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GEORGE ORWELL E A LUTA PELA INDIVIDUALIDADE

31 JANEIRO, 2017

No ensaio “Matar um elefante”, George Orwell narra um episódio do


seu tempo como funcionário do Império Britânico na Birmânia, onde
permaneceu cerca de cinco anos — período em grande parte tedioso,
desempenhando funções sem relevância.
A ironia que abre o texto — ser importante a ponto de ser odiado —
desdobra-se no repúdio silencioso à presença dos europeus, na oposição
nem sempre surda, nas pequenas mas persistentes hostilidades que,
devagar, atingem o jovem e imaturo oficial. Sob constante pressão, o
autor se coloca, desde o início, como alguém perturbado, vivendo num
desagradável clima de resistência política — e não surpreende, portanto,
que a ironia tenha um sabor de auto-humilhação, de autodesprezo.

George Orwell

Tais sutilezas, reveladoras do seu estado emocional, aprofundam-se


no segundo parágrafo — e o leitor descobre que esse oficial de polícia não
tem fidelidade cega ao governo que representa: “Àquela altura”, ele diz,
“eu me havia convencido de que o imperialismo era uma coisa má”. Nesse
longo segundo parágrafo não há mais espaço para ironias: o autor
manifesta o fracionamento de sua personalidade, obrigado a
desempenhar uma função na qual não acredita, servindo a um governo
cuja política despreza e vivendo numa sociedade que o repele, o que só

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amplia sua ira por aquelas pessoas, aparentemente imbuídas de uma só
vontade: dificultar seu trabalho. O texto, mescla de ensaio e memória, não
deixa dúvida a respeito desses antagonismos.
A essa descrição, Orwell acrescenta, no fim do segundo parágrafo,
novo elemento: um elefante encolerizado. Enquanto se dirige à região
destruída pelo animal, ouve o depoimento dos nativos — e a própria
sucessão de informações constrói seu deslocamento pela cidade: cada
notícia serve como um passo a mais na direção do que, imaginamos, será
o núcleo do ensaio.
Quando chega ao local, bastam dois períodos para que Orwell coloque
o cenário diante do leitor: “Era um quarteirão miserável, verdadeiro
labirinto de fragilíssimas cabanas de bambu cobertas com folhas de
palmeira, coleando ao longo de uma colina escarpada. Recordo-me que foi
numa dessas manhãs abafadas, com o céu coberto de nuvens, já na
entrada da estação chuvosa”. Nossa imaginação não necessita de mais
nada para penetrar no bairro pobre e se perder na serpente de
choupanas, sentindo o mormaço opressor.
A esse cenário pouco agradável, Orwell acrescenta nova camada de
significados — a crescente profusão de informações recebidas ao longo do
caminho amplia e reforça as dúvidas, a insatisfação e a angústia do jovem
oficial: “Isso é regra geral no Oriente; um relato qualquer nos soa claro e
preciso à distância, mas quanto mais vamos nos aproximando do local dos
acontecimentos, tanto mais vago ele se torna”.
Descobrir o cadáver esmagado é um choque de realidade: “A cara
coberta de lama, os olhos arregalados, os dentes à mostra e apertados
numa expressão de insuportável agonia”. A seguir, quando encontra o
elefante, a indiferença do animal e a turba curiosa são descritas com
perfeição. Mas o importante é perceber que a divisão interior de Orwell
ganha mais uma camada: ele tem agora o rifle adequado, carrega-o com
os cartuchos, presenciou a destruição causada pela fúria do animal, sabe
que está obrigado a cumprir seu papel, a população anseia pelo
espetáculo — mas sente-se como um tolo, sem nenhuma intenção de
matar o elefante.

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Somos, ao mesmo tempo, o elefante abatido e o narrador que olha no
fundo da “goela rosa-claro” do animal.

Os pensamentos do autor, a forma como mede as consequências,


inclusive econômicas, da possível morte do elefante, surgem de forma
natural — mas sua personalidade inteira submerge sob a pressão da
massa que aguarda o espetáculo, “mar de faces amarelas a encimar
aquela imensidade de roupas espalhafatosas”. Brota, dessa submersão, a
derrota da vontade individual sob a vontade coletiva; o “homem branco” é
esmagado pela multidão, pelos “dois mil desejos iguais” que o obrigam a
fazer o que não deseja.
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A IRONIA FINAL
De repente, o oficial se despersonaliza. Às divisões que experimenta
desde o início do ensaio — entre sua vontade e a do Estado a que serve,
entre sua consciência e a confusão dos relatos dos nativos — acrescenta-
se uma terceira camada de perturbação: ele é, agora, apenas um “boneco
oco”. Da submissão ao Estado à submissão à massa, onde está sua
verdadeira personalidade? De servidor anônimo do Estado imperialista a
servidor autômato da horda — nisto se resume o homem que perdeu sua
individualidade.
A morte do elefante é uma aula de descrição. A lenta agonia nos
aflige. Podemos lambuzar nossos dedos no “sangue grosso” que jorra das
entranhas enormes, semelhante a um “veludo vermelho”; ouvimos os
“arquejos angustiados” repetindo-se por minutos infinitos. Assim é o texto
perfeito: ele não constrói uma cena, mas contamina o leitor, cria emoções.
Somos e não somos nós enquanto lemos — pois nos transformamos no
atirador, na multidão, no próprio animal. Somos, ao mesmo tempo, o
elefante abatido e o narrador que olha no fundo da “goela rosa-claro” do
animal.
Mas George Orwell não abandona o leitor na cena desoladora. Leva-
nos de volta ao centro da sua personalidade, não eliminada
completamente pelo Estado, pelas resistências anônimas, pela massa: suas
dúvidas não resolvidas persistem. É um alento, portanto, que, no final,
reste uma pergunta, imponha-se a dúvida que não deixa de ser irônica — a
dúvida que é o alento da individualidade.

[A tradução do ensaio é de Ivo Barroso, decano dos tradutores brasileiros.]

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