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INTRODUGAO Bste livro trata da populaggo kachin ¢ chan do nordeste da Birménia, mas protende também fomecer uma contribuigio a teoria antropol6gica. Nao foi proje- tado como uma descrigto etnogréfica, A maioria dos fatos etnogrifiens & que me refiro foram publicados anteriormente, Nao se deve, pois, procurar qualquer originalidade nos fatos de que trato, mas na interpretagio desses mesmos fatos. ‘A populagdo de que nos ocupamos é a que habita a regio assinaleda com 0 nome KACHIN no mapa | e mostrada em grande escala no mapa 2. Essa populacéo fala diferentes Knguas e dialetos, e existem grandes diferences decultura entre uma coutra parte da regiao em questo. No entanto, €comam denominar-se atotalidade dessa populagdo com os termos chan e kachin. Neste livro chamarei toda a regio de Regido das Colinas de Kachin, ‘Num nivel grosseiro de generalizagio, os chans ocupam os vales ribeitinhos onde cultivam arroz em campos itrigados; sio um povo relativamente sofisticado, com uma cultura algo semelhante & dos birmaneses. Os kachins, por outro lado, ‘ocupam as colinas onde cultivam arroz usando sobretudo as técnicas de cultura itinerante através de derrubadas ¢ queimadas. A literatura publicada no século pessado quase sempre tratou esses kachins como selvagens primitivos e belicosos, to diferentes dos chans na aparéncia, na lingua ¢ na cultura geral que devem ser considerados de origem racial totalmente distint’ 1. Porezemphs Mateo (1897: Bcksed (194), STSTENAS POLITICOS DA ALTA areca Sendo assim, esti dentro das convengdes normais da antropologia que as ‘monografias sobre 0s kachins ignorem os chans ¢ as monografias sobre os chans ignorem os kachins. Todavia, os kachins © os chans sto em quase toda parte vizinhos préximos € estio bastante associados nas questdes comuns da vida. Consicere-se, por exemplo, 0 seguinte documento. Faz parte do registro textual do depoimento de uma testerunha num inguérito confidencial realizado nos Estados Chans do Norte em 1930*. [Nome da testemunha: Hpaka Lung Hseng, ‘Raga: Kachin Lahtawng (Pawyam, pseudo-chan) tease: 79 Religiéo: budiste zewei Reside em: Man Hkawng, Mong Hko La, antigamente Duwa de Pao Mo Quando eu era menino, cctca de sctenta anos atés, o Regente (chan) Sao Hiara Hseng, ue entéo reinava em Mong Mao, mandou um patente seu, de nome Hga Ham, negociar uma alignga com 05 kachins de Mong Hko. Pouco tempo depois Nga Hikam estabeleceu se em Pao Mo e mais tarde trocou de nome com meu antepassado Hko Tso Li ¢ meu av6 MaNaw, entio ‘Duwas de Pao Mo; depois disso nas tomemos chans e budisis ¢ prosperamos grandemente ¢, ‘como membios do cid Ham, sempre que famncs a Mong Moo ficdvamos com 0 Regente, © Inversamente, em Mong Hiko nossa cosa era dels. Perece que essa testemunha considerava que nos iltimos setenta anos ou aproximadamente sua familia tinha sido simultancamente kachin ¢ ehan. Como kachin, a testemunha era membro da linhagem do cla Lahtaw(ng). Como chan, era budista e membro do cla Hkam, a casa real do Estado de Mong Mao. ‘Além disso, Mang Mao ~0 conhecido Estado Chen desse nome em territério chinés ~ € tratado aqui como sendo uma entidade politica do mesmo tipo ¢ tendo quase a mesma situago de Mong Hko, quo aos olhos da administragio britanica de 1930 nada mais era que um “cfrculo” administrativo kachin no Estado Hsenwi do Notte. Dados desse tipo néo podem ajustar-se prontamente a qualquer esquema fetnogrifico que, em termos lingisticos, situa kachins ¢ chans em “categorias” raciais diferentes. © problema, contudo, no € simplesmente o de distinguir entre kachins e chans; hé também a dificuldade de distinguir os kachins entre si. A literatura 2. Marvey & Baron (1820). p. 8 STSTENAS POLITICOS DA ALTA areca Sendo assim, esti dentro das convengdes normais da antropologia que as ‘monografias sobre 0s kachins ignorem os chans ¢ as monografias sobre os chans ignorem os kachins. Todavia, os kachins © os chans sto em quase toda parte vizinhos préximos € estio bastante associados nas questdes comuns da vida. Consicere-se, por exemplo, 0 seguinte documento. Faz parte do registro textual do depoimento de uma testerunha num inguérito confidencial realizado nos Estados Chans do Norte em 1930*. [Nome da testemunha: Hpaka Lung Hseng, ‘Raga: Kachin Lahtawng (Pawyam, pseudo-chan) tease: 79 Religiéo: budiste zewei Reside em: Man Hkawng, Mong Hko La, antigamente Duwa de Pao Mo Quando eu era menino, cctca de sctenta anos atés, o Regente (chan) Sao Hiara Hseng, ue entéo reinava em Mong Mao, mandou um patente seu, de nome Hga Ham, negociar uma alignga com 05 kachins de Mong Hko. Pouco tempo depois Nga Hikam estabeleceu se em Pao Mo e mais tarde trocou de nome com meu antepassado Hko Tso Li ¢ meu av6 MaNaw, entio ‘Duwas de Pao Mo; depois disso nas tomemos chans e budisis ¢ prosperamos grandemente ¢, ‘como membios do cid Ham, sempre que famncs a Mong Moo ficdvamos com 0 Regente, © Inversamente, em Mong Hiko nossa cosa era dels. Perece que essa testemunha considerava que nos iltimos setenta anos ou aproximadamente sua familia tinha sido simultancamente kachin ¢ ehan. Como kachin, a testemunha era membro da linhagem do cla Lahtaw(ng). Como chan, era budista e membro do cla Hkam, a casa real do Estado de Mong Mao. ‘Além disso, Mang Mao ~0 conhecido Estado Chen desse nome em territério chinés ~ € tratado aqui como sendo uma entidade politica do mesmo tipo ¢ tendo quase a mesma situago de Mong Hko, quo aos olhos da administragio britanica de 1930 nada mais era que um “cfrculo” administrativo kachin no Estado Hsenwi do Notte. Dados desse tipo néo podem ajustar-se prontamente a qualquer esquema fetnogrifico que, em termos lingisticos, situa kachins ¢ chans em “categorias” raciais diferentes. © problema, contudo, no € simplesmente o de distinguir entre kachins e chans; hé também a dificuldade de distinguir os kachins entre si. A literatura 2. Marvey & Baron (1820). p. 8 wrmop cho. discrimina diversas variedades de kachins. Algumas dessas subcategorias sio rincipalmente lingifsticas, como quando se distinguom os kachins que falam jinghpaw, dos atsis, dos marus, dos lisus, dos nungs ete.; outras so sobretudo testitoriais, como quando se distinguem os singphos de Assam dos jinghpahs da ‘Birménia, ou os hkahkus da regido do Alto Mali Hka (Triangulo) dos gauris, a leste de Bhamo. Porém a tendéncia geral tem sido minimizar a importincia dessas distingdes e dizer que o essencial da cultura kachin 6 uniforme em toda a Regio {das Colinas de Kachin”. Livros com titulos como The Kachin Tribes of Burma; The Kachins, their Religion and Mythology; The Kackins, their Customs and Tradi- tions; Beitrag zur Ethnologie der Chingpaw (Kachin) von Ober-Burma* referer ‘se por implicagio a todos os kachins onde quer que sejam encontrado, isto é, a ‘uma populagdo de corca de 300 mil pessoas escassamonte espalhadas por uma Tegido de uns 130 mil quilémetros quedrados*, ‘Nio faz parte de meu problema imediato discutir até que ponto semelhantes _generalizagSes sobre a uniformidade ca cultura kachin so efetivamente justificé- ‘veis; meu interesse reside antes no problema de saber até que ponto se pode afirmar ‘que um iinico tipo de cstrutura social prevalece ao longo da regio kachin. £ Jegitimo pensar que a sociedade kachin ¢ organizada em toda parte segundo um cconjunto particular de principios, ou serd que essa categoria bastante vage de Kachin inclui muitas formas diferentes de organizagéo social?” Antes de tentar investigar essa questo, devemos primeiro deixar claro o que se entende por continuidade e por mudanca com respeito aos sistemas sociais. Sob que circunstincias podemos dizer de duas sociedades vizinhas A ¢ B que “essas duas sociedades ttm estruturas sociais fundamentalmente distintas”, enquanto centre duas outras sociedades Ce D pociemos afirmar que “nessas duas sociedades ‘tcestrutura social é essencialmente a mesma”? No restante deste capitulo de abertura meu objetivo seré explicar o ponto de vista te6rico a partir do qual abordo essa questo basilar. A tese, em suma, é a seguinte, Os antropélogos sociais que, na esteira de Radeliffe-Brown, usam 0 conceito de estrutura social como uma categoriapor meio da qual se pode comparar uma sociedade com outra pressupéem na verdace que es sociedades de que tratam existem durante todo o tempo em equilibrio estavel. Sera, entéo, possivel deserever, por meio de categorias sociol6gieas comuns, sociedades que presumivelmente nao esto em equilfbrio estivel? 3. Porexemplo, Hanson (1913), 9.13. 4. Carrapiett (1929); Githodes (1922); Harson (1913); Wehr (1904) 3. Chapencce 5 a {YSTEWAS FOLITICOS DA ALTA IBAA ‘Minha conclusao € que, conquanto modelos conceituais de sociedade sejam necessariamente modelos de sistemas de equilibrio, as sociedades reais nfo podem jamais estar em equilibrio. A discrepincia esta ligada ao fato de que, quando estruturas sociais se expressim sob forma cultural, a representagao 6 imprecisa em ‘comparagio com a fornecida pelas Categorias exatas que osocidlogo, qua cientista, aostaria de empregar, Digo que esses inconsisiéncias na l6gica da expresso ritual so sempre necessérias para o bom funcionamento de qualquer sistema social ‘A maior parte de meu livto é um desenvolvimento desse tema. Sustento que ‘essa estrutura social em situagées praticas (em contraste com o modelo abstrato do soeidlogo) consiste num conjunto de idéiss sobre a distribuicdo de poder entre pessoas € grupos de pessoas. Os individuos podem nutri, ¢ nutrem, idéias contra- ditérias ¢ incongruentes sobre esse sistema. Sio capazes de fazé-lo sem embarago por causa da forma em que suas idéies sao expressas. A forma € a forma cultural; 1 expressio é a expressio ritual. A ultims parte deste capitulo introdutério é uma elaboragio desta portentosa observagSo. ‘Antes, porém, voltemas & estrutura social e 2s unidades sociats. Estruzura Soctal Num certo nivel de abstrago podemos discutir a estrutura social simples- ‘mente em termos dos prineipios de organizagio que unem as partes componentes do sistema, Nesse nivel, 2 forma da estrutura pode ser considerada de maneira totalmente independente do contesido cultural’. Um conhecimento da forma de sociedade entre os cagadores gilyaks da Sibéria Oriental’ ¢ entre os pastores murs do Sudio* me ajuda a entender a forma da sociedade kachin, a despeito do fato de estes ikimos serem, em sua maioria, agricultores itinerantes que habitam a densa floresta de mongio das chuvas. Nesse nivel de abstracéo, nao € dificil distinguir um modelo formal de outro, {As estruturas que o antropélogo descreve so modclos que existem apenas em sua propria mente na forma de construcoes I6gicas. Muito mais dificil ¢ relacionar tal abstracio com os dados do trabalho empfrico de campo. Como podemos ter realmente certeza de que um modelo formal particular se ajusta 20s fatos melhor do que qualquet outro modelo possivel? 6 Cf Pores (1949), 9p. 5460. on 7 LeviStnass (1949), copitaio XVI, 1 ae G8 #8 Brane-Prachard (1040) oth BY i i i lal cata nseooucko As sociedades reais existem no tempo e no espago. A situagio demogrifica, ecolégica, econdmica ¢ de politica extema ndo se estruturam num ambiente fixo, ‘mas num ambiente em constante mudange. Toda sociedade real 6 um processo no tempo, As mudancas que resultam desse processo podem ser discutidas sob dois, Angulos?. Primeiro, existem as que so coerentes com uma continuidade da ordem formal existente. Por exemplo, quando um chefe morte eé substituido por seu filho, ‘ou quando uma linhagem se segmenta ¢ temos duas linhagens onde anteriormente hhavia apenas uma, as mudangas so parte do processo de continuidade, Nao ha ‘mudanea na estrutura formal. Segundo, existem mudangas que de fato refletem ‘modificagoes na estrutura formal. Se, por exemplo, se puder demonstrar que numa Jocalidade particular, durante certo lapso de tempo, um sistema politico composio, de segmentos de linhagem igualitérios é substitufdo por uma hicrarquia ordenada de tipo feudal, podemos falar de uma mudanga na estrutura social formal. ‘Quando, noste Livro, eu falo de mudancas da estratura social, sempre me estou roferindo a mudancas deste ultimo tipo. Unidades Sociais No contexto da Regio das Colinas de Kachin, o conceito de“uma sociedade™ apresonta muitas dificuldades que se tornado cada vez. mais evidentes no curso dos préximos capitulos. Por ora vou seguir a recomendagio insatisfatéria de Radcliffe-Brown e interpretar “uma socledade” como se significasse “alguma localidade conveniente™™, Alternativamente, eceito os argumentos de Nadel. Por “uma sociedade™ ‘entendo realmente qualquer unidade politica auténoma'” ‘As unidades politices na Regido des Colinas de Kachin variam grandemente de tamanho e parecem ser intrinsecamente instaveis. Num extremo da escala pode-se encontrar uma aldeia composta de quatro fam{lias que reivindicam firme- mente 0 seu direito de ser considerada uma unidade plenamente auténome, No outto extreme temos o Estado Chan de Hsenwi, que, antes de 1885, continha 49 subestados (ming), alguns dos quais compreendiam por sua vez mais de cem aldeias separadas. Entre esses dois extremos podemos distinguir numcrosas outras variedades de “sociedade”. Esses varios tipos de sistemas politicos diforem uns 9, Cf. Porten op. cit, pe. S455, 10, Radcliffe Brown (1940), 11, CL. Nadel (1981), 9.187. ry L1STEHUS potincos DAtra RRM, dos outtos niéo 36 em escala mas também nos prinefpios formais & luz des quals so organizados. B aqui que reside 0 ponto fundamental do nosso problema, Para certas partes da Regio das Colinas de Kachin os registros histéricos genuinos remontam ao comeso do séeulo XIX. Isso mostra claramente que durante 8 iltimos 130 anos a organizagio politica da regio foi muito instével. Pequenas ‘unidades politicas autOnomas tenderam fregiientemente a agregat-se em sistemas ‘aiores; hierarquias feudais em larga escala fragmentaram-se em unidades meno- res. Houve mudanas violentas e muito rapidas na cistribuigéo global do poder politica. & portanto metodologicamente errOneo tratar como tipos independentes as diferentes variedades de sistemas politieos que encontramos hoje nessa regio; ddoveriam ser consideradas claramente como parte de um sistema total mais amplo em continua mudanga, Mas a esséncia de minha tese € que 0 processo pelo qual 2s pequenas unidades se desenvolvem em unidades maiores ¢ 2s grandes unidades se fragmentam em menores no € uma simples parte do processo de continuidade estrutural; nfo € apenas um processo de segmentagdo e agregacio, & um processo que envolve madanga estrutural Eo mecanismo desse processo de mudenge qe nos interessa em particular. Nao ha divida de que tanto 0 estudo quanto a descrigéo da mudanca sociel ‘em contextos antropol6gicos comuns apresenta grandes dificuldades, Os estudos

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