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© ENSINO DA LINGUA PORTUGUESA PELA TELEVISAO: UMA AVENTURA PEDAGOGICA Izidoro Blikstein 1. A televisdo escapa as garras da pedagogia 1, 1. O objetivo deste artigo é expor uma verdadeira “aventura” pedagé- gica: o emprego da televisdo como um medium eficaz no ensino da lingua mater- na. Serdo apresentados os aspectos tedricos e préticos mais pertinentes de minha experiéncia como organizador, autor ¢ apresentador das aulas de portugués, no quadro do programa do “Telecurso intensivo de nfvel médio”, criado, em 1969, pela TV Cultura, Canal 2, da Fundagiio Padre Anchieta de Sao Paulo! . 1.2. Com a duragdo de um ano escolar, o Telecurso intensivo de nivel médio constitui, praticamente, um “‘mini-curso” de 1.° grau (ou curso de “‘madu- teza”) destinado, em princ{pio, a pessoas, com idade m{nima de 18 anos, que, ten- do interrompido os estudos secundérios, sobretudo por causas de ordem econé- mica ¢ s6cio-cultural, nfo possuem diploma de 1.9 grau, Para superar os evidentes prejuizos sociais ¢ profissionais decortentes dessa situacdo, os alunos tém o direi- to de candidatar-se aos exames de “madureza’’ organizados anualmente pelo Esta- do, podendo obter assim o almejado diploma de 19 grav. O telecurso’ da TV * © telecurso de portugués foi elaborado em colaboraglo com o Prof. Dino Preti, da Facul- dade de Filosofia, Letras ¢ Ciéncias Humanas da USP. 46 . IZIDORO BLIKSTEIN Cultura visou, fundamentalmente, 4 preparagdo desses candidatos aos exames de “madureza”. , 1.3. Situado nesse contexto do ensino no Brasil e dirigido a tais destina- tarios,o curso de portugués pela TV patenteou de pronto problemas fundamen- tais concementes 4 lingiiistica teGrica e aplicada, & sociolingiifstica, a teoria da comunicagéo e, Sobretudo, 4 semiologia da imagem produzida pelos mass-media. © exame dos problemas lingiiisticos, semiolégicos e pedagdgicos, as solugdes propostas e os resultados obtidos ilustrarfo como, segundo M. Tardy”, “‘a tele- visio escapa as garras da pedagogia” ... pelo menos da pedagogia tradicional, eu acrescentaria. 2. Mudanga de universo 2A passagem de um ensino verbal e linear, que se desenrola entre as quatro paredes de uma sala de aula, ao ensino icénico pela TV representa uma mudanga radical de universo. Para observar como a emigracZo para os mass-media audiovisuais acaba por abalar os alicerces da educagdo tradicional, basta situarmos e compararmos esses dois universos a partir do esquema da comunicagio: DaSTRATARIO VEICULO 2.2, Na escola, o professor é 0 remetente de uma mensagem — a aula ou ligdo — dirigida aos alunos, ou melhor, destinatdrios obrigatorios que, conforme as regras do jogo “pedagégico”, devem receber e entender a aula. Na realidade, di- tia mesmo que ndo se trata nem sequer de entender e muito menos de gostar da ligo: como em La Legon, de Ionesco, o aluno deve ser o receptor teloso discurso, sem interrupgdo, ainda que esteja com . . . “dor-de-dente ! O verculo de comunicagio é 0 préprio professor, com alguns acess6rios: © livro, o quadro.negro e . . . as vezes (felizmente para os alunos) recursos audio- visuais. Mas hd também todo um aparelho semiolégico que garante o funcionamen- to de uma aula, esse “porta de seguranca” dos professores*: a postura e a im- Postacao da voz, o vestudrio, a gestualiza¢4o ¢ a movimentagdo, a cindsica, enfim, do professor, o mobilidtio, a decoragao, os abjetos, a distribuigdo do espaco (mesa € quadro-negro do professor diante das carteiras dos alunos), o prédio da escola, a administragao, a hierarquia, as normas, os ritos, os programas, a lei, a contabi- 2 TARDY, M. ~ Le professeur et les images — Paris, P.U.F., 1973. 3 Traducdo da expresso “havre de securité”, empregada por Tardy. O ENSINO DA LINGUA PORTUGUESA PELA TELEVISAO: 47 UMA AVENTURA PEDAGOGICA lidade das notas, os exames, os diplomas. . . em suma, todos os signos da educago “bancdria”’, segundo a expressiio de Paulo Freire, F evidente que, nesse universo de coergdes, o cédigo, peca essencial para a gompyeensio da mensagem, também € imposto aos alunos: 0 > discurso didatico e pedagégico utilizado no ensino da lingua matema é construfdolnum registro for- mal, culto, préprio de uma elite ¢ geralmente muito distante do repertério da maic- tia dos alunos. 2.3. O universo da TV é bem diferente: se a tele-aula for enfadonha, se 0 aluno, ou antes, o telespectador, estiver com . . . “dor-de-dente”, bastard mudar de canal, de ambiente ou, simplesmente, desligar a televisfo, Ja nao estamos mais na escola; saimos do contexto estereotipado do “porto de seguranca” da pedagogia tradicional e inserimo-nos no universo dos mass-media: 9 telecurso deve ser tratado como um evento proprio das comunicag6es de massa. O remetente nao é apenas o professor mas toda a equipe de producdo: roteirista, produtor, diretor de TV, cendégrafo, desenhista, sonoplasta, iluminador, apre- sentador, etc. A mensagem nao é apenas uma ligdo verbal e linear mas a emissaio icénica da TV. Antes de ser um aluno, o destinatdrio assume a “postura” semio- Iégica de um telespectador. O cddigo depende dc repertério do destinatdrio. O verculo ou medium é todo o conjunto tecnoldgizo da TV, desde a estagdo de emissdo até o aparelho receptor na casa do destinatdrio. 3. A pedagogia da TV: uma estratégia de marketing 3.1. Um programa de TV, a respeito de qualquer assunto (noticias, novelas, misica, informagées culturais) tem de ser considerado, antes de tudo, como um “produto 4 venda”. Com efeito, a produgao de um ‘programa de TV depende de todo um aparelhamento tecnolégico e de recursos humanos bastante onerosos; para uma tele-aula de 20 minutos, por exemplo, é necessdrio por em funciona- mento a gigantesca “carpintaria” eletrénica da TV: esttdios, cameras, ilumina- ¢40, sonoplastia, video-teipes; depois, entra em ago o numeroso pessoal envol- vido na “carpintaria’’: produtores, técnicos, atores, apresentadores, roteiristas, cendgrafos, assistentes de produgZo, etc. Mas todo esse trabalho resulta natural- mente de um planejamento prévio que deve ser rigorosamente seguido: redagao do texto dos programas, transformagao desse texto num “script” ou roteiro, pre- paragao de materiais audiovisuais, treinamento de atores e apresentadores, e, no caso do telecurso, varias entrevistas com os professores que escreveram 0 texto original das auias, etc. A TV constitui, pois, uma empresa custosa que no se pode dar ao luxo de produzir algo que caia no vazio. O alto custo deve ser compensado: é preciso que a mensagem da TV — seja ela comercial ou educativa — possa ser recebida por um piiblico numeroso. Em suma, é preciso audiéncia. E para que haja audiéncia, a mensagem da TV deve ser “recebivel” ou “consum{vel”, como um verdadei- 1o produto & venda. O piblico torna-se entao o destinatario / consumidor de um produto que é a tele-aula. Assim & que o ensino de portugués sai do domfnio 48 IZIDORO BLIKSTEIN pudico da escola para cair no sorvedouro do marketing: j4 nfo se trata mais de um curso de portugués, apenas, mas de um telecurso que se inscreve num esquema de comunicagio massa, Abandonamos os métodos castos'e “incorruptiveis, da pedagogia tradicional em favor de uma nova estratégia didatica a fim de atin- gir o aluno / destinatdrio / consumidor: a estratégia do marketing. Indtil, pare-. ce-me, anatematizar o marketing: é preciso que o pedagogo se meta um pouco nos negécios “excusos” dos supermercados dos mass-media. Afinal, como estraté- gia de persuastio, o marketing ¢ bem antigo: Deméstenes e Cicero eram os mestres da persuasfo, a Igreja sempre se serviu de um aparelho semiolégico (arquitetura, misica, vitrais, oratéria, etc.) para preparar 0 espirito dos fi¢is para receber 0 seu “produto”, isto é, a mensagem da fé. Talvez Seja oportuno lembrar que a fun- g80 primordial do marketing nfo ser4 propriamente “vender” mas antes persua- dir, preparar o espftito do destinatdério para consumir uma idéia, um hdbito e, por fim, um produto. Tal estratégia parece necessdria na educag¥o do povo em pafses em vias de desenvolvimento: na sua esmagadora maioria, os alunos do te- lecurso slo pessoas humildes, quase analfabetas (ou “neo-analfabetas”), que, com grandes inibiges sociais e culturais, tem dificuldades em recomegar os seus estudos. Nessas condigdes, o telecurso deverd ser, sobretudo, uma experiéncia de'aprendizagem agraddvel e cheia de motivagao. -3.2. No marketing dos mass-media, o primeiro passo é Precisar, com a maior nitidez possfvel, o perfil do repertério do destinatério que se pretende atingir; trata-se de uma regra elementar: para sabermos se a mensagem foi recebida e se a comunicagao foi eficaz, devemos nos perguntar inicialmente a quem dirigimos a mensagem, quem € destinatério. Enfim, ¢ preciso, antes de tudo, esbogar o perfil do ptiblico-mmeta. No caso do Curso intensivo de nivel médio, algumas _pes- quisas parciais* forneceram dados que nos permitiram compor um perfil razoa- velmente fiel do piiblico-meta a quem se dirigia-o curso de portugués; levamos em consideraggo particularmente os seguintes itens: a) idade, sexo, regio de origem; b) situagao econdmica; ¢) nivel sécio-cultural; 4) nfvel de instrugio; e) conhecimento do registro lingiifstico culto e formal; f) registro lingitistico mais usual; 8) objetivos ¢ interesses profissionais; h) necessidades de comunicagiio e de expresso. Como jé foi assinalado anteriormente, o piiblico-meta era constitufdo de pes- soas de nfvel econémico e sécio-cultural bem humilde (operarios, comercidrios, funciondrios, enipregadas domésticas, etc.) com aspiragGes sociais e profissio- nais modestas. * Citatia particularmente uma pesquisa junto a alunos de Sd Paulo, Sio José dos Campos, Andradina ¢ algumas cidades do Nordeste; a pesquisa foi realizada pela Fundagdo Padre An- chieta, em colaboraggo com a Editora Abril S.A. e com o Instituto de Pesquisas Espaciais. O ENSINO DA LINGUA PORTUGUESA PELA TELEVISAO: 49 UMA AVENTURA PEDAGOGICA™ 3.3. Considerando-se que a mensagem da TV-se constréi sempre em fun- ¢a0 do repertério do piiblico-meta, acabamos por conceber um programa de ensi- no cujos objetivos, contetido e estrutura, ficaram bem diferentes daqueles do ensino oficial; com efeito, o programa oficial de portugués (ou comunicago e expresso), considerado na tica dos mass-media, causa’ certa perplexidade: percebe-se que a lingua matema ensinada na escola nfo tem muito a ver com © plblico-meta do telecurso; o portugués “oficial”, rigorosamente controlado pelas regras e pela metalinguagem da gramatica cldssica, constitui o registro de uma elite econémica e cultural. Somos levados entdo a propor uma questo que toca aos préprios objetivos|da educag4o lingiifstica: que portugués devemos ensi- nar? A mesma perfunta foi feita por R. Handscombe, de Toronto, Canada, a0 discutir problemas do ensino do inglés como I{ngua materna:|What English?*”. Com tais perspectivas oferecidas pelo marketing das comunicagdés de massa, propusemo-nos a elaborar 0 programa do telecurso de portugués, levando em con- ta os seguintes objetivos: a) desencadear nos alunos uma consciéncia critica do mecanismo da comu- nicagdo lingiifstica, conduzindo-os 4 percep¢do dos varios registros lingitisticos assim como dos elementos supra-segmentais e cinésicos utilizados como recur- sos de comunicagio e de expresso (entoacdo, gestos, postura corporal, movi- mentagdo, etc.); b) situar a nogdo de erro no desempenho lingiiistico: o erro deve ser identifi- cado mais propriamente com a nogdo de rufdo de comunicagao e menos com a nogao de falta, segundo as regras da gramdtica formal; c) evitar a metalinguagem nociva para a descodificagdo da tele-aula; d) situar os fatos ou eventos de comunicagdo lingiifstica a partir da per- cepgao cultural prépria do repertério do piblico-meta; ) propiciar a reflexdo sobre as inibigdes e bloqueios de comunicacao e de expressao, e oferecer métodos e condiges para superd-las. 4. TV: uma nova percepgao A descodificagio do signo icénico da TV constitui um processo novo de percepgdo e de cognic¢ao: é um novo modo de captar o mundo. Colaboram para esse processo cognitivo, dois aspectos da mensagem produzida pela “‘carpintaria’”’ da TV: a iconicidade e a temperatura fria do mediunt. 4.1. feonicidade versus linearidade: a passagem do ensino verbal ¢ linear da escola para a comunicagao pelos mass-media visuais acarreta uma nove con- cep¢ao e uma estrutura diferente da aula. Sabemos, com Roland Barthes, que, en- quanto © signo lingiifstico é mediato, linear e imotivado, o signo visual é, ime- diato, global, analégico, e motivado; com tais caracteristicas, o signo visual da 5 The English Quaterly — v. X1, n¥ 2, 1978, p.155 — Canadian Council of Teachers of English. 50 IZIDORO BLIKSTEIN TV, pleno de iconicidade, é descodificado mais rapidamente do que o lingiistico. Nessas condigdes, com 0 primado dos signos visuais, a tele-aula de portugués foi elaborada de tal modo que: a) a informagdo lingiifstica fosse sébria; b) a infor- magdo visual constitufsse também uma forma de aprendizagem (explorando so- bretudo os aspectos supra-segmentais e cinésicos da comunicagfo). 4.2. TV, um. medium frio: segundo M. Mcluhan, a TV é um medium (ou vei- culo) cool, isto é, “fresco” ou “frio”’. Isto significa que a imagem da TV é fraca e que seu grau de definigao é baixo em comparacéo com outros media como a fotografia, o cinema, 0 livro, etc., que sfo meios de comunicag#o Hot, “‘quentes”, com um alto grau de definigdo. As comunicagdes hot nfo provocam grande parti- cipagdo do destinatdrio, enquanto no caso dos media frios, como a TV, 0 des- tinatério participa e envolve-se muito mais na descodificagao da mensagem. A par- tir desse princfpio, o grau de definigfo de uma tele-aula deverd ser baixo e, con- seqiientemente,/pequena, a quantidade de informagao. 4.3. Iconicidade + temperatura cool ou fria: A no¢gao de iconicidade acres- centa-se pois a nog&o de participado; j4 n&o se trata da descodificagdo de uma aula hot, cheia de informagio linear e com pouca participagao do aluno; a te- le-aula, ic6nica e fria, poderd ser percebida por outro processo cognitivo: o alu- no / telespectador participard de sua descodificagdo por meio de uma percep¢ao, global icénica e cool (isto é, “fria” ou “descontrafda”). No dizer de M. Tardy®, © signo icénico e frio da TV “nos mobiliza inteiramente: corporalmente, afeti- vamente, intelectualmente. Os mecanismos de apropriagZo tormam-se outros .. .” 5. Observagies finais Eis entdo os aspectos tedricos e prdticos mais relevantes na experiéncia de ensino da Ifngua portuguesa pela/TV: o universo dos mass-media, livre das coergtes da pedagogia tradicional, a estratégia de marketing na “‘pedagogia”’ da TV, a fungio do perfil do destinatério, a iconicidade e a temperatura “cool”, ou fria, da mensagem da TV. Com tais pressupostos, sugerirfamos a seguinte receita minima para a elaboragao de uma tele-aula de portugués: a) poucas informagves e baixo grau de definigao; b) primazia de informago visual; c) tratamento coerente da informagdo visual (pois esta implica um novo ~ processo de cognigdo e de aprendizagem); d) forma e contetido coerentes com a percep¢do cultural do puiblico-meta; e) apresentagfo do evento lingiifstico como resultante da combinagao,de varias dimensdes (a lingiifstica, propriamente dita, a supra-segmental e a cinésica); © TARDY, M. - op. cit. — p. 101. 0 ENSINO DA LINGUA PORTUGUESA PELA TELEVISAO: 51 UMA AVENTURA PEDAGOGICA f) a tele-aula deve constituir um espetdculo agradavel e descontrafdo (“cool”), como, alids, observou E, Melon-Martinez: “...0 que pretendemos da televisdo, antes de tudo, é a descontraca0"; 8) © telecurso ndo deve ser elitista, pois a TV, inserida no contexto dos mass-media, nao conhece “clivagem social”® ; h) a tele-aula deve constituir também um espetdculo artfstico e humano, na medida em que assistir a um programa de TV representa uma nova forma de cogni- go e de aprendizagem; mas nao devemos ter a pretensZo de “educar” o povo pela TV pois esta j4 € uma forma de educagao, isto é, a educacdo visual. Devemos pensar com Gramsci que “a arte ¢ educativa enquanto arte, mas nfo enquanto ‘arte educativa’”. A aventura pedagégica do ensino de portugués pela TV obrigou-me a rever e a criticar as “verdades” do ensino entre as quatro paredes da escola. Este me Parece 0 aspecto mais positivo da aventura: a ruptura com os estereétinns da educacao tradicional. 7 MELON-MARTINEZ, E. ~ La télévision — Paris, Marabout, 1970, p.110. % La Communication — Les Dictionnaires Marabout Université. — Paris 1971, p. 90.

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