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Palavras que calcinam, palavras que dominam: a invengaéo da seca do Nordeste Durval Muniz de Albuquerque Jtinior* A seca é tema de uma vasta literatura, que a aborda ora como um simples fenémeno climético, que est4 na origem de todos os problemas do espago onde ocorre, ora como um problema mais vasto, com implica- ges econémicas, politicas e sociais, agravando -uma estrutura sdcio- econémica de exploragio e desigualdades sociais profundas. No entanto, em toda essa literatura se parte da constatagao de que a seca é um “pro- blema regional”, sem atentar para o fato de que nem sempre esta foi assim. Embora os autores sejam undnimes em tomar a chamada “grande seca” de 1877/79 como o momento a partir do qual a seca passa a interessar aos “poderes ptiblicos”, tornando-se um “problema de repercussio na- cional”, tal fato é tomado como evidente, sem nunca ser questionado ou explicado. Por que as estiagens, fendmeno de que se tinha noticia desde © perfodo colonial, e que até esta “grande seca” ja tivera 31 ocorréncias, muitas de grandes proporg6es, no cram consideradas problema que reque- resse uma intervengéo do Estado? O que se percebe, portanto, € que essa literatura, mesmo quando trata a seca como fenémeno com repercussées sociais e histéricas, a toma apenas como um fen6meno natural, nao a abordando como um produto histérico de priticas e discursos, como invengo histérica ¢ social, 0 que implicaria, ao se falar em “seca do Norte” ou “seca do Nordeste”, nio se estar falando de qualquer estiagem, mas de um objeto “ “imagético- discursive", cujas imagens e significagdes variam ao longo do tempo e conforme o embate de forgas que a toma como objeto de saber. Nao se deve fazer apenas a hist6ria das repercussées econémicas, sociais ou politicas da seca, nem apenas a narrativa cronoldgica de sua ocorréncia € suas conseqiiéncias, mas a hist6ria da invengdo da propria seca como problema regional. ‘A insistente afirmagio de que s6 em 1877 a seca teria chamado atengio € se tornado um “problema de repercussao nacional”, levou-nos * Universidade Federal da Parafba. li a pensar que, s6 neste momento, a seca tenha sido inventada como objeto de discursos e préticas, com uma estratégia politica diferenciada: a de denunciar a decadéncia deste espago ¢ a necessidade de se voltar os olhos do Estado e da “naco” para resolver “o seu problema”. Partindo do Pressuposto de que os marcos ¢ os acontecimentos considerados originais na “membria hist6rica” so criagées que escondem as pistas de toda a uta ¢ os embates entre varios projetos de sociedade, que os possibilitou emergir, partimos da hipdtese de que 0 marco 1877 nao é explicagao, mas sim deve ser explicado. Naquele momento, existia toda uma realidade hist6rica complexa, em que se digladiavam diferentes vis6es e conviviam diferentes possibilidades, tendo a vencedora procurado apagar todos os rastros daquela luta, A transformagao da seca em problema nos apareceu, entio, como um processo conflituoso, em que diferentes préticas e discursos se de- frontaram, fazendo emergir este novo objeto de saber ¢ poder: “a seca do Norte”, cuja invengdo deve ser apagada, remetendo-o para o reino da natureza, ocortendo, portanto, no final do século XIX, uma mudanga na imagem ¢ no uso do fenémeno da seca. Para compreender tal mudanga, Procuramos analisar os principais discursos em torno desse fenémeno ¢ as préticas que enformaram. Discursos ¢ préticas que transformaram a seca em problema regional ¢ nacional ¢ na principal causa de todas as demais dificuldades vividas por esta parte do territério nacional. Perguntando-nos, Portanto, quais as séries de acontecimentos e de discursos que trans- formaram a seca de 1877/79 em algo excepcional, dentro da secular histéria das secas, j4 que, enquanto acontecimento da natureza, nenhum aspecto a credencia a ser tomada como um marco? Sua duragio foi inferior a muitas outras, atingiu uma drea menor, no foi tio intensa, porque ocorreram chuvas esparsas durante o perfodo e mesmo a populagao por ela dizimada € proporcionalmente inferior a da seca de 1825, por exemplo. Enquanto a seca de 1877 matou cerca de 13,9% da populac&o do Ceara, a seca de 1825 dizimou 14,4% da populagdo desta provincia! A crise de 1877/79 ocorre quando 0 Norte passa por uma grave crise econdmica, com o declinio dos precos, das exportagées do agdcar e do algodao ¢ a evasio da mio-de-obra escrava para as provincias do Sul. As elites de suas provincias sofrem uma progressiva perda do espaco politico nacional e enfrentam uma rearrumagdo da divisio de poder entre suas diferentes parcelas, situag&o que é agravada pelo descontentamento | ALBUQUERQUE JR., Durval Muniz, “Falas de Astiicia e de Angiistia: A Seca no Imagindrio Nordestino 1877-1922)". Dissertagio de Mestrado em Hist6ria. Campinas, UNICAMP, 1988. 112 das camadas populares, atingidas pelas mudancas em curso e pela crise econémica ¢ social. A seca acentua a crise vivida por essa drea, levando a que se es- tabelega uma situagio de caos, scja no plano econémico e social, seja no que se refere ao controle social, colocando em cheque vérios mecanismos de dominagio, que garantiam a manutengio da ordem e do status quo. Com a crise da economia de exportago, grande parte da populagao dessa drea havia se refugiado no setor de subsisténcia, que € mais vul- nerdyel aos efeitos da calamidade climética. A seca, destruindo comple- tamente esse setor, jogard na miséria absoluta grande parte da populagio, que se vé obrigada a recorrer inicialmente a caridade particular, como era costumeiro, e com o prolongar do flagelo, recorrer & caridade piblica, retirada, 4 migragio para pontos do litoral, onde eram socorridas pelos governos provinciais e nacional, com a distribuig&o de alimentos. O litoral se vé, pois, com uma populagdo adventicia muito grande que, por um lado, fomece mfo-de-obra barata para a produgdo acucareira ¢, por outro lado, aumenta a tensAo social, gera o crescimento de epide- mias, a inseguranga € a “subversio dos costumes” ai dominantes. Soma- se a isso a pouca capacidade de absorgao de mao-de-obra de uma econo- mia em crise, como era a do agticar. A pecuéria volta a ser atingida pela mortandade do gado, obrigando os proprietrios de maiores posses a vender seus rebanhos ou migrar com estes para lugares de maior umidade. O comércio também se vé completamente desorganizado: 0 comércio de exportago, prejudicado pela crise do setor e pela dificuldade de trans- porte causada pela seca, notadamente o comércio do algodio, que era produzido no interior; 0 comércio interno, prejudicado pela destruigio da produgio agricola, bem como pela concorréncia com a distribuigéo de alimentos aos famintos por parte do governo. Esses alimentos eram adqui- ridos fora do Norte, ou em firmas importadoras da praca do Recife, ge- rando protestos dos comerciantes locais que queriam ser beneficiados através da compra de suas mercadorias com as verbas dos socorros pti- blicos. Por isso, eles combatem a compra de alimentos fora de suas pro- vincias, pois essa compra fazia com que os recursos, enviados ao Norte pelo governo imperial, retornassem ao Sul, para comprar as mercadorias que cram distribufdas aos flagelados. Por seu turno, os governos provin- ciais denunciavam a alta exagerada dos precos, fruto da especulagao realizada por esses comerciantes, dizendo ser irracional deixar de comprar 08 alimentos no Sul para compré-los no Norte de comerciantes que iam Aquela regifo para fazer suas compras. 413

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