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BRASIL AFRICANO EntreLios 4 A influéncia da estética africana A nogao de beleza esté profundamente relacionada 4 de pertencimento. Portar, usar, exibir, apropriar-se do belo é viver e transmitir esse belo. Com a escolha de cores, de materiais e de objetos, ha a construcao de significados e sentidos POR RAUL LODY ntre 0s povos do mundo, nos seus diferentes momentos histéricos, sociais © econémicos, constata-se que o conceito de belo ou Beleza tem inter- pretagées muito particulares.Séo manei~ ras proprias de entender e de simbolizar ‘o mundo préximo, a natureza, 08 mitos ¢ os deuses, 0 que leva descoberta de tc nologias € 20 encontro de solugées esté- ticas diferentes. Por meio de linguagens sensiveis, a Beleza pode ser vista como 0 relato das trajetrias humanas, trazendo ‘memérias ¢ construindo dinamicamente que se chama identidade. Pode, portan- to, ser considerada tradutora das cuturas «dos deseos criativos do homer. Falar de beleza e de identidade tendo por base a Afric ¢ falar de um dos mais Ticos lugares de tradigo e de invengio do mundo. Trata-se de um continente di verso, que engloba centenas de culturas € de linguas, o que resulta em milhées de pessoas com formas especiais de ver 0 cotidiano, 0 sagrado, o meio ambiente, 0 trabalho, enfim, a vida. Com suas flores- tas tropicais, amplosltoras, o desert do Stara entre muitos outros ecosistemas, © continente aftcano reine of mais an- tigos testernunhos de teenologia e arte sobre a terra. Por isso, afirma-se:a Africa € pitia do homer. O contato de aficanos com o Brasil se dew partir da presenga do colono oftcial portugués, profundamente afticanizado pelo Magreb, povo magulmano do norte do continente. Por mais de cito séculos 4 Peninsula Thérica ~ Portugal e Espa sha ~ foi dominada e também civilizada por sofisticados sistemas culturais e s0- Giais dos affo-mugulmanos, que orien ‘aram as estéticas do morar e do vest, {nfluenciaram navalorizaca dos ardins, dos pomares ¢ das reas verdes, além de contribuir com muitas descobertas nas Giéncias, na navegaeo, na astronomia, ‘a tecnologia de tabalhar a ped, a ma- deira, os metas ~ especialmente na ou- rivesaria, com a filigrana -, entre outras formas de marcarestlos. Com 0 eseravagismo de povos da Arica partir do século XVI, mais de 4 tmilhibes de pessoas pelo periodo de 350 ‘Adomne depema ou bracelet infant Burkina Faso anos foram trazidas para o Brasil para trabulhar com agticas, depois our e café, «também para servigos nas cidades e nos ‘campos. Inicialmente vieram grandes contingentes da Avfiica austrl, especial- mente do antigo reinado do Congo e de ‘Angola, como o povo banto, depois da costa ocidental do gofo do Benin, e ain- da aqueles que chegaram da costa orien tal, principalmente de Mogambique Sto todas eulturas que se elacionaram, gerando esse rico e dinimico elenco de identidades. Pode-se inclusive, dizer que o Brasil um paisbiafrcanizado, Prime ro com a chegada de homem portugués aftcanizado em seguida com o contato direto com povos de diversas regiées do continente afticano. As identidades culturas afticanas so construidas, © muitas vezes justficadas, em bases sagradas. Inicalmente 0 poder ea sabedoria tradicional nascem dos deu- ses, dos mios fundadores, dos ancestrais que regulam, onganizam e estabelecem os lugares sociais de homens © mulheres, velhos eexiansas ‘lhe do tbo samburu:vsidadefeinina fic No Brasil, o destaque € a civlizagio ioruba, da Africa ocidental (Benin, Ni- agra), fandada em sociedades religiosas fe sectetas: ogboni, elecs, egungun, gue~ led, definindo prineipios éticos e morais mantidos na mitologia dos orixis € dos eguns ancestrais. Assim, elementos vi- suas, sonoros ¢ mesmo comidas encon- tram solugdes estétias ¢ funcionalidades no que é sagrado, definindo pactos entre evidente no uso de adeenos colridos 1 homem e seu deus. Sao os principios da vida e da morte Pra os iorubé, os orixis eriadores do hhomem ¢ do mundo, orixis fmfen, que vestem branco, ancestrais-masculinos Eguns, ancestsis ferininos Iis presen~ tes nas gueledés; 0 culto dos gémeos Ibe- js; as maes que vieram das 4guas: Nang, Temanjé, Ours 0 poder real na figurado orixé Xango cagador-provedor Odé; 0 EntreLivos As artesio Ogum que ensinow a trabalhar 0 ferro, construindo ferramentas agricolas ‘e armas. Sio todos determinantes nas es colhas esttieas que fazem 0 imaginitio afto-descendente. ‘A principal identificagio dos iorubé esti no rosto, Sto tés lanhos paralelos ‘em cada face, escarifcases que lembram a marca da pantera, a marca dari; pois ‘os desse povo sto filhos da pantera. Esse elemento estético simbslico € lembrado na didspora, no caso brasileiro, com as pinturas corporais na iniciagao religiosa no candomblé, quando o fae, nvigo, por meio do gfim, pigmento natural branco, recebe as mesmas marcas no fosto, tor nando-se também filho da pantera. A estética forubé esta também na cabeca de mulheres homens, com as tio oo- necidas trancinhas nag6s, ¢ esti, prin- cipalmente, nos adornos corporis, nas chamadas jéias €nicas, no uso de cores, na profusio multicolorida dos panos, das roupas, dos turbantes, dos aess6rios em couro ¢ em fibras naturas entre outros. Sao conceitos estéticos que recorrem a0 sagrado enquanto processo de per- tencimento ¢ de criagio, de reinvencio conforme a necessidade de uso. Um e280 ‘exemplar € 0 da roupa da baiana. Roupa multicultural, reine elementos visuais € simbélicos do candomblé, mantendo as cores dos orixis: branco para Oxalds axzulfo para Ogum; vermelho para lansi; vermelho e branco para Xang®; amarelo para Oxum; etc; além das jéias-rituas: fos de conta, correntdes em prata, ro c alpaca, argolas, pulseirase os turbantes «que sjudam na identificasao dos ors. ‘A roupa traz também fortes marcas rmugulmanas,seja na bata ~ pera larga de ppano~, nas chinelas de couro com ponta vvirda para cima, & mourisca, ou na evie dente permanéncia do barroco, fazendo reviverestéticas do século XVIII com as amplas ¢ aredondadas saias andguas € os bordados em riche A Africa ocidental € também sim- bolizada com 0 pano-da-costa, feito cem tear artesanal. Sio também muitos outros produtos como biizio-da-costa, palha-da-costa, sabio-da-costa, pimen- ta-da-costa, compreendendo um higar na regifo do golfo do Benin, ainda co- 87 8 | Entretivros Af Marca do profano ou religioso* Presenge € cisintio do posconamen | to feminino nas comunidades raligiosas afrotasieas, © pano-de-Cosa no ¢ | apenas um complement da indumefits- | finda nega:¢amarcadosertido profane (04 religioso nas acées da mulher como iniiada ou cient dos tees E evdee a marae fog ferns ras os de candombls, sendo aves | de atudes, proceimentes © maneiae | Ge tear que o poder da mie fade tmantendo os valores dos fundamentos Ilijosose soc noreaores pepe ‘tuacao do axé {forga magica), base e pilar dos centros religiosos implantados pelos ‘negros, em especial 0s jorubas. Tresente come pla nepal no | tafe dt cog tala © pno-dncona | pede slgnfear se soci nas orn | dades religiosas dos terreiros de candom- Be, © uso do pano-da-Coate também serve para representar ote profane da bslana focalzanda nce, pos eat | vidas econdmias ou de aremiages ps eines dein conhectias com ver | dies, gurus oy bianas de abule= to tm nos turbantes epanos-de-Costa ‘sua marca caracteristica. E comum notar- | tmosnas vas da clade do io de ano ‘Sear vendedeas nem sempre war- doo tj completa No erat cles brincos, ides (puieras), tubantas@ os anor de Cortando podem ata Estes tints serem pate far os elementos de malo siniacko 0 to Js reoresenados ns cores 6s fore Conta sors, bern como mostra seus dominos campos de acto. Podese Shs nos met varados doses © brinos a presenca dos mito ans pelo cobre, Ogum pelo ferro, lemanja pelo alu- miro ou Onan peloato, 0 turbntes possum carga de i porta paraieticar a pessoa que cs fora, morando @ presence dos oi Erle pesto é decid bis (@vndace ferns, os trbortes por suemaspontasd masta sendomasfara 2 quantidadedetecdos Sendo a pessoa deceada aos AbotésGhvindades asc BRASIL AFRICANO linas), 0 turbantes s80 mais enrolados na ca- besa, ndo aparecendo aspontas ‘Apesar de todos os simbolismos _encon- trados nos turbantes, 6 através do pano-da- * Costa listrado, liso, e5- tampado ou de renda ‘quea mulherpede dé monstrar sua posicso hlerérquica e, por con- seguinte, marcar sua presenca pelos fortes alos que determinam 2 sua representacao —Mulhercom pano-ds-Casta,emfotode Augusto Stahl, 1865, afrcanista Tals exemplos podem ser observados lem Salvador, Bahia, e outras cidades desse «estado, bem como em cidades do Nordeste conde as vendedelras seapresentam nasruas € pracas paiblicas. No entanto, nem timo (250, 0 pano-da-Costa éutlizado. (© nome “pano-da-Costa” é a primeira ‘grande questéo que podemos levantar 20 abordar o tema, Pano-de-Costa seré assim cchamado por ter sido um tipo de tecido vindo da costa dos escravos, Costa Mina, Costa do Ouro? Ou pano-da-Costa é assim conhecido porque esse tipo de acessério do trae da negra balana pende do ombro paraascostas? (0s tecidos comuns substituem hoje 0 tradicional ‘pano de madrasto’~tecido em tear manual egeralmente bicolor. Importa observar @ continuidade de fungBes do pano-da-Costa, apesar do qua- se total desaparecimento do tecido origl- ral. A operacionalidade do pano amarra- do 8 altura do busto, durante as dancas rituais dos terreiros de candomblé, serve para mostrar 0 respeito dlante dos orbs, constituindo-se em verdadeiro tabu, pols ‘uma Inilada, ao participar das “odas” dos crixés, Sempre deveré utilizar o pano-da- Costa. Apesar de a partiipante no estar ttajada a carder (geralmente traje de bala- na}, devers portar sempre um pedago de tecido que possa funcionar como pano: da-Costa e ser utlizado, quando neces- sério, durante as ceriménias. (sentido protetor de pano-da-Costa 6 outro aspecto que merece atengSa. AS |a6s (novicas), ao terminarem 0 periodo cdeconfinamento no interior dos tempos, ccomecam a travar seus primelros conta tes com © mundo exterior. Iniciam sua nova vida protegldas pelo pano-daCosta branco, que representa o prolongamen- to do Ald de Ovals. Nos rituals finebres conhecidos por Axexés e Siruns, a mes- ‘ma protecio do pano-da-Costa, ateado como capa envolvente mégica, aparece guardando as mulheres das presencas dos Eguns (mortos).O pano-da-Costa no 6 apenas uma simples peca pertencente ‘20 tea tradiclonal encontrado nos terei- ros, Observamos a profunda conotacio socioreligiosa desse simples pedaco de tecido, que atua em t30 diversiicadas situagbes, desempenhando papéis dos mais signficativas e necessities para as sobrevivencias tuaisaficanistas. “Trechodolive Opowede yk sano, de Rau kody Martins Fontes 374 pigs, FS 3920, + pigs. 302505, enone eae hesido como costa-darGuiné, costar dos-escravos costing, costa-do-ouTo, costa-do-marfim, cost-darmalagueta € costa-dos-grios, entre outros. ‘As cealizagdes estéticas estio, por- tanto, no corpo, no objeto, na dana, na bistéria contada oralmente, no vest, nos sons cantados ou executados em instru- mentos musicas, nas casas, nos templos «nas demais expresses que unem o ho- ‘mem a seus repetrios smilies. Manter essas. matrizes affcanas é também uma forma de ocupar um lugar ‘numa ociedade complexae multicultural como abrasileia, pois assumir a beleca& também assumir lugares de pertenci- mento ¢ de resistencia, E exeroer diteitos culturis na conquista da cidadania Outro exemplo marcante entre 0 corpo € 0 sagrado esti na comida, um dos mais importante elos ene a pes- soa ¢ sua cultura entre a pessoa ¢ sua identidade, Azcite-de-dendé, pimen- tas eo quiabo, que, entre muitos outros sabores que formam nosso paladar constzoem uma verdadeira estética da alimentagfo, sio alimentos sagrados nos candomblés gquiabo (ibis exulentos L) €or gindrio da Afeica, sendo também conhe- ido por guingoméa e gonbo em Angola co como gong em outras rises do con- tinente. So muita as resitas de quiabo no Brasil trazendo a boca a Africae suas Iecura affo-descendentes. Caruru,quia- bada, refogidos com quiabo, ama, sala- dase inerpretagBesnordestinas da fjoa- da, frango com quabo entre outs. ‘Os pratos assumem estéicasproprias sas manciras de servi, nos acompana amentos de arroz, de pirdes efarofs de farinha de mandioeae molhos de pimen- 1a, entre outros, Hi escolhas de utensi- los, seja de aro, de madeira ou de lou- ‘9 para cada recita que tem no quiabo 0 principal ingrediente, Exemplo € 0 ama- 14, comida sagrada do orixd Xangs. Tra- tarse de um prato de quabos em rodelas e alguns inteiros preparados nos com azeite-de-dendé,eebolas, eamasbes defumados pimentas, sobre pirio de inhame e complementado com acagis ~ bolos de milho branco cozidos em thas de bananeira. Tudo € colocado em ‘gamela redonda de madeira, assumindo estética prépria na qual se reconhece © pt, que é uma das inimeras comida sagradas. Diz a radigio que Xangg é cio guloso que ¢capaz de comer mil quiahos de uma s6 vee 1Na estética das comidas hi um en- contro inci com a imager, conn fo rmalmente ¢ ofercido 0 iment, Sab se que primeiramente come-se com clhos, depois com a boca c tod para entoatingr o espe Os conceitas de beleza e a ca estio profundamente relavio ‘aos conecitos de pertencimento. F ‘usar, exibis, propriar-se do belo ¢viver Aestética ioruba se evidencia r e mulheres, nas conhecidas tran corpo, nota-se na profusao dé Entrelivos 22 BELEZA NaTIVA Do su De a somunicagio deste amplo ¢ zo ¢ nifestaghe mplifie ia ou um gr dle

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