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MARTA ROSA AMOROSO

Lançada em 1991 pela Clarendon Press parentesco e economia de subsistência. Por


de Oxford, a monogra�a de Peter Gow talvez �m, a terceira focaliza como o conhecimento e
constitua uma das obras mais citadas nos últi- as instituições estrangeiras (a escola e o regime
mos dez anos no contexto dos estudos america- de terras, especialmente) se incorporam à gra-
nistas. Neste sentido, a tradução de parte dela mática local, articulando a particularidade de
pela Revista Cadernos de Campo busca sanar uma história que rejeita a continuidade com o
várias dívidas. A primeira delas é a de preen- passado e inaugura um novo tempo de convi-
cher uma injusti�cável lacuna na biblioteca do vência expresso no idioma da mistura.
aluno das ciências sociais, enquanto se aguarda Produto ela mesma da mistura na dose cer-
a recomendável tradução da monogra�a na ín- ta da etnogra�a – tomada na mais pura tradi-
tegra. A segunda é a de reduzir o imenso débito ção malinowskiana como a de�nição do fazer
que a Antropologia acumulou com populações antropológico – e da história – entendida na
nativas da Amazônia, que, como os Piro do acepção nativa enquanto memória do paren-
Baixo Urubamba, da região subandina do Peru, tesco – De Sangue Misturado atualiza o deba-
acumularam longa e traumática experiência de te contemporâneo sobre a presença e destino
contato, tendo muitas vezes por esta condição das populações indígenas do continente, ao
da sua história, deixado de despertar o interesse tomar a condição histórica das populações in-
da disciplina. É neste sentido que De Sangue dígenas como ponto de partida para a re�exão
Misturado inova ao focalizar a experiência vivi- etnológica e propor como solução analítica a
da pelos povos nativos da Amazônia e ao pro- exploração sistemática dos discursos locais de
por para esse tipo de análise uma metodologia identidade, de cultura e de história.
clássica da disciplina - a abordagem etnográ�ca E o que os Piro do Baixo Urubamba falam?
dessas populações - realizada a partir de intenso Dizem-se de sangue misturado, e dessa forma,
trabalho de campo. excluem-se das categorias de pureza que por
Originalmente tese de doutorado apresen- muito tempo foram perseguidas pela etnologia
tada à London School of Economics, orientada amazônica, por missionários que atuaram na
por Joanna Overing, Of Mixed Blood: Kinship região e pelos órgãos de tutela dos Estados na-
and History in Peruvian Amazônia contém três cionais, mas que não interessavam os nativos
partes e nove capítulos. A primeira parte abor- civilizados e escolarizados do Baixo Urubam-
da o sistema social no Baixo Urubamba, des- ba, que ao contrário, marcavam nas práticas e
tacando o discurso sobre o tempo e o espaço nos discursos �rme intenção de se diferencia-
assim como a chegada da civilização e a etno- rem dos selvagens da Amazônia. A complexida-
sociologia que emerge do idioma nativo – os de das relações que envolvem as comunidades
“tipos de gente” ou razas – categorias com as nativas no Baixo Urubamba, com a adoção do
quais o povo nativo pensa sobre si e sobre o regime de terras e do sistema escolar do Es-
mundo em que vive. A segunda parte trata da tado peruano, aproxima inicialmente as nar-
natureza do trabalho do povo nativo no siste- rativas coletadas por Gow dos estudos sobre
ma de habilitación e explora as relações entre a “aculturação”, ou ainda dos estudos sobre a

cadernos de campo, São Paulo, n. 14/15, p. 1-382, 2006


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etnicidade. Trabalhos como os de Charles Wa- Peter Gow recupera a concepção de Lévi-
gley, Eduardo Galvão e Robert Murphy, que Strauss da história enquanto uma “história
assinaram primorosas etnogra�as em meados para”, isto é, inevitavelmente referenciada por
do século passado, construíram, entretanto, um determinado ponto de vista. A história
uma imagem dominante de uma Amazônia emerge assim das narrativas e da experiên-
nativa perdendo suas culturas e se assimilando cia particular das comunidades nativas, assim
à massa não indígena de camponeses rurais. como do mito, ou as “histórias dos antigos”.
Essas seriam comunidades que por meio das Estas seriam o artifício literário que os Piro
transformações sócio-econômicas advindas do encontraram para construir seu afastamento
sistema dos patrões acabaram por se assimi- em relação ao povo antigo e incivilizado que
larem a comunidades modernas, baseadas no morava na �oresta. São histórias que continu-
cristianismo e nas relações de mercado. avam, entretanto, sendo encenadas pelos Piro
Neste e em outros trabalhos (Gow 2001; que hospedaram Peter Gow nos anos 1980, de-
2003) a crítica ao uso do conceito de “acultura- monstrando, portanto, que eram atualizações
ção” desdobra-se na insatisfação com os resul- dos mitos que os povos nativos não abriam
tados da aplicação da teoria sobre a etnicidade mão de utilizar.
aos Piro do Baixo Urubamba e seu complexo O mito é assim enfatizado na sua condi-
sistema identitário. Ambas as abordagens reve- ção de objeto histórico. Mais uma vez, inspi-
lariam de fato a ausência do dado etnográ�co rada em Lévi-Strauss das Mitológicas, a análise
e uma apreensão das populações nativas pos- identi�ca nas “histórias dos antigos” dos Piro
tulada de fora, de onde só se vê desagregação, os mecanismos de obliteração do tempo e de
vitimização e dissolução, ou o uso político da absorção do impacto das turbulências, consti-
identidade étnica. tuindo dessa forma as evidências para a aná-
O diagnóstico do que Paul Veyne (1982) lise antropológica dos processos criativos de
chamaria “os possíveis atuais” leva Peter Gow transformação das culturas. O método histó-
a elaborar mais recentemente (2001) o concei- rico da análise antropológica emerge assim da
to de “mundo vivido”, para o qual nosso autor investigação etnográ�ca. Gow aproxima, nesse
mais uma vez inova ao adotar soluções clássicas sentido, as análises do mito empreendidas por
da disciplina: a análise do parentesco e do mito Malinowski e por Lévi-Strauss: ambas busca-
como forma de acesso à história do povo nativo ram partir de situações concretas de comunida-
da Amazônia. des observadas e descritas pelos antropólogos, e
Assim, na concepção nativa, a história ad- desse modo, buscaram acessar as concepções de
quire o sentido precioso e indispensável de elu- pessoa e de mundo formuladas pelos nativos.
cidar a gênese das relações de parentesco que Muitas são, portanto, as a�nidades que Peter
explicam a vida atual, depois que o sistema de Gow estabelece entre seu trabalho de análise
habilitación ampli�cou e tornou complexas as do mito e as metodologias e teorias formuladas
possibilidades de arranjos matrimoniais (Gow por funcionalistas e estruturalistas. Entretanto,
2001). A mistura, no entanto, não abole a alguma distância se estabelece entre nosso au-
atenção às diferenças, e neste sentido a teoria tor e os antropólogos modernos. Gow recupe-
da história formulada por Gow dialoga com os ra em Edmundo Leach (1954) a idéia de que
estudos do parentesco sobre povos tradicionais dispostos diante das comunidades que estuda-
e nestes estudos encontra seu conceito e um re- mos trabalhamos “como se” estas constituíssem
pertório. sistemas, sem, no entanto, perder de vista que

cadernos de campo, São Paulo, n. 14/15, p. 193-195, 2006


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se tratam de objetos fugidios. Há, assim, um __________. 1995b. “Cinema na Floresta: Filme, Alu-
decisivo abandono da ambição dos modernos cinação e Sonho na Amazônia Peruana”. Revista de
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autor Marta Rosa Amoroso


Professora do Departamento de Antropologia / USP

Recebido em 25/01/2007
Aceito para publicação em 30/01/2007

cadernos de campo, São Paulo, n. 14/15, p. 193-195, 2006

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