei.
O ritual é a Travessia do Primeiro Limiar, com o embate entre Killmonger e T’Challa revelando uma luta de ideias que Wakanda mantinha latentes internamente. Com a vitória de Erik, Wakanda joga fora seu antigo ideal soberano, que reinou por anos, e entra em um Mundo Especial. A queima das flores que nutrem o poder do Pantera Negra demonstra a desconexão e apagamento do ideal derrotado.
Como personagem abstrata, Wakanda não tem tempo para viver tudo que seria típico de um segundo Ato. A transformação do reino passa pela definição de Ross e da tribo Jabari como Aliados de T’Challa. W’Kabi e sua tribo como Aliados para o novo ideal trazido por Erik. Quem chega perto de alguma prova é o grupo das mulheres que visam salvar Wakanda de Erik: Nakia, Shuri e Ramonda.
O próximo embate entre os dois pretendentes ao trono já deve ser o final, portanto a Provação deve ter outra forma e ocorrer antes. A partir desse momento, a jornada de Wakanda se confunde com a jornada de T’Challa, que leva o confronto de ideais em direção ao pai e aos antigos Panteras Negras. Vale lembrar que o isolacionismo de Wakanda não é um capricho de T’Chaka, é uma tradição seguida por todos os Panteras Negras. É no segundo encontro de T’Challa com o pai que o ideal antigo, derrotado inicialmente em batalha, enfrenta sua Provação contra a nova resolução do protagonista e efetivamente morre. Essa nova resolução de T’Challa é a nova proposta do reino. Portanto, se torna uma Recompensa para Wakanda.
O retorno de T’Challa com a nova resolução é o Caminho de Volta do próprio reino. Como um verdadeiro rei, ele carrega a Ressurreição de Wakanda em seu próprio coração. Wakanda precisou mudar para um ideal radical como o de Erik, mesmo que temporariamente, para conseguir transpor a tradição isolacionista que imperara por séculos e assumir uma nova forma perante o mundo. Ressurreição vivida no embate final entre protagonista e antagonista.
O Regresso com o Elixir é a própria abertura de Wakanda para o mundo, seja pela reunião da ONU no filme, seja pelo contato com a mesma comunidade negra nos EUA onde Erik cresceu.
CONCLUSÃO
Outros personagens apresentam seus próprios desenvolvimentos e, com isso, suas próprias mini jornadas. Nakia veste a roupa de Guarda Real que sempre negara. Okoye entende que deve proteger não o trono, mas o reino em si, um conceito maior. Shuri aprende o valor das tradições e a não tratá-las como opostas à ciência.
Cada uma vive seus próprios Chamados, Provações e Ressurreições, assim como Wakanda, T’Challa e Killmonger. Não vejo nesse fato um “atestado do poder da Jornada do Herói”. Acredito que esse fato apenas descreve e nos permite estudar as histórias que sempre escrevemos, desde Gilgamesh à Harry Potter.
O que isso atesta é o poder dessa história específica. Sua capacidade de desenvolver tantos personagens e, com elementos tradicionais, milenares, contar uma história nova. Espero que esse texto traga essa sensação sobre a famosa Jornada do Herói e seja um exemplo interessante de aplicação da mesma.
TRANSMÍDIA
A Cultura da Convergência, de Herny Jenkins
● Convergência dos meios de comunicação ● Cultura participativa ● Inteligência coletiva
Convergência: fluxo de conteúdos através de múltiplas plataformas de mídia, à cooperação entre múltiplos mercados midiáticos e ao comportamento migratório dos públicos dos meios de comunicação, que vão a quase qualquer parte em busca das experiências de entretenimento que desejam. Convergência é uma palavra que consegue definir transformações tecnológicas, mercadológicas, culturais e sociais, dependendo de quem está falando e do que imaginam estar falando. A convergência representa uma transformação cultural, à medida que consumidores são incentivados a procurar novas informações e fazer conexões em meio a conteúdos de mídia dispersos. Este livro é sobre o trabalho – e as brincadeiras – que os espectadores realizam no novo sistema de mídia.
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A expressão cultura participativa contrasta com noções mais antigas sobre a passividade dos espectadores dos meios de comunicação. Em vez de falar sobre produtores e consumidores de mídia como ocupantes de papéis separados, podemos agora considerá-los como participantes interagindo de acordo com um novo conjunto de regras, que nenhum de nós entende por completo. Nem todos os participantes são criados iguais. Corporações – e mesmo indivíduos dentro das corporações da mídia – ainda exercem maior poder do que qualquer consumidor individual, ou mesmo um conjunto de consumidores. E alguns consumidores têm mais habilidades para participar dessa cultura emergente do que outros.
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Cada vez mais, os magnatas do cinema consideram os games não apenas um meio de colar o logotipo da franquia em algum produto acessório, mas um meio de expandir a experiência narrativa. Esses produtores e diretores de cinema haviam crescido como gamers e tinham suas próprias ideias sobre o cruzamento criativo entre as mídias; sabiam quem eram os designers mais criativos e incluíram a colaboração deles em seus contratos. Queriam usar os games para explorar ideias que não caberiam em filmes de duas horas.
Seriam relações difíceis de sustentar, já que todas as partes temiam perder o controle criativo, e já que o tempo necessário para desenvolvimento e distribuição era radicalmente diferente. A empresa de games deveria tentar sincronizar seu relógio ao imprevisível ciclo de produção de um filme, na esperança de chegar ao WalMart no mesmo fim de semana da estreia do filme? Os produtores do filme deveriam aguardar o também imprevisível ciclo de desenvolvimento do game, esperando sentados, enquanto um concorrente rouba sua ideia? O game seria lançado semanas ou meses após todo o barulho em torno do filme já ter acabado ou, pior, depois de o filme fracassar nas bilheterias? O game deveria se tornar parte do planejamento publicitário para um grande lançamento, mesmo que isso significasse iniciar o desenvolvimento antes mesmo de o estúdio dar “sinal verde” para a produção do filme? Trabalhar com uma produção para TV é ainda mais desgastante, já que o tempo é bem mais curto, e o risco de a série nem ir ao ar, bem mais alto.