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etnicidade. Trabalhos como os de Charles Wa- Peter Gow recupera a concepção de Lévi-
gley, Eduardo Galvão e Robert Murphy, que Strauss da história enquanto uma “história
assinaram primorosas etnogra�as em meados para”, isto é, inevitavelmente referenciada por
do século passado, construíram, entretanto, um determinado ponto de vista. A história
uma imagem dominante de uma Amazônia emerge assim das narrativas e da experiên-
nativa perdendo suas culturas e se assimilando cia particular das comunidades nativas, assim
à massa não indígena de camponeses rurais. como do mito, ou as “histórias dos antigos”.
Essas seriam comunidades que por meio das Estas seriam o artifício literário que os Piro
transformações sócio-econômicas advindas do encontraram para construir seu afastamento
sistema dos patrões acabaram por se assimi- em relação ao povo antigo e incivilizado que
larem a comunidades modernas, baseadas no morava na �oresta. São histórias que continu-
cristianismo e nas relações de mercado. avam, entretanto, sendo encenadas pelos Piro
Neste e em outros trabalhos (Gow 2001; que hospedaram Peter Gow nos anos 1980, de-
2003) a crítica ao uso do conceito de “acultura- monstrando, portanto, que eram atualizações
ção” desdobra-se na insatisfação com os resul- dos mitos que os povos nativos não abriam
tados da aplicação da teoria sobre a etnicidade mão de utilizar.
aos Piro do Baixo Urubamba e seu complexo O mito é assim enfatizado na sua condi-
sistema identitário. Ambas as abordagens reve- ção de objeto histórico. Mais uma vez, inspi-
lariam de fato a ausência do dado etnográ�co rada em Lévi-Strauss das Mitológicas, a análise
e uma apreensão das populações nativas pos- identi�ca nas “histórias dos antigos” dos Piro
tulada de fora, de onde só se vê desagregação, os mecanismos de obliteração do tempo e de
vitimização e dissolução, ou o uso político da absorção do impacto das turbulências, consti-
identidade étnica. tuindo dessa forma as evidências para a aná-
O diagnóstico do que Paul Veyne (1982) lise antropológica dos processos criativos de
chamaria “os possíveis atuais” leva Peter Gow transformação das culturas. O método histó-
a elaborar mais recentemente (2001) o concei- rico da análise antropológica emerge assim da
to de “mundo vivido”, para o qual nosso autor investigação etnográ�ca. Gow aproxima, nesse
mais uma vez inova ao adotar soluções clássicas sentido, as análises do mito empreendidas por
da disciplina: a análise do parentesco e do mito Malinowski e por Lévi-Strauss: ambas busca-
como forma de acesso à história do povo nativo ram partir de situações concretas de comunida-
da Amazônia. des observadas e descritas pelos antropólogos, e
Assim, na concepção nativa, a história ad- desse modo, buscaram acessar as concepções de
quire o sentido precioso e indispensável de elu- pessoa e de mundo formuladas pelos nativos.
cidar a gênese das relações de parentesco que Muitas são, portanto, as a�nidades que Peter
explicam a vida atual, depois que o sistema de Gow estabelece entre seu trabalho de análise
habilitación ampli�cou e tornou complexas as do mito e as metodologias e teorias formuladas
possibilidades de arranjos matrimoniais (Gow por funcionalistas e estruturalistas. Entretanto,
2001). A mistura, no entanto, não abole a alguma distância se estabelece entre nosso au-
atenção às diferenças, e neste sentido a teoria tor e os antropólogos modernos. Gow recupe-
da história formulada por Gow dialoga com os ra em Edmundo Leach (1954) a idéia de que
estudos do parentesco sobre povos tradicionais dispostos diante das comunidades que estuda-
e nestes estudos encontra seu conceito e um re- mos trabalhamos “como se” estas constituíssem
pertório. sistemas, sem, no entanto, perder de vista que
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Recebido em 25/01/2007
Aceito para publicação em 30/01/2007