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CUPIDO NA SALA DE AULA: PEDOFILIA E PEDERASTIA NO BRASIL ANTIGO* WIZ MOTT do Dept? de Antropologia/UFBa SUMMARY Based especially on documents from Portuguese Inquiel- anhe-se @ avolucto da tdeologla iuso-brasliira no tocant on, we follow the evolution of luaosbrazlian ideology fs relagiee sexusle Intergoractonels, privleglandose » concerning sexual relationships between adults and chil snélise de uma dendncle contra um suposto professor ran, anolyzing In detell @ charge against a suppoeed pe- Pedétilo em Minas Gerals nos meados do aécvio XVIll. _dophile teacher In the Cepitancy of Mines Gerele, Brazil, 19 end 18th Century * Esge artigo 6 porte de pesquisa mals ample, “Moralidade ¢ sexualided? no Bresil Colonial" financlada pelo CNPa, Devo 40 prof. Sebestido de Oliveira Cintra, emérito historledor de $80 Joto del Rey, o auxilio ne obtengdo de dados blogréfleos sobre © padre Jofo Pereira de Carvalho: 0 universitério Joaci Pereira Furtedo também participou, consultando 0 Pro ‘sesso de Habilitago deste mesmo cacerdote no Arquivo do Clrla de Maria 32 Cad. Pesq., Sa0 Paulo (69): 32- mato 1989 "E 0 Mestre diese: Daixal vir @ mim os pequeninos...* (lucas, 18:16) Dentre 08 tabus sexuals mals rapelidoa pela ideo- logla ocidental contemporsnea esto a pedofilie — relagtc sexual de adulto com crianga prépibere — @ & pederastia — relagBo sexual de adulto com ado- leacente — também chamada efebotilia (Dynes, 1985, , 10940). Tendo como pressupostos que 0 sexo & alndnimo de pecedo, que a saxualidade destine-se & reprodugto da espécle 9 86 pode ser praticada dentro do casamento, por serss maduros — conslderande-s8 crlanga como inocents © Imetura, aproximé-le doe prazeres eréticos equivaleria @ profanar sua propria natureza — 2 dessexualizagio da Infincia @ adates- 6neia ImpSe-se como um valor humano fundamental da clullizagtio Judatco-cristd, Diz nosso Cédigo Penal: ‘Aa ‘eorromper ou facilitar a corrupeto de posson menor de 1B enoa @ malor de 14, com ola praticando ato de libidinagem ou Induzindo-a @ praticé-lo ou pBresenclé-o, incorre o infrator na pene de até 4 anos de recluséo” (ert. 218). Mais grave ainda, pare a opinigo publica, 20 ‘28 relagdes sexuals envelvende homem edulto com ‘monino ou adolescente, na medida em que dols tabus. cruclala 880 deersapeltados: o erotismo Intergeraclo- nal © a homossexualldade, Sobretudo nos Estados Unidos, um dos maiores preconceltos contra os gays 6 8 acusagio de que repreaentem uma amesca con ‘tra a Integridade fisica des crlangas (children moles- tars), embore pesquisas repetidamente comprovem quo sho aobretudo os heterosexuals os rasponsévels pelo msior indice de vioi8ncla sexual contra os me- ores de Idede (Hoffman, 1970; Harvey & Gochros, 1977), ‘Alguns hietorladorss tem mostrado que a desse- xualizagho da crianga é fenémeno recente ne hiet6rla ocldental ¢ qué, até meados do século XVI, meninos @ meninas — inclusive nos palécios reals — viam, falavem, ouvlam ¢ aglam com mals soltura em maté: tla de sexo do que seus sucessores do parlodo vi- torlano (Artes, 1981; Foucault, 1980; Schérer, 1974). Em outras sociedades, como na Grécla antiga, a ra- lag8o sexual entre adultos @ Jovens fazla parte do. Proprio processo pedagdglco (Dover, 1978) e, con- ‘temporanesmente, em dezenas da sociedades tribals da Molanéela, ainda se pratice a pedersstia ritual ‘compuiséria pare todos os adolescentes, através da ‘qual o8 homens adultos transmitem seu amen, quer ppor via anal, quer oral, acraditando que aé assim ae novas geragbes cresceréo fortes © possulrfo a o- mente da vida (Herdt, 1884). © quo pare muitos é chocante, cruel © conside- rado como grave desrespelto & inoc8ncla Infantou venit, noutras socledades é conduta normal, método pedagégico ou ritual de Iniclaggo no mundo adulto. Um bom exemple de como em nossa prépria tradiglo ocidentel as Intimidades ffsicas entre adulto @ crian- ‘9a no causavam espanto, € 0 celebérrimo milagre de Santo Antonio de Pédua, o santo casamentelro natural de Lisboa, sompre repreaentado com 0 Me- Cad, Pesq. (68) maio 1989 nino Jesus no brago, devido "& prodigloss ¢ admiravel vis8o de um seu devoto que, espreltando ecao o que © santo fazla, chegando-ss & porta do querto com atidneclo @ ceutela, altes horas de notte, reparau pelos resquicios das desunides téboas da porta e viu um belo @ formosissimo infente, todo rel na magestede da presenga, todo aurora nos risos da boca, todo Cupido nas nudezas do corpo, © todo emor na ternure dos afetos, que $8 entretinha nos brecos de Antonio que venturosamente serviam de setas aquale amor. Viu que Antonto s@ regaleva com aquele menino entre doves © amoroses carfclas com ele nos braves...” tAbreu, 1725, p. 198). Mesmo para um santo, conve- hemos, era demesiade a Intimidads, embora na épo- ca fosse natureimente acetta. Em nossa tradiggo luso-brasilelre, parece qu relagdes sexusls entre adultos @ adolescentes, além de freqdentes, nfo eram conduta das mele condene das pala Teologla Moral, pols mesmo quando reall zada com violénola, a pedofilla em si nunca chegou 2 ser oonsiderada Utn crime especifico por parte de Inquisigto. Estes dole epleédios exemplificam nossa assergdo: om 1748, chega ao Tribunal do Santo Offclo de Llaboa a soguints dendnole: Maria Teresa de Jesus, mulher casada, moradora na Vila de Santarém, “saln- do de sua cess um seu filho, Menoel, de anos, fol levado por um mogo, Pedro, crlado, para um pordo & tusou do menino por trés, vindo o menino pata case fodo ensanguentado". Em 1752, outro caso seme- Thante chege & Inqulsi¢io: no povoado de Belém, jun- to a Lisboa, um mogo de 25 anos, José, marinhelro, agerrou um menino de 3 anos Incomaletos, Jofo, ¢ levou pera um srmazém, do qual salu a crienga cho rando multo, todo ensanguentado e rasgado seu or- flelo com a plea do mogo"?, Malorado 8 perversidade destes atos, a pequenez das vitlmas, @ revolta doe pals @ a Identifioagto fécll dos sstupradores, os reversndos Inquisidores nfo derem a mencr Importancia @ estas cruéis violéncias, erquivando ae dendnctes, ‘A naturalidade com que este outro pedétllo con- fesse seus “desvios” 6 esterrecedora: tratese de um sacerdote brasilelro, resldente em Salvador, o tego Jécome de Quelror, 48 enos. Confessou perente 0 Visttador do Santo Offclo, em 1591, que “uma notte, lavou ® sua casa uma moga mameluce de 6 ou 7 ‘nos, escrave, que endava vendendo pelxe pela rua, © depois de cear 6 86 encher de vinho, culdanda que corrompla @ dita moga pelo vaso naturel, @ penstrou pelo vaso trazoiro @ nele teve penetracdo sem polu- (io. E ourra vez, querendo eorromper ura mops, renga, eua escrava, do Idede da 7 anos, pouce mle ou menos. a panetau tonbém pele tazaro"® © remorso do cénego — @ seu crime — terla sido @ o6pula anal, ne épcca referida como “abom!- 1 Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Cadierno do Ne- fando n* 20, fl. 40, 2 Arquivo Naclonal da Torre do Tombo, Caderno do Ne- fando n* 20, 1. 124 3 Confissdee da Bahia, 1891-1592, Primeira Vieltseto do Santo Oficlo 88 partes do Brasil, Alo de Janeiro, F. Brigulet, 1935:48.47. nével pecado de sodomis". A Infantiiidade @ pureza estas duss meninas, ambes com sete ence, nfo Provooou qualquer preocupacko ou prurido a0 ped6- flo: seu medo era unicaments ter comstido “o mals torpe @ Imundo pecedo", @ c6pula anel — a corrup- ¢80 de menores ndo conetitufa motivo sequer de adverténcle, Anelisando a ferta documentagSo inquisitorial er- quivada na Torre do Tombo, em Lisboe, encontramos diversas dendnclas contra cidadios do Relno o Ultra- ‘mar, acusados de terem mantido relagtes homocas- xuals com meninos 9 adolescentes, Diversce foram ‘08 professores de meninos que tiveram seus nomes registrados nos volumosoa Cadornos do Nofando, acusados de atos torpes com seus discipulos. 80- mente os casos mals graves, quando havia muttas testemunhes de repetidos atos sodomiticos, redun- daram em priséo do réu, alguns poucas chegendo & foguelr. Em 1610, por exemplo, André Aradjo, 38 anos, professor de viola am Lisboa, & degredado por ‘dez anos para ae galés, como castigo por ter mentido cépules com vérlos de seus alunos com idades ve- riando entre 14 e 15 anos‘; Antonlo Homem, 80 ‘anos, preso em 1819, famaso mestre de C&nonee ne Universidade de Coimbra, fol acusado de ter aces ‘808 sodomiticos com mais de vinte estudantes, culas ‘dades varlavamn de 11 @ 21 anos: morreu queimado rum Auto de Fé, mes sua principe! culpa fol a pré- tica do Judafsmo; frel Jo8o Botetho, 43 anos, ox- frede JerOnimo, era mestre de mdsice, @ entre um solfelo @ outro, tinha o costume de agoitar as nédogas de sous alunos traveseos, ocaslllo em que os possule Pal vasso @ Incorrigivel no *mau pecado®, fol também condenedo & foguelre em 16984; Teotinlo Bonsu- ‘¢8880, 40 anos, mestre de meninos, em 1723 fol con denado @ 10 anos de galés por culpas de somitigaria com seus pupilos, 0 mals Jovem com @ anos # 0 mals velho com 14; mesmo preso nfo ebandonou Pedafilia, sendo visto no efrcere com um estudante sentado no colo, “fazendo com 0 corpo ae mesmas ages que faz 0 homem quendo dorme com uma mulher" ?, Em todos esses casos observamos a mesma re- ‘gularidade: um dos meninos reclama em casa 0 as- sédio do mestre, o pal leva o menor 20 Tribunal do ‘Santo Offcio 6 08 inqulaldores registram a dendncia. ‘@ somente apés ouvir uma dezena de testemunhas, entre criangas, seus perentes © vizinhos da escola, 6 ordenada @ pristo do professor. Ne meloria destes 2808, além do tormento, © pederaste fol dagredado para ee galés, vie de regra por dez anos. O fato de orem pré-puberss os parcelros, ou de sodomla ter-se reélizado com violéncta, nfo era matéria agravante ‘ara 0 castigo: © que se levava em conta era eobre- tudo @ ocorrénola ou no da “sodomle perfelta” (pe- netragéo com ejaculagto) © @ repeticse dos tos venéteos, a8 duas matérlasprimas para a punlggo por parte do Santo Oficlo (Mott, 1986a). 94 © eplssdio que analisaremos a seguir, @ que constitul 0 fuloro deste ensalo, ocorreu em Mine Gerals no ano de 1752, Pela riqueza de detathes, por suas ImplicagSes ¢ desdobramentos, constitul paca Importante para spresndermos alguns aspectos estru- ‘urals das relagSes entre professor @ aluno no &m- bito da soctedade colonial brasiteira, assim como para ‘vislumbrarmos a raaglo dos male velhos & sexuall- dede Infento-juventl © os mecanismos repressores acionados pela Igreja Gatéllea na correcao dos des- viog sexuels. Tratese de um sumerlo contra um professor scusedo de ter mantido repetides e violentas cépulas anals com seu aluno', Francisco Moreira de Cervalho era urn propriots- tHo rural residente nas Lavras da Lagoa, frequesta de Slo Jobo del Rel..na Comarca do Rio des Morte: Casado, tinha dots filhos: Lulz, com 8 para 10 anos @ Antonio, com 8. Davia sor homem ramediado, tanto ‘que contretou Jofo Pereira de Carvalho como profes: or particular de linguagem @ latin pera seus filhos, Tale aulas orem ministrades também para outro mo- nines de vizinhanca, provavelmente na sala da frente da casa do mostra, tal qual ae observa ainde hole ‘om escolas particulares de nossa zona rural. ‘A documentacho apresenta varias verses pare 0 mesmo eplsédlo, Els 0 primelro relato, Certo dle 0 menino Lulz assim dirigiu a palavra a seu progenitor: *Senhor meu Pal: meu Mestre Joo Perelra de Car valho dormlu comigo por de trée lé na Lagoa” (“dor- mir por de trés*, ou “dormir no 6° Mandemento”, ou “dormir camelmente pelo vase trazelro" erem eufe- mismes para descrever a cépula anal nos tempos da Inguisiggo). A outa varlante tem vérlas vertentes: uma tos- ‘temunhe declarcu que 0 Jovem professor teria enviado 40 menino Lulz um biihste que inedvertidamente caiu ngs mos do dono da casa. Trés testemunhes ‘do vversées diferentes do mesmo bilhetinho: um roceito de 42 anos, Inécio de Souse, declarou que o escrito do professor dizia: “Lulz: Vés, se me querels bem, au também Vos quero, ¢ s¢ ms quereis mal, eu tam- bém Vos quero”. A segunda testemunha, Jose Gon. salves Magro, 25 enos, portugues de Braga, dau outra redago mais hedonistica © néo menos roméntica: “Lulz, meu emorzinho, minha vidinha! Vinde para o bananal que eu J Ié vou, com @ garrafinhe de aguer- dents”. A tercelra testemunha diferlu pouco da a terlor: “Lulz, minha vide: vinde pera o bananal que & temos 0 que comer © beber* *V6s" era o tratamento comum nos séculos pas sados mesmo entre um professor @ um aluno; es “4 Arqulvo Naclonsl da Torre do Tombo, Inqulsiglo de Liaboa, Procesao n 5720. 5 Arquivo Nacional de Torre do Tombo, Inquisi¢lo de Lisboa, Procosso ns 15421. {8 Arquivo Naclonal da Torre do Tombo, ingulsicfo de Usboa, Processo ni 711 17 Arquivo Nacional da Torre do Yombo, Inquisigée do Usbos, Processo n.* 2886. {8 Arqulvo Nacional da Torre do Tombo, Cademo do No- fando nz 20, #. 192 © a3. de 24 de abril do 1752, Cupido ne sale de aul

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