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Wis Ba a Quer: um apranizago peas diferent / Richard MI. alo Horapnte Auttcs Etre UFOP-unveridae ede! SSuo Fret, S618" Gere Caleran owes I | Bloat ISBN S7e-s.65301-20-4 1. Controle socal 2. Educago 3. Flesafa 4. Meridade de gto 5. tdemidade sonal 6 idennaace socal 7. Sexo -Dfreeas(euca0) 23a Queer Tul. Sere 12208100 0030583 Capitulo | Origens histdricas da Teoria Queer (© que hoje chamamos de queer, em termos tanto politi- cos quanto teéricos, surgitt como um impulso critico em rela- fo a ordem sexual contemporanea, possivelmente associado & contracultura e 4s demandas daqueles que, na década de 1960, eram chamados de novos movimentos sociais. Os trés principais “novos” movimentos sociais foram o movimento pelos direitos civis da populagio negra no Sul dos Estados Unidos, o movimento feminista da chamada segunda ‘onda ¢ 0 entéo chamado movimento homossexual. Eles so chamados de novos movimentos sociais porque teriam surgi- do depois do conhecido movimento operdrio ou trabalhador, € porque trouxeram ao espaco publico demandas que iam além das de redistribuicdo econémica. Na verdade, essa classifica ‘io foi feite a posteriori, tentando superar, com sucesso apenas parcial, uma perspectiva “economicista” que deixou de reco- nhecer a importincia do feminismo desde sua primeira onda, ‘na qual se constitui como movimento social muito antes, jé em sua luta pelo direito ao voto e 4 educagao para as mulhe- res ainda no século XIX. A visio de que esses movimentos eram “novos” também trai um olhar “eurocéntrico’, pois atri- bui cardter de vanguarda apenas ao movimento operitio das sociedades industriais do Ocidente, ignorando 0 movimento abolicionista que lutou pela libertagio dos escravos um século antes, sobretudo em pafses como o Brasil e os Estados Unidos. © que havia de novo nos movimentos socials da década de 1960 era uma maior participagio de camadas de classe mé- dia ¢ até populares em lutas jé existentes, mas que passaram a adotar um novo repertério de demandas em um cendrio politi- oem que as instituigées tradicionais como o Estado e os par- tidos passavam a ver questionada sua representatividade e/ou autoridade. De forma geral, esses movimentos afirmavam que © privado era politico e que a desigualdade ia além do econd- mico. Alguns, mais ousados e de forma vanguardista, também ‘comecaram a apontar que 0 corpo, o desejo ea sexualidade, t6picos antes ignorados, eram alvo e veiculo pelo qual se ex- pressavam relacdes de poder. A Iuta feminista pela contracep- o sob o controle das préprias mulheres, dos negros contra 0s saberes e priticas racializadores e dos homossexuais contra © aparato médico-legal que os classificava como perigo social € psiquidtrico tinham em comum demandas que colocavam em xeque padrdes morais. Assim, em termos politicos, o queer comesa a surgir nesse espirito iconoclasta de alguns membros dos movimentos sociais expresso na luta por desvincular a se- xualidade da reprodugao, ressaltando a importincia do prazer 2 ampliacao das possibilidades relacionais, Intelectualmente, esse impulso critico inicial originou obras académicas dispersas em varios paises, como o Brasil, a Franga e 0s Estados Unidos. Dentre os precursores da Teoria. Queer, é importante citar Guy Hocquenghem, pensador fran- és que, no infcio dos anos 1970, publicou Le désir homosse- xuel (O desejo homosexual), um livro sobre o papel do medo da homossexualidade na definigo da ordem politico-social do presente; alguns artigos da antropéloga feminista Gayle Rubin, ‘em especial seu ensaio Thinking Sex (Pensado sobre Sexo, 1984), ea riqufssima obra do pesquisador argentino-brasileiro Néstor Perlongher, particularmente O negécio do miché (2008) © O que é AIDS? (1987)? Apesar dessa origem dispersa, e ainda pouco explora- da, a politica ea Teoria Queer como a conhecemos hoje se " Tnjelizment, do bi ends uma raduto para. oportugés do live de Hocquenghem, ‘eoarigo de Rubin cireula hi ao menos as década em radugeenio-etorzadar pela autora, de modo que apenas a obra de Perlongher est dsponive! na nega, 22 ii a cial ctistaliza histoticamente na segunda metade da década de 1980, nos Estados Unidos, quando o surgimento da epide- mia de aids gerou um dos maiores pinicos sexuais de todos 195 tempos, associado, no caso norte-americano, a uma recu- sa estatal em reconhecer a emergéncia de satide piblica. Ao contrério do Brasil, em que o enfrentamento da epidemie aproximou Estado e movimento social em meio ao processo de redemocratizagio vivido depois de 20 anos de governo militar, li nos Estados Unidos houve um verdadeiro choque entre as demandas sociais ¢ a recusa do governo conservador de Ronald Reagan em adotar quaisquer medidas. A epidemia é tanto um fato biol6gico como uma constru- ‘gio social, A aids foi construida culturalmente e houve uma decisio de delimit4-la como DST. Uma epidemia que surge a partir de um virus, que poderia ter sido pensada como a hepatite B, ou seja, uma doenga viral, acabou sendo compre- endida como uma doenga sexualmente transmissivel, qua~ se como um castigo para aqueles que no seguiam a ordem sexual tradicional." Entao, a aids foi um choque, ¢ da forma como foi compreendida tornou-se uma resposta conservadora & Revolucio Sexual, a qual, no Brasil, foi vivenciada pela entéo conhecida “geracio do desbunde”, No mundo todo, essa reagéo teve consequéncias politicas jamais superadas e também na forma como as pessoas aprenderam sobre si proprias, sobre a sexualidade, ¢ na maneira como vivenciam seus afetos e suas vidas sexuais até hoje, Mas, nos Estados Unidos, o que se passou? A epidemia de aids mostrou que, na primeira oportunidade, os valores conservadores e os grupos sociais interessados em manter as tradig6es se voltaram contra as vanguardas sociais, Daf parte do movimento gay e lésbico ter se tornado muito mais radical do que o anterior, criticando os préprios fundamentos de sua Foe esa quit const men artigo em coautora com Larissa Peicio,“Apre- empl do desvoo dispostv dads ea repatologiaato das emlidadesdisi- Tease (003), dlspotvel online na revista Secualidad Said’ Sociedad, : 2B tuta politica. A aids, portanto, foi um catalizador biopolitico ‘que gerou formas de resisténcia mais astutas ¢ radicais, mate- ializadas no ACT UB, uma coalizao ligada & questo da aids pra atacar 0 poder, e no Queer Nation, de onde vem a palavra, queer, a nagdo anormal, a nagio esquisita, a nagao bicha. Vale lembrar que queer é um xingamento, é um palavrao em inglés. Em portugués, dé a impressio de algo inteiramen- te respeitavel, mas é importante compreender que realmente & um palavréo, um xingamento, uma injtiria. A ideia por trés do Queer Nation era a de que parte da nagao foi rejetada, foi hu- milhada, considerara abjeta, motivo de desprezo e nojo, medo de contaminacéo. E assim que surge 0 queer, como reac e re- sisténcia a um novo momento biopolitico instaurado pela aids. Alguém atento percebe como a problemética queer nao € exatamente a da hom lidade, mas a da abjecao. Esse terii6, “ubjegao" se refere ao espago a que a coletividade costu- ‘ma relegar aqueles e aquelas que considera uma ameaga ao seu bom funcionamento, & ordem social e politica. Segundo Julia Kristeva, o abjeto nao € simplesmente o que ameaca a saiide coletiva ou a visdo de pureza que delineia o social, mas, antes, que perturba a identidade, o sistema, a ordem (1982, p. 4). AX abjegio, em termos sociais, constitui a experiéncia de ser temido ¢ recusado com repugnancia, pois sua propria existén- ia ameaga uma visio homogenea e estavel do que é a comu- nidade. O “aidético’, identidade do doente de aids na década de 1980, encarnava esse fantasma ameacador contra o qual a coletividade expunha seu eédigo moral, Se 0 movimento gay ¢ lésbico tradicional tinha como pre- ‘ocupagdo mostrar que homossexuais eram pessoas normais ¢ respeitaveis, o movimento queer vem para dizer: “olha, mesmo os gays e as lésbicas respeitaveis em certos momentos histéri- ‘cos serdo atacados e novemente transformados em abjetos”, A maior parte das pessoas, sobretudo as que estavam com 0 HIV, nao faziam parte desse grupo pelo qual 0 movimento homossexual forjado na década de 1960 lutava. Em sua maior parte, o movimento homosexual emerge marcado por valores ~} de uma classe-média letrada e branca, évida por aceitagao e ‘até mesmo incorporagao social. Algo muito diverso se passa quando surgem movimentos queer, se pautario menos pela, demanda de aceitago ou incorporagio coletiva ¢ focarao mais ‘na critica as exigéncias 408 vi as convengées cul- turais como orcas autoritdrias e preconceituosas. Enquanto 0 movimento homossexual apontava para adaptar os homossexuais as demandas sociais, para incorpo- ré-los socialmente, os queer preferiram enfrentar 0 desafio de mudar a sociedade de forma que ela lhes seja aceitavel. En- ‘quanto o movimento mais antigo defendia a homossexualida- de aceitando os valores hegeménicos, 0s queer criticam esses valores, mostrando como eles engendram as experiéncias da abjegdo, da vergonha, do estigma. Em resumo, o antigo movimento homosexual denuncia- va heterossexualidade como sendo compulséria, o que podia ser também compreendido como uma defesa da homossexu- alidade. O novo movimento queer voltava sua critica a emer- gente heteronormatividade, dentro da qual até gays e Iésbicas normalizados séo aceitos, enquanto a linha vermelha da re- jeigdo social é pressionada contra outr@s, aquelas e aqueles considerados anormais ou estranhos por deslocarem o género ‘ou nao enquadrarem suas vidas amorosas ¢ sexuais no modelo heterorreprodutivo. Q queer, portanto, nio é uma defesa da homossexualidade, a ‘dos valores morais violentos que insituem e fazem valera linha da abjego, ea fontera rigid entre os que sio socialmente aceitos ¢ os que sio relegados & umilhagio e ao desprezo coletivo. Em 1993, essa virada queer se torna perceptivel, quando a Parada do Orgulho Gay de Séo Francisco, umas das principais nos Estados Unidos, adota o queer como tema.” Percebe-se 0 5 ste fat fi bem analsado peo sociblogo Joahua Garson em se artigo “Os movi- _nentos idenrios devem Se auto destruc? Um evtranho dle potencial desestabilizador do sentido politico nao sé do mo- vimento LGBT, mas de todos os movimentos sociais constitu- {dos a partir de identidades, quer fossem os LGBT, negros ou feministas. Fica mais vistvel como 0 queer vai se contrapor as ‘concepgdes que haviam marcado a ascensio dos novos movi- ‘mentos sociais da década de 1960. A comecar pelo movimento +homossexual e sua bandeira do “orgulho gay’, uma palavra de ordem com origem em uma classe média branca letrada que, provavelmente de forma inconsciente, parecia tentar criar uma imagem limpa e aceitavel da homossexualidade.” O contexto norte-americano, percebe-se, era muito pior do que o nosso, e foi em teagdo A falta de acio coletiva em meio a crise da aids que emergiu a radicalidade politica que- ex. Assim, vai se constituir cada vez mais ligada as problemé- ticas da vergonha, do estigma e da descriminagao, e menos com relagio és demandas de assimilasio identitaria de gays e lésbicas. Muito da atragéo que o queer tem, inclusive na sociedade brasileira, detiva do fato de que no sdo apenas homossexuais que se sentem em contradicdo com as normas, afinal, ha muito mais pessoas em desacordo com as conven- 6es culturais, com as obrigagdes que nos so impostas em. termos de comportamento, O queer busca tornar visiveis as injustigas e violéncias implicadas na dissemninagao e na demanda do cumprimento das normas e das conversées culturais, violéncias e injusticas envolvidas tanto na criacéo dos “normais” quanto dos “anor- ‘mais’ Quer alguém seja completamente ajustado e reconhe- cido socialmente, quer seja alguém marcado, humilhado, as normas e convengées operaram sobre os dois e ambos so ca- pazes de reconhecé-las. Claro que os humilhados ¢ ofendidos, "0 slogan gay do “orgalho" mal encobre seu par necesito a vergonha. Trataee de ‘ums gramibica moral conformista em qu as experiencia do erigma eda aesi0 #0 ignorads, mesmo porque atingem o+ mats pobres,or que delocam or gine, ‘os que nfo constuem fans. Asim, as demandas gay evelam sew engeadracnen” to de clase alta ebranca Sobee este spectos, consular Warner (198) os relegedos & vergonha e & abjecdo, sofrem mais e so 0s que denominamos esquisitos, mas no é tio raro, em nossos dias, ‘encontrar pessoas que mesmo dentro dos modelos socialmen- te impostos reconhegam seu carster compuls6rio, violento e injusto. De forma muito esquemética, mas, espero, esclarece- dora, essa reflex busca distinguir o espfrito politico queer da ‘mera luta pré-homossexualidade: rca aos regimes de normalizagao Segundo a fildsofa norte-americana Judith Butler, 0 que- ex € uma nova politica de género. Alguns tendem a ver essa realidade nos movimentos na entrada progressiva de traves- tis, transexuais, no brancos, todos 0s outros que antes no ‘exam vistos como suficientemente dignos de participar da uta, No entanto, um olhar mais atento reconheceré que a logica identitéria anterior é a que rege essa entrada e plu- ralizagio dos sujeitos dos movimentos sociais, endo uma revisio de sua forma de atuacio. A nova politica de género ~ que também pode ser chamada de queer ~ se materializa no questionamento das demandas feitas a partir dos sujeitos; em outras palavras, chama a atengo para as normas que 0 criam. Essa mudanga de eixo na luta politica se fundamenta em duas concepgées distintas com relagdo a dindmica das relagées de poder: uma que as compreende a partir da visio do poder como algo que opera pela repressio, ¢ outra que 0 concebe como mecanismos sociais disciplinadores. Na pers- pectiva do poder opressor, os sujeitos lutam contra o poder por liberdade, enquanto na do poder disciplinar, a luta é por desconstruir as normas e as convengdes culturais que nos

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