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Paul Virilio / Sylvere Lotringer Guerra Pura A militarizagio do cotidiano Tradugéo: Elza Miné e Laymert Garcia dos Santos Apresentacio: Laymert Garcia dos Santos 1984 Copyright © Semiotext(c)¢ Paul Virilio, 1983. Titulo original: Pure War. Copyright © da tradusdo: Editora Brasiiense S.A, Capa: ‘Ana Horta/J. Israel Abrantes Revisdo: José W. S. Moraes Gilberto D'Angelo Braz, 01223 — r. general jardim, 160 880 paulo — brasil indice Apresentacdo —_Laymert Garcia dos Santos ......06.. 7 Oespaco da guerra . severe =. 2B O tempo da guerra m1 Tecnologia ¢ transpolitica : Dieses SL yp te oye fay ai pucsio ce eel “s L ~ Estamos num frocesso de ultrapassar as Nagoes- Estado em diregdo a um “Estado Militar”. O que é uma outra maneiea de reafirmar 9 fim do politico, V — Isto ja se tornou patente com a Guerra Total. A Guerra Total f iados. Nao € por acaso que, durante a guerra, Bisenhower surgiu como uma espécie de chefe de Estado interestados. Com isto ele iniciou © que as multinacionais reorganizariam mais tarde. Temos af alge novo que, apesar de nao estar ainda organizado, é bem real. L — O que classicamente chamamos de “guerra” é ape- ras uma cortina de fumaga sobre este fendmeno difuso que agora no é nem guerra nem paz. e que, na fealidade, anula este tipo de distingio, atravessando sem empecilhos 0 fen meno da dissuasio. V — A guerra, no sentido jornalistico, 6 a delingdéncia nacional elevada & escaia de um conffito extremamente impor- tante: a Guerra dos Seis Dias, a Guerra entre o Ir e 0 Iraque, Bo equivalente dos “tumultos”, como as chamavam as socie- dades antigas. J4 nao podemos sequer falar de guortas, elas so delingiiéncias interestados, — De agora em diante, a guerra esta em um outro Hoje, ou a guerra é nuclear ou no é nada, Certa- mente ainda existem milhares de mortes por toda parte, mas 1nOs passamos para uma dimensio diferente daquela, da ‘guerra real, uma dimensio comparavel ao que chamei grande delingiténcia, Os Estados agem como terroristas individu: fem havide varios casos desde 1969. L — Por que 1969? peck ™ PAUL VIRILIO / SYLVERE LOTRINGER V — Porque 0 grande inicio foi o ataque dos para-que- distas israclenses ao Acroporto de Beirute. Os para-quedistas destruiram avides e voltaram para casa. E, desde entao, no cessaram estes atos de guerra som uma guerra, equivalentes a ataques terroristas de um Estado contra outro. Ininterrupta- mente, até a tomada das Malvinas pelo General Galtieri. © problema nfio é “Quem possui as Malvinas”. O problema ‘corre quando um Estado assume 0 controle das Malvinas ¢ declara: “Agora, 0 que & que voces vio fazer?” Isto & terro- -rismo de Estado. A prova é que durante os dois meses e mei “de duracio da guerra das Malvinas nao houve declaragao de guerra. E 0 problema era acabar algo que nfo era uma guerra, Como voeé pode decidir sobre 0 destino de pr neiros que no eram prisioneiros de guerra — porque ndo ‘tinha havido nenhuma guerra! Nos nos encontramos numa posigao de diplomacia diante da captura de reféns, de terro- mo diante de embaixadas — no Ira como em qualquer outa parte —, do terrorismo de Estado de Khomeini, do terrorismo de Estado de Carter, que tragicamente sofrev um revés com 0 fracasso no resgate dos reféns. Vé-se isso em toda parte. E eu acho importante esta dimensio — nao de guerra, mas da degenerescéncia da guerra em arte da dissuasio. A arte da dissuasdo, proibindo a guerra politica, favoroce 0 sur- gimento, nao de conflitos, mas de “‘atos de guerra sem guer- ra’. E a endemia desses atos que, atualmente, esta corrom- pendo 9 mundo inteiro, L— Ao mesmo tempo, este fendmeno constitu uma transferéncia das miguinas dé guerra, dis guertilhas urbanas para a maquina do Estado propriamente dita, E como se 0 Estado néo pudesse mais reagir ao terrorismo sendo tornando- se, ele proprio, terrorista, V_— Concorde plenamente. Os ataques a Entebbe ¢ Mo- gadiscio também foram atos de terrorismo, Com que direito as forgas especiais alemis foram para Mogadiscio? Com que direito a forca aérea israelense foi para Entebbe? Com que Gireito foi para Beirute? Isto nos leva muito além do campo da politica. Quando voe8 vé as dificuldades que os regimes poli- ticos t8m em resistir a0 terrorismo por causa das prOprias tec- nologias(telefone, misseis, ete.), pode imaginar os problemas ‘GUERRA PURA 35 que a comunidade internacional tem ao tentar acabar com o terrorismo de Estado, E a mesma logica da surpresa absoluta e do nao-direito, uma logica, digamos, do “ato gratuito” — no sentido que Entebbe, Beirute ou Gaitieri, pode levar qual- quer um a fazer isso em qualquer lugar.’ Em nome desta ogica, 0s russos poderiam tomar Beirute amanha, Uma ver, ‘que se apoderassem dela, como reagir? Alguém mandard fo- gucles contra eles? Alguém se arriscaré 4 aniquilagao por Beirute? Esta situagiio poderia se espalhar por toda parte. No inicio havia os palestinos: eles seqliestraram um avigo com 200 passageiros. Entio, o que fazer? Vocé os mata e se mata | junto com eles? A partir do momento em que o Estado se, fortaleceu conira o terrorismo individual — as Brigadas Ver- \ melhas, Baader-Meinhol ou. os palestinos —, desenvolvendo” seu proprio tipo 50 tipo de corte superior poderia impedir esta infinita propa- gagio dos crimes de Estado, de atos de gueira sem guerra. T ROMS PIES CO L ~ Seid nto podemos mats distinguir guerra de paz. a. ae _na realidade, € ai que podemos falar deliranspolitica Politico tinha’o tempo do seu lado — tempo para lidar com qualquer conflito 4 sombra da Lei, na continuidade de uma Historia cuja legitimidade ou sobrevivéncia nunca eram pos tas em divida, Portanto, o transpolitico marca 0 fi convepeie do politico baseada no didlogo, na dialéica, no “Teiipo pari rellexio, V — A transpolitica & 0 inicio do desaparecimento do politico na rarefado da ditima proviso: a duragio. Demo- Fequeret tempo. A dura- do é propria do homem; ele esta inscrito nela. Para mim, 0 anpaiie ¢ comes d nA auc a minha compen ‘transpolitico tem algo positive. Para mim, & “ioialmenii iexativo, das contra 0 desaparecimento do politico NAO | estou diZendo que deveriamos reverter & democracia antiga,| feararoreog ,e coisas do género. O que esiou dizendo € quel batho a ser feito, o trabalho epistemo-téenico de que) ivamos fal para restabelecer o poltico x tempo em que a tecnoloy % PAUL VIRILIO / SYLV Afico (como era 0 caso nas antigas sociedades demoeri- “ticas) mas em que a tecnologia divide o t eu dria: ‘pesgotamento do tempo. L — BA luz deste esgotamento do tempo, desta instan- taneidade da destruigae, que devemos encarar as discussdes entre MeNamara e Gromyko sobre 0 “primeiro disparo”. V — E ébvio que o paralelismo entre McNamara e Gro- myko, que conduziré aos acordos START, é dessa natureza. Nao nos esquegamos de que McNamara foi um raio bélico a quem devemos milhares de misseis nucleares estratégicos, em vez. das centenas que constituem a ““resposta flexivel”. Consi- derando que nos préximos meses o tempo de resposta teré caido a zero, no caso de uma guerra nuclear nio havera mais qualquer decisdo politica de guerra, Haverd uma decisao ele- trOnica, L — Portanto, no existe nenhuma escolha entre Gro- mykoe McNamara. V — Decididamente, nio, Nao existe a possibilidade de tomar partido, O acordo MeNamara-Gromyko nao é para ser interpretado, mas aceito como um todo. L — Ria tentativa de salvar tudo 0 que resta do poder do homem contra a automagao da decisio e a instantaneidade da destruigio. V — Vooé precisa perceber que entre o poder explosivo inventado pelos chineses antigos ¢ 0 da bomba atOmica, real- mente nao existe muita diferenga. A diferenga esta nos veto- res, nos vefeulos de destruigao. Agora possuimos vetores de velocidade absoluta, vefculos de destruigao absoluta... L — A tecnologia dita sua propria lei. V ~ Nos temos de tomar o enigma da \eenologia e pé-lo “sobre «mesa, como os fil6solds e cientistas antigos puseram Sobre q mesa 0 enigma da natureza, uma vez que 0s dois se __sobrepiem. GUERRA PURA ” L — Se nés desejarmos reinventar 0 politico, temos de encontrar uma maneira de politizas a velocidade, V — Nbs temos de politizar a velocidade, sea a velo- cidade metab dT dos reflexos), sela a velocidade tecnolégica. Temos de politizar a ambas, por- “que nds somos amas: somos movidos e nos moversos. Diriit também é ser dirigido. Dirigir um carro 6 também ser dirigido por suas propriedades. Hi, portanto, um feedback entre os dois tipos de velocidade: a’ teenoldgica (do carro) e a meta- bélica (do homem). Existe ai trabalho a ser feito e que esti ligado a0 veiculo, & politizagio da “‘eonduta”, no sentido latino de conducere, “conduzir”, bem como no sentido de conduta social da conduedo da guerra, da economia. A veloci- dade no 6 considerada importante. Falase de riqueza, nfo e velocidade! No entanto, a velocidade € tio importan "quanto a riqueza na fundagao do politico. A riqueza é a face oculta da velocidade e a velocidade éa face oculta da Tiqueza. ‘As duas formam um par perfeito. As pessoas dizem: “Vocé & rico demais”, mas nunca ninguém diz: "“Vood € velox de mais”. Entretanto, ambas esti relacionadas, H4, na riqueza, ‘uma violéneia que jé foi compreendida; © mesmo no ocorre, locidade, Fragmentacao e tecnologia Velocidade e Violéncia * Substincia e Acidente * “Picno- lepsia’” * Sonos, Sono e Morte * Hist6rico, Trans-Histé: rico * Morte Nuclear e Horizonte Negativo * Episédio e Tendéncia: a Politica do Escrever ® Velocidade e Polt- tica * Dromologia L— Na perspectiva marxista, a riqueza era 0 motor exclusive da Hist6ria. Atualmente, o motor aumenta sua pri= pria velocidade. A tecnologia entende a Histéria como veloci- dade. Entio, o que podemos dizer da violencia que nao é mais sancionada pela Hist6ria? V — Velocidade ¢ violéncia. O exemplo mais bvio & meu punho cerrado, Nunca 0 pesci, mas pesa cerca de qua- trocentos gramas. Posso transformar este punho na caricia mais delicada, Mas, sc 0 arremessar em alta velocidade, posso fazer o seu nariz sangrar. Vocé pode ver facilmente que 0 que fz toda a diferenga € a distribuicgo de massa no espago. Além isso, como disse Napoleao: “‘A forga é 0 que separa a massa do poder”. A questo: “Podemos_passar_sem tecnologia?” no pode ser assim formolada. Somos forgados a estender a questio da fecnologia nao apenas substancia produzida, ‘como também ao acidente produzido. O enigma da tecnolo- ia, de qué estévamos falando antes, é também o enigma do oy PAUL VIRILIO / SVLVERE LOTRINGER, acidente. Explico. Na Filosofia classica aristotélica, a subs- tancia é necessaria c 0 acidente é relativo e contingente. No momento, ocorre uma inversio: 0 acidente esta se tornando necessdrio e a substincia, relativa e contingente. Cada teeno- logia produz, provoca, programa um acidente espectfieo. Por exemplo: quando inventaram a estrada de ferro, o que foi que inventaram? Um objeto que permitia que voeé fosse mais depressa, que Ihe permitia progredir — uma visio @ la Jilio Verne, positivismo, evolucionismo. Ao mesmo tempo, porém, inventaram a catistrofe ferroviaria. A inveneao do barco foi a invengao dos naufragios. A invencao da maquina a vapor e da locomotiva foi a invenc&o dos descar-ithamentos. A invengao da auto-estrada foi a invengao de trezentos carros colidindo em cinco minutos. A invengao do avido foi a invengao do , desastre agreo. Creio que, de agora em diante, se quisermos |contimuar com a tecnologia (endo penso que haveré uma regressio neolitica), precisamos pensar instantaneamente a | substancia e 0 acidente — sendo a substncia tanto 0 objeto | como seu acidente. O lado negativo da tecnologia e da veloci dade foi censurado. Os técnicos, a0 tornarem-se tecnocratas, tenderam a positivizar 0 objeto e dizer: “Estou escondendo; nnd estou mostrando". Ha muito a ser dito sobre a “obsce- nidade” da tecnologia. E onde voc? encontra a tecnofilia, L —A violencia da velocidade foi censurada?, Esta € a azo do fascinio que inspira e da repulsa que as pessoas sentem em relagio a ela? V.—Em termos técnicos, a velocidade & uma transfe etgia. Podemos resumir isto em duas palavras: e “movimento-do-moviment Estabilidade: eu nao me movo, estou parado. Movimento: po- nho-me em movimento, Eu acelero: movimento-do-movimen- to. A passagem de “movimento” para ‘“movimento-do-movi- mento” é uma transferéncia de enerwia. que podemos também chamar de um “acidente de transferéucia” Ama vez que voos comeca a pensar em termos de energa, 0 problema da vio- / Tencia esta imediatamente presentof Atualmente existe um debate em torno do Museu La Villette de Ciéncia e Tecnolo- gia. Quero fazer uma proposta-provocagaio solieitando que, a0 lado da galeria das maquinas, coloquem uma galeria do aci- GUERRA PRA a dente. Cada tecnologia, cada ciéncia deveria escother sev aci- dente especifico c revela-lo como um produto — nao de uma maneira moralista, protecionista (seguranga em primeiro lu- gar), mas antes como um produto a ser questionado “epis- iemo-tecnicamente”. No fim do século dezenove, os museus exibiram maquinas; no fim do século vinte acho que, num. novo museu, devemos conferir & dimenstio formadora do aci- dente o seu lugar de direito. Devem exibir (como? — ainda nao sei) descarrithamentos de trens, poluicio, desmorona- mentos de edificios, ofc. Crei que 0 acidente sea para as cigneias sociais 0 que o pecado € para a natureza humana: uma certa relagdo com a morte, ov seja, a revelagao da iden- tidade do objeto. L.—Portanto, nem tudo é velocidade. A velocidade ¢ aquelé acidente, aquela interrap- io que é a queda, tém algo a nos ensinar sobre a natureza de ‘noss0s corpos e 0 funcionamento denossa consciéncia. V — Exatamente. £ isto que digo em L'Esthétique de la _ Disparation. A idéia principal de livro € 0 papel social ¢ politico de parar. O corte, que € 0 sono, trabathado pela Psicanalise, mas ea nao confio de jeito ne nhum na Psicandlise. De fato, todas as interrupgdes me inte- inierrupeio do conhecimento, Todis as inten Kisté uma interrupgko do conhecimenté que um_ a a a [tempo que The €prépio se constitu. “Pienol ‘ritmo ierrupeio picnolética (do grego pienos, “ireqi ‘a qual ajuda-nos a cao que €a nos, da_qual som. ons ‘endo em vista tudo isso, 0 conceit de morte como acidente, como interrupgao do conhecimento, é relativamente recente, Ele ¢, de fato, contemporaine da constituigao do conhecimento sobre o Homem. Quanto mais individualizaram, 17) Paul Vio, L'Eethétique de la Digpariion. Pacis: Ballard, 1981 2 PAUL VIRILIO / SYLVERE LOTRINGER ‘0 Homem no seio de nossa cultura, mais fizeram de sua morte o grande corte, uma interrupeio insuperdvel. V — Epilepsia é uma morte pequena e picnolepsia é uma ‘morte ainda menor. Neste caso, 0 que esté vivo, presente, 8 acidenites, péquenas in- {terrupgdes, pequenos cortes na trilha sonora, como diria William Burroughs, na trilha sonora é na trilha visual do que vivido. E acho isto muito interessante para a andlise do social, da cidade, da politica. Nossa visto é a de uma mon- tagem, uma montagem de temporalidades que s40 © produto do apenas dos poderes existentes, mas das tecnologias que _organizam 0 tempo. F. Sbvio que’ interrupedo atua mais sobre a lemporalidade que sobre 0 eapago/ Nao € por acaso Sue 0 pensamento Telghiso TUTUTE tod’ sorte Je preib. es, dias santos — 0 sabath, ete. Regulava-se o tempo, es- tava'se consciente da necessidade de parar para que houvesse uma politica religiosa. Por qué? Porque a politica religio definida com relaggo & morte, & grande interrupgaip, a0 nal”, como se diz. nas Escrituras (Apocalipse). & um fato positive porque confere um novo estatuto A fecnologia. A tecnologia ndio nos dé nada mais, ela nos interrompe diferen- {emente. Ser interrompido num carro é diferente de ser inter- rompido enquanto caminhamos. A esiiexde d0 corpo que dirige com 0 corpo que se Tocomove & uma conexio com um {ipo diferente de mudanga-de-velocidade. A interrupgio & sma mudanca de velocidade. A greve, por exemplo — refiro- [me a greve geral —, foi uma invengao formidével, muito mais \-F'do que a3 barricadas da revolta camponesa, porque ela se <_espalha por toda uma duragao. Ela era imenos uma interrup- ‘lo de espago (como € 6 caso di barricada) que de du ‘reve era uma barricada no tempo. L — Fsta estética da interrupgio que estrutura a cons- ‘iéncia contemporanea é, na verdade, uma cinemética. Pois 0 cinema, arte do continuo, paradoxalmente, retira toda a sua energia da interrupgio. V —0 cinema mostra-nos 0 que € nossa_consciéncia, Nossa comsciéncia & um efeito de montagem, Nio existe cons- E estas composighes sao voluntérias ¢ involuntérias: decido’ tirar um cochilo, pertenco a um sistema que me forga a des- sansat no sébado, no domingo ou no Ramadi. Estas sto jnterrupcdes conscientes, o resultado de uma vontade. B, en- a, hd as interrupedes inconscientes.como 0 sono, a pieno Jeosia. Mesmo que eu nao queira, eu adormego, F uma cola- ‘gem, Ha apenas colagem, decupagem. Isto explica muito bem ‘© que Jeau-Frangois Lyotard chama de desaparecimento das, | ptandes narrativas. Sociedade scm classes, justiga social — ‘hinguém aeredita mais nelas. Estamos na era das micronar- Tativas, @ arte do fragmento, Nao por acaso que um dos inaiores livros publicados na Franca seja 0 de Mandelbrot sobre Les Objects Fractals (a geometria da fragmentagio). A dimensao nao precisa ser um todo, ela pode ser expressa em fragdes, A unidade dimensional é uma simplifieagio abusiva para muitos objetos naturais (a eosta da Bretanha, por exe ple). Vemos que houve um deslocamento da unidade (a nogao dda unidade de continuidade) para w nogio de fragmento, de “desordem. E af femos uma reversio. O fragmento recupera Sta auloniomia, sua identidade, ao nivel da conscigneia ime- diata, como dicia Bergson. $6 ha HistOria ao nivel da grande -narrativa. Crei0 apenas na colagem: ela é trans-histérica. L — Vocé acha que terrorismo de Estado, delinaiéncia de Estado, sejam a fragmentagdo da guerra geral como nés a ‘ccnhecemos neste século? V—A grande narrativa da Guerra Total estithacou-se cen prol de uma guerra fragmentada que nao diz o seu nome, ‘uma guerra “intestina’” no sentido biol6gico. L—E uma espécie de quebra-cabeca que ja nao tem qualquer unidade. A guerra acontece em toda parte, mas nés {infio temos os meios de reconhecé-la. V — Este reconhecimento da fragmentacio da realidade hist6rica 6 a aurora (nés ainda estamos sendo metafbricos) de uma identidade, de uma consciéneia mundial. Assim como ‘tempo vivo é meu e estou consciente._ jerrupgoes”, eu diria “estamos indo a PAUL VIRILIO / SYLVERE LOTRINGER em direcao do Estado puro porque existe uma fragmentagio infinita de conflitos inter-Estados”. Em outras palavras, es- tamos.nos encaminhando & consciéncia comum de que todos nds somos seres terrestres, idénticas —- com todas as coisas temiveis e monstruosas que isto pressupde, L — Nohorizonte vemos, paralelamente a fragmentagiio da Hist6ria numa multidao de micronarrativas, uma espécie de épica mitolégica, a épica da morte nuclear, uma visio planetaria e global, fundada na iminéneia da colapso de nossa civilizagao. V — Ea megainterrupeao. A morte individual fundou todo o pensamento religioso, mistico e magico. Do reconhect. mento da morte das tribos, do grupo, chegou-se, entiio, & idéia de que as civilizagdes também so mortais. Com as armas nucleares, a espéce esta agora reconhecendo & pes bilidade de sua propria morte. O-holocausto nuclear reimtn uz questi de Deus ~ nde inane eal do indidue ot le uma raca el ee do homem. L — B, noentanto, isto ajuda a humanidade a restaurar sua unidade. V — A.sua tnica verdade ¢ 0 horizonte negativo. 1. — O fim do tempo, ovo fim da temporalidade, como o derradeiro advento da humanidade. V ~ E interessante privilegiar a interrupcao no nivel da cronopolitica, enquanto oposta & geopolitica. Interrupcao no espaco foram as muralhas, regras, cintos de castidade. Agora -—Binlerrupeio no corpo é substituida pela interrupgao no tempo. Nos ligamos na duracdo intima de cada wm. Ffeitos subliminares significam apenas isso. L— Ao mesmo tempo é a morte da intimidade. Toda a rellexto destes tltimos anos sabre uim modelo despedagado, “esquizofrénico”, da subjetvidade corresponde A grande est: tica da colagem. Cea nao & continuo, &consttutde por una GUERRA PURA 6 série de pequenas mortes ¢ identidades parciais que nao aflo-, ‘ram juntas ou que apenas conseguem emergir juntas pagando co prego da ansiedade e do recalque. V — Mas, do momento que voce diz. que a coisa essencial 6 contemplar @ morte e examinar a interrupeao, voc’ vai muito mais longe. A esquizofrenia tropeca na questo da morte, no sentido que 2 ela d& 0 materialismo: o desaparc~ cimento significa que ¢ o fim, que nao sobra nada; ao passo que @ morte uma interrupg’o misteriosa, como a picno: lepsia, o sono, E aberrante dizer que nada sobra depois da ‘morte, A meu ver, é aqui que reside o idealismo. Se nds ‘queremos dar a interrupg%o todo o seu valor, precisamos nela ineluir a morte. Naturalmente nao acordamos dela, mas na pienolepsia vocé também no desperta, uma vez que voc’ nem mesmo se da conta de sua propria existéncia, L — Também é pelas interrupgdes que 0 escrever & tra- balhado. Nietzsche esereveu em aforismas, que so interrup: ‘goes do pensamento. Fu admiro especialmente o lado suges- mais do que o exploratério, da abo voce faz. 1u niio acredito na explicagio, acredito na suges- | tao, na évidéacia do implicito. Sendo urbanista ¢ arquiteto, estou muifissimo acostumado a construir sistemas claros, ma- quinas que funcionam bem. Eu no acredito que o trabalho da escritura soja fazer a mesma coisa. Eu no gosto da escri- tura tipo dois-e-dois-stio-quatro. Eis por que, finalmente, cu respeito Michel Foucault mais do que gosto dele, L — Nada sobra quando tudo foi dito. Sua abordagem, pelo contrario, € decididamente “lelescSpica”. Assim que vocé fisga alguma coisa, vocé a deixa ir, pula de lado em vez de saturar a area cm que investiv. E toda uma politica do sserever. Min éum dissusso rvanizado da cuerra, ainda ‘uns uni discuiso sobre a guerra, ¢ wm discurso em guerra vrever num estado de emergéncia, V — Eu trabalho em escadas — algumas pessoas ji per- ceberam isso, Comeco uma sentenca, trabalho uma idéia quando a considero suficientemente sugestiva, pulo um de- ra PAUL VIRILIO / SYLVERE LOTRINGER grau para uma outra idéia sem me preocupar com o desen- volvimento, Desenvolvimento sig os epishdios. Eu tento al- cangar a tendéncia, Tendénciaéamudanga denivel. 1 — Isto é algo novo na drea da escritura (e6rica, V — E claro que &, Em L’Esthétique de la Disparition, tive a revelagdo da importincia da interrupgio, do acidente, das coisas que decidimos como produtivas. E completamente diferente do que Gilles Deleuze faz em Mille Plateaux." Ele rogride por captagées, enquanto eu cuido das rupturas e auséncias. Para mim, 0 fato de parar e dizer: ‘vamos para ‘outra parte" é muito importante. Retaciono isso a coisas como a grove, A coisa essencial numa grove é que voct usa a aut séncia, . L — Cada degrau é a parada do trebalho te6rico. Para que o pensamento siga sozinho seu impulso ¢ que outra coisa, acontega em outra parte. V — Para que outra coisa aconteca e um espaco possa surgi. E absurda a pretensao de cercar totalmente uma ques- to. Vocé nao pode moldé-la. Nao se deveria tentar aprender ‘tudo em torno de uma questéo, Apenas existem perspectivas L 4 Vitesse et Politique ¢41m livro répido.. V —E um livro rapido, mas um livro-chave, Nao é nidmero de paginas que conta: eu nunca escrevo coisas longa, Meu grande ponto de referéncia ndo é Clausewitz mas Sun ‘Tsu, Sua “Arte da Guerra” tem apenas cento e vinte paginas. Vitesse et Politique & um pequeno livro importante porque foi © primeiro a fevantar a questao da velocidade. E uma intro- dugaio a um mundo totalmente novo que nunca tinha sido mostrado antes. Nao foram muitos os autores que tocaram na vyelocidade. E claro que existe Paul Morand, algum Kerouac, mas isto é literatura, Para uma visio mais politica da velo- (@) Giles Dolouzo/Féix Gusta, Mile Poteau, Pare: Minuit, 1980 GUERRA PURA ” cidade, hé Marinetti ¢ os futuristas italianos, e depois Mar- shall McLuhan que deu um passo nesta diregio: ¢ isto é tudo, Vitesse et Politique nao é to importante pelo que diz, como pela questo que levanta. L — Vitesse et Politique é um acidente tebrico. V — E,e6por isso que nao dura muito, 1. —O que me seduziu desde o principio foi precisa- mente que um livro sobre a velocidade fosse tao répido. Nos nos acostumamos demasiadamente a ver proclamado “o fim do livro” em livros que sao eles proprios intermindveis. Sev trabalho mio § yolumoso por ser em si mesmo “‘veicular" Alids, “Veicular” €6 titulo do dltimo capitulo de L Tuséeurité du Territoire, do qual Vitesse et Politique & de algum modo a captagaio tebrica. V — Os iiltimos capitulos dos meus livros sio sempre importantes porque, no final das contas, eu nao acredito que se escreva varios livros. Vooé poderia publicé-los num enorme diciondrio no qual todas as coisas apareceriam cronologica- mente. Em “Veicular” comecei a adivinhar certas coisas. Dei-me conta_de_que_a_questio da_guerra resumia-se_na questao da velocidac sua organizacio e produgio, enfim em _tudo que a . Assim, depois da L'Inséeurité du Territoire, eu publiquei um texto que era menos rico em desenvolvimento, mas mais rico do ponto de viste te6rivo. Todos os meus livros formam um conjunto, Agora estou pres- {esa langar um livro que desenvolve e completa varios aspec- tos de Vitesse et Politique. Chama-se La Stratégie de Vau- dela, subintitulado “Dromoscopias”, ¢ isto me levou a LF thétique de la Disparition, que € afctado pelo meu interesse por aquilo que falta, pelos desaparecimentos. Tudo isto ali enconira eco. L — Qual a posigio estratégica de Vitesse et Politique em seus trabalhos? V — E.um ensaio que pode servir como um instrumento para analisar sociedades antigas assim como contemporaneas s PAUL VIRILIO / SYLVERE LOTRINGER e, talvez, mesmo o futuro, uma vez que ele me permitin analisat varios eventos recentes no campo audiovisual bem como no do desenvolvimento do automével e do cinema, L — Vocé deu a Vitesse et Politique 0 subtitulo: Ensaio sobre Dromologia. Como voc’ definiria esta nova ciéncia, ou esta nova relacdo da cigncia com o pensamento? Y <-jpromologia” vem. de dromos, gorda. Portant, 6.4 Logica Git a Para mim Toi a entrada no mundo do equivalente-locidad ao equivalenteriquesn, [elouwoet A velocidade e o militar Velocidade ¢ Riqueza * A Revolucdéo Dromocritica * A Arma Final * Chegando aos Extremos * O Fim da Poli- tica * Guerra Técnica e Guerra Santa * Nao-violéncia L— Vamos voltar idéia, tao central em seu trabalho, de que a riqueza tem: yento da politica. Isso € um fenémeno recente, on é um fendmeno ‘antigo que sé recentemente ultrapassou 0 “‘ponto critico”? sempre o foi, desde 0 inicio: asp jueza foi focaliz erro — que eu modestamente estou tentando corrigir —_es- juecer que a riqueza é um aspecto da velocidade. Comumente se diz. que. poder esta vinculado a riqueza. Em mi nif, esta, acima ‘vem depois. Claro que € verdade que o poder precisa de meios, ‘que adquire esses meios através do entesouramento, ragio ou de ambos, mas as pessoas esquecem a dimensio dromolégica do poder — sua capacidade de captacio, seja através de impostos, de conquista, efc. Toda sociedade & fun- dada numa relagio de velocidade. Toda sociedade € dromo- “eritica. Se voot tomar a sociedade ateniease, observaré que ‘no topo ha o trierarea; em outras palavras, aquele que pode 0 PAUL VIRILIO / SYLVERE LOTRINGER preparar uma trirreme. Depois hi 0 cavaleiro — aquele que pode preparar um cavalo, para usar a linguagem naval. De- pois disso, hd o hoplita, que pode aprontar-se para @ guerra, “armar a — no estranho sentido de que a palavra “armamento” tem tanto conotaglo naval quanto mareial — com suas langas e seu eseudo como um velor de combate. finalmente, ha o homem livre ¢ 0 escravo que s6 tém a possi- bilidade de se alugarem ou de serem recrutados como energia na maquina de guerra — os remadores. Nesse sistema (que também existiu em Roma com a cavalaria), aquele que tem a velocidade tem © poder. E tem o poder porque € capaz de adquirir 0s meios, o dinheiro, Os cavaleiros romanos eram os banqueiros da sociedade romana. Aquele que for 0 mais répido poseui a capacidade de colotar impostos, a enpacidadc de conquistar e, através disso, de herdar o direito de explorar asociedade, L — Estamos agora chegando ao ponto em que o desen- volvimento material é fungao direta do desenvolvimento mifi- tar. 'V — Séisso. Isso me traz de volta alguns exemplos ant ‘205, mas precisos. Temos dois lados na regulagem entre velo: cidade e riqueza. Até 9 século XIX, a sociedade estava fun dada_tio freio. Os meios para favorecer a velocidade eram muito insuficientes, Voc® finka navios, mas os navios a vela evoluiram muito pouco entre a Antigdidade e o tempo de Napoledo; o cavalo, menos ainda; e, evidentemente, havia os pombos-corrcio. A tnica maquina a usar a velocidade com alguma sofisticagdo foi 0 telégrafo Stico, e depois 0 telégrafo elétrico, Em geral, até 0 século XIX, no havia produgio de velocidade. Podia-se produzir freios por meio de muralhas, da lei, das normas, interdicdes, etc. Podia-se frear usando todo tipo de obsticulos. (Nao é por acaso que a sociedade antiga era uma sociedade de sucessivos obsticulos ao nivel do povo, da moral, da definigio territorial; fossem eles os muros da iade, os impostos, os sistemas fortificados da Nacdo-Estado — todos eles tantos freios.) E entio, repentinamente, hd a grande revolugio, que outros denominaram Revolugdo Indus- “Trial ou Revolugto dos Transporles. "Eu'”@ chamo revolugao “dromoerdtica”, pois 6 que foi inventado nao era somente,_ ‘GUERRA PURA st como tem sido dito, a_possibilidade de multiplicar objetos similares (0 que, em meu entender, é uma visao completa- mente limitada), mas sobretudo um meio de fabricar veloc dade com o motor a vapor, ¢ depois com o motor a explosto, _assini pode-se passar da idade do freio 4 idade do aceTorador. “Ent oulzas palavras, 0 poder serd investido na propria aoele- ragdo. Sabemos que 0 exército sempre foi o lugar onde a velocidade pura € usada, seja nia cavalaria — os meltores “cavalos, evidentemente, so cavalos do exército —, na arti- Tharia, ete. Ainda hoje, o exército usa as mais peitinentes velocidades — seja nos misseis ou nos auides. Veja o exemplo da grita em torno do SST americano. Este nao foi construido porque os americanos estavam muito preocupados com a idéia de se construlr um Jato supersOnico clvil que seria mais rapido ue 0s jatos militares. Fica muito claro que a hierarquia da ia da riqueza. As duas esto acopladas. F entio, realmenie, 6 estado de emergéacia, a era da intensidade, esto Tigados & supremacia da veloci- dade, e nfo s6 na escala de uma cavalaria ou arma naval de desempenho pior ou melhor. L— Entao, a supremacia da velocidade 6, simultanea- ‘mente, a supremacia do militar. V — Sem diivida. A dromocracia toma o seu lugar de direito, mas desta vez na escala de uma sociedade mundial em que as classes militares so, de algum modo, o equivalente do que eram os senhores feudais na sociedade antiga. Nao hé poder politico que possa regular as multinacionais ou as for. as_armadas, que tém autonomia cada vez maior. Nao ba oder superior ao delas. Portanto, ou esperamos pela chegada de um hipotético Estado Universal, com no sei qual Primaz a sua frente, ou entéo finalmente compreendemos que 0 que csté no centro nio é mais um monarea de direito divino, um monarea absoluto, mas “uma arma absoluta”. O centio ja ni € mais ocupade por um poder politico, e sim por ama L — Deum Iado, temos 0 declinio do Estado, que é fim da Historia, e do outro, temos um estado de emergéncia, que sanciona o poder absoluto do instante. 2 PAUL VIRILIO / SYLVERE LOTRINGER GUERRA PURA s ¢ comunistas estio sendo suplantadas por esta so de mundo. O prot 1oje & que o verdadeiro inimigo é V— A hist6ria como extensibilidade do tempo — do tempo que dura, que 6 fragmentado, organizado, desenvol- vido — esta desaparecendo em prol do instante; como se o fim menos exierno que interno: nosso “proprio” armamento, ‘da Historia fosseo fim da duragao em prol da instantaneidade nosso “proprio poderio cientifico que, de fato, promove © ¢, evidentemente, da ubiaiiidad: fim de nossa propria sociedade. L — Mas tal instantaneidade é também, poder nuclear, L— A possibilidade de destrvigio instantdnea esta su- plantando as estratégias de dissuasio, Agora estamos en- V — Tal instantaneidade esta ligada ao centro, ¢ 0 cen- trando numa nova fase que poderia ser caracterizada como tro 0 poder nuclear. A invencdo da surpresa cientifiea — a chegando aos extremos”. Ela poderia conduzir-nos a0 Apo- ‘erande surpresa cientifica de 1945, a arma final calipse (destruigio absoluta), a menos que rapidamente acar- para.o centro do debate politico; ela dissolve o debate politico. retasse a negociagto de um novo Yalta. Este “chegando aos extremos” é um fendmeno inaudito? 1.—F.a intrusto no debate politico, em que tudo é negocidvel, de uma outra dimensio — algo irredutivel, irre: V — “Chegar aos extremos” é um dos conceitos de Clau- versivel, Pode-se negociar “em torno” do poder nuclear, mas sewitz. Designa a relagio que ele esbora entre a guerra e a no 'sobre” a arma fin : politica. Clausewitz é um homem da guerra politica. “Chegar ee aos extremos” € a tend2neia da guerra a ir além de todos 08 V — perigo mais grave desta arma final — a arma limites. Agora mesmo dissemos que a guerra existe em sua nuclear — & que ela existe ¢ qué por sua sifiples presenca preparagio: erigindo a cidade fortificada e organizando: ba- desintegra qualquer debate sobre 1 evOlUgAo” da’ Sociedade, ~ talhdes, disciplina, estratégia, etc. Mas dentro desse proceso ae — de preparagio e organizagio, hé uma tendéncia para o esca- 1, — 0 petigo mais grave nfo é 0 poder de fogo nuclear, pamento, Uma tendéncia infernal ~ movendo-se em diregao mas 0 gue voe® denomina “fé nuclear”, {6 no poder muctear~ a.um extremo em que ninguém controlar nada. Entdo, Clau- Mas, ao mesmo tempo, paradoxalmente, © que corresponde sewitz diz algo fundamental: “A rolitica evita a descarga ao fim da guerra classica é um tipo de exacerbagio dos con- completa”. Porque a guerra é politica, nao ha descarga com- flitos locais; ao fim das Nagdes-Estado corresponde todo 0 pleta, Se a guerra nao fosse politica, tal descarga atingiria a 10 de ressurgimentos belicistas, de arcaismos, de terrors: estruigao tota mos, ete. Alids, em todos os niveis, inclusive no terrorismo de Estado, como ocorreu nas Malvinas, Trata-se apenas de um L — “Chegar aos extremes” toma-se uma realidade por fendmeno temporario prestes a se esranecer, ou de uma inver- que a politica esta perdendo o seu papel de Arbitro dos con- sio relacionada com o desaparecimento das territorialidades? flitos. O fim do politico, entao, nao significa uma redugao do ~ antagonismo ideoligico mas, eventualmente, o fim de siossa V ~Trata-se_de uma inversio definitiva. Creio que civlizago. Definimos um... digamos, um aspecto positiv avangamos para a universalidade. O universo-cidade; a fica, a morte nuclear nos tris de v dade universal. O fato de termos hoje os acordos de Yalta e as ‘uma mitologia ao nivel universal, ela promove confrontagbes Leste-Oeste, de termos a OTAN, a SEATO, o nismo fundado na destruigdo. Ha um segundo aspecto, desta Pacto de Vars6via, ete. — para mim, tudo isso foi superado vez inteiramente negativo, que tem ver com essa mitologia, por_uma espécie de Estado universal; um Estado em sua mantendo uma ameaga insuportivel sobre nossa civilizacao, forma pura, ‘6 resultado da Guerra Pura, isto & da suscitando um reinado do terror em nome da morte que esta & “de destruigio. AS pI mio, mas que talvez ndo chegue nunca. Conseqientemente, o PAUL VIRILIO / SYLVERE LOTRINGER isso corre o risco de causar uma onda de desmobilizagdo: se nada pode realmente evitar um holocausto nuclear, qualquer forma de resisténcia torna-se imtitil; até a vida fragmentiria entra em colapso diante de tal ameaca. V — Isso decorre do fato de no existirem outros sacer- dotes da morte nuclear além dos militares. A morte s6 existe enquanto Tundaiiento da religiao porque ha intercessores — eu quase disse intelectuais —, mediadores da questio da ‘morte ao nivel individual: aqueles que vém apertar a sua mao quando voed esti morrendo, aqueles que fazem um sinal da cruz sobre 0 condenado, aqueles que dio a absolvicao, ete Agora, para a morte da espéeic, nio ha sacerdotes. A nica militar, ¢ € Gbyio que o militar ¢ um tore nto The interes, Um novo fnquisido so dentro da + guerra L — Sem diivida, parece que com o General Sharon vimos que se escapou do politico, chegando aos extremos. — Com certeza. A guerra no Libano realmente chegou a um extremo que a vincula & Guerra Santa. Pessoalmente, sou totalmente contra Guerras Santas, até mesmo contra a ideologia de uma guerra “justa”, porque se Israel ¢ 0 Isla favorecessem a Guerra Santa, estariam saltando fora da guerra politica. Ambés podem’ aceitar a descarga completa porque sao religiosos. So religiosos de um modo triunfalista: para ir além do politico, usam 0 fato de nfo acredilarem na morte, o fato de estarem cientes de que a vida nfo tem fim. E, como cristo, eu fago 0 oposto; eu digo nio, 6 a abominacdo da desolagao, Ao contrario, temos de voltar para tras. Em ‘ome de uma crenga de que a morte nao existe, de que ha um além-vida, precisamos nao s6 proibir as Guerras Santas — aguerras de descarga completa — como também refutar a jus- leza, a justica da guerra. A teologia da “guerra justa” deve ser abolida pelo Papa num tempo em que a Guerra Santa esta cemergindo outra vez.no Libano, quando ela se espalha entre 0 GUERRA PURA 58 Ind e 0 Iraque. Porque a Guerra Santa, tendo em vista a tecnologia existente, a descarga completa. L — Isso nao é s6 0 fim da politica, é também o fim de qualquer ética. V — Antes do poder muclear, a “guerra justa” tinha sig nificado. Tinha significado em politica. Por sua vez, a guerra tecuologica é a descarga completa. 1 € 0 além. Bstamos nele assim que aceitamos a idéia de uma guerra santa ou justa com © poder nuclear. J4 estamos no apocalipse, que € o aniqui- lamento, O apocalipse nao & mais 4 revelacdo da imortatidade da alma, mas sim o exterminio de todos os eorpos, de todas as especies, de {oda a natureza, de tudo! Hoje, a Guerra Santa esté no horizonte de nossa Historia L — Nossa Historia comegou no Oriente Médio e corre 0 perigo de terminar lé. Fanatismo religioso e absolutismo tec- noldgico sdo uma mistura explosiva. V — Em meu entender, a politica de um Begin ou um Khomeini — ¢ ha outros ~ € uma abertura para a guerra nuclear. E assim que uma guerra nuclear poderia acontecer Eu até diria: é assim que alguém que ndo acredita na guerra nuclear poderia, acidentalmente ou nao, desencadear a guerra nuclear, Para mim ¢ pura Santa ¢ 0 técnico da guerra nuclear. L — Guerra Pura ¢ Guerra Santa sio a mesma coisa para vocé. V — AGuerra Santa islamitica foi o equivalente da Guer- ra Pura na mente das pessoas. Foi uma fé total que dispos mithares de homens a irem ao encontro da morte convencidos de sua imortalidade. Nao posso julgar a Guerra Santa das Cruzadas. Mas agora, nem a “guerra justa” existe. L ~ Woot pensa que ainda podemos usar a maquina de erra contra a maquina do Estado? E_possivel combater 0. Estado com a guerra (especialmente com as titicas de gue. rilha urbana)? 6 PAUL VIRILIO / SYLVERE LOTRINGER V — De jeito nenhum penso que seja assim. Os Estados nacionais j4 tm meios demais em seu poder. Os Estados nacionais sio niicleos de Estados em sua forma pura, frag- mentos conglomerados de Estado puro. Nao se pode violéncia contra o que j é violéncia, s6 se pode refor Tevi-la a exiremos — em outras palavras, a0 maximo poder do Estado. Basta ver a Itélia, por exemplo. Hoje, 0 jinico recurso anio-violéncia. Dissuasao e liberdade de movimento Creseimento Zero * Dissuaso e Poder Dromolégico * Generalizando a Dissuasio * Monarquia Nuclear * Inér- cia Polar * Uma Sociedade em Trinsito * A Capital do Fim do Tempo L — Nao enveredamos pela ndo-violéncia. Ao contrario, violéncia, 4 ameaga nuclear, que confiamos a tarefa de garantir a paz V — A crenga na salvagdo — na paz — por intermédio da arma final é uma idoiatria, € obscurantismo, nio hé di vida a respeito. Fla funciona como um culto cientifico-militar, que ninguém sonha desafiar. Isto trouxe de volta A tona a Guerra Santa. Diante da “Guerra Pura” das armas, desse ideal de uma arma final capaz de garantir a sobrevivéncia da espécie, etc., foi revivido um debate esquecido: 0 da Guerra Santa, que é a contrapartida da Guerra Pura. L — Masessa crenga na salvagao através da arma final & ‘o.que chamiamos dissuasao. V —.A fénuclear significa acreditar na dissuasdo. Signi- fica acreditar que o fato da arma nao explodir é uma boa coisa. O que acabei de dizer é exatamente o posto. O sé 6 PAUL VIRILIO / SYLYERE LOTRINGER perigo da arma no é que ela poderia explodir amanha, que poderia haver cineo mithdes de mortos, mas que ha trinta anos cla vem destruindo a sociedade (e causando endocolo- nizagao) L—O desenvolvimento de uma economia de guerra acarreta 0 desaparecimento da sociedade civil? V — Edbvio que a descarga completa da guerra polit €0 investimento integral da economia politica em economia de guerra, O desenvolvimento da tecnologia é Guerra Pura, Asnecessidades logfsticas, o confronto dos blocos resulta mart conflito a nivel tecnol6gico. As armas a couraca precisam ser contstantemente fortalecidas. Assim, 0 desenvolvimento tecno- légico conduz. a um esgotamento econdmico. A maquina de guerra tende ao néio-desenvolvimento da sociedade. Podemos dizer que as necessidades ecol6gicas do “erescimento zer0" cotrem paralelamente as necessidades “ecologisticas” do cres- imento zero! De um lado, trata-se de nao esgotar recursos; de outro, de nao desenvolver a socicdade eivil, porque esta es- torva 0 desenvolvimento da sociedade militar, os meios de desencadear a guerra. A erenga atual € que vai haver um conflito entre as sociedades industriais © os paises subdesen- volvidos, um conflito Norte-Sul. Mas o problema nfo é 0 sub- desenvolvimento. Os paisés subdesénvolvidos nfo estio se {| Tdesenvolvendo: todos esiamos nos fornando subdesenvolvides. L — A dissuasdo ainda ¢ uma forma de persuasio, Ape- Jamos para a razao para justificar o injustificavel. Mas, atrés dessa cortina, temos a impressio de que esta sendo implan- tado, em escala planetiria, algo como uma solucdo final, V_— Adissuasiog a fase emotiva do poder dromocritico, Ha varios aspectos do poder, que podemos intitular: 0 poder: mover (ou poder de promover), 0 poder-saber, ¢ finalmente o poder-comover (poder de mover emocionalmente). O poder- saber foi desenvolvido pelos “histotedricos” — repito: histo. te6ricas.. L — Como Michel Foucault, GUERRA PURA ® V — Como Miche! Foucauit. Pois para haver saber, & preciso haver p-omogio, ja que saber é indagagio. Eo resul: tado de uma penetragio no territérie, O poder-saber dos :monges existe porque houve conquistas, porque houve promo- ‘¢Xo — pondo exércitos em movimento, pondo as Cruzadas em movimento, pondo populagdes em movimento para ir reunir 0 eco de civilizagtes, etc. L —O poder dromocritico, que voc chama de pro- mociio, precede necessariamente o poder-saber? V — Antes do poder-saber, sempre hi o poder-mover, ‘ou promogto, sendo © poder-comover a diltima fase. Ora, a promocao nuclear — velocidade balistica dos misseis, raios laser — correszoude uma ideologia, que é a fé nuclear na dissuasio. L — Nao é que estejamos no fim da ideologia, mas sim no advento da ideologia em sua forma dissuasiva V — A dissuasto é a titima ideotogia, L— Mas a propria valor logistico? sto no est perdendo o seu V — Entramos na segunda fase da dissuasdo. A dissua- so em todas as diregSes 6 sucedida pela dissuasio em todas as armas, em todcs os niveis de armamento, A dissuasio relativa dos meios da estratégia nuclear torna-se uma dissuasao geral, generalizada, A generalizacio da dissuasio ¢ a nova questio com que nos defrontamos no final deste século. O debate atual a respeito do desenvolvimento de armamentos conven cionais, do erescimento exponencial dos orgamentos militares nos Estados Unidos, na Franga ou na Unido Soviétiea no é interessante apenas no primeiro nivel, que conduziu a socie- dade ao nao-desenvolvimento. No nivel ideolégico, isso trans- mite, acima de tudo, a idéia de que a dissuastio deve ser gene- ralizada. Penso que ninguém tem realmente considerado 0 que poderia significar “dissuasio generalizada”. Além disso, no posso responder cabalmente, sendo para dizer que é su @ PAUL VIRILIO / SYLVERE LOTRINGER cfdio. Suiefdio cultural. Com certeza. Um obscurantismo esti penetrando todos os niveis da sociedade. L — Talvez seja 0 prelédio do desaparecimento de nossa civilizagio, assim como outras civilizagSes desapareceram ro- pentinamente sem explicagdo. A dissuasio € a éltima barreira ideolégica contra uma espécie de destruigao global. V — Isso seria ainda acreditar na Hist6ria, Acreditar na idéia de que existe um depois, de que haverd uma extensao no futuro assim como houve uma no passado. Eu, pessoalmente, acredito que a existéncia de armas nucleares 6 dissuasiva na ‘medida em que todos nds poderfamos desaparecer. Um bilo de baixas na Tact da Tetra who seria despredivel, mas eles teriam morrido em vao, pois a arma nuclear ainda existiria, estaria af, Existe até nas receitas de estudantes que pratica mente sio capazes de fabricar uma bomba nuclear em suas \,_ préprias cozinhas; voeé s6 precisa de um pouco de pluténio. E {a propria existéncia da arma que constitui o drama, O que \ [fazer para que a arma final morra? Poderiamos dizer 0 mesmo ‘acerca do que aconteceu em 1789. O que fazer para matar o monarca depois de uma revolugo que matou a monarquia? O -monarea morto yolta como Imperador. Portanto, essa revolu- 10 menos-que-burguesa foi de fato militar-burguesa, Ela Produziu o Império. O complexo industrial-militar também ocorreu da mesma maneira, Hoje a questiio deveria ser: como _yocé mata a monarquia nucfear, a arma “por direito divino™ ‘presente no centro de nossa sociedade, de nossas si Essa é que € a questo, L — Entao, como nos livrarmos deli V — Minha dnica resposta ¢ que a questo da velocidade é central, Além disso, ndo sou o primeito a dizé-lo. O General Puller, um dos grandes historiadores de assuntos militares, ‘um inglés, disse que, na era nuclear, a velocidade € a coisa essencial. Declaragao interessante, pois, antes de mais nada, ela nfo é clara. O problema nfo é 0 poder destrutiva da nova arma — a arma de Hiroshima — e sim sua velocidade. E devemos reconhecer que na era da dissuasto algo nao foi dissuadido. Se as economias eivis foram dissuadidas a ponto GUERRA PURA a de tenderem para 0 nio-desenvalvimento, no entanto algo continuou sendo desenvolvido — é a velocidade. E a veloci- dade desses vetores que em 1961 conduziv ao telefone ver- metho Kruschev e Kennedy, e que hoje conduz A quase instan- faneidade de tomada de decisto. L — Em outras palayrasi a dissuasdo ainda é uma eate~ goria humanista porque implica cm tempo para reflexao, V — Correto; no temos maie tempo para a rofl O poder da velocidade € “isso”. A dromocracia € isso. A imioeracia j& maos dos homens: esté nas mos ‘cas de resposta, etc, Hoje ainda | “Tempo de reacao. Ele era de aproximadamente meia hora, em 1961. Para An dropov ¢ Reagan, 0 prazo de respesta nao passava de alguns minutos. Jo. L — Alguns minutos é tudo o que resta do homem. V — Sio tudo o que resta do poder do homem. Eviden: temente tudo depende de onde vocé dispara. A arma-satélite pode ser disparada do espaco e, assim, sobre 0s Estados Uni- dos. Ela chega imediatamente ao local. Os submarinos nu- cleares sio muito mais alarmantes; basta estarem proximos das Aguas territoriais americanas ou européias. Calcularam © prazo — é de aproximadamente quinze minutos para os misseis intercontinentais, e de dois a cinco minutos para os submarinos mais eficientes ou objetos espaciais nao identifi- cados. Excetuando-se isso, infelizmente, nos iiltimos dez anos 80% da pesquisa militar na Unido Soviétiea e nos Estados Unidos — tanto quanto na Franga (embora menos que 80%) = tem sido devotada s armas laser. Ora, um raio laser move-se na velocidade da luz, em milissegundos. Isto nao & absolutamente nada. Praticamente, isto significa a aquisi¢ao da instantaneidade. O que significa que ao final do século a arma final ter adquirido velocidade absoluta, L — Destruigaio absoluta corresponderé a velocidade absoluta, A essa altura, nao havera lugar para o homem, { @ PAUL VIRILIO / SYLVERE LOTRINGER V — Nao haverd mais homem, s6 armas, A questo real da monarquia, da monarquia nuclear, esti “af L — Que estratégias podemos adotar para combater este crescimento exponencial do poder destrutive? V — Tem-se feito uma pesquisa incrivel sobre a Eeono- mia: sobre a questio da produgto, da riqueza em sentido genérico (com Adam Smith, Marx, ete,). Mas estamos la atrés ‘quando se trata da economia da velocidade, Tal trabalho pre- cisa ser feito agora. Hofe, o objetivo 6 tentar obter uma com- preensio da yelocidade. Compreender o que tem acontecido nesses vinte e cinco anos, L ~ Iss0 redundaria em subtrair o conhecimento da ve- locidade das maos dos militares, em favor Ga sociedade chil V — Correto. Tentar “compreender” — no sentido de incluir — o feito da velocidade no tempo das sociedades, e no espago-tempo das sociedades. Veja a crise urbana nos Estados Unidos © na Europa. Com a crise dos centros urbanos, os verbes quentes ja nflo sto mais simplesmente os verdes quentes da década de 60 nos Estados Unidos; acrise urbana é também a crise de centros industriais como Liverpool, os subarbios londrinos, Brighton, o caso de Lyon na Franga, ete. No ano passaco também houve rebelies semelhantes na Inglaterra e ‘tudo parece indicar que a Franca tera a sua quota nos pré- ximos anos. Entio, o que isto significa? Houve varias socio ¢ ctno-analises deste fendmeno (0 gueto, etc.). Eu pessoalmente _xejo de uma maneira diferente: estamos em pleno processo de “desurbanizagao, L —A corrida teenologica levou a cidade a desaparecer. V — A cidade era o meio de se mapear um espago poli- tico que existiu numa dada duragio politica. Agora a veloci- dade — ubiqiiidade, instantaneidade — dissolve a cidade, ou melhor, a destoca. E eu diria que a desloca no tempo. En- tramos num outro tipo de capital que corresponde a um outro GUERRA PURA 6 tipo de populagao. J4 nio habitamos mais o estacionamento (cidades como grandes areas de estacionamento para popula- ‘gdes), habitamos o “tempo” gasto mudando de lugar, o tempo da viagem. O que estamos observando a nivel do’ plancia- ‘mento urbano ja foi observado a nivel de bairros especiticos, de individuos, até mesmo o fato de estarmos & mercé dos telefonemas. H4 uma espécie de destruigdo causada pela ime- diagao saturante, que esta vinculada a velocidade. Portanto, eparece:me que 9 perigo do poder nuclear deveria ser visto menos na perspec! sstruigao de populagies do que na dda destruigio da temporalidade soci 1, — Fssa destruigao me fala mais de perto porque voltei recentemente do Nepal onde, por falta de estradas, s6 se pode sair a pé. Provavelmente 0 dltimo pais em que as distancias sto calculadas em dias de marcha, o que alias € muito elés- tico. Entretanto, leva s6 algumas horas para se chegar ao Nepal de avitio. V — Geralmente distinguimos trés tipos de distancia, A distancia-espago & o dia de marcha ou, para simplificar, 0 quilémetro; depois, a distncia-tempo, © quilémetro/hora; finalmenie, a distincia-velocidade, que é 0 mach.* O movi- mento no mais indexado de acordo com a métrica mas com a velocidade do som. Hé trinta anos, por exemplo, levava-se vvinte e quatro horas para se ir de Paris a Nova lorque. Agora leva-se trés horas e meia. No final do século, com o jato de hidrogénio, levar-se-4 apenas meia hora, Mas, ao mesmo tempo, ainda se leva trés horas e meia para se ir de Paris 3 ilha de Corsega. Portanto, ha uma desregulagem da distancia que cria distancias-tempo para substituir distancias-espago. A ‘geografia & substituida pela cronografia. O meiro-mach do Concorde substituiu © quildmetro, Nisso hd algo de muito importante. L ~ Comecamos a habitaro tempo. (7) Mach: relapse de ums velocdade & velocidade do som, Voor 2 ‘Mach 2, a Mach 3:8 duas, tds vezes @ velocdade do som. (N. do. T-) “4 PAUL VIRILIO / SYLVERE LOTRINGER V — Durante muito tempo a cidade existiu apenas onde estava. Paris estava em Paris © Roma em Roma, Havia uma inéreia territorial e geogrdfiea. Agora ha uma inércia no tem- po, uma inéreia “polar”, no sentido de que o pélo é simul taneamente um lugar absoluto (para a metéfora), inércia absoluta que € geograficamente localizavel, e também uma inéreia absoluta no movimento do planeta. Estamos nos enca Hhando para uma situagdo em que cada cidade estard no _mesmo {éncia, e provavelmente no muito pacifica, entre essas cida- des que mantiveram a sua distfncia no espago, mas que terao trombado no tempo. O que restaré da cidade quando puder- ‘mos ir de um extremo a outro num segundo ou num minuto? O que restara de nés? A diferenca da sedentariedade n espaco geografico continuard, mas a vida real tera sido condu ida a uma inéreia polar. L — O homem nao precisara mais mover-se porque nio se sentiré em casa em lugar nenhum, V — A proximidade do mundo serd tal que a “automo- bilidade” no seré mais necessdria. Isso 4 est acontecendo através da velocidade dos audiovisuais, com teleconferéncias e debates televisionados. Quando a mobilidade fisica igualar as, performances da mobilidade eletrénica, estaremos diante de uma inaudita situagio de permutabilidade de lugares. Com efeito, este € o projeto atual. Esta situagio era impensivel algumas geragdes passadas; os fil6sofos contaram-nos que a instantaneidade, a ubiqiidade eram impensdveis em sua propria esséncia. Eu mesmo nego esse carater impensivel, precisamente porque nio sou filésofo. Eu me coloco ao nivel da tecnologia. Tecnologia & 0 que permite essa ubiqitidade, ‘agora podemos comegar a pensar nisso. Proximidade, inter- face tinica entre todos os corpos, todos os lugares, todos os Pontos do mundo — essa é a tendéncia. E eu levo essa ten- déneia aos extremos, Nao se trata de ficgdo cientifiea. A cigncia © a tecnologia desenvolvem o desconhecido, no 0 conhecimento. A ciéncia desenvolve 0 que nao é racional. No limite, isso é que é a ficgto. mar — no tempo. Haverd uma espécie de cocxis- eee GUERRA PURA s Mas essa ficgao desenvolvida pela cigucia & bené=_ A ubiqhidade da tecnologia abre novos espagos de liber- para .o homem ou, em vez disso, reduz drasticamente sua margem de movimento? V — Sempre se diz. que « liberdade primordial € a liber- dade de movimento. F verdade, mas nao a liberdade da velo- cidacie. Quando vooé vai depressa demais, voce ¢ inteiramente despojado de si mesmo, torna-se totalmente alienadg, E possi- vel uma ditadura do movimento, L — A tecnologia, entao, ndo ¢ mais progresso mas sim alienagaie? V — Desde 0 sécuio XVIII — desde a Era das Luzes, para usar a terminologia conhecida — acreditamos que a Tecnologia ¢ a razio andavam de maos dadas em diresiio a0 progress0; a0 “futuro glorioso, como eles dizem. Era ponto Pacifico que achariamos a solugio — para a doenga, a po- breza, a desigualdade. Tudo bem, achamos; mas ela era a solugdo final, nio a melhor. Era a solugio do mundo aca. bando na guerra nuclear, na Guerra Total, no exterminio e no genocidio, Assim, minha intergdo é dizer: chega de ilusBes a respeito da tecnologia, Nao controlamos o que produzimos.— Saber como fazer.nio significa que saibamos o que estamos fazendo. Vamos tentar ser um pouco mais modestos, ¢ vamos tentar entender 0 enigma do que produzimos. As invengdes, as eriagdes dos cientistas sao enigmas que expandem o campo do desconhecido, que, por assim dizer, ampliam 0 desconhe- cido. E aqui temos uma inversio. Fssa inversao nao € pessi mista per se, € uma inversio de prinefpios. Ja nao partimos de uma idéia positivista ou negativista, partimos de uma idéia relativistica. O problema €0 seguinte: a tecnologia é um enig- L — Qual éo enigma da cidade para um téenico em pla- nejamento urbano? Voc€ diz. que no futuro as cidades desa- Pareceriio no vetor da velocidade, Mas, afinal, a prépria cidade geogrfica ndo deve suaexisténcia velocidade? « PAUL VIRILIO / SYLVERE LOTRINGER V — Acidade sempre foi uma caixa de velocidades, uma espécie de caixa de cimbio. A organizaciio das cidades so as ruas. O que sio ruas? Correrias. Na Grécia eles no dizem uma rua, dizem “uma corrida” (dromas). Enquanto as possi bilidades de aceleracdo eram despreziveis e a cidade definida muito mais por murallias que por auto-estradas, acreditaya-se que as cidades nao organizavam a yelocidade. Apesar disso, quando se examina o planejamento urbano grego (a cidade de Mileto, por exemplo), 0 planejamento cofonial ou © dos acam- pamentos romanos, vé-se bem que as estradas sao retilineas. de uma organizacio da velocidade para drenar as populagdes 0 mais rapide possivel para as portas da cidade, para os arredores, Uma cidade no é simplesmente um lugar aciria de » faz a propria essncia da cidade ressurgir, sendo que esia esséneia converte o espago social numa embreagem temporal. V — E por isto que hoje 0 aeroporio tornou-se a nova cidade, Em Dalias-Fort Worth servem trinta milhdes de pas- ros por ano. No final do século serio cem milhoes. As pessoas n&6 sto mais cidadaos, sio passageiros em trinsito. Elas esto em circunavegagao. Quando sabemos que dia- riamente ha mais de cem mil pessoas no ar, podemos consi derar isto uma prefiguragao da sociedade do futuro: 240 mais a sociedade de sedentarismo ¢ sim uma sociedade de pas- (sigem; nao mais uma sociedade nomade, no sentido das 4 prandes derivas nomédicas, ¢ sim uma sociedade concentrada } no vetor de transporte. A nova capital nao é mais uma capital ‘como Nova Torque, Paris ou Moscou, uma cidade localizada num lugar especifico, na interseceao de estradas, mas uma cidade na interseegio das viabilidades do tempo; em outras javras: da velocidade. Talvez esta seja a Cidade Eterna agora. Nao a capital de uma regiao, império ou erenca, Roma ‘ou Jerusalém, mas a Capital do Fim do Tempo, L — Se 0 aeroporto tornou-se a nova cidade e seus cida- «dios passageiros em transito, sobra alguma evisa da cidade no espago? Isso nao continua em algum lugar, sob formas de (GUERRA PURA sr sedentarismo que sio to violentas e extremas quanto a sua aboligdo polar? V — Na medida em que a inéreia da cidade do futuro do é a inércia da imobilidade, mas a ditadura do movimento, € possivel que ocorram catastrofes que serdo suficientemente sérias para dirigir as pessoas de volta aos seus habitats de origem. Isso € o que parece estar acontecendo na América do Sul e em muitas outras regides onde, ao lado de aeroportos Fabulosos, voce vé desenvolverem-se favelas que slo infra- urbanismos. Provam, ao contrario, que 0 movimento absoluto esta desmoronando, ndo s6 por causa da crise energética mas também por causa de nossa inabilidade em construir uma verdadeira politica vetorial — algo como uma velocidade de- mocratica, L — Aos cidadaos em trinsito do além correspondem os squatters dos centros das cidades, No “‘coragiio” da cidade futura e no s6 em seus arredores, a pane do movimento na inércia polar sugere a existéncia de novos modos de confina. mento? V_— Quando um homem de negécios viaja de Paris para Nova Torque, Nova lorque-Paris, Paris-Nova lorque, Nova Iorque-Paris no Concorde, ele comeca a experienciar a situa ‘lo de inéreia polar. Essa nova forma de sedentariedade é, em {ecnologia, a tendéncia ativa. Sedentariedade no instante da velocidade absoluta. Nao é mais uma sedentariedade do nio- movimento, & 0 oposto disso. 1, — Rasedentariedade do transporte V — Cotreto. Os sedentarios do transporte sio_mera- mente vigjantes que compram uma passagem de avido em Roissy-en-France ou Orly — para Roissy ou Orly. Eles do a volta ao mundo o mais répido possivel sem ir a lugar algun mal fazendo a parada necesséria para reabastecer, e nada mais. Uma viagem vazia, uma viagem sem destino, uma viagem circular, que testa a imediagdo. Nos tltimos anos vi- mos 0 surgimento de muitos aficcionados desse tipo de via- Co PAUL VIRILIO / SYLVERE LOTRINGER gem. Qual o prazer de tomar o Concorde se € apenas para yoltar ap ponio de partida no mesmo instante, ou nas poucas horas seauintes? Ha um mistério nisso, um mistério do desto- -camento.que me fascina, Penso que é uma forma de desejo de inércia, desejo de ubiqhidade, de instantaneidade — uma forma de redurir o mundo a’um

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