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AFORMACAO DOS DOCENTES: O CONFRONTO NECESSARIO PROFESSOR X ACADEMIA Bernardete A. Gatti da Fundagao Carlos Chagas e PUC-SP Embora considerando que a formagéo do professor tem aspectos idiossincréticos conforme a natureza da disciplina objeto-de-ensino a que se dedique, ha ques- tdes de fundo que perpassam a formagao de qualquer Professor 6 que devom ser revisitadas antes de — ¢ até como ponto de referéncia para — uma discusséo sobre uma especialidade em particular. Quero colocar desde o inicio que, falando om formacao de docentes, Fefiro-me tanto & formagao pré-servigo como a conti- nuada, ambas faces de uma mesma problematica Sabemos que a formagdo de professores esta sendo feita, na maior parte, pelas instituigées isoladas de ensino superior @ no pelas universidades, Sabs- mos também que a maioria destas instituigbes funcio- na em condigées precirias, com pessoal de qualiica- 40 discutivel. Por outro lado, h4 uma certa inércia as universidades quanto a repensar as licenciaturas e, embora existam algumas propostas alternativas, o8- tas até aqui tim mostrado pouco sucesso. Nenhuma mudanga radical, assumida enquanto proposta de uni- versidade, foi efetuada até aqui. Quanto a situagao das institvig6es isoladas, 6 patente a inércia dos 6r- gos que poderiam propiciar certo ajuste de algumas situagSes mais contundentes. De um lado, temos a di- ficuldade de autocritica @ de promogao de mudanga, de outro as limitagdes da burocracia nacional e suas possibilidades politica, Para situar 0 volume do problema do qual trata- ‘mos aqui, vale citar alguns dados: om 1988 tinhamos 1.349.090 fungées docentes no Brasil, das quais 1.110.651 em escolas péblicas (8294); em Sao Paulo, contava-se com 268.816 fungies docentes a nivel de 70 18 © 2° graus, das quais 222.215 (83%) em exercicio em escolas piblicas (FIBGE, 1990). Para o ensino su- erior, onde se da a formacéo nas licenciaturas, em 1990 havia no Brasil 93 universidades © 809 institui- ges isoladas de’ ensino superior ou faculdades inte- gradas, com 1,5 milho de alunos assim distribuidos: 61% em instituiges privadas, 21% em federais, 13% em estaduais @ 5% em municipais (dados obtidos jun- 10 ao SEEC/MEG - Servigo de Estatisticas Educacio- nais). Gabe citar aqui, também, algumas informagbes dos estudos que académicos tém desenvolvido sobre a formagéo de docentes. Num estado da arte sobre a formagao de professores, recém realizado por Silva © outras (1991), abrangendo o perfodo de 1950 a 1986, encontramos algumas andlises que nos ajudam a pontuar essa contribuigao. Verificam as pesquisado- ras que © magistério detém a primazia de ser, entre ‘as profissSes, a que foi capaz de congregar, ao longo de amplo periodo histérico, 0 mais extenso e variado conjunto de textos analiticos. Trabalhos sobre os pro- fissionais do ensino vém sendo conduzidos por espe- Cialistas das mais diferentes disciplinas. Vale pergun- tar: que contribuigdo ostes trabalhos trouxeram & for- magdo © aperleigoamento do magistério? Fica dificil avaliar, tal 6 0 quadro de qualidade de nosso ensino. Argumentam as autoras que os diversos trabalhos, voltados principalments a andlise e discusséo de como 0 professor & formado, “denunciam uma grande imprecisao sobre qual o perfil desejavel para esse profissional. Diferentes obras, ao longo do tempo, fa- zem criticas aos curriculos dos cursos apontados Cad. Pesq. 1.81, maio 1992 ‘como enciclopédices, elitistas @ idealistas. Conside- tia, curriculos de formag&o geral diluida e formagao especifica cada vez mais superficial (Silva et al., destacando-se a énfase psicolégica em detrimento da pedagégica; depois, a influéncia da teoria do capital Zag&o de objetivos; na década de 80, dominam as in- fluéncias sociolégicas, ganhando espago na formac&o conflito, Hoje, assistimos 0 péndulo comegando a vol- de 70. Embora considerem que n&o existam dados da maioria dessas propostas de formagao e/ou de efetivas, tanto humanas como materiais, dos sistemas. de ensino. Dessa forma, muito poucas conseguiram ‘superar, seja a fase de treinamento piloto, desenvol- de formulacao tedrica — caso tipico dos curriculos" (Silva et al., 1991, p.140). Concluindo, observam que deixada de lado, a de que o professor continua sendo tam sua esfera de vida e profissdo. Considerar as va- suficiente para superar a perspectiva abstrata com ou ao eee como uma tabula a ss pss, : Proponho-me, diante deste quadro, indicar alguns Pontos para reflexao em diregao & alterac&o da situa- {¢40 que vivenciamos, enfocando a fungao possivel da universidade na formagao de professores @ 0 confron- A formago dos docentes:... to necessario entre os profissionais em exercicio nas. redes de ensino © a academia. Faz-se um chamamento continuado as universida- des para que contribuam & formagao dos professores sob diferentes condigbes, seja reestruturando as licen- ciaturas, soja especialmente no que diz respeito a sua atuago na formagao continuada. O pressuposto para isto 6 que as universidades detém capacitagao nas areas das disciplinas © da pesquisa educacionais, bem como nos campos tedricos do conhecimento e, também, por serem as instituig6es as quais legalmer ta a fungao de formagao pré-servico 6 atribuida. Po- demos colocar aqui duas atitudes: atribuir & universi- dade um papel hegeménico ante o problema, ou ex- clut-la de vez dessa problematica. E realmente pert- ente perguntar se ndo se esta atribuindo & universi- dade um papel hegeménico nessa Area, ou so nao tonderd a universidade a assumir esse papel de modo hegemdnico na medida da insisténcia dos apelos f tos. Por outro lado, seja por omissao, seja por desen- canto, seja por confronto, pode haver um movimento de exclusdo da universidade, reduzindo-a a um papel marginal face a suas visiveis dificuldades de funcio- amento. Entre esses dois pélos, a nosso ver, cabe colocar um n&o 20 monopélio e um no a excluséo. © nao ao monopélio decorre tanto da necessida- de de diversificagao das instituigSes contribuintes a ‘essa formagéo, como de sua regionalizacaio em pais da dimenséo do nosso e do grande volume das redes de ensino. E preciso diversificar a formagao sim, para ‘aumentar as oportunidades de participagao © os le- ques de opgbes teérico-préticas. Sindicatos de profes- sores, associagies de profissionais da educagdo, cen- tros independentes ou piblicos dedicados as que: bes educacionais, entidades de diversas naturezas Poderiam assumir um papel importante no aumento de oportunidades formativas. Nao a oxcluséo deve-se ao fato de a universidade agregar competéncias especificas e porque, insltucio- nalmente — apesar de ser responsavel, junto com as insttuigées isoladas de ensino superior, pela formagéo pré-servigo dos professores — no tem assumido sua esponsabilidade nesta formagéo com o vigor © a im- portancia social que deveria ter ©, nem mesmo, na formago continuada, onde poderia desempenhar um Papel crucial. O que temos assistido so iniciativas descontinuas, em geral estimuladas @ financiadas por agentes extemos a universidade. A formagao de pro- fessores nao tem sido assumida como dimensao ins- titucional de primeira linha, apesar de a universidade manter indmeros cursos cuja maioria dos egressos teré como destino 0 ensino. Procura-se hoje uma uni- versidade que assuma, do fato, sua responsabiidade social face &s quosties do ensino em seus diferentes niveis, Uma universidade que se proponha e consiga situar sua participagao na configuragaio de seus limi- tes, com abertura para reconhecer as competéncias desenvolvidas por outras instancias, por exemplo os réprios professores om sua pritica docento ou ad- mministrativa, ” A questo nao 6, pols, de atribuir hegemonia & universidade quanto & formagéo de professores. O problema real é o de preparar a universidade para de- sempenhar 0 papel que corresponde a suas caracte- risticas — 0 de realizar pesquisas educacionais @ di- daticas, estudar modelos alternativos de formagéo, preocupar-se com a formago dos formadores etc. — orém alterando substantivamente seu modo de ope- rar, integrando em todas esas atividades, como par- coiros efetivos, 05 professores @ os técnicos que es- tao na pratica escolar, no s6 trazendo-os para dentro do campus como indo as suas regides @ locais de trabalho, s professores em goral exprimem muita descon- fianga quanto as possibilidades de contribuigao forma- tiva da universidade. De fato, isto se compreende pela experiéncia passada (8 ainda atual), em geral nega- tiva. Basta lembrarmos dos cursos com uma sucess40 infindével de exposigdes, muitas vezes em linguagem rebuscada @ portanto de dificil decodificagao, ou pa- lestras em que se fazem verdadeiras prescrigies edu- cativas, sem preocupagao alguma em saber se 0 que 6 dito 6 transferivel para a pratica cotidiana dos pro- fessores em suas condig5es de trabalho, com 0 dog- matismo tipico do universitério que, na verdade, sem saber como 6 0 dia-adia da escola, dita aqullo que deveria ser feito, Outro aspecto desta desconfianga esté ligado ao fato de que docentes da universidade, quando discu- tem a formagéo do professor, desvalorizam 0 patrimd- nio de experiéncia e conhecimento de que dispdem 0s professores a partir de sua pratica, revelando tam- bém grande dificuldade em desenvolver um trabalho de parceria 6 de valorizagéo das competéncias cons- truidas na pratica profissional. Nesse sentido, 6 pre ciso comegar por compreender que estas competén- cias existem © que 0 docente universitario deve pro: parar-se para um trabalho formative, que implique en- volver atividades de pesquisas e de experimentacao ‘em espirito de parceria com os professores, aprenden- do a reconhecer @ valorizar as compet8ncias recipro- cas @ a partihar a definigao de objetivos de formagéo continuada ou pré-servigo. Isto implica uma mudanga profunda na cultura profissional académica @ no exer- Cicio de suas fungoes. Importante, ainda, na discussao @ busca de novos modos de agéo na rea de formagao de protessores, 6 considerar as relacdes que se podem estabelecer entre as areas especificas do conhecimento @ os com- ponentes profissionais gorais. € consenso que a for- magao dos professores requer 0 aporte conjunto da dimensao da disciplina especifica e da dimenséo das ciéncias da educagéo. Quando saimos do plano da opiniéo ou da enunciagéo de principio e vamos ao plano da agao, quando se trata de dosar ¢ combinar contribuigdo' dos diversos componentes formativos para estabelecer em que ponto da formagao especi- fica inserir a componente profissional educacional esiabelecer a duragio, a organizagao do curriculo @ a articulagao dos componentes formativos, 6 que as dificuldades aparecem. Ir a fundo nestas questées, 72 parece-nos, implicaré repensar até a propria institucio- alizagio dos departamentos universitérios ligados & formagéo de professores, bem como suas formas de articulagéo. Mais ainda, lova-nos a perguntar por que, para a formagao de médicos, engenheiros etc, hé confiuéncia em relagéo a uma base institucional bem definida, para a qual contribuem outras instancias da universidade, porém como estacas que suportam um piso comum'e um objetivo claro — formar médico, ou formar 0 engenheiro — @ esse lastro institucional @ filoséfico comum no existe quando se trata de for- mar 0 professor? O licenciando 6 um pingente pen- durado em duas canoas, com identidade problemati cca: especialista em Area especifica ou professor? Ma- temético ou professor de Matematica? Gedgrafo ou professor de Geografia? Fisico ou professor de Fisi- ca? As faculdades, centros ou departamentos de Edu- cago funciona para os institutos ou departamentos asicos como apéndice, as vezes até incdmodo. N&o seria 0 caso de comegar a pensar a formagao do pro- fessor em outras bases institucionais, de natureza realmente interdisciplinar? De propor outras estruturas no lugar das inoperantes licenciaturas? E de propor esquemas de agéo para a educagéo continuada dos protessores, como fungo integrante da vida da uni- versidade? De parar de lamentar 0 que nao foi feito e de fazer alguma coisa, com um olhar © metas pros- pectivas? De dizer no aos remendos @ sim a inova- des mais ousadas? A cise na rea de formagio dos professores nao 6 s6 uma crise econémica, organizacional ou de es- trutura curricular. € uma crise de finalidade formativa @ de metodologia para desenvolver esta formagao, reestabelecends a relagdo de comunicagéo @ de tra- balho com as instancias externas nas quais 0s for- mandos vo atvar, ou seja, as escolas em sua cot diana concretude. Isto exige uma mudanga radical da insergéo das licenciaturas na universidade nas es- GICIONAL ACIOUNT GACION AL GCIOUNT CACIONAL Cad, Pesq. n.81, maio 1992

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