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0 Desenvolvimento das Idéias Sobre wn ora caso Cinema Independente Na primeira metade da década de 50, 0 cinema paulista vive alguns anos de extraordindria animacao, na pratica e no pensamento cinematogréfico. De inicio sob o estimulo da produgao industrial, e em seguida na tentativa de-com- preensdo do seu fracasso, dé-se um verdadeiro salto no desenvolvimento das idéias sobre cinema no Brasil, num processo de conscientizagéo dos mais fe- cundos que j4 viveu_0 cinema bresileiro, Das primeiras criticas aos filmes da Vera Cruz & realizaco dos Grandes Congressos de Cinema dos enos 50, deli neiam-se praticamente todos os temes que iriam preocupar o pensamento cine- matografico durante os préximos vinte anos. No momento nos interessa apenas um deles: 0 desenvolvimento das idgias sobre cinema independente. Mais ‘do que a importancia hist6rica, 0 que interessa no tema é a sua atualidade — ou pelo menos a atualidade das questdes basicas levantadas. Os primeiros indicios de crise na produco empresarial paulista, demons- trensdo claramente o fato de que ndo bastava ter dinheiro, grandes estidios. equipamento adequado, técnicos competentes, seriedade empresarial etc. para ter sucesso na produgéo cinematografica, apontavam a necessidade de refor- mular os termos cléssicos em que se coiocava o problema do cinema no Brasil desde os tempos de Cinearte. Um sdlidc embasaniento industrial néo era, 20 contrério do que se pensou durante trinta anos, condigao suficiente — indeper- dentemente do fato de que se discutiria a0 mesmo tempo a eventualidade de no ser condigdo necessaria — para o desenvolvimento do cinema brasileiro. A frustragao das propostas do cinema industrial paulista leva & formulacéo de novas propostas como alternetivas de produgéo: so as origens do cinema in- dependente. Em termos de idéias, 0 contraponto anti-industrial comeca a se fazi sentir com maior clareza sobretudo em textos de Alex Viany, no inicio de 1951. Tais textos se destacam no panorama da época menos por qualquer cardter ra- dical, que no momento néo tém, do que por se diferenciarem do tom geral que @ ainda de euforia pela conquista da “industrializacéo moderna e racional” do nosso cinema. Alex Viany defende também o cinema industrial — 0 que dentro de alguns meses deixard de fazer — mas chama a atengo para os seus incove- lentes. “O cinema brasileiro esta entrando por fim numa fase de industriali- z2cA0 intensa”, diz ele.,“Por um lado, isto & étimo, ume vez que abriré caminho para todos os que querem praticar cinema. Por outro lado, traz as desvantagens 18 da industrializago, que séo muitas. Em primeira lugar, hé o perigo da excessiva comercializago dos argumentos dos artistas e diretores — e mesmo os cineas- tas mais inteligentes podem ficar viciados, tal como aconteceu em Hollywood. O idea! é que os produtores independentes, melhorando o seu padrao técnico com a ajuda dos bons estddios que se constréem, continuem a lutar pelo alevanta- mento artistico do cinema nacional. Os grandes estiidios, logicamente, pensarao em fazer dinheiro antes de pensar em fazer filmes artisticos” (A Cena Muda, 26/4/51). Explicitada com clareza cada vez maior, hé a idéia de que nenhum cinema brasileiro “auténtico” — por isto se entende qualquer coisa como voltado criti- camente para a realidade — saird dos grandes estidios. Deles pode-se esperar © aprimoramento técnico da produgéo e nada mais. Os estidios s4o fabricas, empreendimentos capitalistas por exceléncia, e enquanto tal visando primordial- mente o lucro. A viséo critica da realidade brasileira, para a qual a literature brasileira j4 havia contribuido com 0 romance nordestino, s6 poderia chegar a0 cinema com a producéo independente, porque as grandes empresas sio parte do sistema que se critica; 6 preciso extrair delas as vantagens que elas podem oferecer, sem no entanto se deixar engolir pelo esquema. £ esta, em resumo, @ posigao de Alex Viany neste momento. O seu pensamento nos interessa parti- cularmente, porque na sua evolucdo ele estara na vanguarda critica, e serao ‘sobretudo as suas idéias que irao nos servir de suporte para o desenvolvimento dos temas, que eprimorados e despojados de boa parte do sectarismo de esquer- da de que estéo eivados, constituirao os germes das idéias do Cinema Novo ~ (Glauber Rocha vai mais longe, e enxerga tais germes também na pratica cine- matografica de Alex Viany — no seu primeiro filme, Agulha no Palheiro, ¢ nos v4rios roteiros que escreve entre 1950 € 1954.) O que se chama na época de “cinema independente” 6 bastante compl cado de entender e explicar. Fundamentalmente é 0 cinema feito pelos pequenos Produtores, em oposigao ao cinema das grandes empresas. Mas nem todo peque- ‘no produtor € necessariamente “independente”. Para ser qualificado de inde- Pendente um filme dove ter um conjunto de caracteristicas que frequentemente nada tem a ver com seu esquema de producdo — tais como tematica brasileira, visio critica da sociedade, aproximacao da realidade cotidiana do homem brasi- leiro. Misturam-se aos problemas de producdo questées de arte e cultura, de técnica e linguagem, de criacdo autoral, e 2 “brasilidade”. O exame de alguns textos da época pode nos servir de exemplo, demonstrando como tais idéias 80 colocadas e interrelacionadas. No que diz respeito ao sistema de producao, 0 décumento mais interes- Sante que encontramos deste periodo de gestacao de temas, no inicio de 1951, € uma “tese” de Rodolfo Nanni, apresentada numa das “mesas-redondas” sobre cinema brasileiro promovidas pela Associacao Paulista de Cinema. As questées ‘so as mesmas que, desenvolvidas, seréo retomadas nos Congressos de Cinema Brasileiro pelo préprio Rodolfo Nanni, e encampadas pelo plendrio. © texto € confuso e mal escrito, frequentemente terse que adivinhar tanto quanto ler, ¢ 86 chega-se a compreender 0 fio das idéias ordenando com algum esforgo, paragrafos descontinuos e mal alinhavados (trata-se talvez de ‘to escrito para ser exposto oralmente). Mas mesmo assim é extremamente significative — a comecar pela impossibilidade de se entender com clareza 0 que se tem em mente quando se fala em “cinema independente”. Rodolfo Nanni toma como ponto de partida para a exposigao de suas Idéias a experiéncia vivida na produgao de O Saci, filme independente entre outros motivos porque é um filme “estritamente nacional” — baseado em autor nacional, com personagens bem brasileiras vividas por artistas brasileiros. fil- mado por técnicos brasileiros em cendrio verdadeiro do interior paulista, com capital nacional e temética tipicamente brasileira: a vida simples e auténtica das nossas fazendas e sitios. “O que se entende por um cinema fundamental: mente nacional?” — pergunta Rodolfo Nanni. E responde: “E 0 que tem por Principio mostrar a vida, os costumes e a histéria do nosso Povo, apoiado em 4 um nivel técnico e artistico suficientemente bom, e tendo por base garantias financeiras de producao e distribuigao. Sé assim o cinema nacional poderd atin- git um grau de verdadeira industria.” O pequeno paragrafo que citamos sintetiza admiravelmente a mistura de Ingredientes que entram na composigao da idéia de cinema independente, a am- biguidade da dicotomia cinema independente/cinema empresarial. Em primeiro lugar, anula-se a oposi¢ao entre industria e produgéo independente: falando pelos “independentes", Rodolfo Nanni tem como meta a “verdadeira inddstria”. Em segundo lugar, ele pretende um cinema Independente que se apdie em ga- rantias financeiras de produggo e distribui¢go — isto é, um cinema que de algum modo se vincule a entidades que Ihe possam garantir tal embasamento; que ou- tras sendo as empresas, produtoras ¢ distribuidoras? ‘A partir desta definiggo confusa, no entanto, no momento em que se passa a andlise da situagdo concreta e @ sugestées praticas de produgao, as idéias aos poucos vao se esclarecendo. “Nota-se, nos meios cinematogréficos, um grande entusiasmo pelo afluxo de navas companhias que surgem quase que diariamente, e grande alarde em torno da produgao nacional, que neste ano parece atingir a casa dos quarenta filmes. O fato é que neda disso tem base. Nao existe 0 que se possa chamar de industria nacional do cinema, e o que nés precisamos fazer é abrir perspec- vas para isso. Ainda ndo encontramos « maneira pela qual cada um de nés nao encerre a sua carreira depois de um primeiro filme, ou mesmo antes que ele esteja terminado (....). Mesmo no Rio, onde jé hd uma certa tradicao de luta dos pequenos produtores, as dificuldades sdo imensas” — e enumeram-se as dificul- dades correntes, Diante delas, “quais as solugdes praticas para os produtores independentes?” Segundo Rodolfo Nanni, so fundamentalmente aquelas adota- cas pelos produtores independentes dos paises europeus. Mas antes de passar 8s solugdes, Rodolfo Nanni discute @ situagao do cinema independente na Franca e na Itdlia, e chega & constatagao de que é pés- sim, portanto nao se entende o que é que deve ser imitado. Em primeiro lugar, ele poe em xeque a prépria independéncia do cinema europeu independente: € necessério precisar “até que ponto essas producdes s4o realmente independen- tes, porque, desde que dependam de que uma produtora maior thes conceda o favor de alugar 0 material necessério, deixam de ser absolutamente indepen- centes” — donde, para que se faca cinema “absolutamente independente”, é Breciso que nao haja qualquer espécie de vinculacéo de dependéncia com ‘as andes empresas (0 proprio Rodolfo Nanni deve ter sentido os inconvenientes desta vinculacgo, ao utilizar equipamento e instalagdes da Maristela para a finali z2o40 de O Saci). No entanto, 0 filme independente deve ele também ser “apoiado sum nivel técnico e artistico suficientemente bom”, 0 que sO se consegue nos estidios ou com o equipamento refinado que s6 os estidios possuem. Isto s2loca a produgao independente num verdadeiro impasse: ou manter a sua inde- geadéncia produzindo filmes de m4 qualidade técnica, ou produzir filmes de boa ‘Gelidade deixando de ser independente. Na Franga, os pequenos produtores seteram pela abdicagio de parte de sua independéncia vinculando-se aos gran- ‘5 estiidios dos quais alugam instalages e equipamentos. Porém a sobr ‘wncia dos independentes franceses neste sistema de semi-independéncia esté seriemente ameacada. Tentando de todos os modos possiveis vencer a crise da ‘= educao hollywoodiana, os americanos estéo comecando a produzir na Europa, = sobretudo na Franca, onde hé estidios muito bem equipados. E como eles st=recom altas quantias pelo aluguel dos estidios e equipamentos — para os nos tais quantias nada representam, tendo em vista o custo de producéo ‘maior nos Estados Unidos —, os donos de empresas “esqueceram imedia- © patriotismo ¢ entregaram os preciosos estidios onde trabalharam Clair e Marcel Carné” aos produtores estrangeiros. Ora, se para os inde- era dificil concorrer com a producéo empresarial nacional, é total- Impossivel concorrer com a estrangeira, pois no estéo em condigdes de ‘2s mesmos pregos que os americanos. Os pequenos produtores franceses

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