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_Os Pengadorés _ Fichte “A doutrina-da-ciére como: mostra a compusigac da pakavra, deve ser uma doutrina, uma tearia do saber, Teoria esta que sem dGvida se funda se- bre um saber do saber, 0 engencra, ‘ou, em uma palavra— 08." FICRTE: A doutrina-da-ciéneia e @ sa- ber absolute “Saber ¢ liberdade estin insepara- ‘velmente unificados. Embora os distin= Bamos, (...) nao sao entretanto separd> veis na eletividade, mas sdo0 pura ¢ Simplesmente um sb algo livee, infini- tamente vio, que € pura si yassi que contempla sua infinidade; 9 ser € 4 libeedlade dessa luz em sua tus S80 Intima 66 saber absoluto. A luz li- ‘vit, que s¢ avista como sendo: aquile qué est senda © repousa sobre si, como livre — este € seu ponto-de- apoio.” FICHTE: A doutrina-da-ciéncia @ O sa- ber absolute ‘Conhecimenta ¢ imagem do ser — de Deus: mas nde o conhectmento que pe obtra ve um ser a partir de si moymo, @ sien © que poe um vira-ser: @ imagem da liberdade etemamente criadora, pairando acima, com suas leis que Se enunciam por toda cternida- ‘Ge em conceites puros — este € o mun- do; @ querer salistazer-se com um mun- Go inferior @ um disparate deplora- “ao FICHTE: Introdugdo a teonia do Estado Os PensadoréS CIP- Brasil. Catalogagin-na- Publivagio ‘Cimara Brasileita do Livro, SP Fichte, Johann Gottlic’, 1762-1814 A doutrina-da-ciémeia de 1794 © outros escritos / Johann Got: tlie Fiehte ; selegto de textos, traducio © potas de Rubens Rodlri- (gues Torres Filho. —2. ed. — $30 Puulo : Abril Cultural, 1984. (Os pensadores) Inclui vida ¢ obne de Fiehts, Ribliografia, J. Conliecimento. - ‘Teoria 2. Filosofia alemi 3. Liberdade 1 Torres Fitho, Rubens Redrigues, 1942- Il tuto, Ill. Série, CDD-193 “141 +123 Indives pata catitogo sistematico: 1. Conhecimento : Teoria : Filosofin 121 2. Filosofia wlema 193 3. Liberdade : Metafisica : Filosofia 123 4. Teoria do conhecimenco : Filosofia 12) JOHANN GOTTLIEB FICHTE A DOUTRINA-DA-CIENCIA DE 1794 E OUTROS ESCRITOS Selegio de textos, tradugti Rabens Rede rigocs Te res ie EDITOR: VICTOR CIVITA . ‘Tiealos originals: Ther den Regrif der Wi slehre oder der so genannten Phiosophie “Srarags der perrace Wt sive Versach einer neuren Darstellung der Wissenschuyislehre "Sele sechs Jahren ites die Wissenschaftslehre..* Sonnentlarer Bericis an das grOssere Publikum aber das eigensliche ‘Wesen der newesten Philosophie Darsieltang der Wissenschatistehre Die Staatslehre, oder sber das Verhitiies dex Uretaeics cum Vernuatreichen © Copyright Abril $.4, Cutura, ‘Sie Paulo, 1980. — 2 “ediga, 1964. Direitos exclusives sabre “Fickle — Vida Obra’, ‘Abril S.A, Cultural, Siu Paulo. Dineitos exclusivos cobre as tradugsies doite volume, Abril S.A. Culcural, $39 Paulo, FICHTE VIDA E OBRA ‘Consultoria: Rubens Rodrigues Torres Filho Na manha de 14 de julho de 1789, © povo francés invadiu a Bastilha e liberiou todos os prisioneiros politicos que ali se encontrayam; na noite do mesmo dia, acenderam-se fogueiras por to- da a cidade, para comemorar 9 acontecimento. Estourava, assim, a Revolucao Francesa, “primeiro triunfo prético da filosofia’, no dizer de Friedrich von Gentz (1764-1832), Na Alemanha, os estudantes da Universidade de Gattingen canta- ram em coro a Marsefhesa, Friedrich Schlegel (1772-1829) proclama- ria ser a revolugdo uma das "linhas mestas de nosso tempo” ¢ Goc- the (1749-1832) saudaria, nos versos de Hermann e Dorotéia, 0 adven- to-do primado da justiga ¢ da liberdade. Entre os entusiastas encontrava-se um mogo de 2? anos, Johann Gattlicb Fichte, que escreveu e publicou, em 1793, as Contribuigées para @ Retificacéo dos Juizas do Ptiblico sobre a Revolugdo Francesa, onde procurava demonstrar é verdadeira natureza do processo revolu- Ciondrio. Para ele, a Revolugia Francesa constituia expressaa dos vir culos indissoldveis entre o direito a liberdade © a prépria existéncia do homem, enquanto ser ativo ¢ inteligente, A idéia de liberdade, como raiz mais profunda da esséncia huma- na, hd muito tempo vinha sendo cultivada por Fichte, Desde muito antes ele proprio vivia a experiéncia da liberdade pessoal, sofrla as consequéncias de sua incansdvel procura @ fazia dela o cerne de sua vida e de seu pensamento. Na adolescéncia, quando aluno do cali= gio de Piorta, gravou para sempre no espirita uma frase de Lessing (1729-1781): “Se livre ndo 6 nadia, tornar-se livre, eis 0 céu", Forma do em teolagia pela Universidade de Leipzig, aos 22 anos de idade, Fichte recusou-se a seguir a carreira do sacerdécio &, por causa disso, perdeu a pensdo que recebia de sua tutora. Passou entio a viver co- ma um pobre preceptor ¢ chegou a passar fome. Impedido de publi- car uma obra intitulada Critica de (oda a Revelacao, escrita em 1791 € dedicada a Kant, indignou-se e redigiu a Reivindicacdo pela Liber- dade de Pensar, que he valeria a reputagda de jacobino, Quando j4 era professor famoso na Universidade de Jena, em 1799, redigiu um artiga sobre O Fundamento de Nossa Crenea em uma Divina Provi- déncia ¢ foi acusado de atefsma © conspiragao contra o regime; res- pondeu com um Apelo ao Publico e fei obrigado, pelas autoridades, a abandonar a cidade. No inverne de 1807-1808, quando as tropas napoleénicas ocupavam Berlim, ergueu em praca pdblica sua voz in- flamada, pronunciando seus Discursas a Nacao Alemd, Denunciou Vill FICHTE Napoledo como traidor dos ideais de liberdade da Revolugdo @ como inslaurador do primado da autoridade: Instituir a autoridade como critérie da vida moral e da verdade teérica, destruindo, assim, a esportaneidade do eu ¢ a liberdade que nele se radica, constitui. aos alhos de Fichte, uma imoralidade: equi- vale a negar a prdpria essneia do homem. Animada pelo mais radi- cal idealismo ético, a filosofia fichtiana procura ser uma “demonstra 40 clentifica cla liberdade", nas palavras do historiador Emile Bré- ier, © ponto de partida: Kant O itinerdrio de Fichte, no sentido de construit um sistema filoséfi- co da liberdade, comegou com a descaberta do Pensamento de Kant. A investigagado da natureza do conhecimento, realizada por Kant nos: Prolegémenos a toda Metatisica Future que Queira se Apreseniar co- mo Ciéncia e na Critica da Razdo Pura, mostrara que $6 ¢ valida, en- Quanto conhecimento abjetivo, aquele que resulta da aplicacéo das formas e categorias aprioristicas do sujeito aos dados empiricos. Co- mo conseqiiéncia, Kant demonstrara também que a metafisica ndo po- deria pretender validez tedrica, em virtude de Passar por cima das for- mas da sensibilidade e aplicar as categorias do entendimento direta- mente 3 coisa-em-si, Segundo a Critica da Razdo Pura, nao & possivel provar teoricamente a existéncia de Oeus, a imortalidade da alma ¢ a liberdade. Quando tenta fazer isso, a razdo & conduzida a antinomias insoldveis, sendo possivel provar tanta essas teses quanto as suas con- trérias: 0 prdprio mundo é eterno, a alma é tio mortal quanto © cor- Po, ete, Trazendo & toma a verdadeira natureza das elaboragées tedricas da metafisica, ou seja, de todas as abordagens da coisa-em-si e da es- Stncia ultima da realidade, ¢ mostrando a falta de solidex de tais cons- trucées, Kant procurou, contudo, outros fundamentos para a metafisi- ca, Essa tareta 6 realizada na Critica da Razdio Pratica, obte em que Kant procura mostrar como toda metafisica & resultado das exigéncias praticas, isto é, morais, do homem, Diante da imensidio do mundo, © homem reconhece sua propria incapacidade de compreender-se denito de todo, utilizando apenas os conhecimentos cientificas, En- Bendra entéo explicagdes para a coisa.em-si: elabora interpretacdes da estrutura da realidade em si mesma e tenta ultrapassar 0 mundo. meramente fenoménico. Em sintese, segundo Kant, néo é a metafisica — uma certa con- cepgdo do gue seja o mundo © todas as coisas que se encontram nele =, @ fundamento da ordem moral, Pelo contrdrio, so as exigéncias da razdo pratica que geram a metafisica e constituem seus postula. dos, Conseqdentemente, a tilosofia kantiana éstabelece que a razao prética, © mundo moral por ela instituide e, sobretudo, a liberdade que estd em sua esséncla sdo independentes da teorizagdo produzida pela razao pura. Manifestam, além disso, a propria raiz do homem. A idéia da autonemia moral formulada por Kant foi saudada por Fichte, com o entusiasmo peculiar a sua personalidade. Kant parecia indicar-lhe 9 caminho a ser seguido para fundamentacao tedrica de VIDAEOBRA —IX seus anseies concretos de liberdade. Com base em Kant, parecia pos- sivel construir um sistema de idealismo ético. Para realizar tal proje- to, Fichte procurau solucionar as dualidades que persistitam na obra de Kant: caisa-em-si ¢ aparéncia, contetido e forma, absoluto ¢ priti- a, formal ¢ material, inteligencia e cora¢ao, razao prdtica e razio pura. A solucso dessas dualidades — pensava Fichte — deveria ser bus- cada num principio situado em terreno prévio a toda relagio entre su- Jeito © objeto, Em outras palavras, a solucéo nao poderia ser alcanga- da “a menos que se encontre um ponto no qual o objetivo eo subjeti- vo nao estejam separados, mas sejam unos’, Esse panto, de onde se poderia deiuzir todo o saber, seria a eu. Os principios constitutivos da egoidade. O niicleo central designado por Fichte pela palavra eu ndo deve ser confundide com a cansciéneia individual do préprio Fichte ou de qualquer pessoa e nem mesmo com um simples ‘“sujeito” abstrato. O fildsofo nao construiu um sistema de idealismo subjetivo e afirmou claramente: “eu nao deve ser considerada como mero sujeito, cé ma foi considerado até agora, quase sem excegdo, mas como sujeito- objeto". A palavra ev (ou, mais exatamente, ey pura ou egoidade) de- signa uma eonsciéncia tanscendental, isto é, uma estrutura univer. sal, independente das consciéncias individuals e tomada camo pura atividade; encerra em sia estrutura de tedo e qualquer conhecimento teGrico, a0 mesmo tempo que o fundamento de toda e qualquer ago prética do homem. Em outros termos, o eu fichtiano constitui uma unidade daquifo que Kant separou como duas raz6es, a pura e a priti- ca. Toda a obra puramente filoséfica de Fichte procura demonstrar es- sa unidade radical. Tal tarefa tei considerada por cle como a forma através da qual se poderia elevar a filosofia 4 condicao de ciéncia evi- dente, saber do saber, conhecimento da razdo pela raza. Por isso Fichte empregou a expresso "doutrina da ciéncia”” para designar sua andlise do eu, A doutrina da ciéncia aborda o eu mediante uma intuigso intelec- tual, que apreende sua estrutura ¢ descobre seus principios. Esscs principios sao trés e constituem o fundamenta da acdo moral ¢ de to- do persamente cientifico. O primeiro principio constitutive de eu € uma versao metafisica do principio da identidade ldgica, segundo o qual A é igual a A. Apll- cado por Fichte, o principio se formula nos seguintes termos: ‘© eu pée a si mesmo como sendo’. Em termos ldgicos se diria: 0 A que & € idéntico ao A que € posto; outra forma seria a seguinte: se A & pos- to, 6 ‘Assim como o primeiro principio constitutive do eu é encomrado 4 partir de um principio légico (o da identidade), 0 segundo também & encontrado por Fichte pela andlise do pensamento légico. Em ligi- ca, 08 julzos podem ser inclusive (uma coisa ¢ X) e exclusive (aquela cotsa nao & X). Dessa dualidade decorre o segundo principio da sua doutrina da ciéncia e da estrutura do eu: “Ao eu, um nao-eu € absolu- tamente oposto”. O terceiro principio de eu 6 obtide também pela andlise da duali- x FICHTE dade dos juizos inclusive ¢ exclusive. Se afirmagia’e niagagio.sio fae cetas de uma mesma experiéncia, sua Oposi¢an nao pode ser defini va; sendo aspectos da mesma realidade, ndo podem, por isso. mes. mo. estar em absoluta contradigao. Exsa constatagao leva Fichte a enunciar © terceiro principio de cu nos seguintes termos: no 2u, ao eu divisivel opde-se um ndo-eu divisivel. A oposigao ¢, assim, inter- Pretada por Fichte como oposicda ne interior da consciéncia e nau contea a consciéncia, Isso significa que 6 eu possui duds atividades que constituem sua esttutura intima: uma centrifuga (ativa), outta centripeta (passiva), Em outras palavras, dit-se-ia: a atividade da eu, ao exteriorizar-se, recebe um cheque e, par conseguinte, 0 eu valta-se sobre si mesmo. No prix ‘meiro caso, a alividade 6 producio; no segundo, teflexdo, A palavra oposicéo — empregada por Fichte para exprimir a rela- sao do néa-eu para com 9 eu — designa uma relagao ldgica, mas sig- nifica também uma relagao dingmica de luta entre tendéncias que se enirentam procurando suprimirse. Analagamente, a palavra objeto designa, em primeiro lugar, algo que & simplesmente conhecido pelo sujetto, mas Sgnifica também aquilo que resiste a0 espirita © a ale se impée, Fichte desliza continuamente do sentido ldgico @ estatica ao dindmico, fazendo de toda a sua filosofia uma histéria abstrata @ es quematica das lutas travadas. entre duas forcas hastis, que procusam aniquilar-se mutuamente, Do terceito principio ino eu, epSe-se ao eu divisivel um ndo-cu divisivel) decomre a sintese: “O-eu poe a sl mesmo como determinado pelo ndo-eu". Essa ¢ a base da parte tedrica da doutrina da ciéncia, Mas do terceiro principio decotre também uma outra proposicdo ‘oposta a anterior & que constitui o nucleo da parte pratica da doutrina da ciéncia: “O eu poe o nao-ey determinade pelo eu!'. Por um lado, a primeira propasigso, decorrente do tercéiro principio, dé ao eu um estatuto absolute, ou infinite, pois sé se limita aquilo que é autode- pendente, Além do mais, 0 eu é absoluto na medida em que 6 limita- Go; 0 afastamenta dos limites reafirma seu grau de absoluto, Por ou- tro lado, © eu, como inteligéncia, depende do “choque”, isto é, de um ndo-eu. indeterminada e indeterminavel; somente através desse Ndo-eu, ¢ devido a ele, o cu é inteligéncia, Esses dois aspectos do eu — absolute, mas, ao mesmo tempo, dependente do nio-eu eonsti~ tuem uma contradicio que conduz A parte pratica da doutrina da cléncia. Nesta encontra-se fundamentada a idéia de liberdade, na for- mulagae fichtiana: Aliberdade como fundamento do eu Para resolver a contradicdo existente entre a determinagaa do ndo-eu pelo eu com a pasicaa infinita do eu, Fichte afirma que o cu determina 0 nao-eu através de esforgo permanente ¢ constante, Se es- se eslorga levasse a consecugdo plena de seu objetivo, desapareceria toda a Consciéncia, todo o sentimenta ¢ tada a vida. Para Fie! te, O-8U @ infinito na medida em que luta para ser infil por outro lado, o ev 6 finito enquanto nio consegue realizar seu ideal, Além disso, 0 sentimento do limite, por parte do eu, é um sentimento de forca, pois 6 limite 36 € sentido enquanto se pretende ultrapassé-lo. VIDA E OBRA xl Na doutrina da ciéncia esté implicada, portanto, uma filosofia prdtica, que se desenvolve de maneita semelhante a filosofia te6rica e visa a determinar 2s condigGes da liberdade moral. Em outros termos, a andlise da eu enquante estruttira Cognitiva desvenda também sua natureza moral. “Meu impulso, na medida em que sou parte da natureza, minha ncia, enquanto espirito puro’, pergunta Fichte, “si eles impul- 20s diferentes?” E responde: "Nao; sab © ponte de vista transcenden+ tal, ambcs sao um e 0 mesmo impulso original, que é a minha nature- Za essencial; s6 que esse impulse ¢ visto de dois lacos diferentes. Em outras palavras, eu sou sujelto-abjeto ¢ meu ser verdadeiro consiste na identidade ¢ inseparabiliciade desses dois aspectos. Se eu me consi- dero coma objeto, perfeitamente determinado pelas leis da percep- cao sensitiva e do pensamento discursivo, entav aquile que é, na re: lidade, meu Gnico impulso tama-ce para mim impulso natural. Pois desse ponte de vista eu proprio sou natureza. Se me observe como su- a entéa esse impulso passa a ser, para mim, puramente espiri- tual’. Fichte conclui, entéo, que todes os fendmenas do eu depen- dem exclusivamente da interagdo entre esses dois impulsos e a intera- de ndo seria mais do que a interacda de um ¢ mesmo impulso consi- go mesina, Assim obtém-se, finalmente, resposta a questie de num ser absolutamente uno existir uma oposicda tio completa quanti a que existe entre os dais impulsos. Ambos impulsas constituem, diz Fichte, um © 0 mesmo cu ©, parlanto, devern ser unidos ma esfera da consciéncia. Nessa unido, © impulso mais elevado deve desistir da pu- reza de sua atividade © 0 mais baixo deve desistir do prazer. O resuil- tado da unido serd atividade objetiva, cujo propdsita final & a liberda- de absoluta, Em suma, a filosofia fichtiana afirma que © eu se manifesta na es- fera prética coma uma vontade que necessita de uma resisténcia para continuar existindo, Sem essa resistencia, @ eu ndo pode alirmar sua independéncia ¢ libertarse; & por sentir-se limitada que a vantade: po- de aspirar continuamente a supressdo de seus limites. A produgdo da resistencia @ a sintese da tensao entre ela © a aspiragao infinita reali- za-se segundo um process semelhante ao que se verifica na parte teérica da doutrina da ci¢ncia. Existe, contudo, uma diferenga essen- cial entre esta ¢ a parte pritica. Enquanto a primeira se conduz can- forme um proceso que exige a sintese dialética dos. contrarios, na se- gunda, isto é, nos dominios da acao pratica do homem, nao se pode chegar a0 onto final, O dever-ser é atuagdo infinita e jamais comple. tada do cu; par isso, toda meta atingida ndo é definitiva, mas etapa para se prosseguir na busca de etapas superiores. A vida moral 6 supe- fagdo incessante de obstaculos, sem interrupgées © destalecimentos; toda parada na vida do espirite é culposa, A atividade do eu € ativida: de herdica, proceso continuo de libertacda na procura incessante de um ideal infinito. A liberdade absoluta 6, assim, o fundamento ultimo do eu ¢ a doutrina da ciéneia, que o traz 4 luz, “é do comego aa fim uma andli- se do conceito de liberdade”’, no dizer do proprio Fichte. © pensumento de Fichte foi exposto através do magistério univer sitaria e de grande nimero de obras que redigiu ao longo de sua exis- Wncia, Nascido a 19 de maio de 1762, Fichie estudou nas universida- Xi FICHTE Cronalogia des de Jena, Wittenberg c Leipzig. Depois de ser preceptor, tomou-se Professor universitério, inicialmente na Universidade de Jona, onde, em 1794, substituiu o kantiano Karl Reinhold (1758-1823), Cinco anos depois, obrigado a deixar Jena, sob a acusacio de aleismo, trans- feriu-se para Berlim, onde passau a lecionar na faculdade de filosofia; em 1810 foi nomeade decano da recém-criada universidade. Ao falecer em 1814, tinha escrito um grande namero de obras so- bre a doutrina da ci€ncia, A primeira fora camposta em 1794, quan- do iniciou seu magistério em Jena. Uma das mais conhecidas traz 0 t tulo A Doutrina da Ciéneia, Exposi¢do de 1804 © constitui 0 mais completo e elaborado enunciado de seu pensamento, segundo Didier Julia, um de seus intérpretes madernos. Com seu trabalho universitério e com toda a obra que escreveu, sentralizada na procura e na formulagao de uma teoria da liberdade absoluta, Fichte deu expressdo filosdfica aos ideais romanticos de seu tempo. Foi por isso que Friedrich Schlegel, seu amigo pessoal ¢ lider da escola romantica alema afirmou: “A Revolugio Francesa, o WE iheim Meister de Goethe © a Doutrine da Ciéncia de Fichte const. tuem as linhas mestras de nessa tempa’”. 1762 — fichte nasce em Rammenay, 2 19 de maio, 1766 — Nascimemo de Thomas Rabert Malthus, 1770 — Nasco Beethoven, 1772 — Nascem Friedrich Schlegel, Novalis David Rieardo, 1775 — Nascimento de Schelling. 1776 — Declaragdo de Independencia dos Estados Unidos da América, Adamy Smith publica A Riquaza des Nagdes. Funda-se o primeko sindicato operirig na Inglaterra. 1781 — E publicada a Critica «fa Raado Pura, de Kant. 1784 — Fiche camplete seus estudos de teologia, 1788 — Vem d luz a Critica da Razio Prética, do Kant, 1789 — 414 de julho, © povo francés toma a Bastilha; iniciase a Revolu: slo, 1790 — Goethe publica fragmentos do Fausto. 1793 — Nasce Nicolai Wvanovich Labachewski, pionairo da moderna geome- tla, 1794 — Fichte publica Os Principios Fundamentals da Doutrina da Ciencia 6m seu conjunto ¢ a LigGes sobre a Destinacio do Sabia. ue — Schelling edita lagias para uma Filosotia da Natureza, Nasce Schu- rt. 1798 — E publicado O Sistema da ética segundo os Principioy da Dourrina dda Citncia, de Fichte. Nasce Comte. 1601 —— Publica-se Exposigdo da Doutrina da Citnela, de Fichte, qué sect coniecida comp a Doutrina da Ciéneia de 1801 1804 — Edita-se A Doutrina da Giéncia, Expasigada de 1804, salvez a obra mais importante de Fichte Tebe patrols de Napolego na Réssia. A Prissia declara guera a Franga. 1807 — Fichte publica os Discursos 4 Nacda Alemi, 1814 — Ficte lalece no dia 29 de janeiro. VIDA E OBRA xi Bibliogratia Léon, X.: Fiehie et son Temps, 3 vols... Armand Colin, Paris, 1954-1959. Tawor, EB: The Fundamental Principle of Fichte’s Philosophy, The Macmil- lan Company, Novar York, 1906. Brtme E.: Historia de fa Filosoffa, 3 vols., Editorial Sudamericana, Buenos Ai- res, 1962. Juv D.: Fichte, Presses Universitaires de France, Paris, 1964. Bourcsos, B.: L'idealisme de Fichte, Presses Universitaires de France, Paris, 1968. Hessoett, H.: Fichte, Revista de Oceidente, Madri, 1931 Gurwiscut, G.: Fichies System der Konkreten Ethik, Thbingen, 1924. ‘Woon M.: Fichte, Frommar Verlag, Stuttgart, 1927. Parcvsims Lu: Fichte, Edizioni di “Fikmofia’, Torino, 1950. Fucrtn K.. Fichte und seine Vorgeenger, Carl Winter's Universitaetsbuchhand- lung. 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SOBRE O CONCEITO DA DOUTRINA-DA-CIENCIA OU DA ASSIM CHAMADA FILOSOFIA (1794) PREEFACIO DA PRIMEIRA EDI¢Ao Com a leitura dos novos céticos, cm particular de Enesidiemo ¢ das execlentes obras de Maimon, 0 wutor deste trabalho convenceu-se plenamente de algo que ja antes The parecia altamente provavel: que a filosofia. mesmo com as recentes esforgos dos homens mais penctrantes, ainda nao se elevou a categoria de ciancia evidente. Acredita ter desco- berto 0 fundamento disso ¢ encontrado um caminho facil para respoader de maneiza ple- namente satisfathria a todas as exigéncias, de resto muito legitimas, feitas pelos céticas a filosofia eritica; © para unificar em geral © sistema dogmiitico ¢ © sistema critico em suas pretensies conflitantes. do mesmo modo que a filosofia critica unificou as preten: des conflitantes dos diversos sistemas dogmaticos.' Nao estando habituado a falar de coisas que ainda nao fez, teria executado seu projeto. ou entio fiondo calado parn sempre a respeito dele, se a presente ccasifio nio the tivesse parecido ser uma exigéncia para prestar contas de como empregou seus lazeres até agora ¢ dos trabathos a que pretende dedicar-se no futuro, z, ‘A investigagio seguinte nig precisa pretender ter nenhuma outra validade, a no ser hipotética, Mas isso nao quer dizer que a autor nao seja capax de fundamentar suas afir- magGes em algo mais do que meras pressuposigaes niio demonstradas; nem que nao devam ser, contudo, o resultado de um sistema firme ¢ de prefunda penetragio. E certo que 0 autor 86 pode prometer-se apresentar esse sistema ao pitblico, em uma forma digna dele, daqui « anos; mas desde jii espert, como ¢ justo, que nada do que propée sera recu- sado antes que se tenha examinado 0 todo, A primeira intengiia destas piginns era colocar os jovens extudantes da eveola supe rior, para a qual o autor foi convidado, em condigao de julzar se se confiariam & sua diregio no caminho da primeira dentre as ciéncias ¢ se poderiam esperar que este fosse capaz de langar tanta luz sobre este quanta necessitam para seguir esse camino sem tro- PoKdS perigosos; a segunda, angariar 0s juizos de scus protetores ¢ amigas sobre scu empreendimente. Aqueles que nao ‘se incluem ném entre os primeiros nem entre os segundos, caso este escrito venha a cair-thos nas maos, sio dirigidas us observagdes seguintes, | A contravirvia que propriansente reina entre ambor — ona qual o attics, oom wnda rardo, ae aolownu do. Jade do dogmatico ¢, com cite, do Indo do entendimento comum, que, decerwa nile como juiz, mas come vex: teraunha por artigos. deve ser malto levada em sonsdecagio —~ hem poderia diver respeito a canexso de Jura comthecimento en uma cule ema a @ wera eontrueraia hem ponder ser Uechdhla, numa Rata dete nadavcizncia, pela verficaco de que nosso canbecimenio nia lem, por ce'ta, uma couexda.imediats, pela eprcsenlagio, com cast om si, mas 2 tem rediatamente pelo setimenio: de qus, com toda carieza. as connas eho representailes meramente corso fendmcros, ras, como colsas-emes, 80 sentilas; de que sein Sen fimento no seria possivel nenhuma representecao: mas de que # coisa cam st sO é conhecida subjetivamente, ‘isto-é, 85 A Medida om que atua sobre nosso seritimento. (Trecho suprimido na 2* adic.) 6 FICHTE © autor estd, até agora, profundamente convencido de que nenhum entendimento humane pode ir além do limite a que chegou Kant, em particular em sua Critica do Juizo, embota este nunca nos tenha apresentado esse limite determinadamente, em come o ultimo limite da saber finito. Sabe que nunex poderé dizer algo sobre o gual Kant ja nao tenha, imediata ou mediatamente, clara ou obscuramente, dado uma indica- so, Deixa para as épocus futuras avaliar o génio do hamem que. a partir do ponto em que encontrou o Juize filosofante, conduztu-o, muitas vexes como yue guiada por uma inspiragao superior. io poderosamente em diregao a seu fim ultimo, ‘Do mesmo modo. est profundamente convencido de que, depois do expitito genial de Kant, nenhum presente maiy alto poderia ter sido feita & filosofia do que pela espirito sistemitico de Reinhold: ¢ acredita conhecer o lugar de honra que, mesmo por ovasiaio dos novos progressos que a filosofia, scja em que mio estiver, necessariamente fard, devera sempre ser atribufdo a fHilosofia elementar deste limo. No est em seu moda de Penisar ignorar orgulhosamente. qualquer mérito que seja, ou querer diminui-lo; acredita Percvber que cada degrau que a ciéncia ja subiu tinha de ser galgado antes que ela pudcs- S* Pasar para uin degrau superior; na verdade, ndo considera um mérito pessoal ter sido, por um felic acaso, chamado a obra depois de trabalhadores excelentes; € sabe que todo merite, que pederia haver aqui, nao repousa na sorte da descoberta, mas na lealdade da Procura, € que, quanlo a esta, cada um ¢ 0 tinico que pode julgat-se ¢ recampensar-se. Nao diz isto em intencio desses grandes homens ¢ daqueles que lhes sio semelhantes, mas para uiros homens nao tio grandes, Quem acha supérfluo que isto seja dito nao cot entre aqueles para os quais é dito, Além dosses homens sérios hi também, ainda, homens brinealhdes, que previnem os fildsafos. aconsethando-os 2 no se tornarem ridiculos com expectativas cxageradas Quanto a sua ciéncis. Nio quero decidir se todos riem do fundo do coragiio, por terem uma jovialidade inata; ou se no ha alguns dentre eles que apenas forgam o iso, para desencorajar o pesquisador ingéauo de um empreendimento que, por razdes compreensi- veis, no vem com bons olhos (Malis rident atiens).? 34 que eu, a0 que sel, até agora née dei alimenio ao seu humor pela manifestagio de tis alias expectativas. talvez me seja permitido, antes de tudo, nao para defender os Milésofos, ¢ muito menos a filosofia, mas para seu proprio bem, pedir-Ihes que segurem 9 riso pelo menos até que o empreen, dimemto fracasse formalmente ¢ sejn abandonado. Poderio zombar de nossa fe na huma nidade. & qual eles proprios pertencem, © de nossa espernnga quanto as suas grandes disposigdes; paderdo enti repetir sus frase consoladora — A humanidade nav tem Temédio: sempre foi assim © assim sempre seri... — toda vex que precisarem de eonsolo! * Riemdos males alheios (Horacia). (0 E,) PREFACIO DA SEGUNDA Epi¢ao 1798) Este livrinho havia-se esgotado. Eu preeisava dele para referir-me a ele em minhas aulas: além disso. eie @, tirante alguns artigos publicados no Jornal Fllosdftco de uma Associaciin de Estudiosos Alemaes, 0 Unico texto em que sé filosofa sobre o préprio filosofar da doutrina-da-ciéncia e que, por isso, serve de introdugio « esse sistema, Essas Tazoes me levaram a cuidar de uma nova edigho. A propria finalidade ¢ o estaruto deste texto. nilo abstante a clarsen de seu Stulo € de seu conteido, foram freqlentemente mal entendidos, ¢ torna-se necessaria, na segunda edigio, coisa que ne primeira eu havia considerado totalmente desnecessaria, uma expli- cagio precisa sobre esse panto, em um prefiicio. A saber: sobre a prépria metafisica, que precisamente nao deve ser uma doutrina das pretensas coisas-em-si, mas uma dedugao genética daquilo que aparece em nossa. consciéncia, pode-se de novo filosofar — podem ser instauradas investigagaes sobre a possibilidade, a significagao propria, as regras de tal ciéncia; © & muito proveitoso. para a claboragio da propria ciéncia que isso ocorra. Um sistema de ais investigagdes cha- ma-se, do panto de vista filosdfico, critica; pelo menos, dever-sc-ia designar com esse home apenas © que foi indicado, A critiva nao & a propria metafisiea, mas esta acima dela; esta para a metafisica exatamente como esta esti para 0 panto de vista habitual do entendimento natural. A metafisica explica esse ponto de vista, e 6 por sua vez explicada na eritica. A critics propriamente dita criticn o pensamento filosifices se a propria filo sofia também for chumada de critica, x6 se pode dizer que ela critica 0 pensamento natu- tal. Uma critica pura — a kantiana, por exemplo, que se anunciava como Critica, niio & nada pura, mas & em grande parte propriamente metafisica; ora critica o peasamento- filosdfica, ara o pensamento natural; o que, por si sd. nio constituiria uma censura con tracla, desde que deixasse clara em geral a distingiio que acaba de ser feita e, nus investi- gages particulares, indicasse em que dominio se encontram — uma critica pura, digo eu, nao contém nenhuma investigario metafisica imiscuida nela. Uma metafisica pura — a8 claboragdes da doutrina-da-ciéncia, que se anunciava como metaffsica, al agora nao so, desse ponty de vista, puras, nem poderiam ser puras, uma vez que sb com o auxilio das alusdes criticas incorporadas a elas esse modo de pensar inabitual poderia aspirar a tomnar-se acessivel — uma metafisica pura, digo eu, nig contém mais nenhuma critica, além duquela que, anteriormente a ela, ji deve ter chegado A clarezt. © que acaba de ser dito determina com precisio o estatuto do texto seguinte, Ele $ uma parte da critica da doutrina-da-ciéncia, mas nfo & a propria doutrina-da-ciéncia, on uma parte desta, E uma parte dessa critica, disse eu. Oeupa-se, em particular, com a exposigdo da relagiio da doutrina-da-ciéncia cam 0 saber comum ¢ com as cigncins possiveis do ponto 2 4M 8 FICHTE de vista deste dittimo, segundo a matéria do saber, Mas ha ainda outra considerapao, que pode contribuir muito para engendrar um conceit correto de nosso sistema, proteyé-lo

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