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1 OPOVO BRASILEIRO NO CAMPO DE FUTEBOL' © Brasil poderia adquiriro titulo de Campedio Mundial de Futebol, por acaso, como por acaso foi descoberto e pro- clamou a Aboligio, a Independéncia ea Repablica (LYRA FILHO, 1954, p. 67). futebol e a construgio da identidade nacional {As interpretagdes do Brasil e dos brasileiros, produgdes concorrentes na construgio da identidade nacional, so numerosas e utilizam varias teméticas (por ex. LEITE, 1985 ; MOTA, 1977 ; ORTIZ, 1985). Buscam uma sintese totalizadora como contraponto & diversidade empirica, elegendo um objeto de reflexiio que encontra na categoria povo brasileiro, por exemplo, a partir do século XIX (SANTOS, 1987), uma “problemitica obrigat6ria" (BOURDIEU, 1982, p. 207) & ‘um terreno privilegiado de exercicios de previsio otimistas ou pessi- mistas sobre o futuro do pats. 19 A difusdo e divulgacdo de algumas desas interpretagdes, nao raro como meras caricaturas dos originais, como a popularissima “demo- cracia racial” via Gilberto Freyre, ocorre por diversos canais, sendo Uutilizadas como aval para a emissdo de uma série de juizos sobre os brasileitos que, nio importando se sao internamente contradit6rios, servem como argumentos inexpugndveis, em seu dogmatismo, para cexplicar fatos da vida cotidiana e da vida politico-administrativa do pais. A imprensa é um dos canais mais importantes neste sentido. Por outro lado, estas mesmas interpretages costumam ser alimenta- das por representagdes e nogdes constru‘das em diversos setores da sociedade, num contfnuo movimento de troca, 0 futebol no Brasil, ao lado de outros fendmenos como o carnaval e as religides classificadas como afro-brasileiras, tem sido intensamen- te apropriado no sentido da composigdo da identidade nacional (DA MATTA et al., 1982 ; SACHS et al., 1988). No caso do futebol, alribui-se-Ihe, freqiientemente, o carter de “esporte nacional”, o que propicia tais ilagées. Mas, em geral, ele & apenas uma das fontes utili- zadas para estas composigées globais. De fato, o futebol, como a maioria dos esportes, & excelente terreno para a construgao e confrontacdo de juizos sobre a nag. E é justa- mente porque os esportes se constituem em “dominio menor” da so: ciedade que apresentam enorme abertura as mais diversas apropria- Wes ideolégicas (GUEDES, 1977). Ou, como diria BOURDIEU (1983, p. 139) porque a atividade esportiva é um fim em si mesma, uma atividade “para nada”? Tratando-se da atuagao da seleco bra- sileira de futebol, chega a ser impressionente o modo como se passa, sem nenhuma mediagao considerdvel, da avaliagio do time para a avaliago do povo. As vit6rias da selegao nacional evidenciam a ca- pacidade do povo brasileiro enquanto as derrotas siio nada menos que dentincias de sua indigéncia (GUEDES, 1977, também Capitulo 2 desta coletanea). Em questio de horas, as vezes de minutos, pode alterar-se radicalmente a tOnica dos discursos na imprensa falada, por exemplo, indo da exaltaedo patridticaa queixa-dentincia ou vice- versa, Nestes momentos, pode ser atualizada a crenga na “democra- cia racial” a partir da avaliagdo de episédios delimitados pelo espago- 20 tempo de um jogo de futebol ou, ainda, exteriorizadas, dos modos mais contundentes, intimeras possibilidades de divis6es internas que ‘a propria construgo da “seleg3o nacional” torna necessariamente encobertas.* Logo, como parte do cotidiano e do “extraordindrio pre- visto” (DA MATTA, 1979) da sociedade brasileira, a linguagem do futebol, de divulgagdo impar no Brasil, € uma importante via de aces so as avaliagbes sobre 0 povo brasileiro. objeto de andlise tomado aqui é uma parte de mais uma dessas interpretagdes do Brasil, sem diivida feita de pegas e pedacos de ‘outras mais amplas ou equivalentes, mas que é peculiar ao menos num sentido: trata-se da vinica que utiliza como fonte primordial de material o futebol brasileiro. Seu autor é Joao Lyra Filho, de quem falarei adiante. Nos textos em questo, é o desempenho dos jogado- res brasileiros de futebol a matéria-prima para a reflexio sobre 0 povo brasileiro. Af reside sua originalidade pois realiza — de modo sistemético e com pretens6es cientificas —o que apenas a imprensa esportiva jé tinha feito. Uma obra anacréni Jodo Lyra Filho (1906-1988) teve grande expressio na vida nacional, ‘em Varios campos distintos. Era ministro do Tribunal de Contas da Unido mas obteve também importantes posicSes na academia. Clas- sificava-se, neste terreno, como socidlogo e antropslogo. Seu prefaciador Gilberto de Macedo, da Universidade Federal de Alagoas (LYRA FILHO, 1973, p.9), acentua stia abordagem interdisciplinar porque: (..) joga com miiltiplos conhecimentos: Sociologia, An- tropologia, Psicologia, Economia, Geografia Humana, His {rine Politica, indo as extensies nos campos étic, jurfdi- 0, estatistico, financeiro ete. Comefeito, é muito dificil atribuir uma especialidade dentro do cam- po das ciéncias humanas e sociais a Lyra Filho, considerando-se no 2 ‘apenas os textos analisados, como também a grande diversificagdo de temiéticas da sua extensa produgio (84 titulos até 1973), Alémde contos poesias, a obra enuncia assuntos ligados a todas aquelas reas de conhecimento indicadas por Macedo. Filiou-se & antiga Universidade do Estado da Guanabara (UEG), hoje Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), onde assumiu os mais altos postos, inclusive como reitor, proferindo uma série de aulas magnas, Foi ho- menageado com a atribuicdo de seu nome a um pavilhio no campus da Universidade. Por outro lado, teve grande projecio nacional e intemacional nos meios desportivos, tendo sido presiclente do Botafogo Futebol Clube, do Consethi Nacional de Desportos (CND) e, poste- riormente, conselheiro da Federation International of Football Association (FIFA). O material com que se trabalhard aqui é proveniente de dois livros. O primeiro — Taga do Mundo, 1954 — é, originalmente, 0 relat6rio com destinagao interna & Confederagio Brasileira de Desportos (CBD), eserito como chefe da detegacao brasileira enviada ao campe- onato mundial de futebol de 1954, disputado na Suiga. O segundo — Introdugéo @ sociologia dos desportos — foi publicado em 1973 € tem a intengo de formular uma teoria dos esportes. Destina-se, em prinefpio, a um outro tipo de piblico, tendo sido escrito a partir da posigiio de cientista soci Apesar das diferentes posi¢des que geraram os textos e as destinagdes diversas, hd absoluta continuidade na tese biisica defendida em am- bos averea do povo brasileiro. Nao ha adesio explicita a qualquer principio metodolégico, embora a abordagem seja frequentemente perpassada por premissas evolucionistas. Seria temeréio, contudo, classified-lo como tal, pois a complexidade da construgio, especial- mente no livro de 1973, exige um delineamento mais rigoroso da ‘genealogia de suas questdes. Na verdade, o estilo de Lyra Filho mareado por grande erudi¢io, com citaedo de iniimeros autores, ex- trafdos das mais diversas lavras. Os excertos so utilizados de modo bastante eclético, o que permite, por exemplo, a concordiineia do au- (or, simultaneamente, com o relativismo cultural de Ruth Benedict e 0 determinismo biol6gico de Lombroso, para citar apenas um exemplo das curiosas jungdes que sio feitas, as vezes na mesma pagina. Este tipo de reflexio é identificado por Ortiz. (1985) como caracteristico dos “precursores das Ciéncias Sociais no Brasil”. Sob este ponto de vista, 0s textos sio obviamente anacrénicos, classificagio especial mente aplicivel & teoria dos esportes publicada em 1973 que, sem nenhuma divida, deixa de incorporar uma série de novas tendéncias e reflexées entZo presentes nas ciéncias sociais brasileiras. Entretanto, a tese aqui examinada tem, certamente, um outro tipo de atualidade que serd exposta na conclusio. O povo brasileiro visto através do seu futebol 0 foco central do livro de 1954 é a avaliagdo das causas da derrota do selecionado brasileiro na Sutca, cristalizada no jogo contrao sele- cionado hiingaro, que eliminou o Brasil pelo placar de 4x2. Como se ‘opera a passagem da anilise de uma derrota num jogo de futebol para uma andlise do povo brasileiro? O primeiro ponto é que 0 objeto de Lyra Filho nao é, absolutamente, 0 futebol brasileiro, nem sequer a selegao brasileira de futebol. Como “instituigdo zero” (GUEDES, 1977), dea, em si, técnica e titica, pretensamente neutra, portanto, no comportando significados ne- cessariamente vinculados a seu poder significante, 0 futebol, no caso brasileiro, tem sido antes um vefculo que comporta as mais diferentes significagdes e fornece provas as mais diversa Nos textos em exame, o desempenho da selecdo brasileira de futebol reproduz, diretamente, as catacteristicas do povo brasileiro. Por- tanto, é 0 seu reflexo, resultando do seu desempenho em outros do- minios. Operada esta passagem, equacionando o time de futebol em campo com o pove brasileiro — operagao, alids, nada incomum - 0 foco da andlise é deslocado do que ocorreu no campo de futebol para uma avaliagéo cientifica da formagdo e estado presente do povo brasileiro (LYRA FILHO, 1954, p. 52). 0 jogo de futebol transfor- ‘ma-se numa espécie de “laboratério” onde foi colacado 0 povo bra- sileiro. Em decorréncia, a andlise baseia-se na versio do autor para

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