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CAPÍTULOS 5

FRANCIS FUKUYAMA

ORDEM POLÍTICA
E DECADÊNCIA
POLÍTICA
Da Revolução Industrial
à Globalização da Democracia

Tr a d u ç ã o
M I G U E L M ATA
4 ORDEM POLÍTICA E DECADÊNCIA POLÍTICA
CAPÍTULOS 7

ÍNDICE

Introdução: O desenvolvimento das instituições políticas


até à Revolução Francesa 11

Parte I: O Estado
1. O que é o desenvolvimento político? 37
2. As dimensões do desenvolvimento 60
3. A burocracia 76
4. A Prússia constrói um Estado 94
5. A corrupção 115
6. O berço da Democracia 133
 $,WiOLDHRHTXLOtEULRGHEDL[DFRQÀDQoD 152
8. Patrocinato e reforma 177
9. A América inventa o clientelismo 190
 2ÀPGRVLVWHPDGHGHVSRMRV 211
 2VFDPLQKRVGHIHUURDVÁRUHVWDVHDFRQVWUXomRGR(VWDGR
americano 233
12. A construção de nações 260
13. Bom governo e mau governo 277

Parte II: As Instituições Estrangeiras


14. A Nigéria 299
8 ORDEM POLÍTICA E DECADÊNCIA POLÍTICA

 $JHRJUDÀD 312


16. Prata, ouro e açúcar 331
17. Cães que não ladraram 354
18. Um cadastro limpo 369
19. Tempestades em África 388
20. A governação indireta 407
21. Instituições domésticas ou importadas 427
22. Línguas francas 439
23. O forte Estado asiático 457
24. A luta pelo Direito na China 483
25. A reinvenção do Estado chinês 506
26. Três regiões 528

Parte III: A Democracia


27. Porque se disseminou a Democracia? 545
28. O longo caminho para a Democracia 562
29. De 1848 à Primavera Árabe 583
30. A classe média e o futuro da Democracia 595

Parte IV: A Decadência Política


31. A decadência política 619
32. Um Estado de tribunais e partidos 636
33. O Congresso e a repatrimonialização da política americana 648
34. América: a vetocracia 664
35. Autonomia e subordinação 688
36. Ordem política e decadência política 711

Agradecimentos 743
%LEOLRJUDÀD 745
Índice remissivo 777
CAPÍTULOS 9

$HQHUJLDQRH[HFXWLYRpXPGRVHOHPHQWRVSULQFLSDLVQDGHÀ-
nição do bom governo. É essencial para a proteção da comunidade
contra ataques externos e é igualmente essencial para a administra-
omRÀUPHGDVOHLV«8PDH[HFXomRWtELDQmRSDVVDGHXPVLQyQLPR
de uma execução má e um governo mal executado, independen-
WHPHQWHGRTXHVHMDHPWHRULDpQHFHVVDULDPHQWHQDSUiWLFDXP
mau governo.
– Alexander Hamilton

Por conseguinte, a raça inglesa vem estudando desde há muito e


com sucesso a arte de cercear os poderes executivos negligenciando
a arte de aperfeiçoar os métodos executivos. Tem-se dedicado mui-
to mais a controlar o governo do que a energizá-lo. Tem-se preo-
FXSDGRPDLVFRPWRUQDURJRYHUQRMXVWRHPRGHUDGRGRTXHFRP
WRUQiORIiFLORUGHQDGRHHÀFD]
– Woodrow Wilson

Quando um americano pensa no problema da construção do


governo, não pensa na criação de autoridade nem na acumulação
de poder, mas sim na limitação da autoridade e na divisão do poder.
– Samuel P. Huntington
10 ORDEM POLÍTICA E DECADÊNCIA POLÍTICA
INTRODUÇÃO 11

Introdução

O D E S E N V O LV I M E N T O
DAS INSTITUIÇÕES POLÍTICAS
AT É À R E V O L U Ç Ã O F R A N C E S A

Consideremos vários cenários bastante diferentes do início da


segunda década do século XXI.
Na Líbia, em 2013, uma milícia equipada com uma panóplia
de armas pesadas manteve sequestrado durante algum tempo o
primeiro-ministro, Ali Zeidan, exigindo que o governo lhe pagas-
se o soldo em atraso. Outra milícia encerrou uma grande parte da
produção petrolífera do país, que é praticamente a sua única fonte
de receitas das exportações. Antes disto, outras milícias foram res-
ponsáveis pelo assassinato do embaixador americano, Christopher
Stevens, em Bengazi, e abateram dezenas de manifestantes que pro-
testavam, em Trípoli, contra a sua ocupação continuada da capital.
Estas milícias foram formadas em várias partes do país em
RSRVLomRD0XDPPDU4DGGDÀGHVGHKiPXLWRGLWDGRUGD/tELD
TXH H[SXOVDUDP FRP DX[tOLR VLJQLÀFDWLYR GD 1$72 HP 
o primeiro ano da Primavera Árabe. Os protestos contra os go-
vernos autoritários que eclodiram nesse ano não só na Líbia mas
também na Tunísia, no Egito, no Iémen, na Síria e noutros paí-
ses árabes foram frequentemente motivados por exigências de
maior democracia. Porém, dois anos mais tarde, a democracia, tal
como é praticada na Europa e na América do Norte, parece um
sonho distante. A Líbia deu alguns passos hesitantes para o estabe-
12 ORDEM POLÍTICA E DECADÊNCIA POLÍTICA

lecimento de uma assembleia constituinte que possa redigir uma


nova constituição, mas de momento o seu problema fundamental
é não ter um Estado – isto é, uma autoridade central que exerça o
monopólio da força legítima no seu território para manter a paz
e zelar pelo cumprimento da lei.
Noutras partes de África, existem – no papel – Estados que re-
clamam o monopólio da força e que são menos caóticos do que a
Líbia, mas permanecem muito débeis. Grupos islamistas radicais
expulsos do Sul da Ásia e do Médio Oriente têm-se instalado em
países com governos fracos, tais como o Mali, o Níger, a Nigéria e
a Somália. O motivo pelo qual esta parte do mundo é muito mais
pobre em termos de rendimento, saúde, educação, etc., do que re-
giões em rápido crescimento como a Ásia Oriental é diretamente
atribuível à inexistência de instituições governamentais fortes.
Durante o mesmo período, desenrolou-se um cenário muito di-
IHUHQWHQRV(VWDGRV8QLGRVHPUHODomRDRVHXVHFWRUÀQDQFHLUR
Os Estados Unidos situam-se, em muitos aspetos, na extremida-
GHRSRVWDjRFXSDGDSHOD/tELDSyV4DGGDÀQRHVSHFWURSROtWLFR
têm um Estado muito grande e bem institucionalizado, com mais
de 200 anos de existência e alicerces sólidos em termos de legiti-
midade democrática. Porém, o Estado não está a funcionar bem e
os seus problemas poderão decorrer do facto de estar demasiado
institucionalizado.
$QWHVGDFULVHÀQDQFHLUDGHH[LVWLDTXDVHXPDG~]LDGH
agências federais com autoridade regulatória sobre as instituições
ÀQDQFHLUDVHFDGDXPGRV(VWDGRVSRVVXtDRVVHXVSUySULRVRU-
ganismos de regulação da banca e dos seguros. Porém, não obstante
toda esta regulação, o governo dos EUA desconhecia a iminência
da crise do crédito hipotecário de alto risco e autorizou o endivi-
damento excessivo da banca e permitiu a emergência de um gigan-
tesco sistema bancário «sombra» construído em torno de derivados
demasiado complexos para serem devidamente avaliados. Alguns
comentadores apontaram exclusivamente o dedo às hipotecas ga-
rantidas pelo governo de entidades como a Fannie Mae e a Freddie
INTRODUÇÃO 13

Mac, que contribuíram efetivamente para o descalabro1, mas o


sector privado foi um conviva deliciado do frenético banquete hi-
potecário e assumiu riscos desmedidos porque os grandes bancos
sabiam que se tivessem problemas seriam socorridos pelo gover-
no. Foi exatamente o que aconteceu depois da falência do Lehman
Brothers, em setembro de 2008, que quase provocou o colapso do
sistema de pagamentos global e atirou os EUA para a sua maior
recessão desde a Grande Depressão.
Porém, o que aconteceu desde a crise foi ainda mais chocan-
te. Não obstante o reconhecimento generalizado do risco enor-
me colocado por bancos «demasiado grandes para falir», o sector
bancário tornou-se ainda mais concentrado do que em 2008. Nos
anos pós-crise, o Congresso aprovou a Lei Dodd-Frank, que iria
supostamente resolver este problema. Todavia, a legislatura igno-
rou remédios mais simples, tais como o aumento considerável dos
requisitos de capital dos bancos ou o estabelecimento de tetos à
GLPHQVmRGDVLQVWLWXLo}HVÀQDQFHLUDVHRSWRXSRUXPDPLVWXUDGD
extremamente complexa de novos regulamentos. Decorridos três
anos sobre a aprovação desta legislação, muitas das regras deta-
OKDGDVDLQGDQmRWLQKDPVLGRUHGLJLGDVHPHVPRTXHVHMDPRPDLV
SURYiYHOpTXHQmRUHVROYDPRSUREOHPDVXEMDFHQWHGR©GHPDVLD-
do grande para falir».
Este fracasso deve-se a duas razões fundamentais. A primeira
tem que ver com a rigidez intelectual. Os bancos, em defesa dos
seus interesses, argumentaram que a imposição de regulamentos
novos e estritos às suas atividades cerceariam a sua capacidade de
FRQFHGHU FUpGLWR ORJR SUHMXGLFDULDP R FUHVFLPHQWR HFRQyPLFR
HWHULDPFRQVHTXrQFLDVQHJDWLYDVLQGHVHMDGDV(VWHWLSRGHDUJX-
mento costuma ser bastante válido quando aplicado a instituições
QmRÀQDQFHLUDVFRPRDVLQG~VWULDVPDQXIDWRUDVHDJUDGDDPXL-
WRVHOHLWRUHVFRQVHUYDGRUHVTXHGHVFRQÀDPGR©JRYHUQRJUDQGHª

1
Ver, por exemplo, Peter J. Wallison, Bad History, Worse Policy: How a False Narrative
About the Financial Crisis Led to the Dodd-Frank Act (Washington, D.C., American Enter-
prise Institute, 2013).
14 ORDEM POLÍTICA E DECADÊNCIA POLÍTICA

Todavia, como mostraram Anat Admati, Martin Hellwig e outros


académicos, os grandes bancos são muito diferentes das empresas
QmRÀQDQFHLUDVGHYLGRjFDSDFLGDGHTXHWrPGHSUHMXGLFDURUHVWR
da economia de formas que não estão ao alcance de uma empre-
sa industrial2. A segunda razão é que os bancos são muito ricos e
poderosos e podem contratar uma legião de lobistas pagos a pre-
ço de ouro para defenderem os seus interesses. Apesar da enor-
me indignação do público com o sector bancário e com o auxílio
que lhe foi prestado com o dinheiro dos contribuintes, os lobistas
FRQVHJXLUDPLPSHGLUDDSURYDomRGHUHJXODPHQWRVVLJQLÀFDWLYRV
que teriam ido diretamente ao cerne do problema do «demasiado
grande para falir». Os argumentos da banca contra os novos regu-
lamentos terão sido considerados persuasivos por alguns legislado-
res por causa das suas convicções ideológicas e para outros foram
XPDFDSD~WLOSDUDSURWHJHURÁX[RGHGRQDWLYRVGHFDPSDQKDTXH
emana do sector bancário3.
Um terceiro cenário liga a Primavera Árabe aos protestos que
eclodiram na Turquia e no Brasil em 2013. Estes países são duas
das principais economias «de mercado emergentes» e, na década
anterior, viveram um crescimento económico rápido. Ao contrário
das ditaduras árabes, ambos são democracias com eleições com-
petitivas. A Turquia é governada pelo Partido da Justiça e Desen-
volvimento (AKP no seu acrónimo turco), de orientação islamista,
FXMROtGHURSULPHLURPLQLVWUR5HFHS7D\\LS(UGRğan, ganhou no-
toriedade como presidente da Câmara de Istambul. O Brasil tem
uma presidente eleita, Dilma Rousseff, proveniente de um partido
VRFLDOLVWDHTXHQDMXYHQWXGHIRLHQFDUFHUDGDSHODGLWDGXUDPLOLWDU
que governou o país entre 1964 e 1985.

2
Anat Admati e Martin Hellwig, The Banker’s New Clothes: What’s Wrong with Banking
and What to Do About It (Princeton, Princeton University Press, 2013).
3
Para um relato mais abrangente sobre o modo como a política afetou a regulação
EDQFiULDGHSRLVGDFULVHÀQDQFHLUDYHU6LPRQ-RKQVRQH-DPHV.ZDN13 Bankers: The Wall
Street Takeover and the Next Financial Meltdown (Nova Iorque, Pantheon, 2010).
INTRODUÇÃO 15

Apesar destes feitos económicos e políticos impressionantes, os


dois países assistiram, durante um breve período, a manifestações de
massas contra o governo. Na Turquia, a questão foi a intenção do go-
verno de transformar um parque de Istambul num centro commer-
FLDO1DRSLQLmRGHPXLWRVGRVMRYHQVPDQLIHVWDQWHV(UGRğan, não
obstante o seu mandato democrático, tinha tendências autoritárias e
estava seriamente alienado da geração mais nova. No Brasil, a ques-
tão foi a corrupção e o fracasso do governo na prestação de serviços
EiVLFRVÀiYHLVDRPHVPRWHPSRTXHJDVWDYDPLOKDUHVGHPLOK}HVSDUD
acolher o Campeonato do Mundo de Futebol e os Jogos Olímpicos.
O que ligou estes dois movimentos de contestação um ao outro
e à Primavera Árabe que ocorreu dois anos antes foi o facto de te-
rem sido primariamente impulsionados pela classe média. O desen-
YROYLPHQWRHFRQyPLFRYHULÀFDGRQDJHUDomRDQWHULRUGHXRULJHP
em ambos os países, à emergência de uma nova classe média com
expectativas muito mais elevadas do que as da geração dos seus pais.
A Tunísia e o Egito tiveram taxas de crescimento inferiores às da
Turquia ou do Brasil, mas, mesmo assim, geraram um grande nú-
PHURGHMRYHQVFRPIRUPDomRXQLYHUVLWiULDFXMDVH[SHFWDWLYDVHP
termos de emprego e carreira foram bloqueadas pelo compadrio
dos regimes autocráticos dos seus países. As eleições democráticas
realizadas pela Turquia e pelo Brasil não bastaram para satisfazer
os manifestantes. O governo teve de ter um desempenho melhor
SDUDVHUFRQVLGHUDGROHJtWLPRHWRUQRXVHPDLVÁH[tYHOHUHVSRQVL-
vo às mudanças nas exigências do público. A China, outra história
GHVXFHVVRHFRQyPLFRFRPHoRXDYHUVHFRQIURQWDGDFRPGHVDÀRV
VHPHOKDQWHVFRORFDGRVSHODVXDFUHVFHQWHFODVVHPpGLDTXHKRMHVH
conta por centenas de milhões de indivíduos. Estas pessoas, apesar
GHWHUHPVLGRRVEHQHÀFLiULRVGRHVSDQWRVRFUHVFLPHQWRHFRQyPLFR
do país durante a geração anterior, têm, tal como os seus homólo-
gos de outras paragens, expectativas diferentes e mais elevadas em
relação ao governo. A sobrevivência dos sistemas políticos de to-
dos estes países dependerá, de forma crítica, do seu nível de adap-
tação à nova paisagem social criada pelo crescimento económico.
16 ORDEM POLÍTICA E DECADÊNCIA POLÍTICA

O problema do governo

Estes três exemplos poderão parecer casos muito diferentes em


que os problemas decorrem de políticas, de personalidades e de con-
WH[WRVKLVWyULFRVHVSHFtÀFRVPDVHVWmRHIHWLYDPHQWHOLJDGRVSRUXP
ÀRFRPXPTXHpXPDSUpFRQGLomRSDUDWRGDDYLGDSROtWLFDDVLQV-
tituições. As instituições são «padrões de comportamento estáveis,
valorizados e recorrentes» que persistem para além do mandato dos
líderes4. São essencialmente regras persistentes que moldam, limitam
e canalizam o comportamento humano. O problema da Líbia pós-
4DGGDÀpDLQH[LVWrQFLDGHLQVWLWXLo}HVEiVLFDVSULQFLSDOPHQWHGH
um Estado. Enquanto não existir uma fonte única e central de auto-
ridade que exerça o monopólio legítimo da força no país, os cidadãos
QmRWHUmRVHJXUDQoDQHPFRQGLo}HVGHÁRUHVFLPHQWR
No outro extremo da escala, os Estados Unidos têm instituições
antigas e poderosas, mas que padecem de decadência política. Insti-
WXLo}HVJRYHUQDWLYDVTXHGHYHPVHUYLUÀQVS~EOLFRVIRUDPFDSWXUDGDV
por interesses privados poderosos, ao ponto de as maiorias democra-
WLFDPHQWHHOHLWDVWHUHPGLÀFXOGDGHSDUDH[HUFHURVHXFRQWUROR1mR
se trata apenas de um problema de dinheiro e poder; também tem que
ver com a rigidez das próprias regras e das ideias que as sustentam.
Finalmente, no caso de países de mercado emergentes como a
Turquia e o Brasil, o problema é que a mudança social ultrapassa
DVLQVWLWXLo}HV$VLQVWLWXLo}HVVmRSRUGHÀQLomRSDGU}HVGHFRP-
portamento persistentes criados em resposta às necessidades de um
PRPHQWRKLVWyULFRHVSHFtÀFR&RQWXGRDVVRFLHGDGHVHPHVSHFLDO
as que vivem um rápido crescimento económico, não permanecem
imóveis. Criam novas classes sociais, educam os cidadãos e empre-
gam novas tecnologias que baralham as cartas sociais. Em muitos
casos, as instituições não acomodam estes novos agentes e acabam
por ser pressionadas no sentido da mudança.

4
Samuel P. Huntington, Political Order in Changing Societies. (New Haven, Yale Univer-
sity Press, 2006), p. 12.
INTRODUÇÃO 17

Por conseguinte, o estudo do «desenvolvimento» – isto é, da


mudança nas sociedades humanas com o tempo – não é um ca-
WiORJRLQÀQGiYHOGHSHUVRQDOLGDGHVHYHQWRVFRQÁLWRVHSROtWLFDV
Centra-se necessariamente no processo de aparecimento, evolução
e decadência das instituições políticas. Para compreendermos as
mudanças rápidas nos desenvolvimentos políticos e económicos
do mundo contemporâneo, é importante colocá-las no contex-
WRGDKLVWyULDDORQJRSUD]RGDHVWUXWXUDLQVWLWXFLRQDOVXEMDFHQWH
das sociedades.
Este segundo volume dá seguimento a As Origens da Ordem Política:
Dos Tempos Pré-Históricos à Revolução Francesa*.(VWHSURMHWRFRPHoRX
com o propósito de reescrever e atualizar uma obra clássica de Sa-
muel P. Huntington, A Ordem Política nas Sociedades em Mudança, publi-
cada em 1968. O título do presente volume foi retirado do primeiro
capítulo do livro de Huntington, que por sua vez se baseou num
artigo publicado na revista World Politics. A obra de Huntington foi
crucial para levar as pessoas a compreender que o desenvolvimen-
to político era um processo separado do crescimento económico
e social e que antes de uma entidade política poder ser democrá-
tica tinha que garantir um mínimo de ordem. Não obstante todas
as diferenças entre o livro de Huntington e o meu em termos de
forma e substância, chego às mesmas conclusões básicas que ele.
2SULPHLURYROXPHQDUUDDVRULJHQVGHWUrVFRQMXQWRVFUtWLFRVGH
instituições políticas: o Estado, o primado do Direito e os procedi-
mentos que promovem a responsabilização democrática. Explica
como estas instituições surgiram ou não, separadamente ou com-
binadas, na China, na Índia, no Médio Oriente e na Europa. Para
os leitores que não leram o primeiro volume, as secções seguintes
recapitulam a história.

* As Origens da Ordem Política (Lisboa, Publicações Dom Quixote, 2012). (N. do T.)
18 ORDEM POLÍTICA E DECADÊNCIA POLÍTICA

Animais sociais

O primeiro volume não começou pelas sociedades humanas


primitivas, mas sim pelos antepassados primatas da humanidade,
porque a ordem política está enraizada na biologia humana. Contra-
ULDPHQWHDRTXHGL]HPRVÀOyVRIRVFRPR-HDQ-DFTXHV5RXVVHDX
ou os economistas neoclássicos modernos, a ciência mostra-nos
que os seres humanos não começaram como indivíduos isolados
que formaram gradualmente sociedades na época histórica. Os seres
humanos modernos, em termos comportamentais, que há cerca de
50 000 anos surgiram em África, estavam socialmente organizados
desde o princípio, tal como os seus antepassados primatas.
A sociabilidade natural dos seres humanos assenta em dois fenó-
menos: seleção pelo parentesco e altruísmo recíproco. O primeiro
constitui um padrão recorrente no qual os animais que se reprodu-
zem sexualmente são altruístas entre si em função da percentagem
do número de genes que partilham, isto é, praticam o nepotismo
e favorecem os seus parentes genéticos. O altruísmo recíproco en-
volve a troca de favores ou recursos entre indivíduos não aparen-
tados da mesma espécie ou, por vezes, entre membros de espécies
diferentes. Nenhum destes comportamentos se aprende, mas estão
JHQHWLFDPHQWHFRGLÀFDGRVHPDQLIHVWDPVHGHIRUPDHVSRQWkQHD
quando os seres humanos interagem.
Por outras palavras, os seres humanos são animais sociais por na-
tureza. No entanto, a sua sociabilidade natural assume a forma es-
SHFtÀFDGHDOWUXtVPRHPUHODomRjIDPtOLD SDUHQWHVJHQpWLFRV HDRV
amigos (indivíduos com os quais trocamos favores). Esta sociabilidade
por defeito é transversal a todas as culturas e períodos históricos. A
sociabilidade natural pode ser contrariada pelo desenvolvimento de
novas instituições que oferecem incentivos para outros tipos de com-
portamento (por exemplo, o favorecimento de um estranho compe-
WHQWHFRPSUHMXt]RGHXPSDUHQWHJHQpWLFR PDVFRQVWLWXLXPDIRUPD
de relacionamento social à qual os seres humanos regressam sempre
que essas instituições alternativas deixam de funcionar.
INTRODUÇÃO 19

Os seres humanos também são, por natureza, criaturas criado-


ras e seguidoras de normas. Criam regras para si próprios, que re-
gulamentam as interações sociais e possibilitam a ação coletiva dos
grupos. Apesar de estas regras poderem ser concebidas de forma
racional ou negociadas, de modo geral o cumprimento das normas
não assenta na razão, mas sim em emoções como o orgulho, a cul-
pa, a fúria e a vergonha. As normas são frequentemente dotadas
GHXPYDORULQWUtQVHFRHDWpVHWRUQDPREMHWRVGHDGRUDomRFRPR
demonstram as leis religiosas de muitas sociedades diferentes. Dado
que uma instituição nada mais é do que uma regra que perdura, os
seres humanos têm uma tendência natural para institucionalizar o
seu comportamento. Devido ao valor intrínseco de que estão habi-
tualmente dotadas, as instituições tendem a ser extremamente con-
servadoras, isto é, resistentes à mudança.
Durante os primeiros cerca de 40 000 anos de existência da mo-
derna espécie humana, os indivíduos organizaram-se naquilo que os
antropólogos designam por sociedades de bandos, compostas por pe-
quenos grupos de caçadores-recoletores, quase todos geneticamente
aparentados. A primeira grande transição institucional, que ocorreu
provavelmente há 10 000 anos, foi das sociedades de bandos para as
sociedades tribais, que estão organizadas em torno da crença no poder
dos antepassados e dos descendentes ainda não nascidos. Normal-
mente são designadas por tribos; os antropólogos usam por vezes o
termo «linhagens segmentárias» para se referirem aos indivíduos que
traçam a sua ascendência a um progenitor comum, que pode distar
deles várias gerações. Estas sociedades tribais existiram nas antigas
China, Índia, Grécia, Roma, Médio Oriente e na América pré-colom-
biana, e entre os antepassados germânicos dos europeus modernos.
As sociedades tribais carecem de uma fonte de autoridade cen-
tral. Da mesma maneira que as sociedades de bandos tendem a
VHUEDVWDQWHLJXDOLWiULDVHQmRGLVS}HPGHXPDHVWUXWXUDHVSHFtÀFD
que zele pela aplicação das leis. Prevaleceram sobre as sociedades
de bandos, em larga medida, por causa da sua capacidade de atin-
gir uma grande dimensão recorrendo ao expediente simples de
20 ORDEM POLÍTICA E DECADÊNCIA POLÍTICA

datarem a sua ascendência comum. Tanto as sociedades de bandos


como as sociedades tribais são baseadas no parentesco e, portanto,
na biologia. Mas a transição para uma organização tribal decretou a
emergência de uma ideia religiosa, a crença na capacidade dos an-
WHSDVVDGRVHGRVGHVFHQGHQWHVIXWXURVGHLQÁXHQFLDUHPDVD~GHH
a felicidade quotidianas dos indivíduos. É um exemplo clássico do
crucial papel independente das ideias no desenvolvimento.

A emergência do Estado

A próxima transição política importante foi de uma sociedade


tribal para uma sociedade estatal. Um Estado, em contraste com o
bando ou a tribo, detém o monopólio da coerção legítima e exerce
HVWHSRGHUVREUHXPWHUULWyULRGHÀQLGR3RUTXHVmRFHQWUDOL]DGRV
e hierárquicos, os Estados tendem a dar origem a níveis mais ele-
vados de desigualdade social do que as antigas formas de organi-
zação, baseadas no parentesco.
Existem dois grandes tipos de Estados. Naqueles descritos pelo
sociólogo Max Weber como patrimoniais, a comunidade é consi-
derada propriedade pessoal do governante e a administração do
Estado é essencialmente o prolongamento da sua casa. No Estado
patrimonial, mantêm-se em funcionamento as formas naturais da so-
ciabilidade e do recurso à família e aos amigos. O Estado moderno,
pelo contrário, é impessoal: a relação do cidadão com o governan-
te não depende de laços pessoais, apenas do seu estatuto enquanto
cidadão. A administração do Estado não é composta pela família e
amigos do governante; o recrutamento para cargos administrativos
baseia-se antes em critérios impessoais como o mérito, a educação
ou os conhecimentos técnicos.
Existem numerosas teorias sobre a chamada formação «pristi-
na» do Estado, a constituição dos primeiros Estados a partir das
sociedades tribais. Vários fatores terão necessariamente interagido,
como a tecnologia para gerar excedentes agrícolas e um certo nível
INTRODUÇÃO 21

de densidade populacional. A circunscrição física – o chamado «en-


MDXODPHQWRªDFRQÀQDomRGHWHUULWyULRVSRUPRQWDQKDVGHVHUWRVRX
vias aquáticas intransponíveis –, permitiu aos governantes exerce-
rem o seu poder coercivo sobre as populações e impediu que indi-
víduos escravizados ou subordinados pudessem fugir. Os Estados
patrimoniais começaram a formar-se, em muitas partes do mundo,
há cerca de 8000 anos, principalmente nos férteis vales aluviais do
Egito, Mesopotâmia, China e no Vale do México.
Todavia, o desenvolvimento de Estados modernos exigiu estraté-
JLDVHVSHFtÀFDVSDUDTXHDRUJDQL]DomRSROtWLFDWUDQVLWDVVHGHRUJDQL]D-
ções baseadas no parentesco e amigos para organizações impessoais.
A China foi a primeira civilização a estabelecer um Estado moderno,
não patrimonial, cerca de 18 séculos antes do aparecimento de unida-
des políticas similares na Europa. Na China, a construção do Estado
obedeceu à mesma lógica que deu origem a Estados centralizados
no princípio da Europa moderna: a competição militar prolongada
HJHQHUDOL]DGD2FRQÁLWRPLOLWDURIHUHFHXLQFHQWLYRVSDUDWULEXWDUDV
populações, criar hierarquias administrativas para o aprovisionamento
dos exércitos, e para basear o recrutamento e a progressão no mérito
e não nos laços pessoais. Nas palavras do sociólogo Charles Tilly, «a
guerra fez o Estado e o Estado fez a guerra».
No recrutamento dos seus funcionários, os Estados modernos
precisam de pôr de lado amigos e família. A China fê-lo criando
um exame de acesso ao funcionalismo público, no século III a. C.,
apesar de só ter sido implementado de forma regular em dinastias
ulteriores. Os árabes e os otomanos inventaram uma abordagem
novel ao mesmo problema: a instituição dos soldados-escravos, que
ditava que os garotos não muçulmanos fossem capturados ou tira-
dos às famílias e educados como soldados e administradores leais
ao governante e sem laços com a sociedade que os rodeava. Na
Europa, a solução do problema foi social e não política: no princí-
SLRGD,GDGH0pGLDD,JUHMD&DWyOLFDPXGRXDVUHJUDVGDKHUDQoD
SDUDGLÀFXOWDUDWUDQVIHUrQFLDGHUHFXUVRVGRVJUXSRVGHSDUHQWHV-
co alargado para os seus descendentes imediatos. Como resultado,
22 ORDEM POLÍTICA E DECADÊNCIA POLÍTICA

entre as tribos bárbaras germânicas, o parentesco alargado desapa-


receu uma ou duas gerações depois da sua conversão ao cristianismo.
O parentesco foi substituído por uma forma mais moderna de rela-
cionamento social assente num contrato, conhecida por feudalismo.

O primado do Direito

O primado do Direito, entendido como regras que são vincula-


tivas até para os agentes mais poderosos da sociedade, teve as suas
origens na religião. A única autoridade capaz de criar regras vin-
culativas que impunham respeito aos guerreiros foi a autoridade
religiosa. Em muitas culturas, as instituições religiosas foram essen-
FLDOPHQWHyUJmRVMXUtGLFRVUHVSRQViYHLVSHODLQWHUSUHWDomRGHXP
FRQMXQWRGHOHLVHSRUJDUDQWLURVHXFXPSULPHQWRSHODVRFLHGDGH
Na Índia, a classe sacerdotal dos brâmanes era claramente superior
à dos xátrias ou guerreiros detentores de poder político; para poder
JRYHUQDURUDMiWLQKDGHREWHUDVXDOHJLWLPDomRGHXPEUkPDQH
No Islão, a lei ou sharia era o domínio de uma hierarquia de erudi-
tos conhecidos por ulemas; o trabalho de rotina da administração
FDELDDXPDUHGHGHFiGLVRXMXt]HV$SHVDUGHRVSULPHLURVFDOLIDV
terem combinado a autoridade política e religiosa na mesma pes-
soa, noutros períodos da história islâmica o califa e o sultão foram
pessoas separadas e o primeiro podia agir como travão do segundo.
O primado do Direito foi institucionalizado de forma mais pro-
IXQGDQD(XURSD2FLGHQWDOGHYLGRDRSDSHOGD,JUHMD&DWyOLFD)RL
DSHQDVQDWUDGLomRRFLGHQWDOTXHD,JUHMDHPHUJLXFRPRXPDJHQ-
WHSROtWLFRFHQWUDOL]DGRKLHUiUTXLFRHULFRHPUHFXUVRVFXMRFRP-
portamento podia afetar de forma dramática o destino político de
reis e imperadores. O acontecimento que marcou a autonomia da
,JUHMDIRLD4XHVWmRGDV,QYHVWLGXUDVTXHHFORGLXQRVpFXOR XI e
TXHRS{VD,JUHMDDRVDFURLPSHUDGRUURPDQRWHQGRFRPREDVHD
LQWHUIHUrQFLDGHVWH~OWLPRQDVTXHVW}HVUHOLJLRVDV1RÀPD,JUHMD
conquistou o direito de nomear os padres e bispos e emergiu como
INTRODUÇÃO 23

guardiã de um direito romano ressuscitado assente no Corpus Juris


Civilis ou Código Justiniano (século VI). A Inglaterra criou uma tra-
dição igualmente forte, mas diferente: o Direito Comum emergiu
a seguir à conquista normanda a partir do direito do tribunal régio;
IRLPHQRVSURPRYLGRSHOD,JUHMDGRTXHSHORVSULPHLURVPRQDUFDV
QRUPDQGRVTXHXVDUDPDVXDFDSDFLGDGHGHDGPLQLVWUDUMXVWLoDLP-
pessoal como meio de consolidação da sua legitimidade.
Por conseguinte, na Europa Ocidental, o Direito foi a primeira
das três grandes instituições a emergir. A China nunca desenvolveu
uma religião transcendental; talvez por esta razão, nunca desenvolveu
um verdadeiro primado do Direito. O Estado chinês surgiu antes
GRSULPDGRGR'LUHLWRHDWpKRMHDOHLQXQFDH[LVWLXFRPRUHVWULomR
fundamental ao poder político. Na Europa, a sequência foi ao con-
trário: o Direito antecedeu a ascensão do Estado moderno. Quando
os monarcas europeus aspiraram a comportar-se como imperadores
FKLQHVHVDSDUWLUGHÀQDLVGRVpFXORXVI, e a criar Estados moder-
nos, centralizados e absolutistas, tiveram de o fazer no quadro de
XPDRUGHPMXUtGLFDTXHOLPLWRXRVVHXVSRGHUHV3RUFRQVHJXLQWH
mau grado as suas aspirações, poucos soberanos europeus adquiri-
ram os poderes absolutistas do Estado chinês. Este tipo de regime
VyVHLPSODQWRXQD5~VVLDRQGHD,JUHMD2UWRGR[DHVWHYHVHPSUH
subordinada ao Estado.

A responsabilização democrática

2~OWLPRGRVWUrVFRQMXQWRVGHLQVWLWXLo}HVDVXUJLUIRLDUHVSRQ-
sabilização democrática. O mecanismo central de responsabiliza-
ção, o parlamento, evoluiu a partir da instituição feudal dos estados,
conhecida por cortes, dieta, tribunal soberano, zemskiy sobor, ou, na
Inglaterra, parlamento. Estas instituições representavam as elites da
sociedade – a alta nobreza, a pequena aristocracia e, em alguns casos,
a burguesia das cidades independentes. No âmbito do direito feu-
dal, os monarcas, caso pretendessem lançar impostos, eram obriga-
24 ORDEM POLÍTICA E DECADÊNCIA POLÍTICA

dos a solicitar a autorização destes órgãos, dado que representavam


as elites proprietárias de ativos das sociedades agrárias da época.
(PÀQDLVGRVpFXORXVI, alguns monarcas ambiciosos, socorren-
do-se de teorias novéis da soberania absoluta, empreenderam cam-
panhas para minarem os poderes dos estados e para garantirem o
GLUHLWRGHWULEXWDUHPGLUHWDPHQWHDVVXDVSRSXODo}HV(VWHFRQÁLWR
desenrolou-se durante dois séculos em todos os países europeus.
Em França e em Espanha, a monarquia conseguiu reduzir o poder
GRVHVWDGRVPDVSHUPDQHFHXHPDUDQKDGDQXPVLVWHPDMXUtGLFRTXH
continuou a limitar a sua capacidade de pura e simplesmente expro-
priar a elite dos seus súbditos. Na Polónia e na Hungria, os estados
levaram a melhor sobre o soberano, dando origem a Estados fracos
dominados por elites rapaces que acabaram por ser conquistados pe-
los seus vizinhos. A forma de absolutismo mais acentuada emergiu
na Rússia, onde os estados e as elites que os apoiavam eram muito
menos poderosos do que os seus homólogos da Europa Ocidental
HDLQÁXrQFLDGDOHLHUDEDVWDQWHPDLVIUDFD
Porém, a Inglaterra foi o único país em que o rei e o parlamento
se digladiaram num confronto relativamente equilibrado. Quando
os primeiros Stuart tentaram garantir poderes absolutistas, esbar-
raram com um parlamento bem organizado e armado. Muitos dos
membros do parlamento, ao contrário do alto clero anglicano adepto
da monarquia, eram protestantes puritanos que acreditavam numa
forma de organização mais descentralizada. As forças do parlamen-
to travaram uma guerra civil, decapitaram o rei Carlos I e estabe-
leceram uma breve ditadura parlamentar sob a liderança de Oliver
&URPZHOO2FRQÁLWRSURVVHJXLXGXUDQWHD5HVWDXUDomRHFXOPLQRX
na Revolução Gloriosa de 1688-1689, na qual a dinastia Stuart foi
deposta e o novo monarca, Guilherme de Orange, aceitou um en-
tendimento constitucional que corporizou o princípio de «nenhu-
ma taxação sem representação».
Um dos membros da comitiva que acompanhou Guilherme e a
PXOKHU0DULDQDYLDJHPGD+RODQGDSDUD/RQGUHVIRLRÀOyVRIR
-RKQ/RFNHFXMRSegundo Tratado do Governo enunciou o princípio de
INTRODUÇÃO 25

que a legitimidade da governação devia assentar no consentimento


dos governados. Segundo Locke, os direitos eram naturais e ine-
rentes aos seres humanos como tal; os governos só existiam para
proteger estes direitos e podiam ser derrubados caso os violassem.
Estes princípios – nenhuma taxação sem representação e o con-
sentimento dos governados – tornar-se-iam as palavras de ordem
dos colonos americanos quando se revoltaram contra a autoridade
britânica menos de um século depois, em 1776. Thomas Jefferson
incorporou as ideias de Locke dos direitos naturais na Declaração
de Independência americana e a noção de soberania popular seria
a base da Constituição adotada em 1789.
Ao mesmo tempo que estas novas ordens políticas estabeleciam
o princípio da responsabilização democrática, nem a Inglaterra, em
1689, nem os Estados Unidos, em 1789, podiam ser considerados
democracias modernas. Em ambos os países, o sufrágio eleitoral
estava limitado a proprietários brancos do sexo masculino, que re-
presentavam uma parte muito diminuta da população. Nem a Re-
volução Gloriosa nem a Revolução Americana deram origem a uma
genuína revolução social. A Revolução Americana foi liderada pela
elite dos mercadores, fazendeiros e pequenos aristocratas, ciosa dos
direitos que o monarca britânico tinha infringido. Conquistada a
independência, foi esta mesma elite que permaneceu à frente dos
destinos do novo país e que redigiu e aprovou a sua constituição.
Todavia, dar enfoque a este facto é subestimar radicalmente a di-
nâmica social que a nova ordem política americana pôs em marcha
e o poder estimulante das ideias. A Declaração de Independência
declarava ousadamente que «todos os homens são criados iguais,
dotados pelo seu Criador de certos direitos inalienáveis». A Cons-
tituição, de forma inequívoca, não investe a soberania num rei ou
num Estado amorfo, mas sim em «Nós, o povo». Estes documen-
WRVQmRSURFXUDUDPUHFULDUDVRFLHGDGHKLHUiUTXLFDHGHÀQLGDSRU
classes da Inglaterra na América do Norte.
É certo que durante os dois séculos seguintes existiram nos EUA
muitas barreiras políticas e sociais à igualdade de facto, mas quem
26 ORDEM POLÍTICA E DECADÊNCIA POLÍTICA

reclamasse direitos especiais ou privilégios para uma classe parti-


cular tinha de provar que eram compatíveis com o credo fundador
da nação. Esta foi uma das razões pelas quais o sufrágio eleitoral
foi alargado a todos os brancos de sexo masculino pouco mais de
XPDJHUDomRGHSRLVGDUDWLÀFDomRGD&RQVWLWXLomRPXLWRDQWHVGH
qualquer país da Europa implementar uma medida idêntica.
As contradições entre os princípios fundadores e a realidade so-
cial culminaram nas décadas anteriores à Guerra da Secessão, quando
os defensores da «instituição peculiar» do Sul, a escravatura, começa-
UDPDDSUHVHQWDUDUJXPHQWRVQRYRVSDUDMXVWLÀFDUHPPRUDOHSROLWL-
FDPHQWHDH[FOXVmRHDVXEMXJDomRGRVQHJURV$OJXQVUHFRUUHUDPD
argumentos religiosos, outros falaram numa hierarquia «natural» das
UDoDVHDLQGDRXWURVMXVWLÀFDUDPQDVFRPDSUySULDGHPRFUDFLD6WH-
phen Douglas*, nos seus debates com Abraham Lincoln, disse que
não se importava se um povo votava a favor ou contra a escravatu-
ra; o importante era que a sua vontade democrática fosse respeitada.
Todavia, Lincoln avançou um contra-argumento decisivo e que
remontava necessariamente à fundação: disse que um país criado
sob o princípio da igualdade política e dos direitos naturais não
poderia sobreviver caso tolerasse uma instituição tão escandalosa-
mente contraditória como a escravatura. Como sabemos, depois de
D*XHUUDGD6HFHVVmRWHUSRVWRÀPjHVFUDYDWXUDDLQGDIRLQHFHV-
sário esperar um século de vergonha até que os afro-americanos
FRQTXLVWDVVHPÀQDOPHQWHRVGLUHLWRVSROtWLFRVHMXUtGLFRVSURPHWL-
dos na 14.ª Emenda**. Porém, o país acabou por decidir que nem a
democracia nem a liberdade pessoal legitimavam o reconhecimento
político de cidadãos de segunda5.

5
Na Grã-Bretanha, travou-se um combate prolongado similar no século XIX e no prin-
cípio do século XX, com a questão fundamental a ser a classe e não a raça. Talvez pelo facto
de o princípio da igualdade estar articulado de forma menos inequívoca (a Grã-Bretanha
não tem nenhum equivalente à Declaração de Direitos e continua a ser uma monarquia
constitucional), demorou muito mais tempo do que nos Estados Unidos a estabelecer o
sufrágio eleitoral masculino universal.
* Um dos líderes do Partido Democrata. (N. do T.)
** Aprovada em 1868. (N. do T.)
INTRODUÇÃO 27

Nos anos seguintes, surgiram muitos movimentos sociais que


alargaram o círculo de pessoas que passaram a ser abrangidas pelos
direitos políticos – trabalhadores, mulheres, povos indígenas e ou-
tros grupos anteriormente marginalizados. No entanto, a estrutura
política básica estabelecida na Revolução Gloriosa e na Revolução
Americana – um executivo responsável perante um parlamento re-
presentativo e perante a sociedade em geral – revelou-se notavel-
mente duradoura. Ninguém argumentou que o governo não devia
VHUUHVSRQViYHOSHUDQWHR©3RYRªRVGHEDWHVHFRQÁLWRVVXEVHTXHQ-
tes prenderam-se inteiramente com a questão de quem merecia ser
FRQVLGHUDGRXPVHUKXPDQRSOHQRFXMDGLJQLGDGHHUDGHÀQLGDSHOD
capacidade de participar no sistema político democrático.

A Revolução Francesa

$RXWUDJUDQGHUHYROXomRGRÀQDOGRVpFXOR XVIII ocorreu em


França. Já foram gastos rios de tinta para relatar e interpretar este
acontecimento cataclísmico, e os descendentes dos dois campos
mantêm em aberto algumas das controvérsias acérrimas que o
acontecimento suscitou.
Por conseguinte, talvez cause surpresa o facto de um grande
número de observadores, de Edmund Burke a Alexis de Tocque-
ville e ao historiador François Furet, terem questionado se a revo-
lução foi tão importante como muitos acreditaram6. A Revolução
assentou originalmente na «Declaração dos Direitos do Homem e
do Cidadão» que, tal como a Declaração de Independência ame-
ricana, promoveu uma visão da universalidade dos direitos huma-
nos enraizada nas leis naturais. Todavia, a Primeira República teve
uma vida breve. Tal como as revoluções bolchevique e chinesa que

6
Edmund Burke, 5HÁHFWLRQVRQWKH5HYROXWLRQLQ)UDQFH (Stanford, Stanford University
Press, 2001); Alexis de Tocqueville, The Old Regime and the Revolution, Vol. I (Chicago,
University of Chicago Press, 1999); François Furet, Interpreting the French Revolution
(Cambridge, Cambridge University Press, 1981).
28 ORDEM POLÍTICA E DECADÊNCIA POLÍTICA

se seguiriam, deu origem a uma dinâmica de radicalização na qual


RVHVTXHUGLVWDVGHKRMHVHWRUQDUDPRVFRQWUDUUHYROXFLRQiULRVGH
amanhã, um ciclo que levou ao Comité de Salvação Pública e ao
7HUURUHPTXHDUHYROXomRGHYRURXRVVHXVSUySULRVÀOKRV(VWH
processo instável foi terminado pela guerra contra os inimigos ex-
WHUQRVSHODUHDomRGH7HUPLGRUHÀQDOPHQWHSHORJROSHGHGH
Brumário, que colocou Napoleão Bonaparte no poder em 17997.
A violência da revolução e da contra-revolução polarizou pro-
IXQGDPHQWHDVRFLHGDGHIUDQFHVDGLÀFXOWDQGRGHVREUHPDQHLUDD
concretização de uma reforma política incremental ao estilo britâ-
nico. Os franceses viveram a Revolução de Julho, em 1830, a Revo-
lução de 1848 e depois, na década de 1870, a ocupação pela Prússia
e a Comuna de Paris, antes de conseguirem estabelecer uma demo-
cracia de sufrágio eleitoral restrito, mais duradoura. Nessa altura,
existiam eleições democráticas com diferentes regras restritivas em
muitos países europeus, incluindo na ultraconservadora Prússia. A
França, que em 1789 apontara o caminho para a democracia, es-
WDYDDÀFDUSDUDWUiV3LRUDLQGDXPGRVOHJDGRVGDUHYROXomRIRL
uma esquerda que no século XX tendeu a enaltecer a violência e a
associar-se a causas totalitárias, desde Estaline a Mao.
3RUFRQVHJXLQWHDSHUJXQWDWHPUD]mRGHVHUPDVDÀQDOTXDLV
foram as conquistas da Revolução Francesa? É certo que não esta-
beleceu a democracia em França, mas teve um impacto considerável,
imediato e duradouro nos outros domínios institucionais. Primeiro,
levou ao desenvolvimento e promulgação, em 1804, do primeiro
código legal moderno da Europa, o Código Civil ou Código Na-
poleão. Segundo, criou um Estado administrativo moderno, através
do qual o Código foi implementado e aplicado. Apesar da inexistên-
cia de uma democracia, foram avanços importantes que tornaram
a governação menos arbitrária, mais transparente, e mais uniforme
no tratamento dos cidadãos. Napoleão, ao fazer uma retrospetiva

7
Para uma visão geral destes acontecimentos, ver Georges Lefebvre, The Coming of
the French Revolution, 1789 (Princeton, Princeton University Press, 1947).
INTRODUÇÃO 29

GHSRLVGDVXDGHUURWDHP:DWHUORRDÀUPRXTXHR&yGLJR&LYLOUH-
presentava uma vitória maior do que todas as que tinha obtido no
campo de batalha e, em muitos aspetos, tinha razão8.
Até essa altura, o direito francês fora uma manta de retalhos de
regras que variavam de região para região, algumas herdadas da tra-
dição do direito romano, outras do direito consuetudinário, e tam-
bém dos inúmeros acrescentos feitos durante séculos a partir de
fontes eclesiásticas, feudais, comerciais e seculares. Na misturada
daqui resultante, as leis eram frequentemente contraditórias ou am-
bíguas. O Código Napoleão substituiu tudo isto por um único tex-
to moderno, claro, escrito com elegância e extremamente conciso.
O Código Napoleão consolidou muitos dos ganhos da Revo-
lução ao eliminar da lei todas as distinções feudais de estatuto e
privilégio. Os cidadãos passaram a ter direitos e deveres iguais, cla-
UDPHQWHGHÀQLGRVex ante. O novo Código Civil consagrou os con-
ceitos modernos dos direitos patrimoniais: «o direito de cada um
usufruir e dispor da sua propriedade de forma absoluta, desde que
QmRVHMDXWLOL]DGDGHPRGRSURLELGRSHODOHLª$WHUUDIRLOLEHUWDGD
dos vínculos feudais e consuetudinários, o que abriu o caminho para
o desenvolvimento de uma economia de mercado. Os tribunais se-
nhoriais – isto é, os tribunais controlados pelos senhores, contra os
quais as queixas dos camponeses se acentuaram durante a Revolu-
ção –, foram abolidos e substituídos por um sistema uniforme de
magistrados civis. Os nascimentos e os matrimónios passaram a ter
GHVHUUHJLVWDGRVMXQWRGDVDXWRULGDGHVFLYLVHQmRGDVUHOLJLRVDV9.
O Código Napoleão foi imediatamente exportado para as regiões
sob ocupação francesa: a Bélgica, o Luxemburgo, os territórios ale-
mães a oeste do Reno, o Palatinado, a Prússia Renana, Genebra,

8
Napoleão insistiu num novo código em 1800, pouco depois de se apoderar do governo
revolucionário, em 18 de Brumário, e participou em muitas sessões do Conselho de Esta-
GRTXHVXSHUYLVLRQRXDVXDUHGDomR2FyGLJRIRLÀQDOPHQWHSURPXOJDGRHP&DUO-
Friedrich, «The Ideological and Philosophical Background», in Bernard Schwartz (ed.), The
Code Napoléon and the Common Law World (Nova Iorque, New York University Press, 1956).
9
Martyn Lyons, Napoleon Bonaparte and the Legacy of the French Revolution (Londres,
Macmillan, 1994), pp. 94-96.
30 ORDEM POLÍTICA E DECADÊNCIA POLÍTICA

Sabóia e Parma. Foi subsequentemente imposto pela força em Itá-


lia, na Holanda e nos territórios hanseáticos. Muitos dos Estados
alemães mais pequenos adotaram-no voluntariamente. Como ve-
remos no Capítulo 4, este código inspiraria a reforma do Código
Civil Prussiano que teve lugar depois da derrota às mãos dos fran-
ceses em Jena. Foi usado como modelo para inúmeros códigos civis
fora da Europa, desde o Senegal à Argentina, ao Egito e ao Japão.
Por norma, os códigos legais impostos a outras sociedades não têm
muito sucesso, mas o Código Napoleão teve: países como a Itália
e a Holanda, que resistiram à sua adoção, acabaram por aprovar
leis muito similares na substância, embora com nomes diferentes10.
A segunda grande conquista da revolução foi a criação de um
Estado burocrático moderno, que a China tinha concretizado dois
milénios antes. O Antigo Regime francês era um híbrido curioso.
Em meados do século XVII, monarcas centralizadores como Luís
XIII e Luís XIV criaram um sistema moderno de administradores
chamados intendentes. Enviados de Paris para as províncias, não
tinham laços de parentesco nem de outro tipo com as populações
locais, pelo que podiam exercer a administração de forma mais im-
pessoal. Tal como Alexis de Tocqueville observou, foi o princípio
do Estado administrativo moderno em França11.
Contudo, os intendentes tinham que operar em paralelo com
outro sistema administrativo, o dos detentores de cargos venais.
Os reis franceses estavam constantemente falhos de dinheiro para
ÀQDQFLDUHPDVVXDVJXHUUDVHHVWLORVGHYLGD'HSRLVGHXPDJUDQGH
bancarrota conhecida por Grand Parti, em 1557, o governo recor-
reu a medidas cada vez mais desesperadas para angariar dinhei-
ro, incluindo a venda de cargos públicos a indivíduos abastados.
No âmbito de um sistema conhecido por «Paulette»*, introduzi-
do em 1604 por Sully, ministro de Henrique IV, estes cargos, além

10
Jean Limpens, «Territorial Expansion of the Code», in Schwartz, Código Napoleão.
11
Ver Tocqueville, The Old Regime, pp. 118–124.
'H&KDUOHV3DXOHWTXHSURS{VDVXDLPSOHPHQWDomR2QRPHRÀFLDOGRLPSRVWR
era «direito anual». (N. do T.)
INTRODUÇÃO 31

GHSRGHUHPVHUFRPSUDGRVHUDPWUDQVPLVVtYHLVDRVÀOKRVFRPR
herança. É óbvio que os detentores de cargos venais não estavam
minimamente interessados na administração pública impessoal
nem no bom governo; o que queriam era espremer os seus car-
gos ao máximo.
$SHVDUGHRVJRYHUQRVIUDQFHVHVGHÀQDLVGRVpFXORXVIII em-
preenderem dois grandes esforços para eliminar os detentores de
cargos venais, foram ambos derrotados, porque esta elite era demasia-
do poderosa e tinha muito a perder com uma reforma. A podridão
e a incapacidade de reforma do sistema foram fatores importan-
tes que conduziram à Revolução. Durante a Revolução todos os
detentores de cargos venais foram expropriados dos seus cargos,
HHPPXLWRVFDVRVGHFDSLWDGRV5HVROYLGRRSUREOHPDIRLÀQDO-
mente possível criar um novo Conselho de Estado, em 1799, que
foi colocado no vértice de um sistema burocrático verdadeira-
mente moderno.
O novo sistema administrativo não teria funcionado sem o siste-
ma educativo modernizado que foi criado para o apoiar. O Antigo
Regime tinha estabelecido várias escolas técnicas no século XVIII,
para formar engenheiros e outros especialistas, mas depois da re-
volução, em 1794, o governo revolucionário criou diversas Grandes
Escolas, como a Escola Normal Superior ou a Escola Politécnica,
FRPRREMHWLYRHVSHFtÀFRGHIRUPDUIXQFLRQiULRVS~EOLFRV(VWDV
escolas, antepassadas da Escola Nacional de Administração (ENA),
criada depois da Segunda Guerra Mundial, eram por sua vez ali-
mentadas por um sistema de liceus ou escolas secundárias de elite.
Estas inovações institucionais – a introdução de um novo códi-
go legal e de um sistema administrativo moderno – não são a mes-
PDFRLVDTXHGHPRFUDFLD1RHQWDQWRFXPSULUDPRXWURVREMHWLYRV
igualitários. A lei deixa de privilegiar certas classes que conseguem
manipular o sistema em benefício próprio; passa a tratar todos os
indivíduos de modo igual, em princípio, embora nem sempre na
SUiWLFD$SURSULHGDGHSULYDGDÀFDOLYUHGDVUHVWULo}HVIHXGDLVR
TXHSRVVLELOLWDRÁRUHVFLPHQWRGHXPDQRYDHPDLRUHFRQRPLD
32 ORDEM POLÍTICA E DECADÊNCIA POLÍTICA

de mercado. Além disso a lei não pode ser implementada sem uma
nova burocracia, que se liberta da bagagem de corrupção que acu-
mulou durante séculos. E combinados, a lei e o Estado administra-
tivo, funcionam, de várias formas, como um limite à arbitrariedade,
inclusivamente à dos líderes absolutistas. Em teoria, o soberano pos-
sui poderes ilimitados, mas é obrigado a exercê-los através de uma
burocracia que atua com base na lei. Um esquema que os alemães
designariam por Rechtsstaat. Este sistema tinha um carácter muito
diferente das ditaduras totalitárias que surgiram no século XX com
/HQLQH(VWDOLQHH0DRFXMDUHDOLGDGHHUDXP(VWDGRGHVSyWLFRVHP
restrições impostas pela lei ou pela responsabilização democrática.

Lançando as fundações

A Revolução Americana institucionalizou a democracia e o prin-


cípio da igualdade política. A Revolução Francesa lançou as bases
de um moderno Estado impessoal, à semelhança do que a dinastia
Qin tinha feito na China. Ambas reforçaram e expandiram o pri-
mado do Direito nas suas duas versões irmãs, o direito comum e
o código civil.
O primeiro volume desta obra conclui no momento histórico
GRODQoDPHQWRGDVIXQGDo}HVGRVWUrVFRQMXQWRVGHLQVWLWXLo}HV
mas antes de terem plenamente evoluído para as suas formas mo-
dernas. Na Europa e noutras partes do mundo, a instituição mais
desenvolvida era o Direito. Todavia, tal como sucedeu com o Códi-
JR1DSROHmRKRXYHTXHWUDEDOKDUPXLWRSDUDIRUPDOL]DUFRGLÀFDU
conciliar e atualizar as leis para as tornar verdadeiramente neutras
em relação às pessoas. A ideia do Estado moderno estava em ger-
PLQDomRGHVGHÀQDLVGRVpFXOR XVI mas nenhuma administração,
incluindo a nova burocracia de Paris, assentava inteiramente no mé-
rito. A maioria esmagadora das administrações estatais permaneceu
patrimonial. E apesar de a ideia da democracia ter sido implantada
em Inglaterra e, em particular, nas suas colónias norte-americanas,
INTRODUÇÃO 33

não existia nenhuma sociedade no planeta em que a maioria da


população adulta pudesse votar ou participar no sistema político.
Neste momento de viragem, dois desenvolvimentos monu-
mentais começavam a desenrolar-se. O primeiro foi a Revolução
Industrial, na qual o rendimento por pessoa se elevou para um ní-
vel sustentado mais elevado do que atingira em qualquer anterior
período da história. Isto trouxe enormes consequências, porque o
FUHVFLPHQWRHFRQyPLFRFRPHoRXDPXGDUDQDWXUH]DVXEMDFHQWH
das sociedades.
O segundo desenvolvimento monumental em curso foi a segun-
da vaga de colonialismo, que colocou a Europa em rota de colisão
com o resto do mundo. A primeira vaga foi iniciada pela conquista
espanhola e portuguesa do Novo Mundo, seguida, um século de-
pois, pela colonização britânica e francesa da América do Norte.
2SULPHLURtPSHWRFRORQLDOHVJRWRXVHHPÀQDLVGRVpFXORXVIII e
os impérios britânico e espanhol foram obrigados a retirar pelos
movimentos independentistas das suas colónias do Novo Mundo.
Porém, com o início da Guerra Anglo-Birmanesa, em 1824, come-
oRXXPDQRYDIDVHQDTXDODWpDRÀPGRVpFXORDTXDVHWRWDOLGDGH
do resto do mundo foi engolida pelos impérios coloniais das po-
tências ocidentais.
2SUHVHQWHYROXPHUHWRPDDKLVWyULDRQGHRDQWHULRUÀFRXHQDU-
ra como o Estado, o Direito e a Democracia se desenvolveram ao
longo dos dois últimos séculos, como interagiram entre si e com as
outras dimensões económicas e sociais do desenvolvimento e, por
ÀPFRPRGHUDPVLQDLVGHGHFDGrQFLDTXHUQRV(VWDGRV8QLGRV
quer noutras democracias desenvolvidas.
34 ORDEM POLÍTICA E DECADÊNCIA POLÍTICA
O QUE É O DESENVOLVIMENTO POLÍTICO? 35

Par te I

O E S TA D O
36 ORDEM POLÍTICA E DECADÊNCIA POLÍTICA
O QUE É O DESENVOLVIMENTO POLÍTICO? 37

Capítulo 1

O Q U E É O D E S E N V O LV I M E N T O
POLÍTICO?

O desenvolvimento político e os seus três componentes, o Estado, o primado


do Direito e a responsabilização; porque é que todas as sociedades estão sujeitas
à decadência política; o plano do livro; porque é que é bom ter um sistema
político equilibrado

O desenvolvimento político é a mudança das instituições polí-


ticas com o tempo. Isto é diferente da mudança de políticos e de
políticas: primeiros-ministros, presidentes e legisladores podem ir
HYLUDVOHLVSRGHPPXGDUPDVVmRDVOHLVVXEMDFHQWHVjRUJDQL]D-
omRGDVVRFLHGDGHVTXHGHÀQHPDRUGHPSROtWLFD
Argumentei no primeiro volume deste livro que a ordem políti-
ca é constituída por três categorias básicas de instituições: o Esta-
do, o primado do Direito e os mecanismos de responsabilização. O
Estado é uma organização hierárquica e centralizada que detém o
PRQRSyOLRGDIRUoDOHJtWLPDQXPWHUULWyULRGHÀQLGR$OpPGHSRV-
suírem características como a complexidade e a adaptabilidade, os
Estados podem ser mais ou menos impessoais: os primeiros Esta-
dos eram indistinguíveis da casa do governante e eram chamados
«patrimoniais» porque favoreciam e funcionavam através da sua fa-
mília e amigos. Em contraste, os Estados modernos e mais desen-
volvidos distinguem entre os interesses privados dos governantes e
os interesses públicos da comunidade. Procuram tratar os cidadãos
de forma mais impessoal, aplicando as leis, recrutando funcionários
e implementando as políticas sem favoritismos.
2SULPDGRGR'LUHLWRWHPPXLWDVGHÀQLo}HVSRVVtYHLVLQFOXLQGR
a simples lei e ordem, o zelo pelo cumprimento dos direitos patri-
38 ORDEM POLÍTICA E DECADÊNCIA POLÍTICA

moniais e dos contratos ou o moderno entendimento ocidental dos


direitos humanos, que inclui a igualdade de direitos para as mulhe-
res, as minorias raciais e étnicas, etc.1$GHÀQLomRGRSULPDGRGR
Direito que uso neste livro, não é restringida a um conhecimento
VXEVWDQFLDOGR'LUHLWR$QWHVRGHÀQRFRPRXPFRQMXQWRGHUHJUDV
GHFRPSRUWDPHQWRTXHUHÁHWHXPDPSORFRQVHQVRGDVRFLHGDGH
e que vincula inclusivamente os agentes políticos mais poderosos
GDVRFLHGDGHVHMDPHOHVUHLVSUHVLGHQWHVRXSULPHLURVPLQLVWURV
Quando os governantes podem alterar as leis em função das suas
conveniências, o primado do Direito não existe, mesmo que essas
OHLVVHMDPXQLIRUPHPHQWHDSOLFDGDVDRUHVWRGDVRFLHGDGH3DUDVHU
HÀFD]RSULPDGRGR'LUHLWRWHPGHVHUJHUDOPHQWHFRUSRUL]DGR
QXPDLQVWLWXLomRMXGLFLDOVHSDUDGDTXHSRGHDJLUFRPDXWRQRPLDHP
UHODomRDRH[HFXWLYR1HVWDGHÀQLomRRSULPDGRGR'LUHLWRQmRHVWi
DVVRFLDGRDQHQKXPFRUSRMXUtGLFRVXEVWDQWLYRHVSHFtÀFRFRPR
os que prevalecem nos EUA ou na Europa contemporâneos. En-
quanto limite ao poder político, o primado do Direito existiu no an-
tigo Israel, na Índia, no mundo muçulmano e no Ocidente cristão.
O primado do Direito deve ser distinguido do que é por vezes
referido como «governar pelo Direito». Neste último caso lei indica
ordens emitidas pelo governante, mas que não obrigam o próprio
governante. O primado do Direito, como veremos, torna-se por
vezes mais institucionalizado, regular, e transparente, condições em
que começa a cumprir algumas das funções do primado do Direito,
reduzindo a autoridade discricionária do governante.
$UHVSRQVDELOL]DomRVLJQLÀFDTXHRJRYHUQRpUHVSRQViYHOSH-
ORVLQWHUHVVHVGRFRQMXQWRGDVRFLHGDGH²TXH$ULVWyWHOHVGHVLJQD
por bem comum – e não apenas pelos seus interesses tacanhos.
+RMHHPGLDRHQWHQGLPHQWRPDLVWtSLFRGDUHVSRQVDELOL]DomRp
a responsabilização processual, isto é, eleições periódicas, livres e
MXVWDV TXH SHUPLWHP DRV FLGDGmRV HVFROKHU H GLVFLSOLQDU RV VHXV

1
3DUDXPDSDQRUkPLFDGDVGHÀQLo}HVH[LVWHQWHVYHU5DFKHO.OHLQIHOG©&RPSHWLQJ
'HÀQLWLRQVRI WKH5XOHRI /DZªin Thomas Carothers (ed.), Promoting the Rule of Law
Abroad: In Search of Knowledge (Washington, D.C., Carnegie Endowment, 2006).
O QUE É O DESENVOLVIMENTO POLÍTICO? 39

governantes. Contudo, a responsabilização também pode ser subs-


tantiva, isto é, os governantes podem responder aos interesses da
VRFLHGDGHVHPHVWDUHPQHFHVVDULDPHQWHVXMHLWRVjUHVSRQVDELOL]D-
ção processual. Os governos não eleitos podem diferir muito na
sua resposta às necessidades públicas, razão pela qual Aristóteles,
em Política, distingue entre a monarquia e a tirania. Contudo, existe
tipicamente uma ligação forte entre a responsabilização processual e
a substantiva porque não se pode geralmente esperar que os gover-
QDQWHVVHPUHVWULo}HVTXHVHMDPUHVSRQVLYRVSDUDREHPFRPXP
mantenham eternamente esta postura. Quando usamos a palavra
«responsabilização», estamos principalmente a falar na democracia
PRGHUQDGHÀQLGDHPWHUPRVGHSURFHVVRVTXHWRUQDPRVJRYHU-
nos responsivos aos cidadãos. No entanto, devemos ter presente
que os bons procedimentos não geram inevitavelmente resultados
substantivos adequados.
As instituições do Estado concentram o poder e permitem à co-
munidade utilizá-lo para aplicar as leis, manter a paz, defender-se dos
inimigos externos e fornecer os bens públicos necessários. O prima-
do do Direito e os mecanismos de responsabilização puxam em sen-
tido contrário: limitam o poder do Estado e garantem que apenas
é exercido de forma controlada e consensual. O milagre da política
moderna é termos ordens políticas simultaneamente fortes e capazes
mas limitadas a atuar apenas nos parâmetros estabelecidos pela lei e
pela escolha democrática.
Estas três categorias de instituições podem existir em diferen-
tes estruturas políticas, independentes umas das outras e em várias
combinações. Na República Popular da China, o Estado é forte e
está bem desenvolvido, mas o primado do Direito é fraco e não
existe democracia. Em Singapura, existem o primado do Direito e
o Estado, mas não há democracia. A Rússia tem eleições democrá-
ticas, um Estado forte a suprimir dissidências, mas não tão bom a
fornecer serviços, e o primado do Direito é fraco. Em muitos Es-
tados falhados, tais como a Somália, o Haiti e a República Demo-
crática do Congo no princípio do século XXI, o Estado e o primado
40 ORDEM POLÍTICA E DECADÊNCIA POLÍTICA

do Direito são fracos ou inexistentes, embora o Haiti e o Congo


realizem eleições democráticas. Em contraste, ser uma democracia
OLEHUDOSROLWLFDPHQWHGHVHQYROYLGDVLJQLÀFDWHURVWUrVFRQMXQWRVGH
instituições – o Estado, o primado do Direito e a responsabilização
processual – em equilíbrio. Um Estado poderoso sem restrições é
uma ditadura; um Estado fraco e limitado por uma multidão de
IRUoDVSROtWLFDVVXERUGLQDGDVpLQHÀFD]HIUHTXHQWHPHQWHLQVWiYHO

Chegar à Dinamarca

No primeiro volume, sugeri que os países em desenvolvimen-


to contemporâneos e a comunidade internacional que os procura
DMXGDUVHYHHPFRQIURQWDGRVFRPRSUREOHPDGH©FKHJDUj'LQD-
PDUFDª$RGL]HULVWRUHÀURPHPHQRVj'LQDPDUFDUHDOGRTXH
a uma sociedade imaginada que é próspera, democrática, segura,
bem governada e com um nível baixo de corrupção. A «Dinamar-
FDª WHP RV WUrV FRQMXQWRV GH LQVWLWXLo}HV SROtWLFDV SHUIHLWDPHQWH
equilibrados: um Estado competente, um forte primado do Direi-
to e responsabilização democrática. A comunidade internacional
gostaria de transformar o Afeganistão, a Somália, a Líbia e o Haiti
em lugares idealizados como a «Dinamarca», mas não faz a mínima
ideia de como lá chegar. Tal como argumentei antes, uma parte do
problema é que não compreendemos como é que a própria Dina-
marca se transformou na Dinamarca, logo, não compreendemos a
FRPSOH[LGDGHHDGLÀFXOGDGHGRGHVHQYROYLPHQWRSROtWLFR
Das várias qualidades positivas da Dinamarca, a menos estuda-
da e mais mal compreendida tem que ver com o modo como o seu
sistema político transitou do Estado patrimonial para o Estado mo-
derno. No Estado patrimonial, os governantes são apoiados por re-
des de amigos e parentes que recebem benefícios materiais em troca
de lealdade política; no Estado moderno, os funcionários governa-
mentais são supostamente servos ou guardiões do interesse público
e estão legalmente proibidos de usar os seus cargos para obterem
O QUE É O DESENVOLVIMENTO POLÍTICO? 41

ganhos pessoais. Como é que a Dinamarca passou a ser governa-


GDSRUEXURFUDFLDVFDUDFWHUL]DGDVSHODVXERUGLQDomRHVWULWDDRVÀQV
públicos, pela posse de conhecimentos técnicos, por uma divisão
funcional do trabalho e pelo recrutamento com base no mérito?
+RMHHPGLDQHPRPDLVFRUUXSWRGRVGLWDGRUHVGLULDFRPR
disseram alguns reis ou sultões de antanho, que é «dono» do seu
país e que pode fazer com ele o que lhe der na gana. Toda a gente
respeita – pelo menos, em teoria – a distinção entre interesses pú-
blicos e privados. Por conseguinte, o patrimonialismo evoluiu para
o chamado «neopatrimonialismo», no qual os líderes políticos ado-
tam as formas exteriores do Estado moderno – burocracias, siste-
PDVMXGLFLDLVHOHLo}HVHWF²PDVQDUHDOLGDGHJRYHUQDPQDPLUD
do ganho privado. O bem público pode ser evocado durante as
campanhas eleitorais, mas o Estado não é impessoal: distribuem-
-se favores por redes de apoiantes políticos a troco de votos ou da
presença em comícios. Este padrão de comportamento é visível
em muitos países, da Nigéria ao México e à Indonésia2. Douglass
North, John Wallis e Barry Weingast oferecem um rótulo alterna-
tivo para o neopatrimonialismo, chamando-lhe «ordem de acesso
limitado», na qual uma coligação de elites rentistas usa o seu poder
político para impedir a livre concorrência na economia e no siste-
ma político3. Daron Acemoglu e James Robinson usam o termo
«extrativo» para descrever o mesmo fenómeno4. Numa certa fase
da história da humanidade, todos os governos podem ser conside-
rados patrimoniais, de acesso limitado ou extrativos.
A pergunta que se coloca é: Como evoluíram estas ordens polí-
ticas para Estados modernos? Os autores supracitados são melho-
res a descrever a transição do que a oferecer uma teoria dinâmica

2
S. N. Eisenstadt, Traditional Patrimonialism and Modern Neopatrimonialism (Beverly Hills,
Sage, 1973).
3
Douglass C. North, John Wallis, e Barry R. Weingast, Violence and Social Orders: A Con-
ceptual Framework for Interpreting Recorded Human History (Nova Iorque, Cambridge Universi-
ty Press, 2009).
4
Daron Acemoglu, e James A. Robinson, Why Nations Fail: The Origins of Power, Pros-
perity, and Poverty (Nova Iorque, Crown, 2012).
42 ORDEM POLÍTICA E DECADÊNCIA POLÍTICA

da mudança. Como veremos, a modernização do Estado é pro-


movida por várias forças. Uma delas, historicamente importante,
foi a competição militar, que cria incentivos muito mais podero-
sos do que o interesse económico para a reforma política. Outro
motor de mudança foi a mobilização social provocada pela indus-
trialização. O crescimento económico gera novos grupos sociais
que se organizam para a ação coletiva e procuram participar no
sistema político. Este processo não conduz sempre à criação de
Estados modernos, mas, nas circunstâncias certas, pode condu-
zir e tem conduzido.

Decadência política

6HJXQGRDGHÀQLomRGH6DPXHO+XQWLQJWRQDVLQVWLWXLo}HVSROt-
ticas desenvolvem-se tornando-se mais complexas, adaptáveis, au-
tónomas e coerentes5. Mas também podem entrar em decadência.
As instituições são criadas em resposta a certas necessidades da so-
FLHGDGHWDLVFRPRWUDYDUXPDJXHUUDOLGDUFRPFRQÁLWRVHFRQyPL-
cos ou regular o comportamento social. Todavia, enquanto padrões
de comportamento recorrentes, também podem tornar-se rígidas e
não conseguirem adaptar-se quando as circunstâncias que as origi-
naram se alteram. O conservadorismo inerente ao comportamen-
WRKXPDQRWHQGHDGRWDUDVLQVWLWXLo}HVGHVLJQLÀFDGRHPRFLRQDO
depois de serem implementadas. Alguém que sugira abolir a Mo-
QDUTXLD,QJOHVDRXD&RQVWLWXLomR$PHULFDQDRXRLPSHUDGRUMD-
ponês e substituí-los por algo mais recente e melhor enfrenta uma
enorme e difícil batalha.
Além da inadaptação das instituições às novas circunstâncias,
existe uma segunda fonte de decadência política. A sociabilidade
natural humana assenta na seleção pelo parentesco e no altruísmo

5
3DUDGHÀQLo}HVGHVWHVWHUPRVYHU+XQWLQJWRQ   Political Order in Changing So-
cieties, pp. 12-24, e Francis Fukuyama, As Origens da Ordem Política, pp. 659-660.
O QUE É O DESENVOLVIMENTO POLÍTICO? 43

recíproco – a preferência por familares e amigos. Embora as ordens


políticas modernas procurem promover a governação impessoal, as
elites da maior parte das sociedades tendem a apoiar-se em redes de
parentes e amigos, que são instrumentos para a sua proteção e be-
QHÀFLDPFRPDVVXDVLQLFLDWLYDV4XDQGRFRQVHJXHPID]rORGL]VH
que as elites «capturam» o Estado, o que diminui a sua legitimidade
HRWRUQDPHQRVUHVSRQViYHOSHUDQWHRFRQMXQWRGDSRSXODomR3H-
ríodos alargados de paz e prosperidade oferecem frequentemente
FRQGLo}HVSDUDDLQWHQVLÀFDomRGDFDSWXUDSHODVHOLWHVRTXHSRGH
dar origem a crises políticas quando é seguida de uma recessão eco-
nómica ou de um choque político externo.
No primeiro volume vimos muitos exemplos deste fenóme-
no. Na China, a grande dinastia Han fragmentou-se no século III,
quando foi reapropriado pelas famílias da elite, que continuaram a
dominar a política chinesa nas dinastias Sui e Tang. No Egito, o re-
gime mameluco entrou em colapso quando os governantes-escravos
FRPHoDUDPDFRQVWLWXLUIDPtOLDHDJDUDQWLURIXWXURGRVÀOKRVWDO
FRPRDFRQWHFHXFRPRVVLSDLRVHRVMDQt]DURVRVFDYDOHLURVHLQ-
fantes que eram os pilares do poder otomano. A França do Antigo
Regime tentou construir uma administração centralizada moderna
a partir de meados do século XVII, mas as constantes necessidades
ÀVFDLV GD PRQDUTXLD REULJDUDPQD D FRUURPSHU D DGPLQLVWUDomR
através da venda pura e simples de cargos públicos a indivíduos
abastados, uma prática conhecida por venalidade. Nestes dois vo-
lumes, uso uma palavra bastante comprida - «repatrimonialização»
– para designar a captura de instituições estatais ostensivamente
impessoais por elites poderosas.
$VGHPRFUDFLDVOLEHUDLVPRGHUQDVQmRHVWmRPHQRVVXMHLWDVj
decadência política do que outros tipos de regime. Não é provável
que alguma sociedade moderna retroceda totalmente para uma so-
ciedade tribal, mas vemos exemplos de «tribalismo» por todo o lado,
GHVGHRVJDQJXHVGHUXDjVFDPDULOKDVGRSDWURFLQDWRHDRWUiÀFR
GHLQÁXrQFLDQRVQtYHLVFLPHLURVGDSROtWLFDPRGHUQD1XPDGH-
mocracia moderna, todos falam a linguagem dos direitos universais,
44 ORDEM POLÍTICA E DECADÊNCIA POLÍTICA

mas há muita gente que convive bem com os privilégios – isenções,


subsídios ou benefícios especiais exclusivos para si próprios, para
a sua família e para os seus amigos. Alguns especialistas argumen-
tam que os sistemas políticos responsáveis dispõem de mecanismos
de autocorreção para impedirem a decadência: quando o governo
funciona mal ou o Estado é capturado por elites corruptas, as não
elites podem pura e simplesmente derrubá-los nas urnas6. Vere-
mos que houve alturas na história do crescimento da democracia
moderna em que isto aconteceu. Porém, a autocorreção não é um
dado adquirido, talvez porque as não elites estão mal organizadas
ou não compreendem corretamente quais são os seus próprios in-
teresses. O conservadorismo das instituições torna com frequência
a reforma proibitivamente difícil. Este tipo de decadência política
manifesta-se pelo aumento lento mas constante dos níveis de cor-
UXSomRFRPDFRUUHVSRQGHQWHGLPLQXLomRGRVQtYHLVGHHÀFiFLDGR
governo, ou sob a forma de reações populistas violentas à manipu-
lação percecionada das elites.

Depois das revoluções:


O plano do presente volume

O primeiro volume traçou a emergência do Estado, do prima-


do do Direito e da responsabilização democrática até às revoluções
americana e francesa. Estas revoluções marcaram o ponto em que
as três categorias de instituições – ao que chamamos democracia
liberal – surgiram no mundo. O volume presente traçará as dinâ-
micas da sua interação até ao início do século XXI.
$ MXQomR HQWUH RV GRLV YROXPHV WDPEpP DVVLQDOD R DGYHQWR
de uma terceira revolução que teve ainda mais consequências – a

6
O argumento de que as democracias se autocorrigem quando confrontadas com
GHVDÀRVFRORFDGRVSHODVHOLWHVVXUJHinter alia, in Mancur Olson, «Dictatorship, Demo-
cracy, and Development», American Political Science Review 87 (9), 1993, pp. 567-576; Nor-
th, Wallis, e Weingast, Violence and Social Orders; Acemoglu e Robinson, Why Nations Fail.
O QUE É O DESENVOLVIMENTO POLÍTICO? 45

Revolução Industrial. As continuidades prolongadas descritas no


primeiro volume parecem indicar que as sociedades estão encurra-
ladas no seu passado histórico, que lhes limita as escolhas em ter-
mos de ordem política no futuro. Este foi um mal-entendido da
história evolucionária narrada no volume anterior, mas o determi-
nismo histórico torna-se ainda menos válido depois do arranque
da industrialização. Os aspetos políticos do desenvolvimento estão
intimamente ligados, de formas complexas, às dimensões económi-
ca, social e ideológica. Estes elos são o tema do próximo capítulo.
A Revolução Industrial aumentou muitíssimo o ritmo do cres-
cimento da produtividade per capita nas sociedades que a viveram,
um fenómeno que acarreta consequências sociais enormes. O cres-
cimento económico sustentado aumentou o ritmo da mudança em
todas as dimensões do desenvolvimento. Entre a dinastia Han, no
século II a. C., e a dinastia Qing, no século XVIII, nem o carácter
básico da vida agrária chinesa nem a natureza do seu sistema po-
OtWLFRHYROXtUDPPXLWRYHULÀFRXVHPXLWRPDLVPXGDQoDQRVGRLV
séculos seguintes do que nos dois milénios anteriores, e este ritmo
acelerado de mudança ainda continua.
A Parte I do presente volume centra-se nas partes do mundo
que primeiro experienciaram esta revolução, Europa e América do
Norte, onde surgiram as primeiras democracias liberais. Procura
responder à seguinte pergunta: Porque é que no princípio do sécu-
lo XXI, alguns países, como a Alemanha, se caracterizam por admi-
nistrações estatais modernas e relativamente incorruptas, ao passo
que países como a Grécia e a Itália continuam a ser afetados pelo
clientelismo político e por níveis elevados de corrupção? E por-
que é que a Grã-Bretanha e os Estados Unidos, que no século XIX
tiveram sectores públicos onde imperava o patrocinato, se conse-
guiram reformar e transformar-se em burocracias mais modernas
e baseadas no mérito?
Veremos que do ponto de vista da democracia, a resposta é, em
certos aspetos, desanimadora. As burocracias contemporâneas mais
modernas foram estabelecidas por Estados totalitários na prosse-
46 ORDEM POLÍTICA E DECADÊNCIA POLÍTICA

cução da segurança nacional. Aconteceu com a antiga China, como


vimos no primeiro volume, e também com os exemplos clássicos da
EXURFUDFLDPRGHUQDD3U~VVLD VXEVHTXHQWHXQLÀFDGRUDGD$OHPD-
nha), que foi obrigada a compensar a sua débil posição geopolíti-
FDFRPDFULDomRGHXPDDGPLQLVWUDomRHVWDWDOHÀFLHQWH3RURXWUR
lado, países que se democratizaram cedo, antes de terem estabele-
cido uma administração moderna, desenvolveram sectores públicos
clientelistas. O primeiro a sofrer este destino foi os Estados Unidos,
que também foi o primeiro país a alargar o sufrágio eleitoral a to-
GRVRVLQGLYtGXRVEUDQFRVGRVH[RPDVFXOLQRHPÀQDLVGDGpFDGD
de 1820. Aconteceu a mesma coisa na Grécia e na Itália, que por
motivos diferentes não desenvolveram Estados fortes e modernos
antes de terem alargado o sufrágio eleitoral.
Por conseguinte, a sequência tem uma importância enorme. Os
países nos quais a democracia precedeu a construção de Estados
PRGHUQRVWLYHUDPPXLWRPDLVGLÀFXOGDGHVSDUDJDUDQWLUHPXPD
governação de elevada qualidade do que os que herdaram Estados
fortes da época absolutista. A construção de Estados depois do
advento da democracia é possível, mas requer frequentemente a mo-
bilização de novos agentes sociais e uma liderança política forte. Foi
esta a história dos Estados Unidos, onde o clientelismo foi vencido
SRUXPDFROLJDomRTXHLQFOXLXLQWHUHVVHVGHQHJyFLRVSUHMXGLFDGRV
pela mediocridade da administração pública, agricultores do Oes-
te opostos aos interesses corruptos das empresas ferroviárias e re-
IRUPDGRUHVXUEDQRVVDtGRVGDVQRYDVFODVVHVPpGLDHSURÀVVLRQDO
Existe outro ponto de tensão potencial entre os Estados fortes
e capazes e a democracia. A construção do Estado, em última aná-
lise, tem que assentar na construção da nação, isto é, na criação de
uma identidade nacional comum que serve de foco de lealdade e
se impõe ao apego à família, à tribo, à região ou ao grupo étnico.
A construção da nação brota por vezes de movimentos populares,
mas também pode resultar da política de poder – de uma violência
terrível quando diferentes grupos são anexados, expulsos, fundidos,
GHVORFDGRVRXVXMHLWRVj©OLPSH]DpWQLFDª7DOFRPRDFRQWHFHFRP
O QUE É O DESENVOLVIMENTO POLÍTICO? 47

a administração pública moderna, a formação de uma identidade


QDFLRQDOIRUWHpPDLVHÀFD]HPFRQGLo}HVDXWRULWiULDV$VVRFLHGD-
des democráticas falhas de uma identidade nacional forte têm sérias
GLÀFXOGDGHVSDUDFKHJDUDFRQVHQVRVHPWHUPRVGHQDUUDWLYDQDFLR-
QDOVXSUHPD1DYHUGDGHPXLWDVGHPRFUDFLDVOLEHUDLVSDFtÀFDVVmR
EHQHÀFLiULDVGHSHUtRGRVSURORQJDGRVGHYLROrQFLDHJRYHUQDomR
autoritária em gerações anteriores, uma realidade que conveniente-
mente esqueceram. Felizmente, a violência não é a única via para a
unidade nacional; as identidades também podem ser alteradas para
se enquadrarem nas realidades da política de poder ou criadas em
torno de ideias expansivas, como a da democracia, que minimiza a
exclusão das minorias da comunidade nacional.
A Parte II também aborda o aparecimento ou não aparecimento
de Estados modernos, mas no contexto de um mundo não ocidental
TXDVHWRWDOPHQWHFRORQL]DGRHVXEMXJDGRSHODVSRWrQFLDVHXURSHLDV
As sociedades da América Latina, do Médio Oriente, da Ásia
e da África tinham desenvolvido formas indígenas de organiza-
ção social e política, mas viram-se confrontadas de repente com
um sistema radicalmente diferente, desde o primeiro momento de
contacto com o Ocidente. Os poderes coloniais em muitos casos
FRQTXLVWDUDPVXEMXJDUDPHHVFUDYL]DUDPHVVDVVRFLHGDGHVPDWDQ-
do os povos indígenas com a guerra e as doenças e povoando as
suas terras com estrangeiros. E mesmo quando a força física não
HQWURXHPMRJRRPRGHORGHJRYHUQRRIHUHFLGRSHORVHXURSHXV
minou a legitimidade das instituições tradicionais e atirou muitas
sociedades para um limbo onde não eram autenticamente tradicio-
nais nem plenamente ocidentalizadas. Por conseguinte, no tocante
ao mundo não ocidental, não é possível falar em desenvolvimento
institucional sem referir as instituições estrangeiras ou importadas.
Ao longo dos anos, têm sido avançadas várias teorias para expli-
car porque é que as instituições se desenvolveram de forma diferente
em diferentes partes do mundo. Algumas argumentam que as insti-
WXLo}HVIRUDPGHWHUPLQDGDVSHODJHRJUDÀDHSHORFOLPD3DUDDOJXQV
economistas, as indústrias extrativas, como a mineração ou a agricul-
48 ORDEM POLÍTICA E DECADÊNCIA POLÍTICA

tura tropical, que favorecem as grandes plantações devido à econo-


mia de escala, promoveram a utilização exploradora da mão de obra
servil. Estes modos económicos de produção também terão dado
origem a sistemas políticos autoritários. Em contraste, as zonas de
agricultura familiar tenderam a apoiar a democracia política devido à
sua tendência para distribuir a riqueza pela população de forma mais
equitativa. Depois de criada, uma instituição era «fechada» e perdu-
rava apesar das mudanças que retiravam relevância às condições ge-
RJUiÀFDVHFOLPiWLFDVYLJHQWHVGXUDQWHDVXDFULDomR
0DVDJHRJUDÀDpDSHQDVXPGRVPXLWRVIDWRUHVTXHGHWHUPLQDP
os desfechos políticos. As políticas implementadas pelas potências
coloniais, a duração do seu controlo e os tipos de recursos que in-
vestiram nas colónias tiveram consequências importantes para as
instituições pós-coloniais. Todas as generalizações sobre o clima e
DJHRJUDÀDWrPH[FHo}HVLPSRUWDQWHVRSHTXHQRSDtVFHQWURDPH-
ricano da Costa Rica deveria ter-se tornado uma república das ba-
nanas típica, mas é uma democracia razoavelmente bem governada
FRPLQG~VWULDVH[SRUWDGRUDVÁRUHVFHQWHVHXPVHFWRUYLWDOGHHFR-
turismo. Em contraste, a Argentina foi abençoada com uma terra
e um clima semelhantes aos da América do Norte, mas tornou-se
XPSDtVHPGHVHQYROYLPHQWRLQVWiYHOVXMHLWRDGLWDGXUDVPLOLWDUHV
oscilações muito acentuadas em termos de desempenho económi-
co e desgoverno populista.
(P~OWLPDDQiOLVHRGHWHUPLQLVPRJHRJUiÀFRREVFXUHFHDVPXL-
tas formas em que as pessoas dos países colonizados exerceram a
VXDLQÁXrQFLDDSHVDUGRGRPtQLRHVWUDQJHLURGHVHPSHQKDUDPSD-
péis cruciais na formação das suas instituições. Os países não oci-
dentais mais bem sucedidos da atualidade são precisamente os que
tinham instituições indígenas mais desenvolvidas antes do contac-
to com o Ocidente.
As razões complexas da existência de vias de desenvolvimento
diversas são constatáveis de forma mais vívida no contraste entre
a África subsariana e a Ásia Oriental, respetivamente as regiões de
pior e melhor desempenho do mundo em termos de desenvolvi-

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