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| 317 Violinistas Kaiow4/Guarani: dados etnograficos e histéricos sobre os violinos de procedéncia missioneira no atual Mato Grosso do Sul Protasio Paulo Langer Entre os guaranidlogos é de conhecimento geral a relacdo que a etnia Mby& Guarani (etnia guarani-falante distribufda ao longo de oito Estados do litoral brasileiro, da Argentina e do Paraguai) estabelece com dois instrumentos mu- sicais que remontam_ao periodo jesu(tico/guarani: o rave (ravé), corruptela hispanica de rabel (rabeca, violino), e 0 mbaraka (mbaraka), neste caso, um violao de cinco cordas. A mdsica dessa etnia tornou-se um produto cultural bastante difundido, inclusive pela grande midia em programacées relativas a0 “Dia do Indio”. Talvez pelo cardter inusitado e original de “mesticagem musi- cal”, pelo processo de apropriacao, recriagdo e insercdo desses instrumentos ao universo cosmolégico e ritualistico, o rave (violino) e o mbaraka (violao) so imediatamente associados & etnia Mbya. No presente trabalho pretendemos arrolar dados histéricos e etnogrdfi- cos que indicam que, além dos Mbyé, os guarani-falantes do sul de Mato Grosso do Sul conhecem, praticaram e ainda praticam instrumentos musicais de corda executados com arco. Estamos num momento histérico em que os Guarani/Kaiowé estao protagonizando a reconquista dos seus territorios e se apropriando de instituigdes de ensino, visando direciond-las 4 defesa dos seus projetos ut6picos (Suess 1997). Ano apés ano surgem novas pesquisas acadé- micas, muitas delas desenvolvidas por estudantes indigenas, que exploram as mdltiplas dimensdes socioculturais da etnicidade Guarani/Kaiowa. Um Tra- balho de Conclusdo de Curso (TCC), desenvolvido no Curso de Licenciatura 318 rotasio Paulo Langer Protasio Paulo Lang Violinstas Kaiow/Guarani, 319 eanalne, Res bem 0 protagonismo desses grupos étnicos diante das Sobre a fabricacao do violino, as diversas partes e técnicas envolvidas no s instituigges: processo, Seu Gerénimo evoca, a cada instante, os ensinamentos do seu pai, embora algumas tarefas e procedimentos tenham sido “terceirizados” para lojas Nesse sentido, na primeira parte deste capitulo trabalharem: 4 P li ee aayeS especializadas. No Caderno de Campo de 30 de outubro de 2009 registramos: artistico-musical de duas familias indigenas historicamente ligadas a fabri- cacao e execugao de violinos. Além do TCC do indigena Ladio Veron Cava- Ii, cuja claboracio acompanhamos e orientamos, contamos com dados iograficos e etnograficos de pess i a ili A i ie re ete ee Prati jfenila eee fazia cordas de tripae da folha da palmeira Bocaja. Para a caixa de ressondncia seu Ariat fai, Nasenlenca Senate ie hee eee | Gerénimo usa uma prancha de cedro, escava-a com um forméo no formato do vio- Brdficos que permitem remeter os instrumentos executados com arco entre os | sods as ata cae Ces Sa fe Ta fees pan 2 d ; me tomado para que a pressao das cordas nao afunde a face frontal. Trata-se, portanto povos guarani-falantes ao periodo da missionagao jesuitica. | de um violino de cocho com uma tampa na face inversa do encordoamento. O Um dos trabalhos mais recentes envolvendo esse campo € a obra de Deise | brago do violino é feito de Guajuvira. A cola que seu Lucio C4ceres usava era pro- Montardo (2008), dedicada a misica, a danca e a0 xamanismo de grupos | duzida a partir do cozimento de couro seco de boi. O couro fervia até soltar uma Guarani em diversas aldeias de Mato Grosso do Sul (Kaiow e Guarani) e de | Le ee eee eee ee eee ea pa Santa Catarina (Mbyd e Nhandeva). Porém, entre as duas etnias de Mato Gros. | Ted ehtae we aue T eee ae so do Sul, a pesquisadora nao registrou a ocorréncia dos referidos instrumen- | ee ee an ae tos. Todavia, 0 fato de nao haver alusdo aos violinos nao pode ser atribufdo a uma negligéncia ou impericia, mas antes a uma questio de perspectiva a opcao de pesquisar o presente etnogréfico. Enquanto Montardo focava seu estudo sobre a miisica associada 8 danca, ao canto e aos rituais religiosos do Para a confeccao do violino, Seu Gerénimo afirma seguir os ensinamentos do seu pai, Lucio Caceres, que faleceu ha 4 anos com idade de 89 anos. Todavia, atual- | Indigena Teko Arandu, que constituiu uma das principais fontes do presente | do ele, 8 maneira que o seu pai Ihe ensinou. } | | | mente as cordas e o breu ele adquire em lojas especializadas. Antigamente, seu pai j Atualmente, Ger6nimo Céceres trabalha de servente de pedreiro, e nas horas vagas faz violinos e os vende, por encomenda. Sua frustragado é nao ter apreendido a tocé-los, apenas construf-los. Sobre seu pai relata que ele era muito requisitado para exercer 0 oficio de miisico. Ao indagar sobre o reper- presente, os violinos dos Guarani de Mato Grosso do Sul esto vivos na me- t6rio, os grupos musicais e os espacos de atuacao, seu Gerénimo informa que: MGria, mas jd nao sdo mai = : sie ere J 2 sao a executados nesses eventos. | Nos encontros musicais de antigamente juntavam um violdo de 5 cordas, um de iversas Terras Indigenas, acampamentos ou areas que aguardam ho- seis cordas e um violino. Seu pai fazia musica indigena e paraguaia. Um rapaz, chamado Salvador, levava o seu pai para tocar no Paraguai, em Sapucai, pois ele conhecia os ritmos do Paraguai. As rabecas tinham som bem alto de maneira que cobriam 0 som da sanfona. O primeiro violino 0 pai fez com 24 anos de idade. Seu pai segurava 0 violino de duas formas: préximo do colo, como se segura uma rabeca, e em cima, como se segura um violino. (Caderno de Campo de 30/09/2009) mologa¢ao, ocupadas por guarani-falantes em Mato Grosso do Sul, é possivel encontrar informantes capazes de relatar experiéncias musicais envolvendo indigenas tocando e fabricando instrumentos musicais tocados 8 moda do violino. Para o presente trabalho nao perseguimos todos os indicios sugeridos pelos informantes nas nossas idas ao campo. Por esse motivo, os dados que sero apresentados referem-se a apenas duas familias — grupos familiares — que historicamente confeccionavam e tocavam violino. (Cf. Lamina, figuras 6 e 7) Além de Gerénimo entrevistamos Augusto Caceres (76), residente na al- deia de Amambai, irmao do finado violinista Lucio Caceres com quem, du- rante décadas, faziam dupla musical. Augusto contou: 1. A atividade musical da familia Caceres : 3. . , Em companhia do seu irmo animavam baile nas aldeias indigenas da regiéo Denotes bts sen he wi : (Dourados, Amambai, Paranhos) e fora das aldeias, em fazendas, onde as pessoas as sobre a existéncia de violinos entre os indigenas da etnia Gua- dos arredores (indigenas e nao indigenas) dessas fazendas frequentavam os referi- rani da regido de Dourados e Amambaf chegaram até nds meio por acaso, dos bailes. Seu Augusto explicou que ele aprendeu a tocar instrumentos sozinho (informal- Um colega, professor universitario, comentou que havia adquirido um violi- mente), fora da aldeia, nas fazendas, durante os trabalhos da colheita e fabricagao no produzido pelo tio da sua esposa (um indigena da Aldeia de Amambai). Toda pouco depois esse senhor veio a falecer. No intuito de coletar dados i rv le, I COP UE Se COUT eee nee eee Paranborts 4 a d cope jue seu pai nao tocava instrumentos. ans icos aes esse fenémeno empreendemos diversas visitas as aldeias e " Seu ea era predominantemente de musica paraguaia — polkas, guaranias. mos Gerénimo Caceres, que ainda produz esses instrumentos, segun- Nunca tocou para ou com rezador guarani e, tampouco, em Igrejas evangélicas. 320 Protasio Paulo Langer Contou que chegou a fazer um violao, mas que esse era muito grosso e nao presta- va. Também ele tocava violino e chegou a fazer um para 0 seu uso. Além do violo, tocava sanfona e cantava, sobretudo, em guarani. Faziam o violino com uma ma- deira branca conhecida pelo nome popular de leiteiro ou em guarani sapiranguy (horquetero; Peschiera fuchsiaefolia; Peschieria australis). As principais ferramentas usadas para fazer os instrumentos eram o facdo, o formao e cacos de vidro para 0 acabamenio. Seu Augusto nunca foi religioso, isto é, nunca freqiientou a casa de reza guarani e tampouco as Igrejas Evangélicas. Sua parceria musical com 0 irmao Liicio foi diminuindo na medida em que esse se aproximou da Igreja Evangélica. Para Augusto, frequentar igrejas evangélicas era sindnimo de perder a liberdade. (Didrio de Campo, 24/05/2010) 2. Os mbaraca’ie a “oficina” de Joao Aquino Por sua longevidade, sua atuacao na luta pela demarcagao das Terras In- digenas, pelos conhecimentos tradicionais e pelas atividades culturais que desenvolvia, Joo Aquino (Ava Apyka Rendy) 6 um personagem emblematico entre os Guarani/Kaiowé de Mato Grosso do Sul. As informagdes que obti- vemos acerca desse senhor procedem de um Relat6rio Circunstanciado de Identificagao e Delimitacao da Terra Indigena Guarani/Kaiowa Taquara (FU- NAN); de familiares (filhos/as e vitiva) e, sobretudo, do senhor Ladio Veron Ca- valheiro, aluno recém formado em Ciéncias Sociais no Curso de Licenciatura Indigena Teko Arandu. De acordo com o referido Relatério, Joao Aquino nasceu na “margem di: reita do Taquara, hd cerca de 3 quilémetros da cidade de Juti, onde residiu até 1949” (Pereira, 69). Quando foi procurado para depor sobre sua relagdo com a area indigena de Takuara, o antropdlogo Levi M. Pereira percebeu que 0 prestigio politico e religioso de Jodo Aquino se estendia a diversas aldeias de Mato Grosso do Sul e do Paraguai. Os excertos a seguir expressam algo sobre a atuagao politica de Jodo Aquino: Joao Aquino diz ter exercido 0 cargo de capitao na reserva de Taquara entre os anos de 1937 a 1949, quando deixa 0 cargo a pedido dos parentes que viviam em Lagoa Rica (Panambi) que 0 convidaram a se mudar para aquela localidade e Id exercer 0 cargo de capitao. Jodo Aquino residiu por um tempo em Lagoa Rica, tendo re- tornado alguns anos depois a reserva de Caarapé, e posteriormente se radicado na reserva de Amamba‘ J. (Pereira, 70) Em 2005, com uma idade estimada em 104 anos, estabeleceu-se nova- mente em Takuara, para participar no processo de retomada daquela 4rea. De acordo com o Relatério: A chegada de Jodo Aquino em Taquara se constitui em evento de grande impor- tancia politica para as familias indigenas que Id vivem acampadas em cerca de 600 ha da Terra no interior da drea objeto deste estudo. Ele foi tratado com muito Violinistas Kaiowa/Guarani 321 respeito e até com certa veneracao, sendo recepcionado com ceriménias religiosas, carne de caca, chicha, etc. Nos cerca de 10 dias em que esteve com as famflias da comunidade de Taquara, Jodo Aquino foi o personagem central, sendo 0 foco das discussdes sobre a localizacao dos antigos locais de residéncia e das formas de sociabilidade desenvolvidas no local antes da expulsao das familias em 1953. Nes- se mesmo periodo, varios velhos, antigos moradores da comunidade de Taquara, mas que hoje vivem nas reservas de Caarapé e Dourados, também se dirigiram até Taquara, realizando um encontro de anciées, cujas discuss6es eram acompanhadas com interesse por toda a comunidade, inclusive por seus membros mais jovens. O Relat6rio nao faz referéncia as atividades musicais desse personagem, e nesse Ambito, como jd indicamos, as informagées mais consistentes foram prestadas por familiares e por Ladio Veron Cavalheiro. Este Gltimo, como Tra- balho de Conclusao de Curso (TCC), apresentou um Memorial que discorre sobre uma “oficina” de fabricacao de instrumentos musicais que, entre 1978 € 1980, Jodo Aquino oferecia as criancas e adolescentes indigenas da Reserva de Caarap6™". Veron Cavalheiro foi um dos adolescentes que participou da referida “oficina”, e seu trabalho representa uma fonte de primeira mao para um estudo etnolégico da mdsica dos Kaoiw4 Guarani e das miltiplas rela- Ges, espacos e conhecimentos que ela permeia. Em seu TCC, Ladio Veron Cavalheiro rememora 0 tempo em que foi apren- diz de luthier. Na virada da década de 1970-1980, Joao Aquino residia na Aldeia Te’yikue no municipio de Caarapé. Numa pequena cabana de sapé, Joo Aquino reunia um piblico infanto-juvenil para transmitir seus conheci- mentos relativos a fabricacdo de instrumentos. Nesses encontros, durante as atividades praticas, Jodo Aquino contava histérias sobre sua atuagao como miisico. Falando do seu préprio pai, Jodo Aquino dizia que foi com ele que aprendeu a tocar. Lembrava de quando seu pai fabricou um violino para Ihe dar de presente. Na épo- ca ele tinha 16 anos de idade e morava na Aldeia Bom Fim, hoje chamada Javorai (Laguna Carapa). “Fiquei durante 6 meses ao lado do pai, observando-o e ouvindo- 0 todas as vezes que ele tocava” (Jodo Aquino, Conversa informal, 1980). Depois, por questées de trabalho, teve que se distanciar da familia para ir morar na Aldeia Piraju’. Quando voltou para reencontrar seus pais, s6 encontrou sua mde; o pai ha- via falecido. |...] Joo Aquino dizia que 0 som do violino tem a suas interpretacdes e varios ritmos. Além disso, 0 som serve de inspiracao sentimental, ou seja, quando a pessoa ouve a msica torna-se mais sensivel, mais calma, tranqiiila e saudosa. Se- ‘gundbs os guarani o som do violino acalma os espiritos. (Veron Cavalheiro 2011, 7) Ao serem indagadas sobre os locais em que Jodo Aquino tocava, sua filha Felipa e a viva Emiliana responderam que antigamente ele “tocava na Oga Marangatu” (casa de rezas), mas que também tocava musica paraguaia. De uma destas, Felipa lembrou o verso: “Mariposa para mi reikoa pe Ka’aguyre” 301 VERON CAVALHEIRO, Ladio. Os ensinamentos tradicionais de Jodo Aquino ~ 0 caso dos instrumen- tos musicais executados com arco. TCC em Licenciatura Indigena, UFGD, 2011. Este trabalho foi orientado por nds e pade ser consultado no Curso de Licenciatura Indigena Teko Arandu, da UFGD.

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