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"NEM TODA LOUCURA E GENIAL’... 4, GENERAIS, MALANDROS E ANTI-HEROIS 5. BYE BYE, BRASIL 6, HORA DO RECREIO 7. CIDADES IMPOSSIVEIS ...scssceseesenee CRONOLOGIA ..... DISCOGRAFIA. BIBLIOGRAFIA 87 107 13 133 141 165 4. GENERAIS, MALANDROS, ANTI-HEROIS m censor desavisado liberow a letra € niio U foi preciso mais do que alguns dias para que “Apesar deVocé” se convertesse num manifesto contra o “Brasil do milagre”, cantado de boca em boca em tom de desforra. Eram meados de 1970, ¢ Chico Buarque, recém-chegado do exilio, havia encontrado um pais ainda pior do que imaginara. As noticias sobre a tortura, misturadas a0 ufinismo mobilizado pela propaganda oficial, que en- tio ia ao limite da impostura na formula “ame-o ou deixe-o” impeliram-no a fazer 0 samba.“Uma misi- ca que nao tem valor muito grande em si mesma, mas que para mim tem porque foi justamente a resposta a tudo que vi", diria Chico mais tarde." Anti-hino, cangio destemida, mobilizadora, so lar, “Apesar de Vocé” marcaria seu autor como alvo Enreviva 3 Ply (1979), dipontie nose wiewehicobuargue com br. Generis Malandose Antes 69 primeiro da censura. Langada em compacto com“De- siento” no lado B, a musica foi proibida menos de um més depois, quando quase 100 mil edpias haviam sido vendidas. O disco foi retirado das lojas e, ndo sa~ tisfeitos, os militares fecharam também a fabrica onde a bolacha era prensada. Convocado a dar explicacdes, Chico disse que a personagem da cangio era “uma mulher muito autoritiria”. O estrago ja estava feito. Mais do que para qualquer outro nome da MPB, 68 anos 70 para Chico foram marcados pelo enfrenta~ mento com o regime. O que Ihe acarretaria um trans- torno adicional ~ inversio do primeiro:ser carimbado como “o compositor de protesto n° 1” do pais e se ver freqiientemente cobrado por isso. ‘Ainda hoje a imagem pablica de Chico Buarque em alguma medida refémn da caricatura que se cons- truiu em torno dele no auge da ditadura. Sem ser fal- sa, essa versio, insuficiente para dar conta do que ele fazia jé na época, se alimenta da nostalgia de um tem- po em que as clivagens eram mais Sbvias, em que 0 adversirio podia ser facilmente reconhecido, Hoje ela ajuda menos a explicar 0 artista do que os anseios de uma sociedade que projeta sobre © passado sua inca~ pacidade de reconhecer a si mesma no presente. Chico diria em 1979 que se via obrigado a ir a imprensa de tempos em tempos para se “desdefinir”.®” E defini-lo nesses anos nio é tio simples como se quit Sua produgio foi muito intensa e variada. Lan- sou cinco LPs individuais de carreira, dois LPs de shows, uma trilha de cinema, trés discos com can~ gdes de pecas musicais que também excreveu, além de publicar seu primeiro romance, um livro para I. 70 chive Buarue criangas € adaptar um musical infantil. Foi uma épo- ca em que, além dos meios de expressio, Chico mul- tiplicow seus parceiros, engajando-se em projetos coletivos, como o tempo pedia. Parte dessa produ- Gio, no entanto, chegou ao publico mutilada pela Censura e algumas eriagdes simplesmente morteram nas gavetas da ditadura. CONSTRUCAO No caso do LP Constriyio, que surge no inicio de 1971, na seqiiéncia do impacto criado por“ Apesar deVocé”, a versio que Chico fez da cangio italiana “Gesit Bambino” nao pode se chamar“*Menino Jesus”, subs- tituido por Minha Historia”. A misica que da titulo 20 disco, porém, passou incélume, como por milagre. Com ela, Chico finalmente se veria livre do estigma de ser 0 eterno autor de “A Banda”. Mais do que © sucesso da nova obra — estrondoso — 0 que Ihe im- portou foi a renovacio estética que ela representava. Que muita coisa havia mudado jé ficava sugeri- do desde a capa do disco. Emoldurado por um fundo marrom, 0 retrato mostra um compositor que olha fixamente para a cimera,como a desafid-la, Agora tem bigode, cabelos mais longos e veste de modo desali- nhado uma camisa toda estampada. E alguém muito diferente do menino sorridente ou desconfiado que aparecia nos discos anteriores com cabelos bem cur~ tos e arrumados, trajando camisa xadrez. Nao hi mais nada inocente em Constmugio. Muito ja se escreveu sobre a genialidade da can~ ¢io-titulo, de 41 versos terminados todos em pro- paroxitonas. Em “Construcio”, Pedro Pedreiro € como Gover Malaudnse Ami-Herds 72 que esmagado pelo trem que eternamente esperava. Desaparecem a atmosfera algo inggnua e a melodia ainda impregnada de uma esperanga que a letra dos anos 60 projetava no horizonte. Surge em seu lugar um motivo melédico recorrente, como a indicar um tempo presente sufocado e circular, que se auto~ consome no liquidificador de imagens que vio sendo permutadas ¢ embaralhadas até 0 transtorno total de seu sentido, © arranjo de Rogério Duprat, maestro, dos tropicalistas, parte do viokio para ir instalando a cada estrofe uma nova camada de sonoridades, como andaimes, até chegar 3 balbtirdia sinfénica e & entropia insuportivel no final. A construgio da cancio equivale, assim, 3 disso- lucio do operario oculto na letra ~ ou, dito de outra maneira,a cancio descreve, realizando-o, um processo de alucinagio das coisas, de um delirio inscrito na pr pria realidade, do qual o sujeito-miquina é parte vitima, mas no qual nio se reconhece.** A partir de Construgio, no qual aparecem ainda can Bes como “Deus Ihe Pague” e “Cotidiano”,a obra de Chico ganha uma diccio nova, amadutecida, mais cor- rosiva e muitas vezes sarcistica. E a censura o perseguiri de perto: “Se tu falas muitas palavras sutis/ e gostas de senhas, sussurros, ardis/ a lei tem ouvidos pra te delatar/ nas pedras do teu proprio lar'"~ diriio mais tarde,na Opera do Malandro, 08 versos iniciais do “Hino de Duran”, “Partido Alto”, de 1972, foi uma das primeiras a \ sofier com a tesoura, O verso “na barriga da miséria © quae tncontomivel »compangio entre a fanesmayoris suprid pls cago w ‘0 ue Marx define com a esperincts da alienagie. Adis Verena de Montes anal “Conver deforma data eo Drsole Agi: Pose Polio Cli aap. citaps HSE 72 Chico Baar nasci brasileiro” foi substituido por'“nasci batuqueiro”; € 0 “pouca titica” do verso seguinte teve que virar “pobre coisica”. Parddia dos partidos-altos ~ os famo~ sos sambas de roda em que cada membro improvisa uma estrofe —, a cangio fazia humor negro com um dos maiores clichés da auto-estima nacional: a idéia de que “Deus é brasileiro”. “Bom Conselho” seguia na mesma linha, invertendo o sentido dos provérbios, e escarnecendo de outro Iugar-comum da sabedoria popular. © pais estava de ponta-cabega. ‘Ambas as canges, imortalizadas no show que ele faria a0 vivo com Caetano Veloso no final de 1972, em Salvador, foram langadas em Quando 0 Carnaval Chegar, trilha do filme de Caci Diegues em que Chico atuava no papel de si mesmo, ao lado de Nara Leo e Maria Bethania, Um ator canastrio, como ele mesmo diria, embora reincidente. Em 1967, com Tom Jobim, Vinicius de Moraes e a mesma Nara, havia participa- do de Garota de Ipanema, de Leon Hirszman. BANIDO DA GLOBO A censura praticada pelos militares, veio se somar uma outra.A Rede Globo decidiu colocar Chico Buarque no seu index, banindo tanto ele como suas cangdes da emissora justamente durante os anos mais dificeis do regime. O compositor desconhece até hoje as razbes, do veto — provavelmente 0 conjunto da obra —, mas, sabe que parti de uma ordem interna, que nio foi uma imposicio, ao menos formal, da ditadura, As telagdes entre Chico ¢ a Globo comegaram a azedar por ocasiio do 6° Festival Internacional da Can- io, realizado em 1971. Convidados a emprestar seu Geers Malaise Ani Hers 73 prestigio a um evento que ja havia perdido sua razio histérica, virios compositores da elite da MPB aceita~ ram inscrever suas cangdes para depois retiri-las na hora, H. Era uma forma de protestar contra a censura prévia, mas a emissora, sentindo-se lesada, no deixou barato. Por pressio da Globo, os faltosos chegaram a ser inti~ mados a comparecer 3 Policia Federal para se explicar. Pouco tempo depois,a Globo ainda transmitiria um show de Construgao realizado no Anhembi, em Sio Paulo, para logo a seguir desaparecer com Chico da tela, Foi um gelo que durou pelo menos até 1977, quando a cangio “Maninha” foi usada como tema da novela Espelho Mégico. Depois viriam “Joo e Maria”, em Dancin’ Days,"“As Vitrines”, em Sétimo Sentido, & outras mais, Chico, porém, s6 aceitaria voltar a apare- cet na emissora, depois de recusar varios apelos, no inicio dos anos 80, como convidado de um especial com o compositor Joio do Vale, de quem havia co produzido um disco. Em 1986, dividiria com Caetano aapresentacio de um programa mensal na Globo com convidados. Dessa experiencia sairia um disco coleti~ yo, Chico & Caetano ao Vivo, no qual s6 hi uma miisica da autoria de Chico ~ “Sentimental”. CALABAR E JULINHO Mas nenhuma arbitrariedade contra Chico foi tao pesada quanto a que atingiu Calabar em 1973. Escrito em parceria com Ruy Guerra, 0 texto do musical foi submetido a censura prévia e aprovado com cortes € algumas alteracdes, $6 entio, com a garantia de que a peca poderia ir ao palco, Fernanda Montenegro ¢ Fernando Torres, que dividiam a produgio com os 74 Chico Roane autores, iniciaram a montagem, que mobilizava cerca de 80 pessoas ¢ envolvia em torno de 30 mil délares, valor elevado para 0s padres teatrais da época. Como era praxe, os censores deveriam assistir a um ensaio geral na véspera da estréia para conferir a concordincia entre texto e espeticulo. A censura, po- rém, nio compareceu ao ensaio,adiando a temporada. Dias depois, o texto da pega seria solicitado para novo exame em Brasilia, Os militares entio cozinharam Calabar por trés meses ¢, em janeiro de 1974, censura~ ram no apenas a peca como o uso do nome Calabar, sem explicar os motivos. De quebra, proibiram tam- bém a divulgagio da censura O que restou de Calabarapareceu no disco Chica Canta, de 1973 (algumas cépias, logo retiradas de cir culagao, ainda traziam na capa a palavra Calabar pi- chada num muro).“Ana de Amsterdam” e “Vence na Vida Quem Diz Sim” foram transformadas em ver- ses instrumentais; a palavea “sifilis” foi suprimida de “Fado Tropical”; e um trecho de “Barbara” que suge- ria uma cena de lesbianismo foi cortado no final: no se entendem as trés palavras finais quando Chico can- tao verso“E mergulhar no poco escuro de nés duas” A pega, cujo nome completo é Calabar O Elogio da Tiaigao, havia se inspirado na figura de Joio Domin- 208 Calabar (1600-35), mulato nascido em Pernambuco que desertou das tropas portuguesas em 1632 para lutar ao lado dos holandeses. Capturado numa emboscada, ele seria esquartejado pelos homens figis 4 coroa. A motivagio do projeto de Chico ¢ Ruy Guerra era cla~ raraquele que passou 3 historia como protétipo do tra dor da causa portuguesa poderia — por que nao? ~ ser visto como um defensor da liberdade. Havia na pega uma relagio evidente com o pais dos militares e, mais ainda, uma analogia entre Calabar | | | | | | Gov Malandose Ani Henis 75 € Carlos Lamarca, 0 capitio do exército que desertara em 1969 para integrar a guerrilha armada, Lider da Vanguarda Popular Revolucionaria (VPR), Lamarea seria morto por agentes da repressio em setembro de 71, encurralado no sertio da Bahia. Calabar foi finalmente liberada e encenada em 1980, jd fora do contexto que a motivara. Ironicamente, a forma como a censura se deu em 1973 assemelha-se a uma traigdo ou a uma emboscada, os temas da pega. Agastado e consciente de que o cerco sobre seu trabalho havia apertado, Chico preparou um troco aos militares. Em_1974, inventou Julinho da Adelaide. O que seria apenas um pseudénimo para driblar seus algozes acabou se transformando num divertido per- sonagem. A aventura de Julinho durou em torno de um ano,até que sua identidade fosse desvendada numa reportagem do Jornal do Brasil Na stta curta existéncia, a criatura de Chico le- gou trés misicas ao pais. Uma delas,“Acorda,Amor”, mais conhecida como"Chame 0 Ladrio”,é um samba irénico no qual 0 compositor brinca com sua pro- pria prisio (ele que, de fato, havia sido apanhado em casa ¢ levado a depor logo apés 0 AI-5, seria obrigado varias vezes a prestar esclarecimentos aos Srgios da repressio). Como era Julinho quem a asinava ~ e ainda mais em parceria com um tal Leonel Paiva, seu irmio ~, a intisica passou pela censura e integrou o LP Sinal Fechado % 0 priprin Chico fe o puraelo da pega co Lamarcs"A idéts da poga er Alxcutie a tigi, mas a traigio com ws Fnaidade louvivel. Era com dicots f Lamsarea im mtr que pasou pra o lado da gueraha, ea nik um eid "avian paseo evident O wtereve ers ene ri Gpoca. Mais ede, pega fo tencenada myn tinka nas raga Dep a Rein Zappaens Clas Bae opt, p12. 76 chico Baar (1974), 0 tinico de sua carreira em que Chico interpreta apenas cangées de terceiros. Julinho da Adelaide ainda faria “Jorge Maravilha”, uma homenagem a Jorge Ben, na qual o Tefiio ~ “Vocé nao gosta de mim/ Mas sua filha gosta” ~ foi logo identificado como um recado a0 presidente Ernesto Geisel. Chico, no entanto, sempre negou que a misica fizesse alusio 4 filha de Geisel,Ama~ lia Lucy, alegando ter se inspirado nos censores que Ihe pediam autografos para supostamente presentear suas fi Ihas. © tinico registro da cangio na voz de Chico foi feito durante a gravagio de um show realizado no Rio, ainda em 1974."Milagre Brasileiro”, tiltima criagio de Julinho, nunca foi gravada pelo verdadeiro autor. Em setembro de 1974, Julinho concedeu uma lon- ga entrevista a0 jornal Ultima Hora.®* Era um escirnio completo, coadjuvado pelo pai de Chico, 0 historiador Sérgio Buarque, Julinho dizia que evitava aparecer em. piblico porque tinha uma cicatriz no rosto, atingido pelo famoso violio que Sérgio Ricardo atirou contra a platéia no 3° Festival da Record, em 67, Mais adiante, estocava Chico, dizendo que ele nio sabia cantar,e logo depois completava:“Ele ti faturando em cima do meu nome e ev estou faturando em cima do nome dele. ‘Acho que isso é normal. [...] Eu sou é pragmitico”. ‘Como Julinho nio podia revelar seu rosto, a en~ revista surgiu emoldurada por uma imensa foto de uma mulher negra e sorridente. A Jegenda a identifi- cava como Adelaide de Oliveira, sua mie, moradora da favela da Rocinha, amiga de Oscar Niemeyer e de Vinicius de Moraes. Era,na verdade, uma imagem que Sérgio Buarque pingara de um de seus livros de hist6~ ria. Para completar 0 teatro, Chico ainda daria uma 4 integra et pone no site wwe hicobuarue.com br. Genesis Malawtose ami-Herbs 77 entrevista ao Jornal do Brasil, na qual respondia is provocagées de Julinho.* GOTA D‘AGUA Em 1975, Chico ¢ Maria Bethania fizeram uma tem- porada de varios meses e enorme sucesso no Canecio, do Rio, da qual resultaria um disco ao vivo. Mas ele s6 voltaria a subir no palco para uma nova temporada 13 anos depois, com o show do disco Francisco, langado em 1987. O longo jejum foi de inicio motivado pela decisio de se livrar do papel de porta-voz da resistén- cia, daquele de quem se esperava sempre a boa palavra politica. Havia, porém, uma razio mais forte e dura~ doura para 0 recolhimento: o panico do palco, Chico descreve em diversas ocasides a sensacio de terror que o dominava sempre que tinha um show pela frente:“‘Se eu pudesse fazer isso profissionalmen- te e ser um artista e me transfigurar, tudo bem. Mas nio, eu me sinto muito exposto como ser humano. [...] Sou incapaz de subir no palco sem estar, no digo bébado, porque ai erro tudo, mas sem estar 30% mo- vido a alcool” O hibito de beber muito 0 acompa- nhou até meados dos anos 80.“‘Bebia todo dia e bebia coisas fortes. E fai parando, comecei a enjoar.[...] Hoje s6 tomo vinho, cerveja~ nem todo dia", disse numa entrevista em 1994. > © puso € satralo por Humberto Werneck no seu Cho Baan ~ Lata « Misa op cit pp 136-4, anh por Regina Zappa em Cn Bnaype op. i. pp 34, nites § apy (107; wwwehicobuarg om chic argue Enquanto fizia.o show com Bethania, Chico es- creyeu com 0 dramaturgo Paulo Pontes a pega Gora d’Agua, que estrearia no final de 1975. O texto foi de- senvolvido a partir de uma adaptacio que Oduvaldo Vianna Filho, o Vianinha (1936-74), havia feito para a TV da Medéia, de Buripides (4842-406 a.C.). A tragédia grega é conhecida: ao ser abandonada por Jasio, que a deixa para casar-se com a filha de Creonte, Medéia se vinga matando primeiro a nova nova e a seguir os pro- prios filhos que tivera com ele. Depois prepara uma comida com os cadaveres € a serve ao ex-marido, _ Tudo isso apareceri bastante mudado em Gota a’ Agua. A intencao dos autores foi dar um inequivoco contetido social 4 trama, transformando-a numa “tra gédia brasileira” ~ expressio deles. Jasio ser entio um, compositor popular que trai Joana (Medéia) e sua co- munidade para se mancomunar com Creonte, propri etirio do conjunto habitacional de subirbio onde morava, e casar-se com sua filha, Alma. No preficio fortemente engajado que escreveram a0 texto da peca, Chico e Paulo Pontes fazem uma anilise do autoritarismo brasileiro ¢ dos aspectos pre- datérios ¢ excludentes do capitalismo que entio se ins- talava no pais.A seguir, criticam 0s rumos da produgio artistica e sugerem uma espécie de horizonte estético © politico a ser perseguido naquele momento. Invocando a necessidade de voltar a valorizar a palavra na dramaturgia brasileira, os dois diziam:"O povo Nee Maas do Pros cit. 474A Regina Zap,Chico dizi ent ho wing, munca mas tomer dese 4,85. Depo par corn o eo, o5 desi [J Acho até que eu er ales. |.) Bebia tke que quando eu pra Fava mio aére, nosis que dizer io pos dar envi sem beber um pouco. Egan rv ie in a sindrome de abstinénea”, Op ci. 9, Goris Maloutose An Hes sumiu da cultura produzica no Brasil ~ dos jornais, dos, filmes, das pecas, da TV, da literatura etc. Isolado, seccionado, sem ter onde nem como exprimir seus in- teresses, desaparecido da vida politica, o povo brasileiro deixou de ser 0 centro da cultura brasileira. Ficou re- duzido 3s estatisticas e As manchetes dos jornais de cri- me, Povo, 36 como exético, pitoresco ou marginal”. 2 Ha nessa passagem uma evidente evocagio dos CPCs do inicio dos anos 60, dos quais Vianinha € 0 préprio Paulo Pontes foram figuras de grande desta~ que. Mas é muito mais ficil reconhecer 0 espirito do segundo do que o de Chico no tom que anima o preficio, Tanto 0 viés sociolégico como a inclinagio programitica destoam da maneita pela qual Chico prefere se expressar e relacionar sua obra coma hora histérica do pais. A Opera do Malaudro,de 1979, ira retomar o tema do idedrio nacional-popular. Mas o fara em chave ir nica e parédica, tratando-o antes como um problema que ficou sem solugio do que como uma saida que se poderia vislumbrar.J4 em Gora d’Agua, porém, vemos um dramaturgo mais maduro que 0 autor de Roda View e Calabar, Nesta diltima, 0 texto servia quase que para costurar as cangdes; em Gota d’Agua, hd uma car- pintaria textual bem mais elaborada, resultado da com- binagio da prosa versificada e da linguagem coloquial, Eleitos os dramaturgos do ano em 1975, Chico ¢ Paulo Pontes boicotaram o Moliére, recusando-se a re- ceber © prémio. Chico se explicaria depois: “Quando Gora d’Agua foi considerada a melhor pega, no mesmo ano Abajur Lilés, de Plinio Marcos, foi proibida. Neste Ga dag (G0 be ansines Crthzagso Brora, 1975 ree), p96 80 Chico Buarge mesmo ano, Rasga Como, de Oduvaldo Vianna Filho, teve abortada uma tentativa de encenagio, também por ordem da censura. [...] Chegamos 4 conclusio de que seria pouco ético botar smoking e ir li receber um pré- mio que talvez nem fosse da gente”. Entre Gora D’Agua e a Opera do Malandro Chico fez uma pequena obra-prima destinada as criangas, Langado em 1977, Os Saltimbancos era a adaptagio de um musical dos italianos Sergio Bardotti ¢ Luiz Enriquez, inspirado no conto infantil alemio “Os Miisicos de Bremen”, dos irmios Jakob e Wilhelm Grimm. Na versio de Chico, o musical se tornou uma espécie de Revolusio des Bichos ao contririo, uma fi- ula contra a opressio cantada pela voz de animais. Se © romance de George Orwell era uma paribola dos horrores do stalinismo, Os Saltimbances foi um exerci cio lidico contra © Brasil dos militares que vinha re- afirmar as convicgdes de esquerda de seu autor. DEPOIS DA TEMPESTADE Com Meus Caros Amigos, 0 disco de 1976, ¢ Chico Buargue, langado em 1978, a obra de Chico soffe uma inflexdo, como se filtrasse uma nova atmosfera ¢ fosse ela propria 0 veiculo de uma corrente de otimismo que comecava a ganhar forga no pais. A medida que 0 ambiente se desanuviava, porém, 0 elo da cultura com. as aspiragdes populares, que havia sido rompido em 196+ € estragalhado em 1968, voltava 4 ordem do dia — ou deveria voltar. Ocorre que nem a cultura nem as aspi~ arin reins Hs (28/10/1976). Generis Malaniasmi-teris rages populares eram mais as mesmas. Esse desencontzo histdrico num momento que deveria selar uma comu- nhio estar no centro da Opera do Malandro, Nesse novo pais, como ele cantaria,“o malandro anda assim de viés”. E preciso paciéncia para acompanhar os passos desse descaminho que conduz da afirmagio a frustra~ io democritica na obra de Chico. Em “O Que Seri (A Flor da Terra)”, cangio que abre Meus Caros Amigos, & inconsciente da histéria que parece irromper com firria para falar, ou antes invocar em forma de perguntas,aquilo que nio se pode denominar ~ 0 proprio desejo (ou a utopia): © que nid tem governo nem munca ter’ © que no ten vergonha nem unica teré O que nao tem juizo" Chico ainda pregaria mais uma peca em seus algozes da censura em “Corrente (Este E um Samba que Vai pra Frente)”. Lida na ordem normal, a letra soa ufanista ¢ di a impressio de que seu autor capitulou: “Bu hoje fiz um samba bem pra frente/ Dizendo real- mente © que é que eu acho/ Eu acho que meu samba éuma corrente/ E coerentemente assino embaixo” ete. ‘Ao repetir a letra pela terceira vez, no entanto, Chico introduz uma outra voz sob a primeira, que, simultinea e mais abafada, canta a miisica de tris para frente, contra a corrente. O sentido ¢ entio toralmen- te subvertido:“Isso me deixa triste e cabisbaixo/ Nio " Adis Bezera de Meneses v®em“O Que Seri"2"grandecangio" do que cham de“varante apc” na obra de Chico «die que ela epreiens wa cats, poi ‘elementos configuradoes da eangio de proteta ~ orto ealda,o dese sade, a pulsio vil alenciads~ todo eu sinc i explo” (Des Afi, op. iiss), Chic Beare ver a multidio sambar contente/ Tem mais é que ser bem cara de tacho/ Pra ver que 0 samba esti bem melhorado” etc. Dificil de ser apreendida mesmo quando ouvida com muita atengio,a inversio da letra funciona quase como um exercicio para consumo interno, um tapa final com luva de pelica desferido na carranca do re~ gime. Vale aqui a maximavde que a melhor ironia & aquela nio compreendida pela vitima, . “Meu Caro Amigo” a altima cangio do disco, & ‘uma carta-chorinho ao dramaturgo Augusto Boal (par ceiro de Chico em “Mulheres de Atenas”), entio em, Portugal. Seu tom é familiar e descontraido, fala da cachaga e do cigarro, di noticias do pais do futebol, do samba e agora também do rock's roll. © que ele quer dizer a0 amigo, porém,“é que a coisa aqui té preta”. ‘Mas soa tio alegre, tio cheio de leveza e de ressonin- cias afetivas o seu recado que é quase como se dissesse que a coisa ji estivera mais preta antes. Mews Cares “Amigos se enccerra, assim, deixando atris de si aquele ar fresco que se respira depois da tempestade, embora seus efeitos ainda se fagam sentir. A VOLTA DO MALANDRO Chico Buargue, 0 disco de 1978 em que ele esti na capa com uma samambaia ao fundo, comega exata~ mente onde termina Meus Caros Amigos. A presenga de Francis Hime, seu principal parceiro no perfodo, > Quem chamou a tengo pata compen complesa de “Corrente” foi Peo Alesande Sanches ems Tpclimo~ Deca Bon do Saas. op. ct Conrais MalanroseAni-Heris $4 aproxima as duas obras, muito marcadas pelos arranjos com flautas e piano arpejado. “Cilice”,“Tanto Mar" e “Apesar deVocé”, clis~ sicos censurados pela ditadura, sio enfim liberadas, pasando a limpo a dor e renovando a esperanca que haviam sido silenciadas, O disco de 1978, porém, sera mais do que isso. O espago central que nele & dedica~ do ao samba talvez seja uma de suas grandes novida~ des a ser explicada. “Feijoada Completa" — tema do filme Se Segura, Malaudro, de Hugo Carvana—que abre o disco,é quase um milagre da simplicidade, E dificil imaginar um sam= ba que sobreviva tendo como protagonistas o paio, a carne-seca, 0 toucinho, a farofa, a couve mineira, a Jaranja-baia ou a seleta Pois bem. Este é um samba da gema ~e genial. que ele descreve é uma festa popular que se faz passo a asso, ingrediente por ingrediente,como quem vai pon- do em cena, da maneira mais caracteristica e alegre pos sivel, um Brasil que estava abafado, sumido, esquecido no 36 pela ditadura, mas sobretudo pela sociedade civil organizada que se alimentou das"*canges inteligentes” de Chico Buarque enquanto fazia a resisténcia, Os amigos da “Feijoada Completa”, “que vio com uma fome que nem me contem” e“uma sede de anteontem”, certamente no sio os que tém assento nas reunides da esquerda universitéria; sio 0s outros, 0 povio, para quem “nio é preciso por a mesa nem dar lugar”, para quem basta “pdr os pratos no chio e 0 chio ta posto”. Sao, pode-se dizer, os convidados de ‘iltima hora do banquete democritico. E por isso que © refrio da cangio insiste em repetir:“E vamos botar Agua no feijio” E como se Chico perguntasse: essa abertura para todos? Vai caber todo mundo nessa festa das 4 chico tuargue esquerdas confraternizadas na sociedade civil? B claro que nfo era isso 0 que passava na cabega do autor como intengio deliberada quando compés a sua “Fei- joada Completa”. Mas isso € pouco relevante. A genialidade da cangio esti justamente no que ela tem de mais simples: ela realiza a sua propria festa popular. Aquela que o pais ira frustrar. A figura do malandro é neste momento decisiva na obra de Chico. A afeicio que ele Ihe dedica esta expressa ji no titulo de um de seus sambas mais famo~ 50s —“Homenagem ao Malandro”.Trata-se, no entan- to, de uma homenagem péstuma: “Eu fui 4 Lapa © perdi a viagem/ Que aquela tal malandragem/ Nio existe mais”. Ele ira cantar no o malandro, mas,antes, a sua extingio — personagem de um Brasil que desa~ parece, no qual nio cabe mais essa mistura Ho carac~ teristica de astticia e ingenuidade, essa reunido entre malemoléncia e marginalidade que, mais do que uma forma de sobrevivéncia, resulta num estilo de vida. Esse malandro por assim dizer “artesanal” ira su~ cumbir sufocado pela institucionalizagio da malandra~ gem, pelo aparecimento de suas formas modernas ¢ anénimas multiplicadas em escala industrial pelas elites: Agora jd niio & normal © quie dé de matandro regular, profissional © asda & wm ip recorente nconfudind-e vos rmorientos com um simbolo da identdade naciomi Vera ese repeito @ crsio Tiheico de Antonia Candido,*Dialxca da Matandragen ert O Die ida nes, 1993), no qual a autor localiza o substrate social bist = io Pal Das C rico que origina smalandragem ents. & deve estudo que Gilberto Vasconcelos 1 Mttin Suruki Je extrac o angumenes cetzl do enaio"A Mnwdragem € Forage da Misics Popule Basie”, cm O Beast Republican como 3,4 dn Hii Ger da Clin ase (S50 Pru: Dil, 1984), Genera Malanios eaters 85 ‘Malandro com aparato de malandro oficial Malandro candidato a malandro federal ‘Malandro com retrato na colusa social ‘Malandro com coutrato, com gravata e capital Que munca se dé mal Na Opera, porém, apesar de extinto,o velho ma- landro sobrevive. Depois de ser‘“julgado e condenado culpado pela situacio”, como diz a cangio“O Malan dro”, que abre a pega, ele iri reaparecer “na sarjeta do pais”, como canta “O Malandro n° 2”, que fecha 0 musical de Chico: O cadaver Do indigente E evidente Que morren E no entanto Ele se move ‘Como prova O Galileu Neste absurdo tragicémico estio condensadas a identidade e a inviabilidade do pais popular — de um Brasil que desaparece mas insiste em sobreviver como “memiéria, projeto, presenca ou residuo, ali mesmo onde parece extinguir-se de vez". Nio parece exa~ gerado afirmar que o malandro assim configurado também uma espécie de alter ego do proprio Chico. Formalmente,a Opera do Malanndso & um pastiche dos musicais americanos, dos quais apropria com iro~ Asexprowses do de Joré Mig Gilheme Wisk no enstio“O Aras © & Tempo", ciado (woe 5) 86 chive Baar nia todos os clichés. Concebida a partir da Opers dos Tids Vinténs (1928), de Bertolt Brecht, ¢ da Opera do Mendigo (1728), de John Gay, ela focabiza a fase final do Estado Novo (1937-45), de Gettilio Vargas, para falar, por alusio, da agonia do regime militar. Mas ela € também satira dos rumos do progresso ¢ da ameri- canizagio televisiva do pais, da moral e dos costumes pequeno-burgueses e das proprias aspiragdes popu- ares de sew autor. Obra espantosa, a Opera € um ré~ quiem de uma época em forma de chanchada e a0 mesmo tempo a critica escarnecedora daquilo que estvamos nos tornando. Como resumiu Chico numa entrevista: “Quan- do tudo esti colocado em seu lugar, 0 status quo esta- elecido, volta 0 malandro estropiado ¢ di seu recado: apesar de tudo, estamos af, Que, apesar de todas ag aparéncias, do laudo cadavérico, ele ainda se move. E ‘apenas tna piscadela de esperanga, nao é wna solugio” © « Baaevist revit Hea (2/8/1978) Grif nosis 5. BYE BYE, BRASIL omposta em 1979, ano da abertura ¢ da anistia,"Bye Bye, Brasil” passa ao largo de qualquer sentimento euférico ou otimis- ta,muito distante daquela hora politica. Sua relagio com a histéria ¢ outra. © tempo que ela re- move é mais lento e mais sedimentado, obra de gedlogo escavando as ruinas do pais. (O filme homénimo de Caci Diegues, para o qual Chico fez a miisica, é uma espécie de road movie brasi- leiro. Acompanhando as andangas de um grupo de citco mambembe — a caravana Rolidei -, "Bye Bye, Brasil” mostra a transformagio da culeura popular sob co impacto da chegada daTV € das novelas aos rineBes miseriveis do pais. © Brasil do milagre era entio apresentado pela primeira vez sob a ética de seus efeitos desagregadores, como se a propaganda do progresso e ele proprio fos- sem stibmetidos 20 teste da realidade. Ou, dito de outta maneira, o filme revelava que a famigerada integragio, Bye ye.Bra 89 do territério nacional, meta perseguida com obsessio € ‘megalomania pelos militares, se tornara enfim um fato —s6 que virtual. A TV passava a ser o simbolo e o vei- culo da unidade do pais e da identidade nacional, que la iria moldar & sua imagem e semelhanga. “Bu vi um Brasil na TV" diz e repete a cancio, O sonho de uma civilizagao brasileira ficava assim re duzido a0 tamanho da telinha.A grande obra do regi- me militar foi a invengio da Rede Globo como espelho do pais — essa a moral da histéria.Ainda hoje esse ima~ ginario permanece como centro de gravidade da cul- tura nacional. Mais ainda do que o filme, a cangio de Chico em parceria com Roberto Menescal funciona como um ponto de chegada do “Brasil grande” dos milita~ res, mas também de todo o ciclo desenvolvimentista iniciado nos anos 50.De um e de outro, ela recolhe os resultados como quem compe um mosaico. Ao faze Jo, a0 mesmo tempo que testemunha uma agonia em curso, vai montando o quebra-cabega de um pais nove © estranho, que se revela na ditima ficha que caiu “Bye Bye, Brasil” comeca com alguém ligando para a mulher de um orelhio de um canto qualquer do territério. [dentificamos logo que se trata de um filho do iiltimo suspiro do milagre brasileiro, alguém 4 deriva em busca do Eldorado que lhe haviam prome- tido. Ja nos primeiros versos ~ “Oi, coragio/ Nao da pra falar muito nio/ Espera passar 0 avido/ Assim que 0 inverno passar/ Eu acho que vou te buscar”, quem. fala € um sujeito allito, querendo e precisando se apro- ximar do que é seu, mas impossibilitado de fizé-lo, refém de uma situagio precaria que ameaga interrom- per a sua prépria voz. Tudo est’ por um fio. Sua fala ao telefone segue entrecortada, avanga aos solavancos, vai e volta, amontoando pedagos de vo Chico Buon historias, lashes de paisagens, recordagdes ¢ comenti- rios do que viu ¢ viveu, confissdes de saudade © de suas agruras, relatos incongruentes do que ele planeja fazer dali em diante. O titulo da cangio ~ que evoca, por contraste, slogan “pra frente, Brasil”, da ditadura — j& sinaliza que ela gravita em torno do abandono. Mas nio é 0 sujeito que deixa o pais, cujo fundo falso ele ainda insiste em cavar, pelas beiradas, e sim o pais que por assim dizer abandona a si mesmo. Entre 0 exilio forgado de “Sabid” (1968) e o exilio voluntario de “IracemaVoou" (1998), que vai para a América a fim de tentar sua sorte e “tem saudade do Ceari/mas nfo muita”, ha um intervalo de 30 anos, marcados por uma sucessio de desenganos e pelo colapso de um projeto nacional de que “Bye Bye, Brasil” faz uma expécie de inventirio. Feitas as contas, 0 protagonista da cangio é uma espécie de 2umbi vagando sobre escombros pelas franjas do pais. “Aquela aquarela mudou", diz a cangio. O Brasil estilizado por Ary Barroso ficou na saudade. E 0 que o sujeito registra agora por onde passa sio jun- des esdraxulas do pais arcaico com o pais que se modernizou~o fliperama em Macau, 0 indio vidrado na sua calea Lee, a usina que talvez deixe 0 mar ruim para pescat, o som dos Bee Gees no Tabariz, os patins ea TV marcando presenga no fim do mundo. 1 Sio contetidos, como observam José Miguel Guilherme Wisnik, que “correspondem até certo ponto Aqueles que © movimento tropicalista anunciava doze anos antes”. Nio basta dizer, porém, como fazem os autores, que em “Bye Bye, Brasil””“a profecia tropica~ lista desce a niveis de realidade mais chios, porque “Vero ene “O Arties © Tempo”, ji cite (nos 8) Bean, Brasd 9 agora se generalizou e esta em toda parte, inclusive na psicologia do homem comum, que é onde Chico Buarque a toma para si”. “Bye Bye, Brasil!” & antes 0 avesso da profecia tropicalista, ou sua critica interna pela exposicio de sua tealizacio histérica. Eis no que resultou o pais enfim modernizado ~ esse 0 foco e o ponto de fuga da cangio. E como se a profecia tropicalista final mente se desvendasse nesse aciimulo de imagens dis~ paratadas porém reais,em que a presenca do mercado € 0s sinais da internacionalizagio contracenam com Serra Pelada, rodovias-fantasmas, doencas venéreas, indios moribundos hipnotizados pelo consumo ¢ outros delirios tropicais, Dividido entre a reminiscéncia de um pasado idealizado que © reconforta ~ “a saudade de roga ¢ sertio” ~ € a expectativa diante de um fituro que de certa forma ja se realizou ~ € é portanto uma mira~ gem ~, 0 sujeito ao telefone se sente como um “jil6”, condenado a um presente que nao tem mais fim —“o sol nunca mais vai se pér”, diz o iiltimo verso da can- do. A melodia reiterativa de Menescal, girando sobre si mesma, completa a sensagio de algo que anda sem. sair do lugar,de uma conversa que nao ata nem desata, Mas a partir de certo ponto o ritmo se acelera, impri- mindo 4 misica uma pulagio mais ofegante, um cer- to descontrole que nio cessa mesmo quando a letra termina. Onde isso vai parar? Essa a divida que a miisica em disparada deixa ecoando atris de si Este 9 panto de diverges do atorcom ete vem dos milhores ems certo brea obra de Chico Burge 2 Chico Buargue EUFORIA E FRUSTRACAO. Dizfamos, no final do capitulo 2, que Chico Buarque jria encontrar nos anos 80 um pais que havia perdido pé © 0 prumo no curso de sua transformagio sob a ditadura Vimos como" Bye Bye, Brasil” identifica 0 vetor desagregador dessa mudanga, debrucando-se sobre seus estilhacos.A partir de entio seria impossivel para Chico reviver a unidade do pais nacional-popular. Essa dificuldade se evidencia em dois de seus sam- bas mais famosos ~ “Vai Passar” e “Pelas Tabelas”, rela cionados 3 euforia e 4 frustragio da campanha pelas Diretas em 84. Das duas, “Vai Passar” mais linear € bem mais empolgada, um samba-enredo apoteético que narra de forma alegorica a libertagio de um pais que vivia “subtraido em tenebrosas transagdes” e no qual seus filhos “erravam cegos como penitentes erguendo es- tranhas catedrais”, A cancio, porém, nio deixa de jronizar sua propria euforia, relativizando sua vocagio de epopéia redentora. A comegar pelo fato de que a “evolucio da liberdade” é descrita como uma “alegria fagaz", uma “ofegante epidemia”. Tudo, enfim, nao passa de Carnaval. ‘A ironia se explicita e se completa quando en- tram em cena os “bardes famintos”, os “napoledes retintos” e os"“pigmeus de bulevar"~ e 0 cantor entio anuncia que 0 “estandarte do sanatério geral vai pas~ sar”. Estamos diante de uma exposigio quase glauberiana do transe popular. © reftio final ~ “Ai, que vida boa, oleré/ Ai, que vida boa, olari” — & a consagragio de uma félicidade delirante, de um povo ensandecido que se consome e se esvai na eterna quizumba brasileira ye tye Bros “Pelas Tabelas” leva ainda mais longe a exposi¢io desse curto-circuito, Agora & 0 proprio compositor que se vé enroscado numa espécie de sonho-pesadelo. Nao ha mais uma histéria, um enredo com comego, meio fim a ser contado, mas uma narrativa que se move de modo circular, misturando os registros individual e coletivo, sem que se saiba ao certo em toro de qual objeto a cango constréi sua expectativa, que seri reiteradamente frustrada. Aqui, como em “Bye Bye, Brasil” (¢ tantos ou- tos casos), letra e miisica se completam de modo no- tavek a melodia tem por base um padrio repetido de acordes que faz prever um ciclo de oito compassos, mas © retorno se di sempre antes do esperado ~ 0 ciclo se fecha antes do tempo, a0 final do sétimo com- Passo, que conclui nao no oitave mas naquele que jé ¢ © primeiro do ciclo seguinte ~, assim como os versos também completam cada estrofe no comego da se~ guinte, sem fim. Chico defini “Pelas Tabelas” da seguinte for- ma:“E um sujeito procurando uma mulher, apaixo- nado, no meio da manifestacio pelas Diretas. E essa confuusio do individual com o coletivo, apontando muito para 0 individual naguele momento coletivo. |...) ‘Tem um pouco essa confusio do Estorvo, essa bara- funda mental”. HG ainda mais um aspecto importante a acres~ centar. No turbilhio de imagens que a cangio poe em circulagio, algumas delas investem © povo, ou 0 coletivo, de uma fiiria destruidora que se volta ora contra um opressor anénimo (“Eu achei que era 0 & Enarevies 5 Fata (1/1/1999), rads can Mite fo Pru op. cit TO, 4 Chico Buarue povo que vinha pedir a cabega dum homem que olhava as favelas”), ora contra o proprio compositor (“Minha cabega rolando no Maracana” ¢ “Com minha cabega ja numa baixela”). O transe popular, que em “Vai Passar” se resolvia numa festa car navalesca, agora, em “Pelas Tabelas”, assume feicdes birbaras. E aqui também estamos pisando num terreno, o da anomia social, o da impossibilidade de identificagio coletiva, que nos aproxima novamente de Estorvo. “PelasTabelas”é um bom exemplo do alcance das cangdes de Chico. Motivada por um evento histérico bem determinado — a campanha pelas Diretas -, ela nfo s6 iluminou aspectos nada evidentes ¢ contradi~ térios daquele momento, como Ihe sobreviveu, pare~ cendo até mais atual hoje do que quando foi feita. A sensibilidade social que a misica fisga no ar nos é to- talmente contemporinea. ‘Algo andlogo, embora no exatamente da mesma ‘maneira, acontece com “Bancarrota Blues”, parte do musical Corsério do Rei (1985), feito em parceria com Edu Lobo, depois incluida por Chico no LP Francisco, langado em 1987. ‘Aqui o pais insolvente ~ Aquela altura dos anos 80 literalmente de quatro diante da divida externa (¢ algo mudou?) — surge na imagem de uma imensa fazenda colonial, um éden tropical cujas maravilhas sio cantadas pelo proprietirio falido. O que ele anuncia e poe a venda, porém, nio sio apenas as riquezas naturais do lugar, mas um estilo de vida desfrutivel —“‘chapéu de sol” e“diamantes que rolam no chio” se juntam a"*nuita mulher pra passar sabio”, “negros quimbundos”, “diversos agoites” e “papoula pra cheirar”.A propria mtisica vem integrar 0 pacote de encantos com “doces lundus pra nhonhé sonar”. ayeay Brad 95 £ portanto toda uma civilizagao que se apresen- ta e se oferece aos curiosos. A graga, porém, nao se resume ao fato de Chico ter ido buscar no passado escravocrata a melhor metafora do Brasil contempo- rineo. O ritmo da cangio também é por assim dizer “importado”. Um blues arranjado em tom de jazz de cabaré.” O efeito cémico do conjunto é grande ~ a época é colonial e a miisica é estrangeira, mas a hist6- ria é atual e muito nossa, Mais do que alegorizar o pais de Sarney, Color, FHC ou Lula, “Bancarrota Blues” identifica, pelo escirnio, um problema que Ihes é anterior ¢ a0 mesmo tempo os ultrapassa: a situacdo de uma nago cujo atrativo se resume a um estilo de vida exdtico a ser consumido. Chico mais uma vez flagra o aspecto cinico e ornamental de uma cultura que se tornou incapaz de articular qualquer projeto coletivo de vida material.” ANGUSTIA NO AR Se voltarmos ao inicio dos anos 80), veremos desde li a gestagio de uma mudanga na criagio de Chico Buarque. Ji nos discos Vida (1980) e Almanague (1981) ‘Acapresiog de Reo Alsande Sanches. de quem acompanho outros cones sate esa cana Ver Timo ~ Dain Bots do Sah 09.0 PD. Ese ponto ecoa a seginte pasagem de Roberea Schwa: pergunta no & retérca 9 que, que sis ua euler racial ie a ace nent ‘projto coetve de vide materi « que tenha asad 2 Matar publicitarnmente ro mired por ws ez, agora cam cc to, co op ata p 162, um ola de vids mpc ‘Nero enstio "Fim de Séeulo", Seguin Beso 96 Chico Baonyue comega a ganhar corpo a expresso variada de um sentimento de desilusio, que iri se traduzir ao longo da década num distanciamento maior em relagio 4 referencia politica, numa ironia mais aguda que nio poupa nada nem ninguém ~ muito menos asi mesmo ~e, finahnente ¢ talvez mais importante, mma ex- pansio do lirismo em stia obra ~ lirismo que Ihe inttinseco desde o inicio, mas que iri assumir nova forca e dicgio diferenciada no compositor que se vé js voltas com a idade madura. ‘Antes de abordar esse tiltimo ponto, vejamos mais de perto como 0 compositor assimila € reage a0 desa~ certo do pais consigo mesmo. Fiquemos por mais um instante com Vidae Almanague. © que mais chama atengio na misica que dé titulo ao primeito dos dois discos é o balango precoce que Chico faz de si mesmo. Menos do que tima auto~ biogralia, o que a canco apresenta € uma espécie de auto-exame severo e desenganado, marcado pela re~ peti¢io do verso “olla o que € que eu fiz" Depois de constatar que sua vida foi despercicada com os outros — homens “vazios” e “vadios” ~ e de por em divida a sua propria felicidade, 0 cantor final- mente reconhece:“Mas, vida, ali, eu sei que fui feliz” ‘A passagem equivale 4 revelagio de um segredo, as- peeto acentuado pela expressio “ali”, Ali onde? No fando de si mesmo ¢ apesar de todos os pesates “Toquei na ferida/ Nos netvos/ Nos fios/ Nos olhos dos homens/ De olhos sombrios”, diz a cancio. E 0 trecho cujo referente € mais facilmente identi- ficivel. Pensamos logo nos embates de Chico com a ditadura. E depois? E agora? O compositor esti longe de parecer alguém apaziguado; pelo contririo, solicit novos caminhos, desafiando-se, como quem dobra uma aposta no escuro:"*Luz, quero In2”,"mais, quero mais”, Ss ye By Bs cle implora, em tom ansioso, comparando a existéncia 2. um eterno teatro (“infinitas cortinas, com palcos atris”) e seu futuro a uma aventura em mar aberto (arranca vida, estufa vela, me leva, leva longe, longe, Teva mais”) —— Sio metiforas para a existéncia bastante conhe- cidas ~ 0 teatro e 0 mar =, mas 0 que se retém dessas imagens é sobretudo o impulso de ultrapassar a si mesmo, de se livrar de um fardo, de abandonar stias referéncias, de ir para longe. Deve-se falar em exposi- gio de uma crise? Pode ser. Mas talvez no seja des propositado ver aqui, nesse desejo de seguir adiante, mas sem saber como nem para onde, a tradugio inti- ma, pessoal e intransferivel do mesmo mal-estar quie identificamos em “Bye Bye, Brasil”, O que ld foi configurado em. termos sociais ¢ historicos, agora atravessa a subjetividade do artista. Assim como o pais, a vida ficou sem ponto de apoio. O proprio Chico admite que esse € um periodo nebuloso na sua cabega, sobre o qual tem dificuldade de se fixar e refletir retrospectivamente.”" Ji em “Almanaque”, a cangio que di titulo a0 disco de 1981, esse caldeitio de questionamentos e de insatisfagdes deixa de ter 0 proprio compositor como referéncia.A interrogagio ii se debrugar agora sobre © curso do mundo, ao mesmo tempo que tom exas- perado cede lugar a uma abordagem cheia de humor ¢ ironias, Como o titulo sugere,“Almanaque” estende sua ee de modo aleatério aos objetos mais vari- ados ¢ inimaginaveis, mas sempre segundo um princi pio lidico, como se fosse uma crianga crescida quem, * Depoimento ao aor 8 Chie Baan perguntasse sobre as razbes primeias das coisas © © sentido do seu fancionamento. Tudo parece ser um. jogo. Chico inventa 0 seu almanaque de fundo filos6~ fico, ele proprio repleto de absurdos, como quem se diverte com 0 sem-sentido da vida. Os dois versos finais — “Pra que tudo comegou?/ Quando tudo aca~ ba?” — dio cangio um aspecto grave que destoa da quase-brincadeira do que vem antes, aproximando-a por suia vez de “Vida” © que eu fiz de minha vida, pergunta-se pri- meiro Chico; 0 mundo esti de pernas para o ar, cons- tata cle em seguida. Cada uma a sua maneira, esas duas cangées traduzem na sua origem um sentimento de mal-estar e de desajuste, diante dos quais 0 proprio assumto do compositor Ihe escorre entre os dedos. Sio cangées sintomaticas, que falam de tudo e de nada ao mesmo tempo, como se Ihes faltasse_ um foco, uma Ancora onde fixar sua perplexidade flutuante. Seria abusivo relacionar essa atmosfera 4 evaporacio da re- feréncia nacional? LIRISMO E LUTO Fakivamos ha pouco do lirismo como um dos tragos que marcam a obra de Chico nos anos 80. O que parece dilerencié-lo das cangoes de amor de perio- dos anteriores é o registro mais introspectivo e ensi~ mesmado, sua vocacio para o mondlogo, no qual a énfase se desloca da exposi¢io do conflito com 0 objeto cantado para uma espécie de reflexio melan- célica ¢ solitiria em torno de sua auséncia. E evi- dente que tudo isso precisa ser matizado, nio pode ser tomado como tm esquema, mas 0 que 0 pré- Beby Brat 29 prio Chico parece assinalar quando diz:“Muito de meu trabalho nos anos 70 estava ligado a0 teatro, Eu falava através de personagens, enxergava através de outros olhos. [...] Muitas de minhas cangdes amoro- sas também por conta do teatro eram sempre drami ticas. ‘Olhos nos Olhos’ (1976), por exemplo, é uma cangdo muito teatral. As miisicas mais recentes como, por exemplo, 'Valsa Brasileira’ (1989) e*Futuros Aman- tes’ (1993) sio mais liricas e mais poéticas. Ji ndo hi tipos nem personagens femininos”.”* Uma cangio como “Beatriz” (1983), parceria com Edu Lobo para o musical O Grande Circo Mistico, base~ ado no poema homénimo de Jorge de Lima, é para~ doxalmente uma das realizagdes mais sublimes desse lirismo intransitivo. Ela é a musa das musas, a mulher inatingivel que se materializa e evapora dentro e atra~ vvés da misica Nao é casual, portanto, que a propria miisica venha a assumir o papel de objeto privilegiado dessa lirica mais reflexiva, que se recolhe em sua concha para escutar a si mesma, “Choro Bandido” (1985) “As Minhas Meninas” (1987),“Morro Deis Irmios’ (1989) “Tempo e Artista” (1993) sio exemplos elo- giientes disso. ‘Mas, também considerada no seu aspecto for~ mal, a musica de Chico vai se tornando mais traba~ Ihada e complexa de meados dos anos 80 em diante, Isso aparece jé em Francisco e, de forma mais nitida, no disco Chico Buarque, de 1989, quando Luiz Cliu- dio Ramos passa a fazer os arranjos das cangdes, Talvez se deva falar numa influéncia mais decisiva de Tom Jobim em sua obra a partir dessa data, ow nevi 3 Fob de. Pal (11/6/1998), 109 Chico Buergue mesmo numa espécie de “jobinizagio” de muitas de suas composigdes, 0 que seri confirmado e co- roado na homenagem ao “maestro soberano” em “Paratodos” (1993)."Foi Antonio Brasileiro/ Quem soprou esta toada”, revela Chico na cangio em que explicita sua “rvore genealégica musical”, inserin- do-se numa tradicio brasileira.” £ na verdade 0 disco todo que parece como que imantado pela presenga de Tom Jobim. Paratodes re- presenta um dos momentos mais fortes na trajetOria de Chico, algo como um reencontro dele com a cul- tura nacional-popular, com a sua propria obra e com as ilusdes perdidas da juventude. Mas é muito mais de uma celebracio, de uma volta por cima, do que de saudosismo que se trata. E aqui ganhamos ao raciocinar com os termos da psicanilise: se a lirica introspectiva dos anos 80 pode ser tomada também como o trabalho paciente de elaboracio de um luto, Paratodos seria a expressio da sua cura, ou da superacio da dor e do vazio pro- vocados pelo objeto perdido ~ com o qual © com- positor pode enfim se reconciliar em novos termos.”* Como nos ensina a psicanilise, é preciso “matar morto” para que ele possa reviver dentro de nés. A impressio é de que o Brasil revive através da midsica em Paratodos. Isso transparece, por exemplo, em “De Volta ao Samba”, em que Chico anuncia, entre receptive ¢ irénico: A expreto & do prprio Chico, em entre Fllu dS. als (207 11/1993) + Nose atgg "O Avista ©" Tempo” Jae Miguel e Guherme Wisk tabérn recare aa conceitopiesalica da tenors cater nu comtexto verso Go apresentid og | | | | Bye Beal on Pensou que eu ndo vinka mais, pensou Cansou de esperar por mint Acenda 0 refleior Apure o tamborint Agua & meu lugar Eu vim Fechou 0 tempo, o salio fechou ‘Mas en entro mesmo assim Nio parece casual que exatamente nesse disco Chico se reporte ao episédio de sua prisio, quando ti- nha 17 anos, na cangio “A Foto da Capa”, Ele © um amigo foram pegos pela policia no Pacaembu, perto de sua casa, quando tentavam “puxar um carro”, confor- mea giria da época, para dar uma volta pelo bairro. Era uma madrugada de dezembro de 1961. Depois de apa~ nhar dos policiais e ser levado algemado para a delega~ cia, Chico foi transferido para o jutizado de menores, onde passou a noite até ser resgatado pela irma Miticha, A aventura lhe renderia a primeira aparicio nos jornais. No dia seguinte, a Ultima Hora trouxe sua foto com uma tarja preta cobrindo os olhos, sob o enunciado: “Pivetes Furtaram um Carro: Presos”. Seguindo uma ordem judicial, Maria Amélia e Sérgio Buarque o dei- xariam seis meses sem sair de casa 4 noite, até que com- pletasse 18 anos ~ em 19 de junho de 1962. A “Foto da Capa” que consta no disco, porém, no € essa famosa, ¢ sim duas outras, uma de frente outra de perfil, que registram 0 momento de seu fichamento na delegacia, Quem conhece o disco hi de lembrar que essas imagens 3x4 de Chico estio rodeadas de rostos anénimos: mulheres, homens, jo- vens, velhos, bebés, negros, brancos, mulatos ~ enfim, © povo brasileiro. 122 Chico Bure Da primeira masica, quando diz “Vou na estrada ha muitos anos/ Sou um artista brasileito”, 2 Glkima, onde se reconhece na “Figura do larapio rastaqiiera/ Numa foto que nio era para capa”, Chico estabelece ‘em Paratodos uma cumplicidade tacita e subterrinea entre a propria trajetdria € pais que nunea aparece na capa.A maneira como o disco desenrola ¢ distende esse fio da meada é coisa para poucos e que comove ~ obra de genio. Também nio parece ser por acaso que “Pivete”, de 1978, seja a peniiltima musica do disco. Ha uma Sbvia relagio entre ela e o “retrato do artista quando mogo” delingiiente. A atmosfera da nova versio in~ lida em Parafodos, no entanto, é muito mais carrega~ da que a original. Além do arranjo, mais estridente irritadico, e do ritmo, mais lento e grave, Chico intro duz um tefiio inédito logo na abertura: “Monsieur have money pra mangiare”. Os meninos agora, como ele mesmo disse,"'mendigam em esperanto”.”* Parece que 08 mesmos pivetes 15 anos antes eram mais felizes = ou menos condenados. PIVETES, GURIS, MENINOS AZUIS Se tomarmos dentro da obra de Chico as trés cangdes que tratam diretamente dos meninos de rua, veremos que elas descrevem o curso de uma desagregacio social, Mas também aqui 0 compositor opera de maneira sutil Do "Pivete” (1978) a“O Meu Guri" (1981) e deste ao “Brejo da Cruz” (1984),0 intervalo é relativamente cur era entrevia 8 Fi, ets (20/11/1993 Bye ye Bra 9 to, mas ha uma diferenca de enfoque ¢ de tom entre as cangées, sobretudo entre a primeira e as duas diltimas. “Pivete” & antes de cudo um samba alegre. Fica de saida a impressio de que seu alto-astral se choca com a gravidade do assunto. Como entender esse descompasso? Embora 0 eu lirico da cangio esteja na terceira pessoa, a historia é cantada da perspectiva dos moleques. Chico transforma seus personagens em pro: tagonistas, como se a musica traduzisse a lingua da rua na voz do compositor. De tal forma que as situagdes vividas i deriva e em ritmo frenético surgem como uma grande aventura ~ ou uma espécie de vertigem. Liberdade e perdigio entio se confindem na mesma realidade. Ha ainda uma inocéncia nessa delingiiéncia, cujo prazo de validade iria logo expirar. ‘Tomem-se 0s versos que apresentam os dois pi vetes em agi: No sinal fechado Ele vende chiclete Capricha na flanela E se chama Pelé Pinta na janela Batalha algun trocado Aponta un canivete e até fol Zanza na sayjeta Fatura sma besteina E tem as pernas tortas E se chama Mané Arromba una porta Faz ligagiio direta Engata uma primeira ¢ até tog Chico Buare Eles no tém nome, mas seus apelidos os ligam 0s maiores idolos do futebol, pertencem a uma espé- cie de dominio pblico que os conecta imediatamen— te ao imaginario popular brasileiro.A cangio estabelece com eles uma relagio de simpatia; parece haver ainda compreensio ¢ comprometimento com a miséria.Tado isso iri mudar. Em“O Meu Guri”,a crianga-defianta jé nio tem nome nem identidade, Ela embalada na cangio pelo delirio profundamente lirico do amor maternal, cuja pureza contrasta com a crueza do rosto do cadaver exposto nos jornais. A solidariedade foi confinada 4 fantasia materna. Fora disso, o guri é apenas mais um que'“chega estampado, manchete, retrato/ com venda nos olhos, legenda e as iniciais”. “Brejo da Cruz” id ainda mais longe. Nela nio somem apenas 03 nomes ¢ as identidades dos guris; sio eles préprios que evaporam: A novidade Que ten no Bigjo da Cruz E a criangada Se alimentar de tz Alucinados Meninos ficando azuis E desencarnando Lé no Brejo da Cruz Vitimas da indiferenga, como se nio existissem, eles se tornam sobreviventes anénimos da moenda social brasileira: Mas ha milhées desses seres Que se disfargam tio bean Bye Bye Bra 0s Que ninguém pergrnta De onde essa gente vem Ja adultos, a cangio 0s identificard apenas como jardineiros, guardas-noturnos, bombeiros, babis, faxineiros, baleiros e garcons. E eles préprios, remedi~ ados, apagario da meméria as condigdes inumanas de onde vieram: Jé nent se lembram ‘Que existe ui Brejo da Cruz Que enant criangas E que comiam luz O movimento que vai do “Pivete” a0 “Brejo da Cruz” é, portanto, de dessolidarizacio social, descrita pelo progressivo desaparecimento de um problema a medida que ele se agrava. HA um misto de apatia, fri- eza, indiferenga e desprezo crescentes diante do ina- ceitavel. Passamos a conviver com isso como quem se adapta a uma nova paisagem. Vale aqui o que 0 critico Roberto Schwarz escreveu a respeito de Estorvo: “A disposigdo de continuar igual em circunstincias im- possiveis é a forte metifora que Chico Buarque in- ventou para © Brasil contemporineo”.” ‘Um Romance de Chico Buse cm Senta Bei op. ci p. 18

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