Você está na página 1de 13
C) 4 a 4 Py ° £ -) a cs Ei Ps z a a ALFABETIZANDO Sa AY BA-BE-BI-BO-BU Luiz Carlos Cagliari O metodo’ das cartilhas Pre | eae Jé comentamos que a cartilha era antigamente apenas um abeced’- rio depois tornou-se uma tabela de letras, que representava as escritas dos padrées silabicos da fala; reestruturando-se em seguida em palavras- -chave ¢ silabas geradoras, deixando assim de ser apenas um livro para fazer exercicios de escrita. Entio comecou 2 apresentar textos com pala- vas j4 estudadas pelos alunos, numa ordem crescente de dificuldades, ¢ foram incorporados exercicios gramaticais e estruturais para 0 aluno desmontar e montar palavras. Tempos depois, recebeu a companhia do manual do professor e uma seco especial, dedicada ao periodo prepara- trio, cuidando da prontidio dos alunos para a alfabetizagao. As tabelas de letras sumiram e até 0 alfabeto no fazia mais parte da cartilha, ‘Adota-se esse tipo de livro didético até hoje amplamente. Mesmo quando, baseados em conhecimentos adquiridos em treinamentos, ou através de simples acompanhamento dos modismos da educagio, alguns professores deixam de usar as cartilhas, constata-se que 0 método das cartilhas tem resistido muito as criticas e encontra-se em praticamente todas as salas de aula de nossas escolas. ‘Muitos professores fizeram sua prépria cartilha, com material de preparacio de aulas elaborado em anos de trabalho. Alguns chegaram até a publicar esse material, fazendo ver aos demais colegas como conseguiram uma boa receita para a alfabetizacdo. Os proprios érgios encarregados da educacio, atendendo a pedidos de professores, com- pram, todos os anos, uma quantidade enorme de cartilhes para uso nas escolas publicas. Hi ainda aqueles professores (¢ Secretarias de Educagéo) que, no querendo adotar uma cartilha, compram, em substituigéo, livrinhos de historias, os quais, além de reduzir 0 trabelho de alfabetizagio a inter- retagdes subjetivas dos textos ¢ transformar a sala de aula em palco de fantasia sem-fim, ainda sio usados por alguns professores para extrair © que antes eles faziam com as cartilhas, agora de maneira muito mais confusa e dificil. ao hte Por um trabalho alternativo, sem cartilhas, exige, antes de tudo, que se conheca como elas sao, 0 que propéem, como propdem, 0 ue pretendem e, principalmente, o que deixam de fazer, Por essa razi0s apresentaremos a seguir alguns comentarios para explicar melhor 0 que Tepreésentam as cartilhas no processo de alfabetizacio. O que muitaS veves salva o trabalho escolar nesses casos é a competéncia, a habilidade | Primeiras surpreendentes mesmo usando uma ferramenta muito ruim. ‘Uma anlise mais cuidadosa mostra que esses livros tém em comum, o fato de alfabetizarem através de palavras-chave e de silabas geradoras, ou seja, aplicando o bé-bé-bi-bé-bu. A tinica coisa que varia éa maneira como esse “produto” vem apresentado. Como é constituido de letras, nosso sistema de escrita tem como chave de decifracio 0 principio acrofonico associado aos nomes das pr6- prias letras, Partir dai para palavras-chave é um pequeno pulo, Como as Jetras representam consoantes e vogais, nada mais natural do que estu- dar o processo de alfabetizacao através das silabas. Foi assim que surgiu 0 interesse pelo bé-bé-bi-bé-bu. E por isso que muitos professores nio vyeem outra safda para ensinar a ler e a escrever, a nao ser com 0 bé-bé- “bi-bé-bu, Na verdade, esse é 0 aspecto mais interessante das cartilhas, em que se emprega o principio acrofénico, No entanto, essa vantagem & prejudiceda pela maneira como essas ideias so organizadas em ligdes € passadas para os alunos. Um exemple tipico de cartilha ¢ apresentado a seguir. Cada ligto trate apenas de uma unidade sildbica. Os contetidos das ligdes sio orga- nizados de forma hierérauica, do mais facil ao mais dificil, segundo algum critério escolhido pelo autor. No fim, apresenta-se um resumo, em que 0 alfabeto pode estar ou no presente. Geralmente, a cartilha acaba num texto, considerado teste final de leitura e modelo de escrita para introduzir o altino na etapa seguinte, que é 0 uso de textos que 0 aluno deverd saber escrever e ler por conta propria. Todas as licdes tém a mesma estrutura: partem de uma palavra- ssirada com tim desenho, e destacam a sflaba geradora, que € sflaba da palavra. Em seguida, apresenta-se « familia silbice daquela silaba destacada. Vém abaixo algumas palavras ovas, escritas com elementos jé dominados, mais elementos novos introduzidos na ligéo. Depois, aparecem os exercicios estruturais em que Palavras sio desmontadas e remontadas com elementos feitos de silabas Beradoras ou de pedagos de palavras. Ou, entdo, aparecem os exercicios de“faca segundo o modelo”. Ha, ainda, um pequeno “texto” para leitura, SOpia e ditado, e que pode servir também para exercicio de interpreta S20 de texto, Nas ligdes mais adiantadas,além das tradicionals copiss Parecem os exercicios de escrita: “minhas primeiras frases” e “minhas érias”, Recheando esse esqueleto, uma quantidade enorme oa BSP atividades que vio desde a colagem de letras e palavras recortadas de Em geral, essas atividades dao a falsa impressio de que uma cartilha é diferente da outra, Como se disse antes, elas sio diferentes apenas na maneira como aplicam o bé-bé-bi-bé-bu. As cartilhas partem de uma concepsao de linguagem segundo a qual uma palavra é feita de silabas, uma silaba, de letras, uma frase é um conjunto de palavras e um texto é um conjunto de-frases, Isso esta evidente nas atividades de “desmonte” das palavras e reagrupamento as unidades geradoras. Ora, a linguagem tem esses aspectos, mas ficar apenas nisso produz uma imagem distorcida. A linguagem é basicamen- tea unio de sons e de significados, tudo muito bem ligado, através das diferentes estruturas gramaticais que exercem fungées préprias e que tém usos especificos nos diferentes contextos em que ocorrem, A maneira como as cartilhas lidam com a fala e a escrita confunde as criangas, uma vez que passa a ideia de que a linguagem é uma “soma de tijolinhos”, representados pelas silabas e unidades geradoras. Ora, as criancas aprenderam a falar de outra maneira e, portanto, para elas, a inguagem apresenta-se como um todo organizado de maneira muito diversa daguela que a escola Ihes mostra, No fundo, as cartilhas deixam de lado toda a trama da linguagem, ficando apenas com o que ha de mais superficial. Isso faz com que os alunos passem a fazer apenas um uso superficial da fala e da escrita nas suas atividades escolares futuras, A alfabetizagio gira em torno de trés aspectos importantes da lin- guagem: a fala, a escrita e a leitura. Analisando esses trés pontos, tem-se ume compreenséo melhor de como séo as cartilhas ou qualquer outro método de alfabetizagio. A CARTILHA E A FALA A variagio linguistica ‘A variagdo lingufstica mostra como uma lingua é composta de intimeros dialetos, que apresentam semelhangas e diferencas. As seme- Ihancas constituem a base comum que permite agrupar os dialetos em torno de uma mesma lingua. Com relagdo as diferengas, algumas nao causam estranheza, pois sio aceitas socialmente, como o fato de algu- mas pessoas falarem “tia” e outras “tchia”. Ha, porém, diferencas que representam a fala de pessoas pobres, que nao usam a norma culta da sociedade como um modo errado de falar. Exemplos: “drento”, “dro- bar”, em vez de “dentro”, “dobrar”, etc. A cartilha simplesmente ignora tal realidade linguistica da socieda- de. O aluno vai seguir as ligdes da cartilha usando, desde o comeco, uma {ala espelhada no modelo apresentado pelo professor. Como a cartilha & um livro que se propée a tratar dos assuntos de maneira gradual, quase sempre lidando com questdes muito ficeis, pressupde-se que os alunos acompanhem sem dificuldade o uso da fala padrio, mesmo que em case sejam falantes de dialetos que apresentam enormes diferencas com rela- gio 20 dialeto da escola A dificuldade do aluno surge quando ele se vé obrigado a respon- der a perguntas formuladas pelo professor. Como nao domina a norma culta, fala seguindo sett proprio dialeto, recebendo dos professores ini- ‘meras correcdes, 2companhadas ou nao da zombaria dos colegas. O idioleto do professor Através da pritica dos professores em sala de aula, percebe-se que 0 que se entende por dialeto padrao é na verdade um idioleto do pro- fessor. Ou seja, usa-se como modelo de fala uma maneira especial de pronunciar certas letras, de ‘modo a facilitar a compreensio pelo aluno das relagdes entze letras e sons em funcfo das formas ortogréficas das palavres Obviemente, esse modo de falar inventado pelo professor é usado Ge modo especial em ceries atividades do processo de alfabetizago, como nos ditados ou nas explicages bésicas de introdugio de uma ligéo Por ser um dialeto artificial, sem vida na sociedade, P fessor conseguird manter esse modo de falar 0 tempo todo, porque ele também € um falante nativo de uma variedade linguistica (dialeto). Quando o professor se esquece de que estd passando materia, fala como Se estivesse usando seu modo de falar coloquial de fora da sala de aul: Alguns professores convencem-se de tal maneira que aquela fala que inventaram para ensinar os sons das letras é, de fato, a ideal, que acabam tornando-se pessoas pedantes fora da escola, levando para o dia a dia uma prontincia estranha de professor de alfabetizacao. __ Para ilustrar que ficou dito acima, seguem exemplos. Um pro- fessor, para explicar aos seus alunos a diferenga entre a escrita de Le Ieiolete: varied & MATEUS, 1990) ciaiden alt # t#F 9.som ce U (mesmo na norma culta), pronunciads “balde” em ver de “baudi’; “alto” em ver de “autu’, ete: Outro exen lo: 0 professor fala “ta-té-tchi-t6-tu”, “da-d&-djindé-du” (sem perceber due Palataliza os “tis” e “dis”), mas ensina que deve dizer “balde” ¢ nao) Daudi’ “pote” endo “pétch, etc. Do mesmo mode, exige queoaluno leia “tudo” e nao “tudu’, ete Esses professores acham que, procedendo assim, faro com que os alunos errem menos quando forei escrever. Esquecem-se, porém de ue eles mesmos dizem “balde” porque conhecem a forma escrite de Palavra. O aluno, por sua vez, no sabe como se escrevem as Palavras © consequentemente, nao pode saber quando se usa L ou U: € “falta” ou “fauta"?; € “flauta” ou é “falta”? Somente quem sabe escrever saberk responder corretamente a perguntas como essa. © método das cartilhas nao leva em conta, no entanto, que a maior diflculdade dos alunos, sobretudo daqueles que no sio filantes de forma culta em uso na sociedade, é aprender que nem tudo o que eles falam fora da escola esté de acordo com a norma culta. Para vows alas os, falar palavras como “casa”, “batata’, tem o mesmo valor de palavras como “drentu’, “drobar’, “uzbmitrabaia", ‘pranta”, etc. E verdade que esses alunos terdo mais faclidade para escrever corretamente as palavras Gepols que aprenderem a norma culta, mas pressupor tal conheeimente como estratégia para aprender ortografa é algo descabido. Ortograflase aprende de outra maneira. A silabacao Ostro problema sério que o métoco das cartilhas (0 bé-bé-bi-bé-bu) €0 uso da silabagio a todo instante. Tudo gira em torno da slabacdo. isso faz. com que o aluno passe a pensar que, para ler, 8 preciso silabar (Silabar para decifrar a escrita e silabar para ter uma prontincia bonita, bem articulada), Alguns levam até para a prépria fala essa promincia a, bada, Ao fazer isso, o ritmo e a entoagio (para nfo falar de outros elemen, ‘os prosédicos da fala) ficam totalmente modificados, descaracterizando 8 fala natural, com consequéncias como pedantismo e preciosismo, de quem fale assim, e, sobretudo, com dificuldade de expressdo do falante « de compreensao geral dos textos. (CAGLIARI, 1989b) A cartiha ensina os alunos a silabarem e depois quer que eles leiam com fluéncia: isso & contraditério! As criangas aprendem a falar ¢ portamento grater ¢ ie porgus, como falantesnatvos aprenderam « air asim ¢ use perfeitas. Poderiam aprender a ler usando esse mesmo com: pe fo ético, Porém, a escola destréi essa habilidade j4 conquis- we acha que falando naturalmente os alunos no vio aprender vevcspretamente as palavras nem a ler no dialeto padrio. Hé um roco educacional nessa atitude escolar. Observando a fala para escrever Quando vi aprender aera erever scranas tim como ice 5 0 servam se mento jé adquirido, a prépria fala. Elas ol ncia de conhecimento jé a : ee propria ls, neqee momeniz. A‘catlhe, pork gnora es ae aoe ‘poucos, induz os alunos a interpretarem os fenémenos me ae ese, tendo como modelo a forma escrita das palavras e mio a n a na se realidade fonética, Depots de certo tempo, os alunos Hino conequen sequer analisar a propria fla ou de outras pessoas ano ser 5 rita ortogréfica. E uma pena. - . “seria excola deveria aprovilr essa habllidade de percepedo éeflaue ss ian tm par explora ngage rl ada ver a tes cm d rnhecimentos solidamente esta 5: ue essas anlises se tornem co : : tio # importante e servird como um recuroo signlficativo para se een : di é para apreni r la natureza da linguagem. Até pat der muitos outros aspectos da m: : aprender é equi no ficaré me é te estratégia, porque o aluno ortografia é uma excelente sano nfo fas ls fica, falando possiveis proninc tentando achar a forma ortografica, a Smad, fessores alfabetizadores, mas saberé que a fala aon dies . noe te r idade de falar natut : ‘0 importante passar da habili nuralment eee _ ara tanto, 2 1a precisa ima lingua para a de ler textos com fiuén mucer radicalmente sua postura diante da linguagem orel Confusao entre fala e escrita va \ssei- As cartilhas apresentam praticamente a cada pass ern gost é dem fatos da fala com fatos da ita. ros de fonética, porque confun 8 sc Um exemplo cléssico encontra-se na interpretagao dos valores fond cos da letra X, em que se distinguem o que alguns professores cham 0 dade, eles representam um tint . 95 sons $ e S$ quando, na ver 2 08 como se pode comprovar, observando a proniincia de pala ica réximo” e “extra” (para os que falam “éstra” e nao “échtra”). Como a cartilha estd completamente equivocada a respeito do fun, cionamento da fala e como a maioria dos professores no recebe uma formacéo linguistica adequada, em particular com relacao fonética, mutta explicagdes relacionadas a certos erros a fala ou da escrita que alguns alunos cometem na alfabetizacéo chegam as raias do ridiculo,, como aque relativas as famosas trocas de letras. (CAGLIARI, 1984h) Dificilmente se encontra um professor que faca uma anilise correta desses erros. les acham que os alunos tém problentas auditivos (hd sem. re uma deficiéncia qualquer quando aparece um erro na alfabetizacao), ue os alunos falam errado porque vive constantemente distraidos, que no sabem observar corretamente as letras, que niio sio capazes de memo. tizar diferencas elementares, como as prontincias de “vaca” e “faca”, ete A incompeténcia desses professores fica evidente quando se pede para {que analisem (ou escrevam) palavras inventadas (sem ortografia definida), como, por exemplo, “vixrrabz6” (com a letra X representando o som de CH). Em primeiro lugar, eles nio so capazes de ouvir direito e tém dif. culdade em memorizar, exigindo que o enunciado seja repetido inimeras vezes, No sabem se existe ou ndo um I depois do X, estranham se hes Perguntado se o RR é surdo ou sonoro, trocam V por F, B por P, Z por §, exatamente como fazeim seus alunos, de quem eles tanto reclamam. O pior de tudo é que esses professores nem sequer sio capazes de entender os erros que eles préprios cometem. Veja “Ditados e ditadores” (CAGLIARI, 1990, P, 94117), no qual se relata uma pesquisa realizada a partir de um ditado especial felto para professores alfabetizadores ¢ os resultados obtidos, Haverd sempre aquelas pessozs que acabam concluindo que, ape- s problemas, os professores alfabetizam e os alunos aprendem (pelo menos alguns), E isso, é necessério admitir, é verdade. Acontece, porém, que a escola ndo pode adotar essa postura: ela ndo far sentido. Se podemos ter um ensino decente, por que nos contentarmos com um ensino indecente? A CARTILHA E A ESCRITA A cartitha moderna apresenta um método de alfabetizacio basea- do na aprendizagem da escrita (e no da leitura, como antigamente), Tudo na cartilha gira em torno da escrita, Até a fala dos professores geod tivos da lingua. Essa visio centrada na escrita sera levada pelos alunos ee que puderem estudar seriamente linguistica e aprenderem ‘crita 6 apenas uma forma de representacao gréfica de alguns ele- aes 10g a gs fonéticos da linguagem e esta, na sua esséncia, é oral mentos ‘A-escrita prevalece sobre a fala Depois quea cathe passou a fazer parte da escola, os eitudonanbe oralidade ficaram praticamente excluidos: tudo ¢ feito por escrito. , tecrita, entlo, passou a ser considerade algo nobre, perfeito, portador s . samento l6gico ¢literario, a0 passo que a comegou a ser considera go vulgar, uma linguagem cheta de erros efalhas, deselegante, incapaz de traduzir o pensamento mats sfisticado da cultura, ee Infelizmente esses sio grandes preconceitos de nossa cul a q pessoas esquecem-se de que sem a linguagem oral sequer pega a linguagem escrita. A escrita requer decifracio para ser enten i la, dec frar 6 devolver o texto escrito 4 forma oral de realizagao da re age 7 E uma iluséo pensar que se pode passer diretamente da deci so ie escrita para o pensamento puro, sem passar pela organizagio da tngue gem humana, a qual, ne sua esséncia mais profunds, nade mais é do qu 1a sign idos com sons da tudo, no processo de alfabetizaczo, ; Bo s uase nada a respeito dos aiegs suas teenie ¢smadara rrp dae sano A palavra Sem diivida alguma, a palavra é a unidade principal de todos ossis temas de escrita. A cartilha foi além: nao sé assumiu isto, somo paso a rabalhar como sea palevraesrita fosse a uniéade mais importance d Linguagem, o que é falso. Na verdade, a palavra como sna ei ca, € algo confuso e de dificil definicio e manipulacto. A rand pro disso pode ser encontrada na propria alfabetizagao, observ aes ificuldade que os alunos tém no comes para specter p a1 is, seguindo os padrées da escrita. = Traine a pale, Zo cents das atenghes'da cartlha Pode se a ter uma frase ou um pequeno texto, junto com as ligdes, porém 0 qt dadas. Uma frase é pura e simplesmente uma sequéncia de palavras. Do significado de cada palavra, tira-se 0 significado total do texto. Essa é uma visio muito reducionista da linguagem humana, a qual, no entanto, fica tao marcada na formacio dos alunos, que eles podem continuar com essa ideia pelo resto da vida. Desse modo, a linguagem como expresso do pensamento ¢ como acio sobre 0 mundo fica destrufda, Essa é uma das razdes pelas quais muitos alunos tém dificuldade em lidar com a linguagem na escola e fora dela, escrevem sempre coisas estranhissimas nos seus textos e tém enorme dificuldade para entender as sutilezas (es vezes até as coisas mais dbvias) da linguagem, © que a carta faz diante da palavra escrita — que ela considera a esséncia da linguagem? Comega um jogo de desmonte e remontagem, pressupondo-se agora que as palavras sio feitas de pedacinhos que se jun- tam. Esses pedacinhos, claro, seréo organizados em familia, compostas de uma consoante mais uma das cinco vogais da escrita. Assim, a familia do B € constituida de bé-bé-bi-é-bu, Como resquicio do principio acrofénico, tradicionalmenteligado a0 alfabeto, cada familia recebe uma palavra-chave, que servird de recurso mneménico. Por exemplo: BARRIGA seré a palavra- -chave para. familia do bé-bé-bi-bé-buz, Como um dos objetivos do monta- -e-desmonta é associar letras &ssilabas da linguagem ora, estudam-se pri- rieiro as fauniias mais simples, constitufdas de uma consoante mais uma vogal (usando apenas as letras disponiveis na escrita, no os fonemas que cada letra apresenta na fala) e depois as familias em que aparecem grupo de consoantes, como a familia do ché-ché-chi-ché-chu, do pré-pré-pri-pré- -ptu, etc, Finalmente, sdo estudados os casos em que ocorre uma consoante no final de sflaba, como nas palavras an-jo, cam-po, ec. As cartilhas apresentam os piores tex- tos, elaborados por “razbes pedagigica para gerar as unidades das ligGes com os ele- rmentos jé dominados, Basta comparar os tex- tos das cartilhas com os textos esponténeos das criangas para perceber imediatamente como os primeiros s4o ridfeulos e idiotas. Os textos das cartilhas no lidam adequa- damente com os elementos coesivos e, 2 veres, nem com a coeréncia discursiva, 0 que faz deles péssimos exemplos para os alunos. (MASSINI-CAGLIARI, 1997a) entre as partes | ‘Mas hi outros aspectos da escrita a serem considerados. Nenhuma cartilha explica a seus usudrios que usamos “diferentes alfabetos”, como ABCGDEEG... e abccdefg... Certamente, 0 professor diré que temos letras maitisculas ¢ mimisculas (além das letras de forma ou imprensa e das letras cursivas ou manuscritas). No entanto, o essencial, que & 0 fato de existirem alfabetos diferentes, nesses casos, passa despercebido, ‘Uma letra maitiscula pode ser escrita em tamanho menor do que uma Jetra mintiscula, porque nao é 0 tamanho que conta, mas a forma gra- fica. Alguns alunos tém grandes dificuldades para perceber que letra é um valor abstrato ao qual podemos associar uma variedade de alfabetos diferentes (CAGLIARI, 1994c). E a cartilha nao explica isso. Os alunos acabam constatando por si, depois de certo tempo, mas isso pode ser um processo longo e dificil (MASSINI-CAGLIARI, 1998b). A escrita cursiva © método das cartilhas tem uma preferéncia declarada pela escri cursiva, embora isso nao fique evidente ao analisarmos os préprios 0s, nos quais se utiliza também a letra de imprensa. Para se ter uma ideia da importancia da escrite cursiva na alfabetizacao, é preciso anali- sar 0 que acontece nas salas de aula e nos cadernos dos alunos — apenas nas cartilhes. Essa atitude de valorizar a escrita cursiva revela um preconceito da escola e um equivoco sério, Ninguém nega que a escrita cursiva seja importante, que é mais facil escrever rapidamente na forma cutsiva do que usando letras de forma. Também é verdade, porém, que letra cursiva representa essas vantegens apenas para as pessoas que jé éstdo muito familiarizadas com a escrita e com a leitura, ou seja, pessons d alfabetizadas. Para quem est aprendendo, a letra de forma — espe- cialmente a maitiscula — proporciona um material gréfico melhor para a leitura ¢ até para as primeiras escritas. Tanto isso ¢ verdade que as criancas quando estao passando dos rabiscos para as primeiras formas Srificas utilizam espontaneamente a letra de forma, mesmo estando habituadas a ver as duas formas de escrita no seu cotidiano. Aescrita cursiva é uma maneira de adaptar o grafismo das letras 20s ™aneirismos pessoais: por isso, frequentemente se constata que é dificil lera letra do outro. A escrita cursiva apresenta um tragado de letras liga- 4s, facilitando uma escrita rapida, que, por outro lado, dificulta o tra- vest sueunwom Biativa, a COLLULt LULsIVa LUMA-Se mais dificil para quem nao tem pritica, Os alfabetizadores gostam dela também por essa raz, uma vez, que, sendo mais dificil de elaborar, permite avaliar melhor se uum aluno esté aprendendo ou nao a tracar as letras, A escrita cursiva tem um uso quase exclusivamente pessoal. Com © grande desenvolvimento tecnolégico das maquinas de escrever (che- gando até os computadores), a escrita deixou de ser feita & mao, ficando essa atividade restrita a pequenas notas pessoais. Isso fez a escrita cursiva perder um pouco da sua importéncia no mundo moderno. Apesar disso, © método das cartilhas e a escola continuam insistindo na escrita cursiva. Alguns professores acham que, se os alunos comecarem a escrever com letras de forma, nao vao aprender a escrever com letras cursivas, ¢ no processo de alfabetizacio o alvo a ser atingido é a bela escrita cursiva, redondinha, igual para todos. Padronizar a escrita cursiva dese modo ir contra a sua propria natureza, cuja caracteristica fundamental é ser uma expressio grifica individualizada. Equivocos a partir da escrita cursiva Um certo mimeo de erros encontrados nas tarefas escolares do alunos deve-se a confusbes cau- sadas pelo uso da escrita cursive, Como ela deforma certas letras quando egrupadas, fica dificil saber exa- tamente onde comegam e onde terminam algumas letras ¢ até mesmo quais os elementos gréficos que as constituem. E por isso que um aluno pode penser que, na escrite cu formade por tre- 08 que se assemelham as formas da leire “, segui- da dos de ume letra “v’; ou que a letr uma combinagéo de “I” e “s"; que a letra “A” é formada ainda, que a letr oa mesma coi distinguindo-se apenas pelo som que tm nas palavras (assim como 0 "t” ¢ 0 “tch”, em palaveas como TV e TIA, etc.) O altuno pode até constatar que hd uma diferenga na altura da “perninha”, que também varia, de caso para aso, Afinal, esse tipo de variago acontece a todo instante e nunca foi con- siderado relevante, por que seria entio no caso de “a” e “a”? Dificuldades como essas em geral passam despercebidas pela maioria dos professores, os uais se contentam em apagar o erro do aluno e mostrar a forma certa, seeeeeaaebaeammeermmmmeeremeee damente, Por exemplo, hi uma série de exercicios e orientagdes que vem desde 0 periodo preparatério, esclarecendo & crianga que se escreve da esquerda para a direita. Quando diz isso ao aluno, 0 professor est pensando na ordem das letras nas palavras. Porém, o aluno pode pensar de outra ‘maneira: seguindo a instrugio recebida e entendida dentro do quadro de suas dificuldades particulares, alguns alunos acabam escrevendo de forma espelhada letras como §, G, ete, em inicio de palavras. Uma letra puxa outra e de repente o aluno esta escrevendo a palavra até a frase inteira de forma espelhada. E 0 pro- | squerda fessor (mal informado) pode achar que essa | crianga tem problema de lateralidade cerebral, | uum caso sério para a medicina resolver. due Escrita sem sistema Como a cartilha nao aprecia nem discute, em momento algum, a natureza, a fungao e 0s usos dos sistemas de escrita, alguns alunos aca- bam enveredando por caminhos complicados, em geral becos sem saida pera sie para o professor. E 0 caso daquele aluno que faz uns rabiscos ¢ diz que escreveu seu proprio nome. O professor pensa que ele est “doido”, sobretudo porque, ao ser indagado, 0 aluno mostra que sabe ler o que escreven, Esse mesmo professor, que conciuiu que seu aluno era “doido”, horas depois vai ao banco, assina um cheque faz mente 0 que fez set discipulo e nao acha nade estranho; pelo contrétio, orgulha-se de ter uma assinatura exctica, cheia de rabiscos, O aluno pro- vavelmente levou para sala de aula algo que constatara na vida: as pes- s0as assinam 0 préprio nome — isto é, escrevem — fazendo rabiscos. Cépias e ditados Através de cépias e ditados, o trabalho prossegue, até que 0 aluno Passe por todas as ligées, podendo, entao, ganhar seu famoso diplo- ma de alfabetizacao. O aluno, nesse meio tempo, vai desmontando ¢ temontando palavras para ver 0 que acontece: nao tem liberdade nem Ihe & facultado ter qualquer iniciativa para escrever o que gostaria. Pelo ontrétio, toda aventura individual pode levar ao erro, e 0 erro pode ser itremediavel. Por isso, ninguém pode escrever nada, a ndo ser 0 que jé tenha estudado com o professor. grifica; depois, copiam as primeiras frases e, finalmente, os primeiros textos, Somente depois de terminada a cartilha, podem comecar a escre- ver frases por iniciativa prépria e, mais adiante, os primeiros textos. Antes de chegar a este ponto, tudo ¢ feito de maneira coletiva: todos realizam a mesma tarefa, da mesma maneira, no mesmo momento. A cartilha pensa que ensina a ler, por meio de cépias e ditados e des- montando e montando as palavras em familias de letras. A cartilha jamais discute a leitura em si, a decifragio. Somente em dois momentos (e de maneira equivocada) trata das relacoes entre letras e sons: quando apre- senta os dois sons do E ¢ do O, ¢ 0s cinco sons do X. (CAGLIARI, 1990) O que falta no estudo da escrita Infelizmente, a cartilha nfo apenas trata a escrita de maneira ina- creditavelmente equivocada, como deixa de tratar de muitos aspectos da escrita que sdo interessantes e importantes e que, por essa razio, deve- iam comecar a ser estudados desde a alfabetizacio, A historia de escrita deveria fazer parte das preocupagées da escola @ dos livros didéticos desde a alfabetizagio. As criancas adoram ouvir historias, e a da escrita é verdadeira e fascinante, Em particular, dever-se-ia contar a histérie das letras do alfabeto, os diferentes tipos de letras (ou estilos) que o alfabeto latino produziu ao longo da histéria do Ocidente. Seria interessante apresentar ainda, mesmo que sumaria- mente, um relato sobre a ortografia da lingua portuguesa, para mostrar 208 alunos de um modo muito interessante como a ortografia funciona numa sociedade. (CAGLIARI, 1993b, 1994¢, 1996 e 1996d) ‘© mundo em que vivemos est cheio de escrita ideogra pictogramas ou com caracteres convencionais. Esse é um aspecto interessantissimo para ser explorado pela escola e, consequentemente, pelas 2 alfabetizagao. Os alunos podem inventar sistemas de escrita segundo modelos conhecidos. Podem experimentar escrever 0 que quiserem com eles e testar se as demais pessoas conseguem ler ou nao, conferindo, assim, os limites e a importancia da convencionalida- de na escrita, Uma atividade como essa permite ao aluno ler e escrever logo no primeiro dia de aula, o que pedagogicamente € motivo de grande alegria e de entusiasmo para os alunos e grande motivacio para continuarem explorando novas formas de escrita até chegar a esc: com as letras do alfabeto. sao letras, como se decifra uma escrita com letras, o que é escrever & moda de uma transcrigéo fonética — com a qual os linguistas registram 0s sons da fala de acordo com a prontincia de cada um — e comparar esses modos de escrever com a escrita ortogréfica. A escola precisa explicar 0 que é ortografia, como funciona, como os alunos fazem para escrever respeitando a ortografia, para corrigir 0s textos que produzem, para tirar duividas. A escola precisa nao incutir nas pessoas o medo de escrever errado alguma palavra de conhecimento comum. Para isso, ela precisa ensinar os alunos, primeiro, a aprender a escrever e, depo escrever de acordo com as regras ortograficas, sem medo de ter ¢ de perguntar, de buscar informagoes nos diciondrios ou com as pessoas que sabem, porque ningugm passa pela vida sem ter divida de ortografia em relagdo a uma palavra que parecia conhecida, familiar, que sempre Se a sociedade fosse melhor preparada pela escola, nao se idas. Mas do jeito que a cartilha trata o assunto, parece burrice nao ter certeza sobre a ortografia das palavras. E débvio que a escola vai cobrar dos alunos que memorizem a ortografia des palavras de uso comum, de acordo com o nivel de escolaridade, mas poderia ser muito mais benevolente com os erros. E quando néo se sabe como se escreve uma palavra, nao adiante pensar, refletir, especular: ¢ preciso perguntar a quem sabe ou olhar no dicionéri A pior consequéncia da maneira como a cartilha trata a escrite na izacio decorre inegavelmente da sua concep¢io de texto. Mas esse ponto teré um tratamento especial, mais adiante. A CARTILHA E A LEITURA Como a cartilha ensina a ler Existe uma leitura que é a decifragio da escrita, que a cartilha pensa ensinar aos alunos quando mostra as familias de letras e prope ex cios de desmonte e remontagem de palavras (CAGLIARI, 1982b). E € s6 © que os livros apresentam. Como a cartilha tem uma maneira equivo- cada de tratar a escrita, a leitura também fica prejudicada, pois depende Srucialmente da escrita, Alguns alunos chegam mesmo a explicitar o Processo de decifragdo que aprenderam, dizendo, por exemplo, “le-a-Ia, te-a-ta” ao tentar ler “la-ta”. Quando chega 0 momento da leitura, alguns LUI US UHIUS Ue pur letra, uma depois da outra, decifrando-as individualmente e falando o que esto lendo, Os mais espertos acabam realizando uma leitura silaba- da que, com 0 tempo, pode até adquitir velocidade suficiente para dara impressio de fluéncia. Todavia, nao raramente ocorre que, mesmo esses alunos fluentes e répidos na leitura, quando acabam de ler um texto, no sao capazes de lembrar o que leram, a nao ser uma ou outra palavra (geralmente aquelas que apresentaram dificuldade de leitura, em que 0 aluno gaguejou, parou para pensar...). Do modo como a cartilha trata a escrita ea fala, é quase impossivel que um aluno, na alfabetizacio, leia com o devido ritmo e a desejada entoagao. As cartilhas preferem leituras coletivas as silenciosas, sem cobrangas. Os alunos so solicitados frequentemente a ler de surpresa um texto novo (é claro, composto s6 de palavras jé estudadas, ou de palavras com silabas das familias de letras ja dominadas). Preparar uma leitura com antecedéncia vai contra os costumes das cartilhas. A leitura de improviso é mais uma atividade para testar se 0 aluno aprendeu ou nao @ ligao, se jd domino um determinado contetido ou nd. Para um aprendiz ler em voz alta, como deveria ser leitura, ele precisa decifrar a escrita com facilidade, o que, nos primeiros meses de alfabetizagao, nao estd ao alcance da maioria dos alunos. A cartilha usa, ainda, a leitura como forma de ensinar e fixar a pro- niincia da norma culta, frequentemente exigindo dos alunos uma leitura com uma prontincia artificial. A interpretagio de textos segundo a cartilha © método des cartilhas introduziu uma nova atividade quando per- cebeu que alguns alunos, bons leitores, nio eram capazes de dizer com as proprias palavras 0 que tinham lido, Essa atividade é a interpretagdo de textos. (CAGLIARI, 1991b) Qualquer texto passou a ser um pretexto para colocar em priitica aguela atividade, Mais uma ve7, 2 cartilha meteu as mios pelos pés. Fazer interpretagdo de texto passou a ser preencher os vazios de perguntas fei- tas com trechos do texto. Por exemplo, se 0 texto diz: “Maria foi visitar a vové”, pergunta-se: “Quem foi visitar a vové?” "Maria foi fazer 0 que na casa da vové?” “Maria foi visitar a .” Ora, achar que um falante nativo de portugués nao é capaz de ouvir (ou ler) uma frase banal como essa e nao a entender é um insulto & racionalidade da pessoa. AIBULS PIUIessULes, YUE PrEIeriai UWULAL Ud (EALUS Was Cal uMtas por ros paradiditicos", passaram a dar importincia exagerada A interpretagio de textos, reduzindo suas aulas a essa atividade, Nesses casos, 0 professor costuma propor um longo exercicio de perguntas e respostas, em um momento inoportuno para esse tipo de atividade, que 0 aluno mal sabe ler. O que os alunos gostariam mesmo de fazer era aprender a ler ¢ a escrever, para ler por si e escrever suas historinhas como bem quisessem. OUTROS PROBLEMAS DAS CARTILHAS © método das cartilhas tem outros problemas que nfo sio menos graves do que aqueles relativos & fala, 2 escrita e a leitura. Alguns deles merecerfo aqui um destaque. Aprender em ordem © principio da progressio controlada, baseado na ideia dos ele- mentos jé dominados, ordenando as dificuldades progressivamente com cronogramas minuciosos, estabelecendo o que vem antes e 0 que vem depois no ensino e na aprendizagem, amarra de tal forme 0 processo de alfabetizagfo que os alunos passam a fazer apenas o que o professor manda, Por outro lado, esse principio serve de base para a avaliago que permite ao professor passar para a li¢do seguinte ou ndo. Como tudo Vem rigidamente em seu luger, quando o aluno erra, deve voltar e a ligéo, O principio da progressio controlada pressupde que apenas o elemento novo introduzido na ligéo con dificuldade p i uma vez que o resto “jé foi dominado”. Acontece, porém, que a me da que os alunos avancam, acabam se esquecendo de coisas jé isso gera uma enorme confusio na aplicacio do método. A tinica saida Para esses casos € separar os alunos atrasados em classes especiais, onde Comecario tudo de novo, Para alguns, esse processo ird se repetir até que ele abandone a escola, julgando-se incapaz nos estudos. © entulho gramatical As cartilhas costumam trazer exereicios de gramitica que sio verda- deicos entulhos jogados nas lig&es para preencher 0 tempo dos alunos com niimero e de graus das palavras. Hi, ainda, exercicios de identificacao de categorias gramaticais. Querer ensinar essas coisas na alfabetizagio é um desastre. Como nio ha explicacoes sérias, apenas exercicios como “faga segundo 0 modelo”, nota-se que muitos alunos erram, nesses exercicios, coisas que, de fato, conhecem perfeitamente, como falantes nativos da 1gua. Assim, um aluno ao ser perguntado sobre o feminino de “o pai” escreve “o paioa”; de “tio”, escreve “tioa”. Nenhum falante confunde “pai” com “mie” ou “tio” com “tia”, a ndo ser fazendo exercicios gramaticais como esse. Resumindo, esses exercicios nao sé nao ensinam nada, como ainda induzem os alunos a errar. Para muitos alunos, parece mais natural que o aumentativo de “macaco” seja “grande macaco” ou “gorila” ou tal- ver até “cigecougue” (King-Kong), mas nio “macacio”, Para eles, defi tivamente, “macacio” é um tipo de roupa. Metdfora e fantasia Faz parte da praxe das cartilhas conduzir um processo de ensino em que se diz quase tudo de maneira metaférica, indireta, evitando um tratamento sério, objetivo, preciso e direto das verdades que se devem ensinar, Por se tratar de criancas, alguns professores falam com seus alunos como se todos vivessem num mundo de fantasia. Supdem que as criancas no conseguem acompanhar uma explicagao correta e objetiva, precisando sempre aprender através de subterfiigios pedagégicos. Entio, silaba virou “pedacinho”, as palavras-chave precisam ser apresentadas através de uma histéria fantasiosa e representar uma ideia importante no texto basico da ligio. Para tudo, deve haver uma historia e, se pos sivel, uma musiquinka para cantar, cuja letra repita inmimeras vezes 05 elementos da licio. Tudo precisa vir acompanhado de gravuras, figuras, com muito colorido ¢ enfeites. Ninguém contesta o fato de que as criancas gostam de historias e se divertem em meio a esse clima de sala preparada para festa de aniversé- rio; porém, quando vio para a escola, sabem que nao esto indo a ume festa, mas a um lugar sério, onde se aprendem coisas sérias, titeis para a vida ¢, portanto, importantes, Elas tém essa consciéncia da seriedade. A escola, nao obstante, as vezes torna-as levianas e comodistas. O excesso de histérias, na maioria das vezes sem nenhuma gragas apresentadas apenas como pretexto pedagégico, acaba levando a um ensino absurdamente metaférico. Evita-se a todo custo falar de como a usar termos técnicos. As letras nao tém nomes: em vez de U, os alunos dizem “a letra do chifre”; a letra O é “a letra da boca”, porque foi com 0 desenho dos chifres do boi que aprenderam a escrever a letra U, € com 0 desenho de uma boca aberta que aprenderam a letra O. Remanejamento para evitar problemas A cartilha equivocadamente confunde ensino com aprendizagem, avaliacdo com promocio, favorecendo uma atitude de segregacio dentro da escola e da propria sala de aula, com os remanejamentos de alunos para classes especiais. Tudo precisa ser avaliado e receber uma note, ¢ (© que saiu errado precisa ser refeito, até acertar. O método das cartilhas procura uma homogeneizacio que destréi a iniciativa individual, partindo do principio de que educar é fazer com que todo 0 mundo saia da escola exatamente com a mesma cara. O diferente é combatido e niio pode existir na escola. As diferencas individuais nao sio permitidas porque no podem ser avaliadas através de testes coletivos, iguais para todos. As cartilhas representam a prética de métodos mecanicistas, bons para adestramento, para condicionamento, mas muito ruins para quem quiser usar a reflexdo para construir o conhecimento, Na cartilha, tudo vem pronto para o aluno, basta digerir: no ha lugar para uma reflexto autGnoma, para uma livre iniciativa, para a criatividade, para continuar com as caracteristicas proprias. A uniformizacio é um imperativo. O erro nao tem vez Como as cartilhas nao sabem lidar com as diferengas no proces- So de aprendizagem e como preveem somente o certo, nenhum erro seré objeto de estudo (CAGLIARI, 1985b e 1986b). Por essa razio, no encontramos nas cartilhas, nem nos manuais de professores, formas de Proceder quando um aluno nao aprende algo que o professor explicou direitinho, segundo manda o figurino. Os professores sabem, por expe- icia prOpria, que é dificil ensinar a ler e a escrever, mas “ma cartilha fica com a impressio de que tudo é tao simples e perf ‘que ninguém nunca erra nem tem diividas, es a cartilhas so implacaveis com relago a quem no entra no a pina 6; por isso, no tém nenhuma sugestio para 0 professor apro- quando a evidéncia dos fatos da vida mostra claramente que 0 ra, remanejar a crianga para uiaa classe de alunos com dificuldades de aprendizagem, os chamados “alunos carentes”, E se nao se corrigirem, a saida da escola é a solugio para o problema, © fascinio pelo ja pronto A maioria dos professores que usam 0 método das cartilhas foi informada de que essa ou aquela cartilha é, de fato, um grande livro didético, com métodos excelentes de alfabetiza¢o, comprovados desta e daquela maneira, Ouviram dizer que tal colega usa tal cartilha e seus alunos séo alfabetizados da melhor maneira possivel. Por falta de espi- rito critico, por falta de competéncia necessiria para discutir a questio a fundo e seriamente, muitos professores continuam achando que a melhor maneira de alfabetizar & pelo método das cartilhas, se possivel, seguindo o préprio livro didatico. Outros (poucos?) preferem as cartilhas pela comodidade de aplicar em sala de aula um método ja pronto, escolhendo, de preferéncia, aquelas que vém com toda a paraferndlia didatica preparada para o ano letivo. Hé ainda o interesse econdmico, que tem feito das cartilhas um negécio muito lucrativo, sobretudo junto aos érgios piblicos encarre- gedos da educacdo. Para um bom trabalho de alfabetizacio, sobretudo nas escolas piiblicas, ¢ mais importante ter lépis e papel do que cartilhas. Apesar de tudo, 0 governo insiste em distribuir cartilhas, esquecendo-se do lépis e do papel. Em algumas escolas, os alunos recebem um belo livro e fezem as ligdes com tocos de lépis e sucata de papel de escrit6rio. SUBSTITUTO DAS CARTILHAS As consideragdes acima mostram como é problematico 0 uso do miétodo das cartiJhas na alfabetizagio. Mas, sea cartilha ¢ tfo raim assim, © que fazer para alfabetizar sem a cartilha e, sobretudo, sem 0 método das cartilhas? Qual é a saida, ou melhor, quais so as alternativas? Depois desse longo caminho, analisando a historia e os métodos de alfabetizagao, podem-se tirar algumas conclusdes interessantes que nOS levario a entender por que proceder de um jeito e nao de outro na esco Ja,a fim de conduzir um processo de ensino e aprendizagem da leitura e da escrita de maneira mais correta e proveitosa zagdo esti na aprendizagem da leitura (CAGLIARI, 192d; MASSINI- -CAGLIARI, 1994), Aprender a ler, aqui, significa aprender a decifrar a escrita, Para saber decifrar a escrita, & preciso saber como os sistemas de escrita funcionam e quais os seus usos. Com a escrita é uma forma gra cade representagao da linguagem oral, é necessério estudar os mecanis- mos da producio da linguagem oral, quais os seus usos e, ainda, como a linguagem oral se relaciona com a forma escrita que a representa, num contexto culturalmente especifico da sociedade moderna. Infelizmente, constata-se que ndo basta jogar o livro fora ou dizer que nao se quer mais seguir o método do bi-bé-bi-bé-bu, para levar adiante um bom trabalho de alfabetizagio. Hi coisas erradas demais no sistema educacional do Brasil, que tornam qualquer iniciativa de boa vontade fadada ao fracasso, por falta de infraestrutura, pela presen- ga constante e sufocadora de uma maquina burocritica anacrénica e, principalmente, pela incompeténcia de alguns professores (CAGLIARI, 1986a). Estes recebem das escolas de formacao todos os equivocos, pre- conceitos e barbaridade que depois levam para a sala de aula. Alguns autores de livros didaticos, por sua vez, so tio despreparados quanto os malformados professores. Acrescente-se a isso a exigéncia ridicula de pais e avés que fazem questdo de que seus filhos sejam educados exata- mente da maneira como eles o foram. Apesar desse quando pouco animador, aos poucos, os professores interessados podem ir deixando de lado a velha pratica de alfabetizacto e iniciar um trabalho novo, com dedicagio ao estudo para suprir as, lacunas e deficiéncias e muito bom senso. A propria prética — mestra da vida — ajuda muito. © professor ndo pode ter medo de levar seus alunos a sério, de ir direto 20 assunto, conduzindo um processo equilibrado de ensino ¢ aprendizagem, Afinal de contas, 0 professor sabe ler e escrever. Com um Pouco de reflexdo mais cientificamente controlada, ele é capaz de reali- 2ar um excelente trabalho, sem precisar gastar muito tempo, refazendo desde o inicio sua formacao (CAGLIART, 1984a e 1992c). O professor ‘ambém aprende ensinando, Se seus alunos forem instigados @ cons- truir um processo de alfabetizagio baseado na reflexio, na pesquisa, Po trabalho compartilhado, o préprio professor vera, para sua surpre- 8%, que ele também esta aprendendo. Mais do que isso, ele comegara deixar de lado a ideia de que seu trabalho é macante, acabando por escobrir 9 mundo fascinante da construggo do conhecimento pelos filho, num processo de aprendizagem verdadeiro, como deveria existir sempre nas escolas. A CARTILHA E OS PROFESSORES Apesar de todos esses problemas, 0 método das cartilhas é con- siderado em geral muito conveniente pelos professores. Se 0 aluno néo aprender, a responsabilidade nao é dele, nem do método, mas da incapacidade do aluno (CAGLIARI, 1997c). Como o método considera gue todos os alunos parte do zero e vao estudando ponto por ponto, do mais fécil para o mais dificil, isso da uma falsa aparéncia de ordem € organizagio. Todos os alunos devem fazer a mesma coisa, do mesmo modo, no mesmo tempo. Para o professor, fica fécil avaliar quem esta acompanhando e quem esté ficando para trés. Como o trabalho é igual para todos e avanca aos poucos em complexidade, os professores con- seguem fazer com que seus alunos apresentem cadernos muito bonitos, em que tudo esta perfeito, em ordem, sendo muitas vezes uma cépia exata do proprio caderno do professor, que ele usa como modelo. Se 0 aluno errr alguma coisa, 0 professor apaga e coloca o certo. Os pais ¢ Giretores olham os cadernos desses alunos ¢ acham que todo vai as mil maravilhas. Ledo engano, que nao iré durar muito. Por trés de toda aquela aparente ordem, esconde-se muita coisa mal compreendida, que iré produzir péssimos frutos nos anos posteriores. No esforso para salvar a ortografia e a aparéncia correta da escrita, 0 método da cartilha destréi e habilidade do aluno de lidar com a lin- guagem nas 2 plena e natural, como fazia antes, quando apenas falava. O método da cartitha produz cadernos belos, sem erros, porque 05 altunos 86 reproduzem o j& dominado, e o professor s6 permite que ali fique registrado 0 que est certo. Depois, quando os alunos tiverem de escrever espontaneamente, cometerio toda sorte de erros, mostrando uma “desaprendizagem” perigosa. Aos professores que dizem que também se aprende pela cartilha, que muita gente fez. isso e aprenden bem, deve-se rebater, lembrando = todos aqueles que nao aprenderam e que tiveram de abandonar a esco- Ja por causa de um método que privilegia um planejamento escolst rigoroso e detalhado, inocentando os professores ¢ 08 livros de su# incompeténcia. Os professores que adotam as cartilhas nem sequet por que alguns alunos aprendem e outros nao, ou ainda para ponderar a que preco seus alunos aprendem. Finalmente, convém ressaltar que, em anos posteriores, j4 néo apa- recom mais cartilhas. Alguns professores, no entanto, sao tao obcecados por elas, que continuam aplicando esse método nos anos posteriores, Livros de matemética tendem fortemente a seguir 0 método de ensino das cartilhas. O que salva, em parte, as aulas de portugues é a producao de textos, a leitura e a literatura. Como a matemitica nfo tem dessas coisas, 0 ensino torna-se insuportavel para grande parte dos alunos, que se vem obrigados a ter um estudo cujo tinico objetivo ¢ o de reproduzir um modelo. Afinal, para que servem os exercicios de matemitica, da maneira como aparecem em certos livros? A atividade parece que se esgota em si mesma, e 0 aluno faz-a tarefa para ver se acerta e no tem a sensagio de estar aprendendo algo que podera ser itil e aplicivel na vida real. Um fato semelhante acontece com certos professors de portugués que passam um ano inteiro fazendo exercicios de anilise sintatica, O uso do método das cartilhas (com livro ou sem livro) é largamen- te difundido entre os professores alfabetizadores porque é um programa de trabalho ja pronto, do comeso ao fim, que se escolhe no inicio do ano € que seré aplicado ao longo dos dias escolares. Algumas pessoas partilham da opiniao de que nao se pode estudar sem um livro didético, s6 que, em vez de escolher livros mais interes- santes, preferem as cartilhas, porque sio mais “praticas”. Na verdade, hé uma longa tradicao escolar que tem produzido cartilha atrés de cartilha, sem propor nada de diferente. Se um professor achar no mercado edito- ial atuel uma obra que ensine a alfabetizar sem o bé-bé-bi-bé-bu, sera ‘um fato surpreendente. Os livros didéticos sio feitos, em geral, por pro- fessores, e como eles nio tém outra visio do processo de alfabetizagao, Fepetem sempre o velho esquema. O circulo vicioso se fecha quando, por falta de material adequado e de ume sdlida formagao linguistica critica, 8 professores justificam a propria incompeténcia apegando-se a tinica bua de salvagio que conhecem, o préprio método das cartilhas.

Você também pode gostar