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“Babados, xot

xaxados”: Notas sobre fe


ritual e marcadores soc
da diferença na quad
junina de Bel
tes
“Babados, xotes
esta, e xaxados”: Notas sobre festa,
ciais ritual e marcadores sociais
da diferença na quadra
dra junina de Belém

lém
R A FA E L D A S I LVA NOL E TO
Universidade Federal do Tocantins
Noleto, R. da S.

“BABADOS, XOTES E XAXADOS”: NOTAS SOBRE FESTA, RI-


TUAL E MARCADORES SOCIAIS DA DIFERENÇA NA QUA-
DRA JUNINA DE BELÉM
Resumo
Este é um texto introdutório, que apresenta pesquisa mais ampla, sobre
o protagonismo de homossexuais, travestis e transexuais no São João de
Belém. Apresento o contexto (especialmente os concursos de quadrilha
e de miss), desenhando os contornos da participação desses sujeitos no
âmbito dos certames juninos de dança e beleza. Posteriormente, elaboro
uma discussão sobre como a antropologia dos rituais é relevante para
entender a emergência de identidades sexuais e de gênero em contextos
ritualizados como os concursos juninos. Tento formular uma crítica que
destaca distâncias recíprocas entre os estudos sobre culturas populares e
os estudos de gênero e sexualidade.
Palavras-Chave: Festas juninas, marcadores socais da diferença, ritual.

“BABADOS, XOTES E XAXADOS”: NOTES ON PARTY, RITU-


AL AND MARKERS OF SOCIAL DIFFERENCE IN THE JUNE
FESTIVALS OF BELÉM
Abstract
This is an introductory text, presenting a more extensive research, on
the protagonism of homosexuals, travestite and transsexuals in São João
festival of Belém. I present the context (especially quadrilhas and Miss
contests), drawing the participation contours of these subjects in the
June dance and beauty competitions. Afterwards, I elaborate a discus-
sion about how the anthropology of rituals is relevant to understand the
emergence of sexual and gender identities in ritualized contexts as the
June contests. Thus, I try to formulate a criticismo which highlights the
reciprocal distances between studies on popular cultures and studies on
gender and sexuality.
Keywords: June festivals, markers of difference, ritual.

200 Amazôn., Rev. Antropol. (Online) 8 (1): 198 - 221, 2016


“Babados, xotes e xaxados”

“BABADOS, XOTES Y XAXADOS”: NOTAS SOBRE FIESTA,


RITUAL Y MARCADORES SOCIALES DE DIFERENCIA EN LAS
FIESTAS JUNINAS DE BELÉN
Resumen
Este es un texto introductorio, que presenta un estudio más amplio,
sobre el protagonismo de homosexuales, travestis y transexuales em las
fiestas de San Juan en Belén. Presento el contexto (especialmente los
concursos de grupos de danza y de miss), delineando los contornos de
la participación de estos sujetos en el ámbito de las competencias de
danza y de belleza que tienen lugar en las fiestas de junio. Posteriormen-
te, elaboro una discusión sobre la relevancia de la antropología de los
rituales para el entendimiento de la emergencia de identidades sexuales
y de género en contextos ritualizados como son los concursos de las
fiestas de junio. Intento formular una crítica que destaca las distancias
recíprocas entre los estudios sobre culturas populares y los estudios de
género y sexualidad.
Palabras clave: Fiestas de junio, marcadores sociales de diferencia, ritual

Endereço do autor para correspondência: Avenida Nossa Senhora de


Fátima, 1558, Sala 06. Universidade Federal do Tocantins (Campus To-
cantinópolis). Bairro: Céu Azul. CEP: 77.900-000. Tocantinópolis/TO.

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SÃO JOÃO EM BELÉM: UMA APRE- e esta denominação faz referência às


SENTAÇÃO quatro semanas do mês de junho em
Em Belém, há um consenso muito dis- que os folguedos ocorrem, aos quatro
seminado de que “São João é coisa de santos católicos festejados na época
viado” ou, simplesmente, de que “não (Santo Antônio, São João, São Pedro
existe festa junina sem as gays”. Essas e São Marçal3) e, de algum modo, aos
são frases que, com muita frequência espaços onde grupos juninos se apre-
são proferidas por pessoas diretamente sentam ao seu público, em geral, nas
vinculadas ao universo profissional da quadras, ginásios ou praças disponíveis
cultura popular na cidade. Embora os em áreas de lazer da cidade. Atualmen-
folguedos2 juninos sejam reconhecida- te, a quadra junina em Belém consiste
mente voltados para todos e quaisquer na realização de dezenas de concursos
sujeitos que deles queiram participar, festivos nos quais as quadrilhas, grupos
há uma presença inegável de homens coreográficos juninos, disputam títulos
homossexuais, mulheres transexuais, de reconhecimento relativos à qualida-
travestis e pessoas transgênero nesse de de suas apresentações. Inseridos no
contexto festivo. Sob a lógica compar- âmbito dos concursos de quadrilha, há
tilhada nas “periferias” de Belém, de os concursos juninos de miss, nos quais
onde emerge a grande maioria dos gru- algumas brincantes de destaque dispu-
pos juninos, os termos “viado” e “gay” tam os títulos de Miss Caipira, Miss Mu-
(este último sempre em concordância lata (ou Morena Cheirosa), Miss Simpatia
com artigos e preposições flexionadas e Miss Gay (ou Mix).
no feminino) ganham tons e alcances Os concursos de quadrilha são carac-
polissêmicos, não estando restritos a terizados pela disputa entre grupos
uma referência exclusiva aos homens (compostos por cerca de 22 pares de
homossexuais, mas abrangendo toda dançarinos) que dançam coreografias
uma pletora classificatória que escapa representativas de certos ideais de ru-
à heterossexualidade e à condição cis- ralidade e de heterossexualidade. Cada
gênero. Assim, os festejos juninos se quadrilha deve apresentar uma core-
configuram como importantes acon- ografia com cerca de 20 minutos de
tecimentos que atraem e inserem a duração, um limite de tempo que va-
participação destes sujeitos no campo ria de acordo com os diferentes regu-
da cultura popular de Belém. Não há lamentos que orientam os concursos.
aqui a intenção de negar que haja uma O certame consiste, portanto, em es-
grande adesão de pessoas heterosse- colher qual a melhor quadrilha que se
xuais e cisgênero às festas juninas da apresentou para o público presente e
cidade, mas sim o intuito de direcionar para um corpo de jurados especializa-
um olhar mais cuidadoso para os signi- dos. Apesar de ter intensa participa-
ficados da atuação expressiva das gays ção homossexual, travesti, transexual
nesse âmbito. e transgênero (sujeitos que podem ser
O período dessas festividades é popu- integrados às quadrilhas ocupando as
larmente chamado como quadra junina funções femininas na coreografia), os

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concursos de quadrilha não são volta- de quadrilha, que julgam uma compe-
dos especificamente para este público, tência coreográfica coletiva, a ênfase
admitindo, portanto, homens e mulhe- dos concursos de miss recai sobre a in-
res heterossexuais como dançarinos. dividualidade das candidatas, cabendo
Com relação aos concursos de miss, é a análise de seus atributos performáti-
necessário dizer que as brincantes estão cos individuais.
subdivididas nas categorias Miss Caipi- Para pesquisadores cuja sensibilidade
ra, Miss Mulata (ou Miss Morena Cheiro- está voltada para as discussões acerca
sa), Miss Simpatia e Miss Gay (ou Miss de gênero e sexualidade, não há como
Mix). Durante trabalho de campo, no- olhar para um concurso de quadrilhas
tei que meus/minhas interlocutores/ sem pensar nas dinâmicas de produção
as operavam com um grande divisor das identidades sexuais e de gênero.
generificado para os concursos de miss: As quadrilhas, com seus pares dividi-
Miss Mulher e Miss Gay (ou Miss Mix). dos entre damas e cavalheiros, encenando
Utilizam a primeira categoria para cortejos heterossexuais com vistas a
se referirem estritamente a mulheres um “namoro” coreografado, eviden-
cisgênero enquanto a segunda cate- ciam de maneira lúdica os ideais de um
goria faz referência a todas as outras modelo de casamento monogâmico,
identidades sexuais e de gênero que heterossexual e vinculado a uma reli-
os quadrilheiros não reconhecem como giosidade católica (Noleto, 2014a). En-
plenamente “femininas”, mas que pro- tretanto, a presença de homossexuais
duzem efeitos de “feminilidade” na e pessoas “trans”5 no contexto junino
quadra junina de Belém4. As “misses”, consiste em um fator que constrange
como são popularmente conhecidas, a pressuposição absoluta de heterosse-
são dançarinas que possuem status dife- xualidade nos enredos coreográficos.
rente dentro de uma quadrilha junina, Os concursos de quadrilhas dividem-se
pois são as principais representantes entre aqueles realizados nas “perife-
destes grupos coreográficos e, por este rias” da cidade (organizados por pro-
motivo, disputam títulos de reconheci- dutores culturais e líderes comunitá-
mento que estão diretamente relacio- rios) e os certames promovidos pelas
nados à avaliação de sua beleza, seu fundações culturais da Prefeitura Mu-
traje e suas habilidades em dança. An- nicipal de Belém e do Governo do Es-
tes de cada quadrilha se apresentar para tado do Pará. Há uma grande dificulda-
um júri especializado, as “misses” que de de mapear registros históricos cujos
a representam dançam e investem na dados pudessem fornecer informações
conquista de um título correspondente mais precisas acerca dos processos de
à sua categoria. Entretanto, a Miss Gay formulação desses certames (especial-
é a única que não dança caracterizada mente aqueles concursos situados nos
como tal junto com sua respectiva qua- bairros “periféricos” da cidade) e das
drilha, mas possui um concurso espe- vozes dos sujeitos que atuam direta-
cífico para sua categoria realizado em mente nas frentes de produção desses
outra data. Ao contrário dos concursos eventos. Entretanto, pesquisas de cará-

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ter mais histórico, voltadas para os dis- uma programação específica para eles.
cursos midiáticos construídos a respei- E foi aí que o Paulete, dono de um boi-
to dos festejos juninos, revelam que a -bumbá na [rua] Caraparú, no bairro
quadra junina de Belém possui uma lon- do Guamá, resolveu criar um concurso
ga tradição, oficialmente registrada na de miss gay pra ser o momento especí-
imprensa paraense, pelo menos, desde fico dos homossexuais nos concursos
os anos 1950 (Costa e Gomes, 2011), juninos”. Embora a produtora cultural
embora seja sabido que os folguedos faça referência a um período histórico
juninos de Belém surgiram na segun- e a um personagem específico (Pau-
da metade do século XIX, devido ao lete), produzindo um mito de criação
grande fluxo migratório de populações desses certames em Belém, ela também
nordestinas para a Amazônia (Santos, reconhece que “sempre existiram ho-
1980; Salles, 1985; Gomes, 2011)6. mossexuais na quadra junina, em todas
De lá para cá, os festejos juninos foram as manifestações da cultura popular”,
sendo modificados, ganhando um con- reforçando que há uma quase impos-
troverso protagonismo nas discussões sibilidade de identificar as “origens” da
acerca da ocupação do espaço urbano participação desses sujeitos nos feste-
de Belém (Gomes, 2011), desencade- jos.
ando embates com o poder disciplinar Raíssa Gorbatchof7, moradora do bair-
do Estado em suas tentativas de con- ro de Fátima (Matinha) e conhecida
trole e higienização do espaço públi- travesti militante de Belém, afirma que
co. Pode-se inferir que, para além da o São João desempenha um importan-
busca pelo direito à cidade, as disputas te papel na produção de visibilidade
pelo espaço público para a realização para gays e pessoas “trans”, projetando
dos folguedos juninos são também imagens positivas desses sujeitos a par-
reivindicações de agentes sociais que tir de concursos juninos organizados
pretendem assumir um protagonismo pelo Estado (Noleto, 2014b). Em sua
na reconfiguração dos sentidos que de- opinião, Raíssa sustenta que são os gays
finem a cultura popular produzida no e as travestis que fazem a quadra junina
contexto urbano. Neste rol de sujeitos, acontecer, contribuindo, especialmen-
os quadrilheiros, incluem-se atualmente te, nas tarefas artísticas relacionadas à
os homossexuais, as travestis e pessoas confecção de trajes juninos e na elabo-
“trans”. Porém, a questão da diversida- ração de coreografias para quadrilhas e
de sexual presente nesse âmbito pare- misses.
ce surgir em Belém, explicitamente, na Acompanhar os ensaios das quadrilhas
década de 1970. De acordo com Tetê de Belém significa entrar em contato
Oliveira, fundadora da Associação de direto com a diversidade sexual e de
Quadrilhas Juninas e Núcleo de Toa- gênero que as cercam. Ao ser questio-
das do Estado do Pará (AQUANTO), nado sobre quem seria gay na quadrilha
“na década de [19]70 muitos homens “Fuzuê Junino” (bairro da Pedreira),
homossexuais se vestiam como mulher um coreógrafo, presente em um dos
na época da quadra junina. Não tinha ensaios onde fiz campo, respondeu

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com um conselho: “Talvez seja mais que é socialmente classificado como


fácil perguntar quem não é gay aqui!”, “feminino”, sendo a sensibilidade para
enfatizando que, no contexto junino, a arte da dança um atributo que, na
ser heterossexual configura-se como lógica quadrilheira, estaria vinculado à
uma exceção. O fato é que esses con- ideia de “feminilidade”. Ocir Oliveira,
cursos representam, no contexto de estilista, coreógrafo e proprietário do
um tempo-espaço festivo, um âmbi- Atelier Cabocla, considera que “não tem
to social no qual a homossexualidade jeito: as bichas são sempre mais ligadas
masculina, a travestilidade, a transexu- à arte. Elas sabem coreografar, elas sa-
alidade e a transgeneridade não encon- bem costurar, elas são criativas e elas
tram barreiras fortemente impeditivas ainda dançam melhor que as mulhe-
quanto à participação desses agentes res!” Nestes termos, os discursos que
sociais na produção de uma festa po- são produzidos e veiculados pelos su-
pular. No contexto das quadrilhas juni- jeitos sobre as possíveis relações entre
nas, estes sujeitos estão inseridos nas diversidade sexual e festas juninas em
coreografias como brincantes, que de- Belém caminham na direção de natu-
sempenham, majoritariamente, o papel ralizar, de maneira essencialista, um
das damas e, assim, reconfiguram sim- vínculo entre sensibilidade artística e
bolicamente a constituição heterosse- homossexualidade, compreendendo-se
xual pretendida nos enredos coreográ- sob esta denominação as identidades
ficos. Embora muitos homossexuais e “trans”. Embora a arte seja percebida,
pessoas “trans” ocupem os cargos de pelos quadrilheiros, como ligada ao “fe-
damas, há também (em número muito minino”, o campo das festas juninas
menor) travestis e pessoas transgênero conta com poucas mulheres cisgênero
que ocupam os cargos de cavalheiros, que se destacam como estilistas, coreó-
inserindo elementos de “feminilidade” grafas ou mesmo presidentes de quadri-
na ala coreográfica “masculina”. Ain- lhas. A atuação feminina mais expressi-
da que seja de conhecimento público va situa-se na condição de brincantes de
a grande quantidade de cavalheiros ho- quadrilha, sendo a maioria desses cargos
mossexuais no interior das quadrilhas, é importantes ocupada por homens (he-
necessário destacar que nem sempre os terossexuais ou homossexuais) e, em
cavalheiros homossexuais possuem per- alguns casos, pessoas “trans” – espe-
formances de gênero “femininas”. Às cialmente mulheres transexuais. Se, su-
vezes, performatizam coreografias que postamente, como meus interlocutores
sugerem elementos de “passividade” afirmam, há uma relação compulsória
sexual, fator que pode “feminilizar” entre “feminilidade” e sensibilidade
uma identidade de gênero “masculi- artística, este fato deveria ser expresso
na”8. também através de um grande número
Tal protagonismo gay e “trans” se justi- de mulheres cisgênero assumindo po-
fica, para muitos quadrilheiros, devido a sições de destaque no campo da cria-
uma suposta relação entre essas identi- ção artística nesse âmbito da cultura
dades sexuais e de gênero com aquilo popular. No entanto, o contexto etno-

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gráfico evidencia que a ideia de “femi- sejam alocadas nestas categorias.


nino” não está estritamente vinculada Vale ressaltar que há, entre os quadrilhei-
a uma “feminilidade” hegemônica (isto ros, um entendimento de que existem
é, heterossexual e cisgênero), mas sim diferenças hierárquicas entre as três ca-
a uma concepção mais alargada de que tegorias “femininas” de miss, sendo a
a condição “feminina” é uma experiên- Miss Caipira a mulher mais importante
cia social que abarca outras expressões da quadrilha, que carrega a temática de
e identidades de gênero reivindicadas seu grupo em sua coreografia e trajes
especialmente por pessoas “trans”. Se juninos. No segundo posto hierárquico
o São João de Belém é considerado há a Miss Mulata (ou Morena Cheirosa),
como o lugar do “feminino”, essas “fe- que, de acordo com uma compreensão
minilidades” não podem ser compre- nativa, carrega consigo a “força” da
endidas sob uma visão estreita, coladas quadrilha. Em última posição, há a Miss
a concepções biologizantes. Simpatia, que tem a função de repre-
Mas se há um lugar de destaque incon- sentar a graciosidade de sua quadrilha.
testável para as mulheres cisgênero, Do ponto de vista coreográfico, há al-
este se encontra nos concursos juninos gumas informações coletadas sobre a
de miss. Em termos numéricos, as Mis- percepção dos quadrilheiros quanto às
ses Mulheres são maioria, possuindo três diferenças entre as categorias femini-
categorias em que podem disputar títu- nas de miss. Nesta perspectiva nativa,
los, embora as Misses Gays (ou Mix) te- é possível notar que se espera da Miss
nham grande destaque na quadra junina. Caipira uma apresentação coreografi-
Há dois marcadores de diferença que camente mais complexa, que reflita o
se sobressaem nestes concursos: gêne- seu status superior dentro do grupo e
ro e raça. Se, de um lado, há um grande que “traduza” os elementos temáticos
divisor generificado que opõe as cate- propostos para a coreografia de sua
gorias “mulher” e “gay/mix”, por ou- quadrilha como um todo. Em geral, es-
tro lado, estes concursos demarcam o tas misses são vistas como melhores co-
lugar racial das misses, estabelecendo a nhecedoras de técnicas de dança e são
categoria “mulata” como destinada às mais cobradas para inovarem em suas
mulheres mais “negras” ou com colo- performances a cada ano. Por sua vez,
ração de pele consideradas “escuras”, espera-se que a Miss Mulata se apresen-
“morenas” ou “mestiças”. A partir te com uma coreografia “forte”, que
disso, percebe-se que, em geral (mas represente supostos atributos da raça
não invariavelmente), as misses Caipira “negra” como “energia” e “sensua-
e Simpatia são visivelmente mais “bran- lidade”. Muitos quadrilheiros afirmam
cas” ou “claras”. Embora haja casos que estas misses são mais “brutas” e
esporádicos e pontuais em que candi- dançam coreografias com movimentos
datas “negras” ou “morenas” tenham percebidos como mais “pesados”. Pos-
disputado os títulos de Miss Caipira ou suem a incumbência de “levantar” a
Simpatia, a ocorrência maior consiste torcida das plateias, mostrando a garra
em que as candidatas mais “brancas” de sua quadrilha.

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Com relação à categoria Miss Mulata, da mulata traz consigo estigmas histó-
há um debate – motivado pelos regula- ricos que sexualizam excessivamente a
mentos do concurso oficial promovido mulher por via da raça, pois “seu valor
pela Prefeitura de Belém – acerca de é o de exprimir sinteticamente a brasili-
sua nomenclatura. A discussão se refe- dade – nacionalidade – através de uma
re à da adoção do termo Miss Morena sexualidade exacerbada, posto que não
Cheirosa em detrimento da denomina- controlada pelos laços de parentesco
ção Miss Mulata. Em 2012, a Prefeitura no interior da família. Assim, suscita/
de Belém resolveu abandonar a catego- favorece/estimula a comunicação/
ria Miss Mulata e adotar a designação aliança com o Outro, o estrangeiro”
Miss Morena Cheirosa com o intuito de (Giacomini, 1994: 221)9. Por outro
aproximar o qualificador racial “mo- lado, o qualificador “morena cheiro-
rena” da designação usualmente mo- sa” suscita a ideia de que há “more-
bilizada para descrever Belém como nas” que não são cheirosas e, portanto,
cidade morena e cheirosa, referindo- cria uma associação problemática en-
-se, respectivamente, ao caráter “mes- tre raça, odores e fluidos corporais de
tiço” que configura a formação racial modo a produzir avaliações racistas re-
da população da cidade e aos cheiros lativas às noções de impureza e sujeira.
dos frutos e temperos que integram Além disso, a tentativa de afastar dos
os ingredientes da culinária local, tais concursos juninos o caráter “negro”
como a manga (Belém também é con- e “africano” da categoria Miss Mulata,
siderada como cidade das mangueiras) ressaltando o aspecto “amazônico”,
e o tucupi (caldo aromático extraído “caboclo” e “indígena” pretendido
da mandioca e utilizado para receitas para a categoria Miss Morena Cheirosa
como tacacá e arroz paraense). ecoa um longínquo e equivocado senso
De acordo com informações coletadas comum ainda vigente de que “na Ama-
em entrevistas realizadas com Alice zônia, contudo, a contribuição cultural
Miranda e Ruth Botelho (principais do negro é sistematicamente diminuí-
organizadoras dos concursos promo- da, e até negada, no conjunto de seus
vidos pela prefeitura), a categoria Mo- valores constitutivos. O negro, menos
rena Cheirosa sublinha o caráter mais ainda que o branco europeu, vale dizer
“paraense” e “amazônico” pretendido o lusitano, quase nada teria deixado de
para esta categoria de miss, afastando- sua presença na região” (Salles, 2005
-se do caráter mais “negro” e “africa- [1971]: 93).
no”, utilizados em anos anteriores nas Finalmente, as misses da categoria Sim-
coreografias dessas misses e percebi- patia configuram-se como um estágio
dos, pela organização dos concursos inicial para a carreira de miss. Executam
da prefeitura, como não amazônicos. movimentos considerados mais “le-
O fato é que tanto os termos “mula- ves” e menos complexos, devem “en-
ta” quanto “morena cheirosa” contêm cantar” o corpo de jurados que analisa
pressupostos racistas que precisam ser os concursos e tem a missão de empre-
problematizados. Por um lado, a figura ender uma sedução pueril em relação

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ao público presente, exibindo sorrisos ção dialógica através da qual ensinam e


e movimentos que são, simultanea- aprendem atributos de “feminilidade”,
mente, maliciosos e infantis. Dentre mobilizando, inclusive, marcadores
todas as misses, a Miss Simpatia é, quase raciais como elementos que reforçam
sempre, a mais jovem. Ainda que não a beleza, a densidade e a sensualidade
seja a mais jovem dentre as misses, suas de suas coreografias. Assim, a “femi-
apresentações denunciam, quase sem- nilidade” é adquirida e aprimorada co-
pre, menor experiência como brincante reograficamente a partir de complexos
na quadra junina e suas performances movimentos de dança, que conferem a
remetem quase invariavelmente a per- estas misses a possibilidade de se consti-
sonagens mais infantilizados. Do pon- tuírem como mulheres.
to de vista racial, a categoria Simpatia
abrange, geralmente, candidatas de
classificações diversas. Neste caso, a FESTA E RITUAL: ALGUNS PRESSU-
ênfase recai sobre a articulação entre POSTOS
gênero, sexualidade e geração, pois a Merece destaque nesse campo o fato
Miss Simpatia performatiza uma “femi- de que, no quadro atual encontrado
nilidade” exacerbada e uma sexualida- em Belém, a festa junina está organi-
de em descoberta, encenada de modo zada em torno da ideia de competição.
pueril. É incontestável que há um caráter pro-
Com relação à categoria Gay/Mix, é priamente festivo envolvido na quadra
perceptível que as expectativas que se junina paraense, mas sua ênfase não re-
mantém em relação aos sujeitos ho- side num divertimento descompromis-
mossexuais, transgêneros, travestis ou sado em relação a uma disputa central
transexuais que disputam os títulos de travada naquele contexto. Pelo contrá-
miss são bem próximas das exigências rio, atualmente a centralidade das fes-
coreográficas que são direcionadas tas juninas em Belém está assentada
para as Misses Mulatas. De acordo com nos concursos de quadrilha e de miss e
a maioria dos discursos ouvidos e regis- não nas possibilidades de lazer que lhes
trados em campo, os quadrilheiros afir- são periféricas. Em outras palavras, os
mam que as Misses Gay/Mix possuem sujeitos, em sua maioria, comparecem
uma “força” que pode ser comparada às festas com vistas a uma participação
ou equiparada às Misses Mulatas, o que intensa no “jogo”, seja na condição
masculiniza a mulher “negra” (ou não de quadrilheiros (os jogadores) ou na
“branca”) e não reconhece plenamente condição de espectadores (as torcidas
a feminilidade das Misses Gays/Mix10. organizadas e os membros das comu-
Ressalta-se ainda o fato de que muitos nidades que comparecem ao evento).
sujeitos homossexuais e/ou trans do Neste sentido, é possível inferir que
universo quadrilheiro são coreógrafos “a cultura surge sob a forma de jogo,
de inúmeras misses (mulheres ou gays/ que ela é, desde seus primeiros passos,
mix) que dançam nos concursos juni- como que ‘jogada’. [...] A vida social
nos, estabelecendo com elas uma rela- reveste-se de formas suprabiológicas,

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que lhe conferem uma dignidade supe- nas “periferias” de Belém a partir de
rior sob a forma de jogo, e é através suas atuações no contexto da cultura
desse último que a sociedade exprime popular.
sua interpretação da vida e do mundo” Embora tenha dialogado com a biblio-
(Huizinga 2012 [1938]: 53). grafia antropológica preocupada com
Assim, as atividades de lazer não po- a compreensão de contextos festivos,
dem ser meramente entendidas como ressalto que estabeleci uma relação
uma alternativa de “fuga” ou “des- mais próxima com o arcabouço teóri-
canso” das obrigações da vida social co acerca dos rituais. Isso se justifica
e política experimentada no cotidiano pelo fato de que o São João em Belém
(Dumazedier, 2012 [1962]; Magnani, enfatiza os concursos juninos, estejam
2003). De outro modo, o campo das eles localizados nos bairros “periféri-
festas juninas em Belém suscita con- cos” da cidade ou sejam eles certames
clusões acerca de como o lazer, a festa oficiais promovidos pelos poderes pú-
e o jogo são bons para pensar sobre as blicos. Assim, meu interesse etnográfi-
dinâmicas de produção da vida social co voltou-se para os concursos juninos
porque colocam em relação sujeitos em suas qualidades intrínsecas como
políticos envolvidos em atividades que rituais. A partir dos pontos menciona-
os situam entre a diversão e a dispu- dos até agora, devo reiterar que, pen-
ta. Melhor ainda é dizer que, no caso sando à luz de Tambiah (1985), creio
dos concursos de quadrilhas e de miss, o que os concursos juninos possuem
próprio divertimento dos brincantes e de uma natureza comunicativa (dizem
suas torcidas está justamente condicio- algo a alguém), uma estrutura formal
nado à realização da disputa. que os organiza, pertencem ao domí-
Se aceitamos a ideia de que a festa cria nio dos acontecimentos extraordiná-
um ambiente favorável a uma experi- rios no calendário cultural do estado
mentação humana no campo do pos- do Pará e, mais do que isso, configu-
sível (Perez, 2012: 33-34), entendemos ram-se como rituais que evidenciam
que a festa é produtora e não reprodu- algumas convenções de gênero e de se-
tora da vida social, inventando outras xualidade vigentes no contexto pesqui-
relações dos sujeitos com o mundo e sado. Minha orientação teórica para o
“oferecendo-nos a possibilidade de entendimento do contexto pesquisado
pensar a vida coletiva para além da está vinculada ao uso das teorias antro-
duração e dos determinismos” (Perez, pológicas de ritual para a compreensão
2012: 40)11. Ultrapassando o fato de ser da produção de identidades raciais, de
uma disputa de títulos corresponden- gênero e de sexualidade no contexto
tes às melhores quadrilhas ou misses, a das festas juninas.
quadra junina de Belém coloca em jogo Desde o início do estabelecimento da
uma disputa política revestida de ludi- antropologia como um campo discipli-
cidade: a demarcação de um espaço de nar, os rituais foram percebidos como
agência e visibilidade para homossexu- um importante meio de compreensão
ais, travestis, transexuais e transgêneros da vida social de um determinado gru-

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Noleto, R. da S.

po12. Entretanto, minha pesquisa se minha pesquisa: o encontro entre cer-


aproxima da abordagem contempo- tas teorias de festa e algumas teorias de
rânea proposta por Tambiah (1985), ritual. Como já dito, meu contexto et-
que permite deslocar completamente a nográfico são concursos festivos, por-
noção de ritual do universo tribal, re- tanto, estou no domínio das “festas”.
ligioso e mágico para os contextos et- Na antropologia brasileira, sabemos
nográficos e contemporâneos das fes- desde Magnani (2003 [1998]) que o
tas, eventos e cerimônias. Isto porque contexto das atividades de lazer pode
o autor, em diálogo com as teorias da oferecer importantes perspectivas de
linguagem, considera os rituais como compreensão da visão de mundo de de-
eventos de natureza comunicativa, ou terminados grupos sociais. Entretanto,
seja, eles comunicam algo para quem uma corrente teórica contemporânea
integra o ritual ou para quem o assis- no Brasil tem criticado os estudos que
te. No entanto, a partir de Tambiah buscam certo caráter teleológico nas
(1985), é possível dizer que festas (Perez, 2012), propondo uma
“...os eventos que os antropólogos passagem teórica da “festa-fato” (sem-
definem como rituais parecem par- pre interpretada como referente a um
tilhar alguns traços: uma ordenação todo social mais amplo que a engloba)
que os estrutura, um sentido de para a “festa-questão” (que vê na festa
realização coletiva com propósito um potencial para fornecer perspecti-
definido, e também uma percep- vas teóricas que apreendam o universo
ção de que eles são diferentes dos próprio da festa, compreendendo a re-
[eventos] do cotidiano” (Peirano,
alidade social específica produzida nes-
2000: 10).
tes contextos). Assim, “o ponto não é
Embora considere que o ritual perten-
identificar a que tipo de sociedade e/
ça ao domínio dos acontecimentos ex-
ou grupo e a que tempo ela [a festa] é
traordinários, Tambiah (1985) defende
relativa, quais são as representações de
a ideia de que as teorias de ritual tam-
mundo que expressa/dramatiza, mas
bém podem se configurar como um
qual é a relação que a festa estabelece,
instrumental teórico muito válido para
qual é o mundo da festa, de que mundo
a análise tanto de acontecimentos co-
ela é perspectiva” (Perez, 2012: 41).
tidianos quanto de eventos excepcio-
A tensão que se coloca em minha pes-
nais. Nas palavras de Mariza Peirano,
quisa está entre, de um lado, as teorias
“...rituais e eventos ampliam, acen-
de ritual, que enfatizam a prática ritual
tuam, sublinham o que é comum
como dotada de propósitos, finalida-
em uma sociedade, trazendo como
consequência o fato de que o ins-
des e, de outro lado, as teorias contem-
trumental analítico utilizado para o porâneas sobre festas, que destacam
exame de rituais mostra sua serven- que as festas não possuem uma fina-
tia para a análises de eventos natu- lidade vinculada com a realidade social
ralizados ou excepcionais de uma na qual se inserem. Pelo contrário, as
sociedade” (Peirano, 2007: 07). festas seriam mecanismos de ligações
Contudo, há uma tensão teórica em sociais que engendram outras formas,

210 Amazôn., Rev. Antropol. (Online) 8 (1): 198 - 221, 2016


“Babados, xotes e xaxados”

novas perspectivas de sociedade que campos nas quais é possível entrever


não são necessariamente decorrentes que as festas possuem elementos ritu-
do contexto social no qual festa está ais e, por fim, os rituais contêm, muitas
situada. Em outras palavras, as festas vezes, elementos festivos.
propõem uma virtualidade social pró-
pria, uma perspectiva de vida específi-
ca, que não está ligada e nem reforça RITUAL, GÊNERO E SEXUALIDADE:
valores sociais pré-existentes de um INTERPRETAÇÕES DO CONTEXTO
grupo. JUNINO
Com o intuito de apaziguar essa ten- Para aprofundar um pouco mais a
são teórica existente entre teorias que proposição aqui apresentada, destaco
tratam, separadamente, de festas e ritu- as contribuições de Cavalcanti (2006
ais, devo dizer que não estou tratando [1994]; 2002) ao analisar e reconhecer
das festas juninas sob a perspectiva de o caráter ritualístico dos concursos de
análise de um evento festivo, ratifican- Escolas de Samba no Rio de Janeiro
do que meu enfoque são os concursos, e dos concursos de Boi-bumbá na ci-
extremamente ritualizados, que se re- dade de Parintins (Amazonas). Assim
alizam durante o calendário geral das como a autora, possuo “interesse em
festas juninas. Portanto, afirmo que aprofundar a compreensão do idioma
não estou interessado nas formas es- próprio dos ritos, buscando também
pontâneas de sociabilidade e de realiza- seu enfoque como formas artísticas”
ção desses festejos, mas sim propondo (Cavalcanti, 2002: 46). Vale ressaltar
uma análise dos mecanismos rituais que, no caso de minha pesquisa, o en-
engendrados por estes concursos que, foque está nas questões de gênero e
por sua vez, promovem certos valores de sexualidade, ou seja, pretendo en-
relativos ao gênero, à sexualidade e às tender o “idioma” dos ritos dos con-
relações raciais. Resumindo, meu in- cursos juninos e observá-los em suas
teresse não está no caráter festivo das formas “artísticas” com o objetivo fi-
festas juninas, mas sim no aspecto ritu- nal e principal de compreender como
al dos concursos de quadrilha e de miss. esta estrutura ritual está a serviço da
No entanto, é oportuno ressaltar que produção de convenções de gênero e
esta separação entre “festa” e “ritual” de sexualidade.
se dá apenas em termos heurísticos, Embora haja certa literatura que discu-
pois, de um lado, o São João de Belém ta sobre festas juninas (Chianca, 2006;
é pautado nas atividades ritualizadas 2013; Nóbrega, 2010; 2012), estes tra-
dos certames juninos e, de outro lado, balhos detiveram-se mais nos aspectos
são os próprios concursos de quadrilha explicativos das festas juninas, aten-
e de miss que constituem o ciclo festivo tando para o processo organizacional
denominado como quadra junina. Em desses megaeventos (Chianca, 2013)
outras palavras, embora haja diferenças e para a discussão sobre negociações
sensíveis entre os conceitos de festa e entre “tradição” e “modernidade” nes-
ritual, há articulações entre esses dois ses contextos festivos (Menezes Neto,

Amazôn., Rev. Antropol. (Online) 8 (1): 198 - 221, 2016 211


Noleto, R. da S.

2008; 2015; Nóbrega, 2010;2012)13. ritual seria uma espécie de “porta de


No entanto, percebo que entrada” ou “uma área crítica para se
“até o presente momento, não há, penetrar na ideologia e valores de uma
na antropologia brasileira, nenhu- determinada formação social” (Da-
ma etnografia cujo foco de análise Matta, 1997: 28). Ainda que DaMatta
seja o protagonismo homossexu- (1997) tenha legado uma importante
al e travesti nas festas juninas do contribuição (um tanto quanto gene-
Pará ou de outro estado brasileiro, ralizante) para a discussão do lugar
o que, por um lado, implica a ne- do ritual na vida social brasileira (ex-
cessidade de uma discussão das po- presso no carnaval, paradas militares
sições ocupadas por esses sujeitos
e procissões), compartilho de certas
neste contexto festivo e, por outro
críticas em relação às suas análises,
lado, sublinha a originalidade da
proposta desta pesquisa” (Noleto,
sobretudo do ponto de vista dos es-
2014a: 30)14. tudos de gênero e sexualidade. Neste
Mais do que problematizar estes su- caso, afino-me às reflexões de Gonti-
jeitos negligenciados em muitas aná- jo (2009), que, numa revisão crítica da
lises sobre cultura popular, considero obra de DaMatta (1981; 1997), critica
que ainda são poucos os trabalhos que o pressuposto heterossexual e binário
utilizam as teorias antropológicas de de seu esquema analítico e afirma que
ritual para entender o protagonismo o carnaval, ao invés de “feminilizar o
destes sujeitos generificados, racializa- mundo”, “homossexualiza o mundo”.
dos e sexualizados em determinados Gontijo considera que,
contextos. Dentre os trabalhos que fa- “...para Roberto DaMatta (1981),
zem esta conexão, destaco os textos de a principal operação que realiza o
carnaval do Rio de Janeiro é a “fe-
Gontijo (2009) – cujo foco foi tentar
minilização do mundo” – a mulher
entender sociabilidades homossexuais se torna o centro das brincadeiras e
como práticas ritualizadas no carna- dos jogos, como que para mostrar
val do Rio de Janeiro – e Díaz-Benítez sua importância durante o resto do
(2007) – que mobiliza teorias de ritual ano, mas uma importância guarda-
para explicar práticas sexuais entre ho- da secretamente para bem preser-
mens gays nos dark rooms disponíveis var a hierarquia dos sexos baseada
em boates voltadas para este público. na virilidade/masculinidade. Ora,
Assim, considero que as festas juninas essa operação de feminização não
são timidamente abordadas sob a cha- está à serviço das interessadas – as
ve de compreensão das teorias de ritu- mulheres – mas, ao contrário, à dis-
posição dos prazeres masculinos.
al, principalmente quando este campo
Mais do que feminizar, parece que
de discussão sobre rituais pode ajudar o carnaval estaria operando atual-
na compreensão da emergência de um mente uma verdadeira “homosse-
protagonismo “feminino”, homosse- xualização” do mundo, servindo
xual e “trans” neste contexto festivo. cada vez mais de cenário para certa
Nestes termos, tento produzir uma forma de “liberação homossexual”,
reflexão que parte da ideia de que o divulgando progressivamente uma

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“Babados, xotes e xaxados”

espécie de estética homossexual. ro se manifesta na formação de pares,


Assim, o carnaval estaria saindo que, em realidade, desejam expressar
da simples operação masculina de casais heterossexuais em cortejo mútuo.
feminizar o mundo para se tornar É importante observar que os regu-
também um festival altamente ho-
lamentos dos concursos juninos utili-
mossexualizado” (Gontijo, 2009:
zam o termo pares, em detrimento da
20).
palavra casais, para designar as duplas
Sendo assim, as reflexões de Gontijo
(2009) servem-me como um importan- de brincantes que integram as quadri-
te contraponto para a análise destes su- lhas. Isso se deveu à luta de integrantes
jeitos generificados e sexualizados no do movimento LGBT de Belém que,
contexto das festas juninas de Belém. no início dos anos 2000, reivindica-
Neste caso, especificamente no que se ram à Prefeitura Municipal o direito
refere ao protagonismo homossexual e de ocuparem os cargos coreográficos
“trans” que vem sendo verificado nas mais condizentes com suas respecti-
festas juninas, avalio que a presença vas identidades de gênero15. Para ad-
destes sujeitos tanto homossexualiza mitir que a comunidade LGBT parti-
quanto heterossexualiza o contexto ri- cipasse dos certames, os gestores da
tual, marcando a ambiguidade de suas Fundação Cultural do Município de
atuações neste espaço festivo. O tra- Belém (FUMBEL) encontraram uma
balho de campo possibilitou perceber solução: trocar a palavra casais (antes
que, de certa maneira, os homossexu- usadas em todos os regulamentos)
ais e pessoas “trans” desafiam o pres- pela palavra pares. Assim, as quadrilhas
suposto heterossexual e cisgênero dos poderiam ter pares de brincantes forma-
concursos juninos a partir de uma per- dos por pessoas com as mais diversas
formance de interações heterossexuais sexualidades e identidades de gênero.
entre damas e cavalheiros. Porém, se ob- Porém, deveriam representar, ao me-
servadas de outro ponto de vista, es- nos no plano da performance, a díade
sas performances também reforçam a “masculino”/“feminino” que compõe
heterossexualidade como norma, pois, visualmente as quadrilhas. Dessa manei-
pelo menos visualmente, toda a coreo- ra, são inadmissíveis aos regulamentos
grafia é desenvolvida para representar juninos editados pelos concursos ofi-
casais aparentemente heterossexuais ciais (Governo do Pará e Prefeitura
em interação. Assim, no plano social, de Belém) a formação de pares sem a
a diversidade sexual e de gênero pre- representação obrigatória dos pólos
sente nos certames juninos oferece um “masculinos” e “femininos” exigidos
potencial desestabilizador das identi- para a manutenção da suposição visual
dades de gênero e expressões da se- da heterossexualidade e cisgeneridade
xualidade consideradas inteligíveis da da composição coreográfica. Ou seja,
perspectiva de um senso comum. Mas, é vedada a formação de pares com, por
no plano performático, a força norma- exemplo, duas damas ou dois cavalheiros.
tiva da heterossexualidade e da suposta Minha sugestão é de que as quadrilhas
existência de uma estabilidade cisgêne- operam com uma ideia de heterossexu-

Amazôn., Rev. Antropol. (Online) 8 (1): 198 - 221, 2016 213


Noleto, R. da S.

alidade e cisgeneridade coreográfica. Isto é, venho trabalhando: de que os concur-


uma composição de coreografia que sos de quadrilha, especialmente através
visa criar efeitos performativos de da inserção de pessoas transexuais,
heterossexualidade e cisgeneridade, travestis e transgêneros, são rituais
mas que nem sempre é dançada por de reconhecimento público da iden-
sujeitos que se reconhecem nas iden- tidade de gênero assumida por estes
tidades heterossexuais e/ou cisgênero. sujeitos. Por sua vez, os concursos de
No plano da linguagem, é interessante miss (em suas modalidades “feminina”
ressaltar a articulação discursiva conti- e “gay/mix”), são rituais públicos que
das nos regulamentos para, ao mesmo legitimam um status individualizante e
tempo, admitir a presença da diversi- hierarquicamente superior para deter-
dade sexual e de gênero nos certames minados sujeitos no contexto da “peri-
e, por outro lado, negar-lhes o possível feria”. No caso das mulheres cisgênero,
status de casal, designando-lhes o nome esses concursos possibilitam o acesso
de pares. ao universo adulto da “periferia”, sa-
Com relação ao protagonismo “femi- lientando, além de seus talentos artísti-
nino” nos concursos juninos, interes- cos, a sua disponibilidade no mercado
sa-me discutir tanto as possibilidades dos afetos e das trocas eróticas. No
de aprendizado da “feminilidade” pe- caso dos homossexuais, travestis, tran-
las vias da dança (Noleto e Negrão, sexuais e transgêneros, os concursos
2015), quanto os mecanismos de racia- de miss também se configuram como
lização da participação dessas mulhe- uma maneira ritual de assumir publi-
res no contexto dos concursos de Miss, camente suas identidades de gênero e
produzindo as categorias Miss Caipira suas orientações sexuais. Ganhar um
(em geral, voltadas para candidatas concurso de Miss Gay/Mix é abrir as
“brancas”), Miss Mulata (para “negras”, portas para um mercado informal de
“morenas” ou percebidas como “indí- trabalho com atividades coreográficas,
genas/caboclas”) e Miss Simpatia (uma confecção de figurinos e, em alguns ca-
categoria que diz mais respeito ao es- sos, prostituição eventual.
tágio inicial e geracional da candidata Devo ressaltar o fato de que há um
do que aos seus atributos raciais). De notável protagonismo homossexual e
todo modo, utilizando as reflexões de “trans” nas relações de trabalho que
Corrêa (1996), interessa-me perceber geram a cadeia de produção dos con-
como as classificações de cor são pen- cursos juninos desenvolvidos em Be-
sadas num imaginário social como um lém. Tendo em conta que estes sujeitos,
elemento que sexualiza a raça e raciali- em geral, são marginalizados social-
za o gênero16. mente tanto por sua orientação sexual
e identidade de gênero quanto pelas
condições sociais sob as quais vivem17,
CONSIDERAÇÕES FINAIS pode-se inferir que, do ponto de vista
Neste texto introdutório, desejo com- das relações de trabalho vivenciadas na
partilhar a principal hipótese com que produção desses concursos juninos, a

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“Babados, xotes e xaxados”

maior inversão hierárquica ocorre sob de gênero e de raça, possibilitando


o ponto de vista da vivência da sexuali- enxergar que, além de residirem em
dade e não das relações de gênero. Isto periferias urbanas, estes sujeitos ha-
é, há um protagonismo não heterosse- bitam periferias sexuais, raciais e de
xual nas esferas de trabalho, mas ainda gênero” (Noleto, 2014b: 104).
sim predominantemente visto como O arcabouço teórico com o qual ve-
“masculino”, considerando que, no nho dialogando mais explicitamente
senso comum junino, há um entendi- favorece a percepção dos elementos
mento de que “bicha entende mais de disruptivos da festa e produtivos dos
festa junina do que mulher” – confor- rituais. Quero com isso dizer que a
me me relatou o estilista Junior Man- festa, ao criar uma virtualidade pró-
zinny. Assim como em outras esferas pria mediada por um alto grau de ri-
de trabalho e poder, as festas juninas tualização dos concursos juninos, pro-
também evidenciam um protagonismo picia a visibilidade e a emergência de
visivelmente “masculino”, embora a identidades sexuais, raciais e de gênero
homossexualidade seja predominante que complexificam o entendimento do
e a travestilidade e a transexualidade contexto de produção de cultura po-
apareçam como elementos que intro- pular em Belém. Seja no carnaval ou
duzem certa “feminilidade” à produ- na quadra junina, a cultura popular em
ção destes concursos. De todo modo, Belém é marcada pelo protagonismo
são sujeitos “trans” e homossexuais de sujeitos políticos que desafiam os
que dominam as atividades centrais pressupostos normativos de inteligibi-
de produção e atuação artística nestas lidade do gênero e da sexualidade18.
festas, relativizando, muitas vezes, as Contudo, a presença desses sujeitos é
fronteiras convencionais entre “mas- quase sempre negligenciada nas aná-
culinidades” e “feminilidades”, inclusi- lises sobre cultura popular, visto que
ve no campo das relações de trabalho. a produção teórica desse campo de-
Assim, minha perspectiva de traba- monstra maior preocupação com os
lho se insere no campo dos estudos aspectos estruturais e formais dos fe-
interseccionais, discutindo, a partir de nômenos festivos e ritualísticos que
uma reflexão pautada nos marcado- investiga. Neste caso, a experiência
res sociais da diferença (Brah, 2006), dos sujeitos é frequentemente evocada
as formas pelas quais esses sujeitos apenas para ratificar as análises antro-
se apropriam de espaços centrais da pológicas sobre processos rituais e dis-
vida social em Belém, saindo de suas putas nativas em termos de “tradição”
respectivas “periferias” e contribuindo e “modernidade”. Ou seja, quando o
significativamente para fazer acontecer assunto é “cultura popular”, os luga-
uma importante festa do calendário res de fala de seus protagonistas, as
cultural do Pará. Neste sentido, posições hierárquicas dos sujeitos e as
“...busco alargar o conceito de assimetrias de relações em termos de
periferia numa tentativa de [...] gênero, raça e sexualidade não são dis-
associá-lo, numa lógica mais am- cutidos a contento. As análises existen-
pla, às experiências de sexualidade, tes se limitam a pensar, quando muito,

Amazôn., Rev. Antropol. (Online) 8 (1): 198 - 221, 2016 215


Noleto, R. da S.

apenas em aspectos de gênero, com- que trazem novas experiências subjeti-


preendendo, algumas vezes, o gênero vas e (re)criam identidades sexuais, ra-
de modo dual e estanque19. No que diz ciais e de gênero inseridas num contex-
respeito às relações raciais, é possível to festivo.
identificar que há um número bem
mais expressivo de trabalhos que estão
preocupados em discutir culturas po- NOTAS
pulares a partir dessa perspectiva. No 1
Professor de Antropologia no curso de
entanto, ainda são raros os trabalhos Licenciatura em Ciências Sociais da Uni-
que buscam articular gênero, raça e se- versidade Federal do Tocantins (UFT).
xualidade para problematizar campos Doutor em Antropologia Social (PPGAS/
etnográficos situados no contexto per- USP). Currículo lattes: http://lattes.cnpq.
formático daquilo que se consagrou br/2145625844719060. Contato: rafaelno-
chamar de “culturas populares”20. leto@usp.br
Se, por um lado, os estudiosos das cul- 2
Maria Laura Cavalcanti (2009: 93) nos
turas populares não se voltaram tanto diz que “no universo popular, os folgue-
para questões de gênero e sexualidade, dos são comumente chamados de ‘brinca-
por outro lado, há a necessidade de deira’, e ambos os termos assinalam, com
propriedade, as dimensões lúdicas e fes-
sublinhar que os estudos de gênero e
tivas que caracterizam a variedade desses
sexualidade (especialmente as aborda-
processos culturais”.
gens interseccionais que os conectam
com raça) também não se voltaram
3
A devoção a São Marçal não é encon-
trada em Belém, mas em São Luís (MA).
para o campo das culturas populares.
De todo modo, creio ser importante frisar
Neste texto introdutório, no qual apre- a existência de quatro santos juninos que
sentei linhas gerais de uma pesquisa conformam um ciclo de festividades reli-
mais ampla, procurei compartilhar al- giosas. Pelos intercâmbios culturais entre
gumas interpretações acerca de meu Pará e Maranhão, materializados pelo com-
campo de pesquisa. Sinalizo, portan- partilhamento de diversas modalidades de
to, que pretendo contribuir com um festas de Boi-bumbá (Pará) e Bumba-meu-
tipo de discussão que problematize de -boi (Maranhão), abre-se a possibilidade de
modo mais efetivo o fato de que a cul- influências culturais mútuas entre os dois
tura popular, para além de seus aspec- estados, o que permite pensar que o termo
“quadra” pode fazer referência também
tos formais e estruturais de festa e rito,
aos quatro santos celebrados no mês de
é feita por sujeitos que são, socialmen- junho.
te, generificados, racializados e sexua-
lizados. A dimensão subjetiva que está
4
Entendo que os conceitos de “masculi-
no” e “feminino” são engendrados polí-
aí contida não pode ser ignorada, pois
tica e culturalmente ao longo da história,
é o próprio ritual – com seu potencial sofrendo variações contextuais sugestivas
produtivo, comunicativo, repetitivo e, de que as concepções de “masculinidade”
por isso, estereotipado – quem alimen- e “feminilidade” são flutuantes, relacionais
ta a cada ano nos concursos juninos de e historicamente construídas. Por isso, uti-
Belém a participação de novos sujeitos, lizarei os termos “masculino”, “feminino”

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“Babados, xotes e xaxados”

e seus correlatos entre aspas. bém desprezava as mulheres “híbridas” de


5
O prefixo “trans”, entre aspas, é aqui uti- classes médias que simulavam pertencer às
lizado de maneira polissêmica para fazer camadas altas. De acordo com McClinto-
referência às travestis, pessoas transexuais ck, o fetiche de Munby era o trabalho servil
(homens ou mulheres) e aos indivíduos em contraste com o luxo do ócio (p. 135).
transgêneros. Munby tinha uma fixação pelas mãos das
mulheres trabalhadoras exatamente por-
6
Neste caso, a expressão “folguedos juni- que as mãos revelavam a sobreposição de
nos” possui um sentido mais amplo, não se sexo, dinheiro e trabalho (p. 158). Para a
restringe aos concursos de quadrilhas (que autora, “as mãos eram os órgãos em que
à época nem possuíam o formato atual), a sexualidade e a economia vitoriana lite-
mas refere-se às danças de bois-bumbás, ralmente se tocavam” (p. 159). McClintock
cordões de pássaros e de bichos e, obvia- analisa que a obsessão de Munby com os
mente, quadrilhas juninas.
traços “masculinos” das mulheres traba-
7
In memorian. O contato com Raíssa Gor- lhadoras o permitia apreciar essa masculi-
batchof foi realizado em julho de 2012, nidade presente nas mulheres sem colocar
seu falecimento ocorreu em 2013. em risco a sua própria masculinidade (p.
8
Isso ocorreu quando, por exemplo, a qua- 162-163). Segundo a autora, o que fascina-
drilha “Tradição Junina do Benguí” perfor- va Munby eram as transgressões de gênero
matizou um beijo gay em sua coreografia. (p. 163). Ao analisar um desenho contido
no diário de Munby, em que duas mulheres
9
Para uma discussão mais detalhada so-
se encaram de perfil, McClintock chega à
bre, respectivamente, concursos de beleza
conclusão de que o desenho reflete con-
voltados para mulheres negras e cursos de
flitos de classe e transgressões de gênero,
profissionalização de mulatas no Rio de Ja-
pois exibe duas mulheres, uma rica e outra
neiro, ver Giacomini (2006a; 2006b). Para
pobre, que encarnam, respectivamente, o
um debate conceitual sobre a emergência
estereótipo da delicadeza feminina “bran-
da categoria mulata no imaginário nacio-
ca” e da masculinidade do trabalho femi-
nal, ver Corrêa (1996). Para uma análise
nino “negro” (p. 167). McClintock revela
que problematize raízes históricas para as
como os desenhos feitos por Munby, além
conexões entre raça e sexualidade no pen-
de demonstrarem um cruzamento entre
samento social brasileiro, ver Moutinho
gênero e classe, produzem uma retórica
(2004a; 2004b).
da raça, racializando as mulheres da classe
10
Para conceber a ideia de masculinização trabalhadora, retratando-as como “negras”
das mulheres negras, inspiro-me em Anne e, assim, vinculando à negritude uma ideia
McClintock (2010 [1995]). A autora retira de sujeira, poluição e masculinidade que é
suas conclusões a partir da análise da bio- materializada pelo trabalho (p. 169-170).
grafia de Arthur Munby, um homem bri- 11
Vale ressaltar que essa concepção de fes-
tânico do período vitoriano, que possuía
particular interesse em mapear e analisar ta, encontrada no trabalho de Léa Perez
os contrastes entre a classe trabalhadora (2012), é baseada nos postulados teóricos
e a classe alta, particularmente enfatizan- de Jean Duvignoud (1983).
do as diferenças entre mulheres “negras” 12
Inicialmente, as pesquisas socioantro-
trabalhadoras e mulheres da elite “branca” pológicas precursoras atrelavam os rituais
(p. 134). Munby não tinha interesses vol- aos contextos estritamente religiosos e/ou
tados às mulheres da alta sociedade. Tam- mágicos, dando um importante passo em

Amazôn., Rev. Antropol. (Online) 8 (1): 198 - 221, 2016 217


Noleto, R. da S.

direção ao entendimento de que tanto a re- Douglas (2012 [1966]) formula a ideia de
ligião quanto a magia consistiam em práti- que o corpo, no contexto ritual, represen-
cas boas para pensar aspectos relevantes da ta, simbolicamente, toda a estrutura social
vida social de um determinado grupo. Des- de um determinado grupo. As contribui-
te período inicial, destaco as reflexões de ções teóricas desses autores deram passos
Mauss e Hubert (2013 [1899]), que analisa- importantes em direção à abordagem dos
ram os rituais de sacrifício como processos rituais como dramas expressivos, à atenção
de mediação entre homens e divindades, dada ao corpo como elemento central nos
portanto, essenciais para a vida social de rituais e, por fim, ao estabelecimento de
determinados grupos, visto que expres- que, no contexto ritual, os discursos não
sam parte de seus valores morais, culturais podem ser dissociados dos atos. Para uma
e espirituais. Destas reflexões pioneiras, é revisão crítica da obra de Leach, ver Nole-
possível depreender que todo e qualquer to (2012).
ritual se insere no âmbito das práticas, isto 13
Vale lembrar que apenas os trabalhos
é, a ação é o ponto de partida para a con-
de Chianca (2006; 2013) e Menezes Neto
figuração de uma prática ritual. Contudo,
(2008; 2015) partem do ponto de vis-
foi o próprio Mauss (1979 [1909]) quem,
ta da antropologia. No caso de Nóbrega
pioneiramente, contribuiu para que a fala
(2010;2012), sua tese parte de uma pers-
também fosse compreendida como ação
pectiva multidisciplinar, que utiliza certos
no contexto ritual, estabelecendo a pre-
modos de análise (e de argumentação) an-
ce religiosa como parâmetro de definição
tropológicos, mas que, apesar disso, cons-
do conceito de ritos orais. Porém, é Van
trói um argumento que está bem mais en-
Gennep (2011 [1909]) quem faz o primeiro
gajado nas discussões filiadas aos autores
movimento em direção ao deslocamento
da corrente disciplinar dos estudos cultu-
da noção de ritual de um contexto estri-
rais.
tamente religioso e/ou mágico. O autor
defendia que “o sagrado, de fato, não é um 14
Pretendo sublinhar que, no período em
valor absoluto, mas um valor que indica que publiquei esse texto, ou seja, antes de
situações respectivas” (Van Gennep, 2011 ter empreendido um trabalho de campo
[1909]: 31). Assim, apontava que todas as contínuo, de longa duração e mais apro-
“passagens” de um estado ou status social fundado (o que se concretizou nos anos
a outro, independente de estarem vincu- subsequentes da pesquisa), minha questão
ladas a um contexto mágico ou religioso, era a problematização do protagonismo
eram ritualizadas. Avançando no tempo, homossexual e travesti. No entanto, após
é Victor Turner (2013 [1969]) quem com- a consolidação de meu trabalho de campo,
preende que os rituais são perpassados por percebi que meus interlocutores e o con-
uma dimensão simbólica relativa a dramas texto pesquisado me apresentaram possi-
sociais. O ritual seria, portanto, uma chave bilidades mais amplas de uma discussão
de acesso à compreensão desses dramas sobre “feminilidades”, compreendendo
sociais expressos em atos, palavras e, prin- sob essa categoria de “feminino” mulheres,
cipalmente, símbolos. Por sua vez, Leach homens homossexuais, travestis, transexu-
(1966: 407) afirma que os rituais são um ais e transgêneros que reivindicam para si
complexo de palavras e atos que estão li- uma identidade “feminina” no contexto
gados inextricavelmente, pois “a fala em si das festas juninas. O que pretendo desta-
é uma forma de ritual” (1966: 404, tradu- car é que, de fato, não há uma etnografia
ção minha). Neste mesmo período, Mary que contemple uma discussão das festas

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“Babados, xotes e xaxados”

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pp. 329–376.
15
Suely Nascimento (2001) documentou
esse processo em reportagem publicada Butler, J. 2010. Corpos que pesam: sobre
em jornal de circulação local. os limites discursivos do “sexo”. In Louro,
Guacira (org.) O corpo educado: pedagogias da
16
No caso de Mariza Corrêa, seu interes-
sexualidade. Belo Horizonte: Autêntica Edi-
se está centrado na discussão da categoria
tora.
“mulata”. No meu caso, o foco de análise
incide sobre outras possibilidades de ra- ____. 2010b. Problemas de gênero: feminismo
cialização, observando inclusive o caráter e subversão da identidade. Rio de Janeiro:
racial atribuído às candidatas “brancas” e Civilização Brasileira.
“indígenas/caboclas” no contexto desses Cavalcanti, M. L. 2006 [1994]. Carnaval ca-
concursos. rioca: dos bastidores ao desfile. Rio de Janeiro:
17
A maioria dos homossexuais, das traves- UFRJ.
tis e pessoas “trans” que são dançarinos/ ____. 2002. Os sentidos do espetáculo. Re-
as, organizadores/as e candidatos/as aos vista de Antropologia, 45 (1): 37-78.
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riferias de Belém – ou no interior do Pará ____. 2009. Tempo e narrativa nos folgue-
– e pertence a camadas sociais baixas. dos do boi. In: Cavalcanti, Maria Laura;
Gonçalves, José Reginaldo (orgs). As festas
18
Para o conceito de inteligibilidade dos e os dias: ritos e sociabilidades festivas. Rio de
gêneros, ver Butler (2010a; 2010b). A Janeiro: Contra Capa, 93-114.
autora afirma: “o ‘sexo’ é, pois, não sim-
plesmente aquilo que alguém tem ou uma ____. 2012. Luzes e sombras no dia social:
descrição estática daquilo que alguém é: ele o símbolo ritual em Victor Turner. Hori-
é uma das normas pelas quais o “alguém” zontes Antropológicos, 18 (1): 103-131.
simplesmente se torna viável, é aquilo que Chianca, L. 2006. A festa do interior: São
qualifica um corpo para a vida no interior João, migração e nostalgia em Natal no sé-
do domínio da inteligibilidade cultural”. culo XX. Natal: Editora da UFRN.
19
Refiro-me a trabalhos que abordam ____. 2013. O auxílio luxuoso da sanfona:
gênero de modo superficial como, por tradição, espetáculo e mídia nos concursos
exemplo, em afirmações do tipo “homens de quadrilhas juninas. Revista Observatório
tocam tambores, as mulheres dançam”. Itaú Cultural, n. 14: 89-100.
Considero que esses trabalhos fazem um
Corrêa, M. 1996. “Sobre a invenção da
esforço para apresentar seus campos de
mulata”. Cadernos Pagu, 6-7, p. 35-50.
pesquisa em termos etnográficos, mas não
conseguem superar certas dicotomias ou Costa, A. M. D. da. 2011. Espacialização fes-
problematizá-las para além da constatação tiva em disputa: estado, imprensa e festeiros
de divisões performáticas. em torno dos terreiros juninos de Belém
20
O trabalho de Valéria Alves de Souza nos anos 1970. Interseções, 13(2): 304-333.
(2015) sobre blocos afro é um excelente Costa, A. M. D. da; Gomes, E. B. C. 2011.
exemplo de como articular gênero, raça e A “quadra joanina” na imprensa, nos clu-
sexualidade em perspectiva interseccional. bes e nos terreiros da Belém dos anos

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