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Rousseau Os Pengadorés Rousseau "Renunciar & liberdade é renun. sla & qualidade de homem, aos direi- tos da humanidade, ¢ alé aos préprios. deveres. Mio ha recompensa possivel para quem a tudo renuncia, Tal renin. cia no se compadece com a natureza do homem, @ destituirse voluntaria- mente de toda e qualquer liberdade equivale a excluir a maralidade de suas agoes.” J.4, ROUSSEAU: Do Contrato Social, A desigualdade moral, autoriza- a unicamente pelo direito positive, & contrétia ao direito natural sempre que fio ocore, juntameste ¢ na mesma pioporgio, com a desigualdade fisiea — distinggo que determina suficiente- monte © que se deve pensar, a esse res- peito, sobre a espécie de desigualdade que reina entre todos of povas policia- dos, pois ¢ manifestamente contra a lex da Natureza, seja qual far a manei- ra por que a definarios, uma crianga mandar num velha, um imbecil cond- zit um sSbie, ou um punhado de pes- soap regurgitar superfluidades enquan= 10.4 multidio faminta falta 9 necessi- Jel. ROUSSEAU: Discune sobre a ori- gem @ 0s fundamentos da desigualta- de entre os homens. “Como seria doce viver entre nbs, 36 a contengao exterior sempre repre: sentasse a imagem dos estados do cora- 80, se a dectncia fosse a virtude, s¢ nessas maaimas nos servissem de re sara, 9 a verdadeira filosofla fosse inse- paravel do titulo de filésola!” Jj. ROUSSEAU: Discumo sobre as Ciéncias eas Artes, Os PensadoréS CIP-Brasil. Catalogagao-na-Publicaglo ‘Camara Brasileira do Livro, SP 83.0557 Rousseau, Jean Jacques, 1712-1778, Do contrato social ; Ensaio sobre a origem das linguas : Dis- curso sobre a arigem ¢ 06 fundamentos da desigualdade entre 0s ho- mens : Discurso sobre as cifncias ¢ as artes / Jean-Jacques Rous- seau ; traduco de Lourdes Suntos Machado ; inteodugdes e notas de Paul Arbousse-Bastide ¢ Lourival Gomes Machado. — 3. ed. — Sao Paulo : Abril Cultural, 1983. {Os Pensadores) Inclui vida ¢ obra de Rousseau Bibliogeafia. 1, Filosofia francesa 2, Rousseau, Jean-Jacques, 1712-1778 1, Arbousse-Bastide, Paul, 1899- I. Machado, Lourival Gomes, 1917- 1967, II]. Titulo : Do contrat social, TV. ‘Titulo : Ensaio sobre a origem das linguas. V. Titulo : Discurso sobre a origem e 05 funda- mentos da desggualdade entre os homens, VL Titulo : Discurso so- bre as ciéneias ¢ as artes. VII. Serie. €bp-198 “190.92 Indices para catitlogo sistematico : 1, Filosofia francesa 194 2. Filsofos franceses 194 3. Filayofos modernos ; Blografia ¢ obra 190.92 4, Franca : Filosofia 194 JEAN-JACQUES ROUSSEAU DO CONTRATO SOCIAL ENSAIO SOBRE A ORIGEM DAS LINGUAS DISCURSO SOBRE A ORIGEM E OS FUNDAMENTOS DA DESIGUALDADE ENTRE OS HOMENS DISCURSO SOBRE AS CIENCIAS E AS ARTES adugio de Lourdes Santos Machado Introdugées ¢ notas fds Pal Actors uste-Bastide ¢ Lourival Gomes Machado 1983 EDITOR: VICTOR CIVITA ‘Titules originals: Du Contrat Sacial Eraat sur POrigune des Langues Discoure sur POrigine of les Fordemente de FIndgaline pares Jes Hommes Dior’ sur les Scieness et les Arcs © Copyrighe des edigso, Abell 5.4, Cultural, ‘Sia Paulo, 1973. — 2," edigao, 1978, 3," edigao, 1983. radupoes publicadas sob licenga Us Editora Globo $.A., Fone Alegre. Direiton exelusivos sobre “Rousseau — Wid © Obrn'* ‘Absil S.A, Cultural, Sa0 Pato ROUSSEAU VIDA E OBRA Consultoria de Marilena de Soura Chaui Nu: tarde do ano de 1749, um homem caminha pela estrada entre Paris ¢ Vincennes. Séo treze quilmetros de terra batida, as arvores estio destolhadas ¢ distanciam-se muito umas das outras. Quase nio hi sombra alguma para suavizar © calor excessive da ve- fo, ¢ o homem cansa-se fazenca o percurso a pé, pois nao tem di- nbeiro para alugar um fiacre. £ relativamente mogo, com seus trinta e sete anos de idade, ¢ procura apressar 0 passo para chegar mais ce- do. Carrega consigo um exemplar do Mercure de France para distrair- se e 18 a0 acaso 0 que Ihe cai sobre os olhos. Num desses momentos, tem a atencao despertada por uma noticia sobre o concurso da Acade- mia de Dijon para 0 ano seguinte. Os interessados deveriam escrever sobre o tema: “Se 0 progresso das citncias e das artes contribuiu para ‘corromper Ou apurar os Costumes”, A noticia deixa-o subitamente transtomada, Toma-se de um entu- siasmo coma jamais sentira e divisa um outro universa mental, Sente @ Cabeca tonta come se¢ estivesse embriagada @ 0 coragdo bate com violéncia, dificultando a respiraggo @ 0 andar. Arroja-se debaixo da primeira arvore que oferece sombra ¢ ali fica mais de meia hora em intensa agitagao interior. Ao levantar-se, fica surpreso com a raupa to- da molhada de ldgrimas, sem ter sentido derramé-las, Imediatamente poe-se a tomar notas para responder a questéo proposta e redige uma pequena dissertagio, Nascia; assim, a primeira de uma série de obras de pensamenta em que a mesma carga emocional estaria sempre presente, compon- do um conjunto de idéias radicadas profundamente na vida do autor € da qual no podem ser desligadas, despertar da imaginagao Chamava-se Jean-Jacques Rousseau © nascera em Genebra, a 28 de junho de 1712, filha de Isaac Rousseau, cujos antepassados protes- tantes provinham da regiao de Paris ¢ de Sabdia e se refugiaram na ci- gade de Calvino, durante as guerras religiosas na Franca do século XVI, © primeiro desses antepassados chamava-se Didier ¢ obtivera o direito de cidadania em Genebra no ano de 1555, Quase todos eram relojoeiros e alcangaram relativa fortuna, mas nunca chegaram a per- tencer & aristocracia, enquadravam-se dentro dos limites da burguesta média, Isaac Rousseau ndo fugia 4 regra, mas era um pouco mais pobre: val ROUSSEAU do que os demais parentes em virtude de ter que partilhar a heranga com Catorze irmaos. Casou-se com Suzanne Bernard, filha do pastor da localidade, e logo depais do nascimento do primeiro filha, partiu para Constantinopla a fim de tornar-se relojeeira num harém. Deixou @ esposa sozinha em Genebra e Suzanne, mulher de grande beleza e entantos espirituais, passou a ser assediada por outros homens. Era, contudo, uma mulher extremamente fiel ¢ amava Isaac desde a meni- nice. Nap suportando a separaco e temendo as constantes investidas dos admiradores, impkorau ao maride para que valtasse sem demora. Isaac nao se fez esperar e abandonou o harém; dez meses depois, nas- cia fraco & doentio o filha Jean-Jacques ¢ Suzanne falecia do parto. Durante muito tempo, pai € filho viveram do culto a Suzanne ¢ os dois “devoraram” uma grande colecdo de romances que ela deixa- ra. Liam sem parar apés a ceia e assim passavam a noite. Os roman- ces esgotaram-se logo, deixands tragos marcantes no caréter do meni- no: imaginagdo exacerbada e visdo profundamente dramatica das re- lagdes humanas. Quando Jean-Jacques tinha sete anos de idade @ os livros da mae se esgotaram, os dois passaram a ler a biblioteca do pai de Suzanne, onde encontraram outro tipo de obras: Histéria da tgreja ¢ do Império, de Le Suer; Discurso Sobre a Histéria Universal, de Bos- suet; Homens ilustres, de Plutarco; Metamorfases, de Ovidio; Os ‘Mundds, de Fontenelle; e algumas pecas de Moliére. © rumo dessa educagdo foi interrompide por um incidente cujas conseqiéncias tiveram influéncia decisiva na vida do menino. O pai era um homem instével ¢ despreocupado ¢ as vezes delxava-se tomar por reagées violentas, Numa dessas ocasiées desentendeu-se com um certo capitio Gauthier e este, para vingar-se, acusou-o de desembai- nhar a espada dentro da cidade. Procurado para ser preso, Isaac, invo- cando a lei, exigiu que o acusador também fosse preso, até que a questdo viesse a julgamento. Nao o conseguindo e afirmando que as- sim ficavam comprometidas a honra ¢ a liberdade dos cidados, pre- teri expanse pelo resto da vida, no participando mais da vida jo filho. Jean-Jacques ficou sob a tutela do tio Bemard, que 0 enviow para Bossey a fim de estudar com o ministro Lambercier, Em Bossey, viveu ‘0s prazeres de estar em contato com a Natureza e ligou-se afetivamen- te ao primo Abraham, além de fazer amizade com a filha do ministro Lambercier, A estada em Bossey estendeu-se até 1724, quando Jean-lacques completava doze anos de idade. De volta a Genebra, passa dois ou trés anos na casa de um tio, aprendendo desenho em companhia do primo, Sonha com ser ministre evangélico, achando bela a tareia de Pregar, mas Os recurses econdmicos deixados pela mie nado permi- tiam a centinuagao dos estudos nesse sentido, e o sentimento de infe- rloridade social comeca a se fazer sentir como um dos fatores determi- nantes de seu carater. Enamora-se da Srta, de Vulson, que tem o do- bro da sua idade. Apaixong-se também pela Sria. Goton, que brinca- va de professora com ele. E enviado a casa do notario Masseron para aprender © ofcio de mogo de recados, mas n4o mostra qualquer vo- eaydo para esse tipo de trabalho, © tabelian considera-o preguigoso € idiota, e acaba dispensando seus servigos. Gutra tentativa profissional nao tem melhores resultados, quanda vai aprender o officio de grava- VIDA E OBRA Ix dor com um certo Sr. Decommun. Passa a maior parte do tempo a cu- nhar medalhas para os amigos, é acusado de iabricar dinheiro falso e degenera moralmente, tornando-se medroso, dissimulador e ladrao, roubando de tude, menos dinheiro. Desanimado com a situagdo na oficina, volta aos prazeres da leitura, alugando livros de uma senhora chamada La Tribu, Em um ano esgota toda a sua biblioteca. Além dos livros, Jean-Jacques encontra cansclo nos passcios pee lo campo. Isso, no entanto, 56 podia ser feito nos domingos e fora dos muros da cidade, Nessas ocasiées, esquecia-se completamente de voltar e acabava encontrandy fechadas as portas da cidade. Num primeiro atraso, foi repreendido severamente pelo mestre; no segun- do, 05 Castigos corporais fizeram-se acompanhar de ameagas de que uma terceira vez ndo seria tolerada. O terceiro atraso acomeccu com isso teve inicio outro periado na vida de Jean-Jacques. Na noite de 15 de margo de 1728, dormiu na esplanada externa das portas da cidade, jurando partir para sempre quando raiasse o dia. Partia animado pelos mais belos sonhos. Livre e senhor de si mes- mo acreditava poder fazer tudo o que quisesse. Entrava com a maior sepiranea do mundo, onde julgave poder enoontrar festins, tesouros, aventuras, amigos e amantes. Mas hada ocorreu como esperava ¢ Jean-Jacques logo sentiu as angdstias da forne. Procurou entdéo o cura de Contignon, Senhor de Pontwerre, que se dedicava 4 tarefa de reconduzir ao seio da kgreja Ro- mana os jovens calvinistas de Genebra. Jean-Jacques orienta logo a ‘conversa fesse sentido, pois era uma maneira fécil de resolver prable- mas de subsisténcia, ¢ 6 cura, pretendendo arrancar mais uma alma & heresia, sugeriu-lhe dirigir-se a Annecy: “La encontrareis uma senho- ra muito caritativa”. © protegido da Sra. de Warens A Sra, de Warens nao era uma velha devota como imaginara. Ti- nha 28 anos de idade, um belo rosto, olhos azuis plenos de docura, cor de pele maravilhosa ¢ um pescogo encantador. Jean-Jacques tor nou-se imediatamente prosélito catdlico, pois, para ele, uma religiio Pregada por missionéria tio encantadora nfo poderia deixar de con- duzir a0 paraiso. A Sra, de Warens quis canservi-lo junto a si, mas por prudéncia achou melhor envid-lo a Turim, onde havia um asilo destinado a catecémenos. Chamava-se Asilo do Espirito Santo e cau- sou a pior impressao no jovem Jean-Jacques. Suportou, contudo, os aspectos negativos ¢ representou o papel de catecimeno porque nio via como safar-se, Fai deciarado converso, fizeram-Ihe uma coleta que rendeu vinte francos: estava livre para novas aventuras, Os vinte francos acabaram logo e Jean-Jacques viu-se obrigado a procurar trabalho. Ofereceu seus conhecimentos como gravador a Sra, Basile, com a qual ficou pouca tempo, e depois trabalhou como secretério da condessa de Vercellis, da qual roubou uma fita cor-de- rosa, pondo a culpa na camareira, Com o falecimento da condessa, trés meses depois, passou a ser empregado do conde de Gouvon. End- morou-se da jovem nora do conde, ¢ estudou latim com o filho do do- no da casa, que era padre ¢ 0 fez ler obras de Virgilio. x ROUSSEAU Avido de aventuras, deixou a casa do conde de Gouvon, ao en- contrar um velho conhecido de Genebra, chamado Bacle, com o qual perambulow algum tempo até resolver vollar para a companhia da Sra. de Warens, como melhor forma de manter a subsistancia, De eva em Annecy, ajuda a protetora em trabalhos de medicina ¢ alqui- mia e principalmente lé muito: Puffendort, Saint Evremond, a Henria- da de Voltaire, Bayle, La Bruyére ¢ La Rochefoucavld. Estuda mdsica ¢ estorga-se por deciirar as cantatys de Clérambault, até que a Sra, de Warens resolve envid-lo para um seminario, onde deveria melhorar 5 conhecimentos de latim. Mais importante, contudo, foram os estu- dos de misica na casa do Sr. Le Maitre, na inverno de 1729/30, que Ihe permitiram ficar sabendo o suficiente para apresentar-se como pro- fessor de miisica. Com isso, conseguiu ganhar o sustenta nos meses seguintes, quando, na auséncia da Sra. de Warens, perambulau por Lausanne e Neuchatel e chegou a visitar Paris, onde permaneceu pou- cos dias, De volta 4 casa da Sra. de Warens, agora instalada em Cham- béry, af viveu varias anos. lendo muito c comegando a escrever, Em 1740, tomou-se preceptor de dois filhos do Sr. de Mably e malagrou totalmente, mas nao deixou de aproveitar a experiéncia, escrevendo um Projeto de Educacdo de M. de Sainte-Marie © acumulando conhe- cimentos para a futura grande obra pedagégica que seria o Emilio, Dois anos depois, chega a Faris disposto a conquistar a cidade. leva consigo um novo sistema de notacdo musical, uma épera, uma comédia ¢ uma colegio de poemas. Procura a fama eo sucesso, mas 08 resultados ndo sao nada animadores: © sistema de natagao musical é friamente recebido pela Academia de Ciencias e por Rameau (1683-1764), © © ballado As Musas Galantes, que consegue fazer apresentar na Opera de Paris, atrai pouguissima atencdo. Nao fosse is- 30 suficiente, sofre a humilhacdo de nao ser correspondide no amar pela Sra. Dupin, @ um resumo que faz para uma pera compesta por Rameau e Voltaire (1694-1778) ¢ apresentado em Versalhes sem que seu nome seja citado. Tom melhar sorte, entretanto, na amizade com 9 filésofo Condillac (1715-1780) © com Denis Diderot (1713-1784), que Ihe encomenda artigos sobre musica para a Enciclopedia. Em 1745, liga-se a Thérese Levasseur, com a qual teria cinco Ihos, todos entregues a orfanatos, porque achava que no poderia cui- dar deles sendo pobre e doente. O remorso por isso sera seu compa- nheiro para o resto da vida; para livrat-se dele preocupou-se sempre em encontrar justificativas. A temporada no Ermitage Em 1749, Diderot publica sua Carta Sobre os Cagos, na qual ex- pressa claramente posicées ateistas. Por esse motivo foi preso durante trés meses em Vincennes, onde Jean-Jacques visita o amigo quase to- dos os dias. Foi numa dessas tardes que entreviu o caminho a ser trie Ihado pelo seu pensamento inquiets, ao responder negativamente a wee sobre se © progresso das ciéneias e das artes tinha contribui- para aprimorar os costumes. No ano seguinte recebeu 0 primeira prémio nese concursa ¢ VIDAEOBRA XI com ele velo também a fama, ha tanto esperada, e sobretudo a possi- bilidade de ser ouvido por cficulos mais amplos. Dois anos depots, um Intermezzo operistico de sua autoria, Q Adivinho da Aldeia, & le- vado & cena em Fontainebleau e the & aferecida ura pensdo real, que orgulhosamente recusa. Publica a Carta Sobre 2 Musica France- sa, Na qual defende o estilo italiano; visita Genebra, onde retorna a fé protestante que abjurara ¢ escreve dois discursos Sobre a Origem da Desigualdade ¢ Sabre a Economia Politica, ¢ dltimo por encomenda de Diderot para a Enciclopédia Em 1756, passa a morar no Etmilage, uma enorme casa em Montmorency, posta & sua disposicao pela Sra. d’Epinay. Ali pée-se a escrever @ romance epistalar A Nova Holofsa, obra bem tipica de sua personalidade roméntica. F a historia de um homem que canhece o amor mais pola imaginagao do que na realidade, Os cuidados exterio res de que cerca o Trabalho néo sda menos significativos: usava o mais belo papel dourado, pé de ultramarino e ce prata para secar a tina e fita azul para costurar os cadernos, Ao mesmo tempo, apaixo- na-se pela Sra. d’Houdedot, briga com o amigo Diderot por aché-lo implicado em intrigas com a reterida Senhora © apresenta os primei- 105 sinais claros da mania de perseguicao, que se torna cada vez mais doentia nos anos seguintes. tm 1757, deixa o Ermitage e passa a viver em Montlouis, onde permanece durante cincd anos muito produtives e felizes. Escreve a Carta Sobre vs Espetéculos, em gue critica um artigo de D'Alembert sobre Genebra, publicade na Enciclopédia, ¢ apée-se a0 estaboloci- mento de um teatro na cidade natal. Completa A Nova Heloise e redi- ge as duas obras tedricas que marcarao toda a histria da teoria politi- ae da pedagogia: o Fmilio e © Contrato Social, O refugio junto a Hume Os dois livros, imediatamente depois da publicagdo env 1762, so considerados altamente ofensivos as autoridades ¢, assim, inic Se © perioda mais negro da vida do autor. Os problemas agora nao sao mais com os amigos e as amantes, mas com as autoridades e a opiniéo publica. Ordcna-se sua prisda, © Rousseau vé-se obrigada a deixar a Franca, refugiando-se em Neuchatel, entio sob dominio de Frederico Il da Prissia. Passa a usar roupas arménias para disfarcar-se © esereve a Carta a Cristophe de Beaumont, na qual ataca 0 arcebispo de Paris por ter condenado o Emilio. O mesmo sentido tem as Cartas Escritas pa Montanha, réplica a j. 8. Tronchin, que ordenara a quei- ma da Fmilio © do Contrate Social. Em 1764 ‘prepara um inacabado Projeto de Constitui¢do para a Cérsega, a pedido de Matteo Butta- ‘worn. Ainda em 1764, toma conhecimento de um panfleto andnimo que circula em Paris sat a titulo de O Sentimento dos Cidadios, no qual € atacado como hipdcrita, pai sem coragda e amigo Ingrato. O panfleto tinha side escrito por Voltaire e feriu profundamente Rous- sea. Pés.ce entio a escrever as Confissdes, onde, em quase rnil pd fas, procura explicar toda sua vida ¢ seu pensamento. Com isso, 0 ‘ro tamou-se uma sintese completa do autor como homem, romanci ta, filésofo e educador. xt ROUSSEAU Qs infortuinios n&o pararam af, Em 1765, atacado pelos protestan- tes de Neuchatel, que chegam a jogar pedras em sua casa, abandona Motiers e dirige-se para a ilha de Saint-Pierre, onde € impedido de fi- car. Aceita a oferta de refdgio na Inglaterra, feita pelo filésofo David Hume (1711-1776). Chega a Londres e vai viver em Wootton. As refa- des com o amiga Hume, no entanto, seriam prejudicadas por uma Carta que circulava em Paris. Enderegada a Rousseau e assinada por Frederico It (1712-1786) — na verdade escrita por Horace Walpole (1717-1787) —, ctiticava ironicamente sua conduta, ¢ Rousseau su- pds que Hume tivesse alguma coisa a ver com ela. Com delirias de perseguigao, imaginava um vasto compld contra ele. A polémica com Hume divertiu toda a Europa culta e, par fim, Rousseau acabou por deixar a Inglaterra. De novo na Franga, publicou 0 Diciendrio de Mdsica, no qual trabalhava ha anos, Deixa-se deminar outra vez por crises de panicc Casa-se com Thérdse Levasseur & pracura detender-se contra os imagi- narios conspiradores, Tenta justificar-se diante do mundo, lendo extra- tos das Confissdes nos sales parisienses ¢ escrevendo os Didlogos ¢ Rousseau, Juiz de Jean-Jacques. A dltima obra téenica seria Considera- gGes Sobre a Gaverno da Polénia, a pedido do conde Wielherski, que desejava conselhos para reforma das instituicdes politicas de seu pais. Nos tiltimos dois anos de vida, os sintomas psicaticos diminuem de intensidade, ¢ Rousseau pode escrever a mais serena ¢ delicada de suas obras, Devaneios de um Caminhante Solitério, que contém des- crigoes da natureza ¢ dos sentimentus humanos feitas com admiravel suavidade e beleza, Em 2 de julho de 1778, falece em Ermenanville ¢ € enterrado na ilha dos Choupos. Refugia-se por fim na Natureza, a “mde comum”, em cujos bragos buscou subirairse “aos alaques de seus filhos’’, Natureza ou civilizagao? © chamado 4 Natureza e¢ o “evitar as ataques de seus filhos” constityem os motivos fundamentals do pensamenio de Rousseau ea fonte de sua contribuicdo original para a historia da filosofia, Essa con- tribuigdo ndo compde um conjunty sistemtico, ¢ a riqueza e varieda- de da obra, as freqdentes contradigoes, a repugndncia pela sistemati- zagao conceitual ¢ a permanente vinculacio entre as idéias e os con- flitos pessoais vividos pelo autor tamam extremanyente dificil uma ox- posigao sintética de sua obra. Contudo, & possivel desenredar essa teia intrincada e trazer A tana alguns elementos estruturais privilegia~ dos © certos temas dominantes: relacdes entre Natureza ¢ sociedade, moral fundada na liberdade, primazia do sentimento sobre a razdo, teoria da bondade natural do homeny ¢ doutrina do contrato social. © primeiro desses clementos estruturais — raiz de toda a filoso- fia rousseauniana — encontra-se nos discursos Sobre as Cléncias @ as Artes ¢ Sobre as Origens da Desigualdade, Neles Rousseau desenval- ve a antitese fundamental entre a natureza do homem ¢ os acrésci- mos da civilizagao. As obras posteriores levam ds altimas conseqtién- clas esse pensamento que, mais do que simples idéia abstratla, € um sentimento radical. VIDAEQBRA XII Em sintese, a civilizacio 6 vista por Rousseau como responsivel pela degeneracao das cxigéncias morais mais profundas da natureza humana e sua substituigao pela cultura intelectual. A wniformidade ar- tificial de compartamento, imposta pela sociedade as pessoas, leva-as a ignorar 0s deveres humanos € as necessidades naturais. Assim co- mo a polidez & as demais regras da etiqueta podem esconder o mais vil © impiedoso egoismo, as ciéncias e as artes, com todo seu brilho exterior, freqientemente seriam somente mascaras da vaidade e do or- gulhe. 4 vida do homem primitive, ao contrario, seria feliz porque cle sabe viver de acardo com suas necessiclades inatas, Ele € amplamente auto-suficiente porque constrdi sua existéncia no isolamento das flo- restas, satisfaz as necessidades de alimentacao € sexo sem maiores di- ficuidades, e nao € atingido pela angustia diante da doenca e da mor- te, As necessidades impostas pelo sentimento de autopreservacde — presente em todos os momentos da vida primitiva e que impele 9 ho- mem selvagem a acdes agressivas — sia contrabalancadas pelo inato sentimenta de piedade que o impede de fazer mal acs outros desne- cessariamente. Desde suas origens, o homem natural, segundo Rous- seau, @ dotado de livre arbitria e sentide de perfeicao, mas o desen- volvimento pleno desses sentimentos 56 ocarre quando estabelecidas as primeiras comunidades locais, baseadas sobretudo no grupo fami- liar. Nesse perioda da evolugao, o homem vive a idade de ouro, a meio caminho entre a brutalidade das ctapas anteriores € a corrupcdo das sociedades civilizadas. Esta Comega no momenta em que surge a propriedade privada, A critica as sociodades civilizadas ¢ a idcalizagao do homem pri- mitivo, manifestadas a todo passo nas obras de Rousseau, foram vis- tas por muitos intérpretes como expresso de um desejo de retorno a animalidade. Alguns 0 aproximaram dos cinicas gregos, especialmen- te de Diogenes (c. 413-327 a.C.), que admirava os animais e celebra- va 0s rituais antrapofagicos da mitologia. Voltaire, entre outros, fez es- Sa aproximagdo, certamente com ironia, a0 dizer do autor do Contra- fo Social que. “ninguém jamais ps tanto engenho em querer nos con- verter em animais @ que ler Rousseau faz nascer “desejos de cami nhar em quatro patas”, Tal interprotagio ¢ sem ddvida incarrcta © de- ve ser entendida apenas como expressdo do sarcasmo voltairiano. O que Rousseau sempre pretendeu nia foi exaltar a animalidade do sel- vagem, porém sua mais profunda humanidade em relacdo ao homem civilizado, A dignidade da natureza humana frente ao animal é cons- tantemente expressada pelo autor do Emilio; “Que ser aqui embaixo, exceto 0 homem, sabe observar os outros, medir, calcular, prever seus movimentos, seus efeitos, e unir, por assim dizer, o sentimento da axisténcia comum ao de sua existéncia individual’... Mostrememe outro. animal sobre a tera que saiba fazer usa do ogo © admirar 0 Sol... Eu posse observar, canhecer os seres @ suas relagées, posso sen- tir o que & a ordem, a beleza, a virtude; posse contemplar o Universo © clevar-me até a mao que govema; posso amar o bem e farélo; e me compararia com os animais?... que coisa maior poderia eleger do que ser homem?"" © homem, para Rousseau, nao se regenera pela destruicao da so- Giedade ¢ com o retorno 3 vida no meio das florestas, Embora priva- xiv ROUSSEAU do, no estado social, de muitas vantagens da Naturoza, ele adquire outras: capacidade de desenvalver-se mais rapidamente, ampliacdo dos horizonies intelectuais, enobrecimento das sentimentes ¢ eleva- gap total da alma, Se os abusos do estado social civilizado nae 0 colo- cassem abaixo da vida primitiva, 0 homem deveria bendizer sem ces- sat o instante feliz que o afrancou para sempre da animalidade e fez de um ser esttipido e limitado. uma criatura intcligente. O propdésite vi- sado por Rousseau € combater os abusos ¢ nda repudiar os mais altos valores humanos. Os abusos centralizarmse, para ele, na perda de constiénela a que & conduzide o homem pelo culte dos refinamentos. das mentiras Convencionais, da ostentacdo da inteligéncia e da cultura, nas quais s¢ busca mais a admiragéo do priximo do que a satisiacdo da propria consciéncia. Rousseau, em uma palavra, no pretende queimar bi- bliotecas ou destruir universidades © academias; reconhece a func: Gtil Gas ci&ncias e das artes, mas ndo quer ver as artistas e intelectuais submetidos aos caprichos frivolas das modas passageiras. Pela contra rio, glorifica os esforgos laborigsos da conquista intelectual verdadei- fa, que se realiza na Juta contra as obstaculos € na atividade criadora do espirito livre de pressOes. A interioridade desvendada pelo sentimento O vetorny 3 pureza da conscitncia natural ¢ 0 dever fundamen tal de tedo homem, segundo Rousseau, Com isso, cle retoma de certa forma, 0 “‘conheve-te a ti mesma’ socratico. Em Sécrates, no entan= to, a andlise da conscitneia tem significade completamente diverso, inserindo-se em outro quadro de referencia, Diante dos filésofos ante flores que se preacupavam em descobrir a constituicdo fundamental do mundo da matéria, Sécrates reivindicou como centro do pensar fi« loséfico o prdpria homem e os valores que orientam sua conduta. Mas a diferenga maior entre Sécrates e Rousseau nao reside nisso, mas no fato de que 9 “conhece-te ati mesma” socratico € tarefa inte= fectual a cargo da razie, e Rousseau, ao contririo, vé no intelecto uma faculdade que conduz 0 hamem para fora de si mesmo. Rous- seau aponta 0 sentimento, essa “outra faculdade infinitamente mais sublime”, como o verdadeira caminho para a penetragdo na esséncia da intertoridade, Q sentimento como instrumento de penetragio na esséneia da in- terioridade é outra dos clementos estruturais do pensamenta de Rous- seau. Nucleo central de todo pensar filosdfico, conslituiria a chave com que se pode compreender toda a Natureza e aleangar misti mente @ proprio infinito, Deixar de lado as convengoes da razao civ lizada. E imergir no fundo da Natureza através do sentimento signifi- ca elevar-se da superficie da terra até a totalidade dos ““seres, ao siste- ma universal das coisas, ao ser incompreensivel que a tude engioba”’ Perdido © espirito nessa imensidiae, © individug nao pensa, nao racio- ina, nao filosofa, mas sente com voluptuosidade, abandona-se a0 ar rebatamento, perde-se com a imaginagao na espaco e langa-se ao infi- nila. Essa imerséo mistica no infinite da Natureza equiyale a penetrar VIDA E QBRA XV na propria interigridade, alcangar a consciéncia da liberdade € atingir © sentimento intimo da vida, com 0 qual o homem teria consciéncia de sua unidade com os semelhantes e com a universalidade dos se- res, No relacionamento mistico com a Natureza, segundo Rousseau, nao se desiruta nada externo ao prdprio individua e sua existéncias durante 0 lapso de tempo cm que ocorre a relacsa, o homem basta- se.a'si mesmo, como se fosse Deus. A ideia de que o sentimento misti¢o da Natureza nao pode ser se- parado do sentimento de interioridade pessoal constitui aquilo que se costuma chamar 0 espirito “romintico”’ de Rousseau, Vendo a Natu- Feza como fonte da felicidade humana, relevando ao maximo a carga mistica de sua vivéncia © formulando a concepgao de que ela $5. po- de ser compreendida pela sentiments e nao pela raz4o, Rousseau de- sempenhou pape! original dentro da filosofia do século XVII. Os con- temporineos enciclopedistas, tanto quanto ele, também fizeram da Natureza 9 ponto central de suas teorias. Continuanda ¢ movimento do métoda indutivo de Bacon (1561-1626), da metodologia experi- mental-matematica de Galileu (1564-1642), da fisica de Newton (1642-1727) ¢ do empirismo de John Locke (1632-1704), 05 enciclo- pedistas do século XVIII tomavam a Natureza como fonte de conheci- mentos ¢ faziam dela critério de julgamento de idéias e instituighes, além de arma de luta contra a tradicaa escolistica, A Natureza, na en- tanto, é concebida por clos essencialmente como matéria e movimen- ta_ mecanico, inteiramente exterior ao sujeito humana. Holbach (1723-1789) e Helvetius (1715-1771), por exempla, objetivam o sujei- ta cognoscente © reduzem 0 espirito & Natureza ¢ a interioridade & ex- terioridade. Para Rousseau, ao cantraria, a Natureza palpita dentro de cada ser humane, come intimo sentimento de vida. Tomou parti- do contra os “iildsofos” © jamais quis ser chamado assim: “Vi multas pessoas que filosofavarn muito mais doutamente do que cu; mas sua filosofia parecia, por assim dizer, estranha.,. Estudavam © universe como teriam estudado qualquer maquina que tivessem visto par curi sidade, Esiudavam a natureza humana para poder falar sabiamente de- la, néo para conhecerem-se a si mesmos” A pedagogia do Emilio Rousseau desloca, assim, duplamente o centro de gravidade da reflexdo filoséfica, Em primeira lugar, nde ¢ razao mas o sentimento © verdadeiro instrumento de conhecimento; em segundo lugar, nao é 9 mundo exterior objeto a ser visaio mas o mundo humano, Am- bos os aspectos vinculam-se intimamente ¢ implicam a passagem da atitude teorica para o plano da valorizacdo moral. Dessa forma, a tra- Go mais significativo do pensamento de Jean-lacques Rousseau passa @ residir nas caminhos praticos que ele procurou apontar para 0 ho- mem aleangar a felicidade, tanto no que se refere ao individuo quan to no que se relaciona a sociedade. No primeiro caso, formulou uma pedagogia, que se encontra no fmilio; ne segundo, tcorizou sobre o problema politicn e escreveu © Contrato Social, alem de outras obras menores, O Emilio é um ensaio pedagégico sob forma de romance ¢ ncle XVI ROUSSEAU, Rousseau procura tragar as linhas gerais ape deveriam ser seguidas com 9 objetivo de fazer da crianca um adulto bom. Mais exatamente, trata dos principias para evitar que a cranca se torne ma, ja que o pressuposto basico do autor é a crenca na hondade natural do ho- mem. Outro pressuposto de seu pensamento consiste em atribuir a ci- vilizago a responsabilidade pela origem do mal. Conseqlientemente, 05 objetivos da educacae, para Rousseau, camportam dois aspectas: 9 desenvolvimento das potencialidades naturais da crianga e seu afas- tamento dos males sociais, A educacao deve ser progressiva, de tal forma que cada estagio do pracesso pedagégico seja adaptado as necessidades individuais do desenvolvimento. A primeira ctapa deve ser inteiramente dedicada ao apericicoamento dos Grgios dos sentidos, pois as necessidades ini- clais da crianca so principalmente fisicas. Incapaz de abstracées, 0 educando deve ser orientado no sentido do conhecimento do mundo através do Contato com as proprias coisas; os livros s6 podem fazer mal, com excegaa do Rabiason Crusoé, que relata as experiéncias de um homers livre, em cantata com a Natureza, Liberta da tirania das opiniées humanas, a crianga, por si mesma @ sem nenhum estorgo especial, identifica-se com as necessidades de sua vida imediata © toma-se auto-suficiemte, Vivendo fora do tempo, nada precisande das caisas artificiais endo encontranda qualquer des. proporcéo entre desejo e capacidade, vantade o poder, sua existéncia vé-se livre de toda ansiedade com relagao ao futuro ¢ néo ¢ atormen- tada pelas preocupacdes que fazem o homem adulto civilizado viver fora de si mesmo, pecessirio, contudo, prepard-la para a futuro. Isso porque ela tem uma enorme potencialidade, nao aproveitada imediatamente. A tarefa do educador consiste em teter pura ¢ intata essa energia até o momento propicio, Nesse sentido € particularmente importante evitar a excitacia precoce da imaginagao. porque esta pode tornar-se uma fonte de infelicidade futura, Outros cuidados devem ser tomadas com: © mesmo objetivo e todos eles podem ser alcangados ensinandose a ligdo da utilidade das coisas, ou seja, desenvolvenda-se as faculda- des da crianga apenas naquile que possa depois ser-Ihe dil Até aqui, © proceso educative preconizado por Rousseau é nega- tivo, limitando-se Squilo que ndo deve ser feito, A educacao positiva deve iniciarse quando a crianga adquire consciéncia de suas rela- des com os semethantes. Passa-se, assim, do terreno da pedagogia propriamente dita aos dominios da teoria da sociedade e da organiza- (89 politica, © supremo bem: a liberdade Em todas as obras de Rousseau, os pracessos educativos, tanto quanto as relagdes socials, sho sempre encarados do ponto de vista centrafizado na nocdo de liberdade, entendida por ele como direito & dever ao mesmo tempo: “... tedas nascem homens ¢ livres”; a liber- dade Ihes pertenee ¢ renunciar a cla é renunciar a prépria qualidade de homem. Ao reformular tal principio ¢ dar-Ihe o papel fundamental na moral e na politica, Rousseau elevou-se muito acima dos contem- VIDAEORRA XVII porineos @ dos. precursares, Ninguém camo ele afirmou © principio da liberdade como direito inalienavel € exigéncia essencial da pré- pria natureza espiritual de homem. Com isso, levou as ditimas conseqiéncias a linha de pensamento iniciada pelo: humanisme renascentista e sobretudo pela reforma pro- testante. Esta dltima, ialmente, expressava as necessidades ¢ as- piragdes das colotivideree cue teivindicavam o valor da intimidade e 0s direitos da consciéncia religiosa de cada um, frente ao principio ca- tolico da autoridade. Essa corrente de idéias desenvolveu-se depois com as tearias do direito natural do século XVII ¢ principalmente com Espinosa (1632-1677) ¢ John Locke, que prenunciavam Rousseau. O caminho que sera trilhado pele autor do Contraro Sacial 6 anunciade par Locke ao formular a teoria do estado da natureza como condicao da liberdade e da igualdade e com a afirmagae da pessoa humana co- mo sujeito de tode direito e, portanto, fonte ¢ norma de toda lei. Can- tudo, Locke admite a perda da liberdade quando afirma que “o ho- mem, por ser livre por natureza, ... nao pode ser privado dessa condi- Gao @ submetide ao poder de outro sem o préprio consentimenta”’. ©. principio da liberdade torna-se, ass apenas uma questio de fato ¢ deixa de ter o valor humanista e a forca renovadera da vida social que lhe foram dadas por Rousseau. Com ele, o principio da liberdade constitui-se como norma, ¢ ha camo fato; como imperativa, e do como comprovacéo. Nao ¢ apenas uma négacio de impedimentos, mas afirmagdo de um dever de realizacao das aptidoes espirituais. Na consciéneia da liberdade re- vela-se a espiritualidade da alma humana; por isso ¢ a exigéncia ética fundamental, e renunciar a ela é renunciar & propria qualidade de ho- mem @ “aos direitos da humanidade’’. Ao fazer tal afirmagio, Rousseau distancia-so de todo individua- lismo, pois este supde uma anthese ene cada um e a coletividade ¢ estabelece 0 valor do individua enquanto individue e nao enquanto homem. Rousseau, ao contrario, reivindica a consciéncia da dignida- de do homem em geral e ilumina o valor universal da personalidade humana, cuja consciéncia moral nao se traduz no sentimento particu- larista do amor prépria, mas na universalidacde do amor de si. No pen. samento de Rousseau o amor de si, constituindo a interiaridade por exceléncia ¢ a forga expansiva da alma que identifica o individuo com seus semelhantes, é a ponte que liga o eu individual ao eu co- mum, a vontade particular 2 vontade geral. Assim € que todos as cida- daos “poderdo chegar a identificar-se, por fim, com o Todo maior, sentir-se membros da piditria, amdla com esse sentimento delicado que todo homem separado $6 tem para si mesnw". A tealizagao concreta do eu comum e da vontade geral imp! cam necessariamente um contrato social, ou seja, uma livre associa: do de seres humanos inteligentes, que deliberadamente reselyem for- mar um certo tipo de sociedade, 4 qual passam a prestar obediéncia. © contrato social seria, assim, a dnica base legitima para uma comu: nidade que deseja viver de acordo com os pressupostos da liberdade humana. E necesséria, contuda, resalver o probloma de encontrar uma for: ma de associagio que continue a respeitar essa mesma liberdade que Ihe da origem. Muito embera o homem seja naturalmente bom, ole é

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