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A INVISIBILIDADE DA EXPERIENCIA* Joan W. Scott" Tradugdo: Liicia Haddad” Revisao Técnica: Marina Maluf’””* Tornando-se visivel Hé um fragmento na magnifica meditagao autobiografica de Samuel Delany, The motion of light in water, que coloca enfaticamente o problema de escrever a historia da diferenga, isto é, a historia da designag4o do outro, da atribuigao de caracteristicas - “The Evidence of Experience”, Critical Inquiry, summer 1991, vol. 1 n° 4, University of Chicago Press. Sou grata a Tom Keenan pelo convite para participar da conferéncia “History today — and Tonight” (Universidades de Rutgers e Princeton, margo de 1990), onde testei algumas dessas idéias, e as pessoas cujas indagagdes e comentérios propiciaram revisdes ¢ reformulagées. Em seminério que dei na graduago em Rutgers na primavera de 1990, a ajuda dos alunos foi de grande valia no esclarecimento de minhas idéias sobre “experiéncia” e a importiincia de historicizar. A critica de membros do seminsrio de “Histéria” em 1990-1991, na Escola de Ciéncias Sociais no Instituto de Estudos Avangados ajudaram a dar a este artigo sua forma final — e, creio, bastante methorada. Como sempre, Elizabeth Weed deu as sugestées cruciais para a conceitualizagéo desse artigo. Tam- bém sou grata as importantes contribuigées de Judith Butler, Christina Crosby, Nicholas Dirks, Christopher Fynsk, Clifford Geertz, Donna Haraway, Susan Harding, Gyan Prakash, Donald Scott € Willem Sewell Jr. Os comentérios pertinentes de Karen Swann levaram-me a repensar € a reescrever a parte final deste artigo. Aprendi muito com ela e com este exercicio. Reginald Zelnick, em carta escrita em julho de 1987, me propés o desafio de articular uma definigio de “experiéncia” que fosse apropriada ao campo dos historiadores. Embora eu ndo tenha certeza de que ele encontraré neste ensaio a resposta que procurava, devo-lhe muito por aquele desafio. Professora de Ciéncia Social no Instituto de Estudos ‘Avancados em Princeton, New Jersey. *** Professora de Tradugao Literéria na Associago Alumni. **** Professora do Departamento de Histéria da PUC-SP. Proj. Hist6ria, Sao Paulo, (16), fev. 1998 297 que distinguem categorias de pessoas a partir de uma norma presumida (e muitas vezes no explicitada).! Delany (homossexual, negro, escritor de ficgao cientifica) relembra sua reagdo quan- do esteve pela primeira vez, em 1963, na sauna St. Marks. Ele se recorda que ficou parado na entrada de uma “sala do tamanho de um gindsio” parcamente iluminada por luzes azuis. A sala estava repleta, algumas pessoas de pé enquanto outras formavam uma massa ondulante de corpos masculinos, nus, espalhados por toda a sala. Minha primeira reagdo foi de total espanto, préxima do medo. Eu j4 havia escrito sobre um espaco com certa impregnagio libidinosa. Nao foi isso 0 que me assustou. Mas sim © fato de que nfo se tratava de impregnagao apenas cinestésica, mas visfvel.? A cena observada confirmou para Delany um “fato que o atingiu em cheio”, isto &, a representagao que se tinha dos homossexuais na década de 50, vistos como “seres pervertidos, isolados”, “desviados”. A “apreensio de uma massa de corpos” deu-lhe (como daria, ele sustenta, a qualquer pessoa, fosse “homem, mulher, operério ou mem- bro da classe média”) uma “consciéncia de poder politico”. essa experiéncia mostrou que havia uma populagio — nao de individuos ho- mossexuais... ndo de centenas, nao de milhares, mas sim de milhGes de homossexuais, e que a hist6ria j4 havia ativamente criado para nés exposicdes completas de insti- tuigdes, boas e mds, para acomodar 0 nosso sexo. (M, p. 174) Para Delany, a consciéncia de possibilidade politica foi assustadora e estimulante. Ele enfatiza nao a descoberta de uma identidade, mas a consciéncia de participagéo em um movimento; na verdade é a dimensao (bem como a existéncia) destas praticas sexuais que tém maior importancia em sua narrativa: Nimeros — corpos em massa — confi- guram um movimento e este, mesmo subterraneo, desmente siléncios impostos sobre a extensdo e a diversidade das prdticas sexuais humanas. Tornar o movimento visivel quebra o siléncio sobre ele, desafia nogGes prevalescentes ¢ abre novas possibilidades para todos. Delany imagina, mesmo do ponto de vista de 1988, uma futura utopia de genuina revolugao sexual, “uma vez que a crise da AIDS estaré sob controle”: 1 Para uma importante discussio sobre o “dilema da diferenga”, ver Martha Minow, “Justice Engendered”, introdugo a “The Supreme Court, 1986 Term”, Harvard Law Review, 101 (nov., 1987), pp. 10-95. 2° Delany, S. R. The motion of light in water: sex and science fiction writing in the East Village, 1957-1965 (Nova York, 1988), p. 175; daqui por diante abreviado como M. 298 Proj. Historia, Séo Paulo, (16), fev. 1998 A revolugao vird precisamente gragas a infiltragao de uma linguagem clara e articulada nas dreas marginais de exploraco sexual humana, como este livro vez por outta descreve, e do qual é apenas 0 mais modesto exemplo. Quando um numero signifi- cativo de pessoas comegar a ter uma idéia mais clara acerca das diversas possibilidades existentes de prazer humano em passado recente, heterossexuais e homossexuais, tanto do ‘sexo feminino quanto masculino, haverao de explord-las em maiores detalhes. (M, p. 175) Ao escrever sobre a sauna, Delany nao procura “romantizar aquela época transfor- mando-a em cornucépia de abundancia sexual”, mas sim quebrar um “siléncio publico absolutamente sancionado” nas questdes de prdtica sexual, revelar algo que existia, mas que fora suprimido. ‘Apenas as mengdes mais indiretas ¢ timidas podiam ocasionalmente indicar os limites de um fendmeno sobre 0 qual nao se podia falar ou escrever, mesmo de modo figu- tado; e era uma timidez nao s6 médica e legal, como também literria: e, como Foucault j4 nos havia dito, tratava-se em sua timidez de um discurso vasto e pene- trante. Mas essa timidez indicava que nao havia nenhum modo de compor a partir dela um quadro nitido, preciso ¢ detalhado das instituigSes sexuais ptiblicas existentes. Esse discurso apenas tocava em limites altamente selecionados quando transgrediam os padres legais e/ou médicos de uma populagao que desejava energicamente afirmar que tais instituigdes nao existiam. (M, pp. 175-176) O objetivo da descrigio de Delany, na verdade de todo seu livro, € documentar a existéncia dessas instituigdes em toda a sua variedade e multiplicidade, escrever sobre elas e, assim, tornar histérico 0 que fora escondido da histéria. No meu ponto de vista, uma metéfora de visibilidade como transparéncia literal € crucial para o seu projeto. As luzes azuis iluminam uma cena da qual ele jé havia participado (em caminhées escuros estacionados ao longo das docas sob a West Side Highway, em banheiros masculinos de estagdes de metré), mas compreendidas apenas de um modo fragmentado. “Ninguém nunca viu o seu todo” (M, p. 174; a énfase é minha). Ele atribui o impacto da cena na sauna & sua visibilidade: “Vocé podia ver 0 que estava acontecendo por todo o aposento” (M, p. 173; a énfase é minha). Ver capacita-o a compreender a relago entre suas atividades pessoais e a politica: “A pri- meira consciéncia direta de poder politico vem da apreensdo dos corpos em massa’. Recontar aquele momento também Ihe possibilita a explicagao do objetivo de seu livro: mostrar um “quadro nitido, preciso e detalhado das instituigdes sexuais piblicas existentes” de modo que outros possam aprender e explord-las (M, pp. 174-176; a Proj. Histéria, Sao Paulo, (16), fev. 1998 299

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