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LT se RMR ies ME es FRM sh ESCRITOS DA CRIANCA Pe co PR eke 8 = SE ye CENTRO LYDIA CORIAT — PORTO ALEGRE — N° 4 INTERDISCIPLINA E TRANSDISCIPLINA NA CLINICA DOS TRANSTORNOS DO DESENVOLVIMENTO INFANTIL PF ALFREDO PAIS olocar-se na clinica dos transtornos do desenvolvimento implica colocar-se num campo de conhecimentos de alta complexidade devido a vasta rede conceitual que o repre- senta. Esta rede, de inumerdveis entrecruzamentos tedricos, tem sido construida com a participacao de diversas disciplinas cientifi- cas que contribuem neste campo constituindo sua geografia tedrica e metodolégica. S6 para fazer um pequeno recorte poderfamos citar algumas ques- tOes que, na exigéncia de serem respondidas, tém-nos obrigado a uma permanente superacao das construgées tedricas desenvolvidas. Temos, assim, questdes etiolégicas, diagnésticas, prognésticas e terapéuticas, que se propdem a genética e 4 neurologia com relagao aos diversos trans- tornos no aspecto bioldgico, a psicandlise com relagao a subjetivagao, a psicopedagogia com relagao a constituigado das estruturas de conheci- mento, a fonoaudiologia com relacao a construgao e a articulagao da linguagem, a estimulacao precoce com relacdo ao armado do corpo erd- geno e sua filiagao, etc.; questées sociais que se apresentam a educagao com relagao a integragdo ao Ambito escolar das criangas afetadas, a so- ciologia com relaco ao lugar dos deficientes na comunidade, ao sanita- rismo enquanto inclusao destes pacientes nos planos de satide, etc. ESCRITOS DACRIANGA 23 Flfredo Dats ——— CCC Esta rapida descrigéo demonstra a multidimensao conceitual desta problematica, que exige constituir uma estrutura interdisci- plinar, qualquer que seja a area de atuacao neste campo (assistenci- al, educacional, etc.) j4 que nenhuma disciplina por si mesma pode aportar todos os operadores tedricos necessarios. A pluralidade disciplinar agrega-se a pluralidade teérica exis- tente dentro de cada disciplina, 0 que estende o horizonte das reu- nides interdisciplinares hipoteticamente possiveis, se bem que es- tas poderiam ser muitas, muito diversas e aumentar em fungao das distintas reunides disciplinares possiveis, nado existe uma grande diversidade de posicgdes em que o investigador ou terapeuta no singular, ou a equipe interdisciplinar em seu conjunto, possa apa- recer em relagao com 0 objeto de conhecimento. Podemos afirmar desde ja que tal posicdo depende da articulagéo conceitual em que 0 objeto seja incluido. Esta posicao é de vital importancia nesta clinica, uma vez que dela depende em grande parte o futuro do paciente. E por esta razao que nos parece importante mencionar as trés variantes que a nosso juizo aparecem com maior freqiién- cia neste campo. a) A que responde ao modelo das ciéncias fisico-naturais, nas que 0 objeto é abordado no marco restringido de significagdes ne- cessario 4 metodologia da investigacéo. Em outras palavras, o in- vestigador interroga 0 objeto, que tem sido limitado a uma particu- lar definigdo, prévia a sua abordagem desde o paradigma cientifico de sua disciplina e se propée validar a resposta que se tem dado a priori, aplicando-lhe a série de praticas que a operacionalizacao de sua hip6tese exige. Supde que, respeitando rigorosamente a meto- dologia, conseguir evitar que sua subjetividade participe dos resul- tados da investigagao e que lhe possibilitem aceitar ou rechacar ob- jetivamente as hipéteses levantadas; e que isto lhe permitiré estabelecer um diagnéstico, um saber objetivo desde onde justificar as operacoes aplicadas ao objeto com o fim de modificar seu estado. Quando o lugar do objeto de conhecimento é ocupado por um ser humano aparece uma complicagao particular: 0 objeto fala e este modelo conceptual reconhece o falar do objeto somente se apa- recem nele os signos que resultam legiveis em seu cédigo cientifico, © que vale dizer, em um contexto de significagées da disciplina de que se trate. Se isto nao sucede seu falar é desconsiderado. 24 ESCRITOS DA CRIANGA Interdisciplina ¢ Transdisciplina na Clinica dos Transtornos... Um exemplo claro desta posigéo é o da medicina. Desde af, neonatélogos, pediatras e neurologistas surpreendem com desco- brimentos que possibilitam intervengdes no somatico que melho- ram sensivelmente as condig6es fisicas das criangas ou ainda lhes salvam de uma morte que parecia inevitavel. Mas também surpre- endem-nos com intervengées discursivas que tém sobre os sujeitos conseqiiéncias iatrogénicas lamentaveis. O fato de que, na maioria dos casos, estas intervengdes ocorram marcadas como a melhor das intengdes e ao amparo de um compromisso humanitario inquestio- navel nao impede, sem embargo, suas conseqiiéncias. : Conta o pai de Andrea, que esta sendo excelentemente atendida pelo doutor M., que, segundo suas palavras, “tomou totalmente ao seu encargo nossas desgragas”. Logo no comego da entrevista de admis- sAo, contam que M. lhes transmitiu o diagndstico de Andrea dizendo- lhes: “Aconteceu uma desgraca: sua filha nasceu com a Sindrome de Down.” O doutor M., no plano das idéias que governam a posigao parental, inclinou estes pais nao a uma filha, mas a uma desgraca. Ao perguntar sobre a dimensao desta desgraca (em que con- siste a Sindrome de Down, qual é a expectativa de vida dos sujeitos afetados, até onde podem chegar, etc.), suas perguntas foram res- pondidas fragmentariamente desde o saber médico, desde um saber que, por objetivo e geral, nada diz de Andrea enquanto sujeito e obstaculiza aos pais dar a sua filha um nome proprio que surja de um desejo, um nome diferente de “desgracga” ou “Down”. Andrea fica assim congelada num discurso. Congelada como um objeto no qual ndo é muito o que se pode esperar. Esta altima frase que também foi pronunciada pelo doutor M., é am efeito de desconsideracao do discurso do paciente (leia-se: do discurso dos pais), enquanto sustentado em seu proprio discurso tedrico, que Ihe fala da deficiéncia mental propria da Sindrome de Down, mas nada diz acerca dos pais de Andrea, se atribui o direito de decidir por estes se pode-se ou nao esperar algo da menina. Esta desconsi- derac4o nao teria conseqiiéncias nos pacientes se nao se produzisse no campo da transferéncia que estes estabelecem com o medico; a quem supdem um saber sobre o que lhes parece incontrolével. b) Aque responde a um dos modelos mais difundidos no cam- po da satide: aqui aparece colocada com clareza a impossibilidade de abordar a problematica da satide do homem desde uma s6 disci- ESCRITOS DA CRIANGA, 25

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