Você está na página 1de 12

Recordar o passado - Emoções que Compensam

Texto de AMÉLIA BRANCO E SIMONE MARQUES*

Quem já não teve o prazer de ouvir dos mais velhos uma história
empolgante ou o relato de um evento de que só tinha conhecimento
através de livros ou filmes? Quem já não experimentou o prazer de se
sentir transportado a uma época remota durante uma sessão de
memórias revisitadas?

Agora imaginemo-nos do outro lado. Do lado da pessoa que conta e que,


palmilhando os caminhos das suas vivências, transmite aos mais novos
aquilo que foi a sua vida, com as inerentes vicissitudes, alegrias,
desgostos, esperanças e sonhos. Como nos sentiríamos? Invadidos?
Agradecidos? Receosos? Expectantes?

Estas duas perspectivas permitem-nos travar conhecimento com os dois


lados daquilo que chamaremos o Trabalho de Reminiscências ou Trabalho
de Memórias com Idosos.

Reminiscência é sinónimo de Memória, Lembrança, Recordação. O


trabalho de reminiscências é tão só o acto ou processo de relembrar o
passado, de trazer à luz do presente as recordações que preenchem o
espólio das nossas memórias. É algo que estamos habituados a fazer
espontaneamente, tornando-se um acto mais frequente à medida que
envelhecemos. Nele reconhecemos evidentes benefícios de bem-estar e
de encontro consigo mesmo, bem como de posicionamento no espaço
social, emocional e afectivo no qual nos movemos. Por vezes, esse
processo contempla a participação de terceiros – é o que acontece
quando contamos aos outros aquilo que foram as nossas experiências e
os sentimentos que as acompanharam.

Não obstante a aparente facilidade com que o nosso cérebro processa a


informação passada e nos permite a nossa própria sessão de
reminiscências, algumas pessoas encontram dificuldade nesse processo,
necessitando de encorajamento e ajuda especia-lizada, no sentido de as
levar a recordar. Entramos assim naquilo que chamamos Trabalho de
Reminiscências – uma actividade de promoção da saúde individual e
colectiva, com propósitos de cariz recreativo, educativo e social.

Trabalho de Reminiscências

o que é e para que serve?


Este tipo de ajuda tem como principal benefício facilitar o processo
comunicativo e o entrosamento entre pessoas isoladas emocional e
socialmente, em especial aquelas que se vêem confrontadas com
situações novas, passíveis de gerar alguma desorientação, de que é
exemplo o internamento institucional. Aqui, a juntar à novidade do
espaço, associam-se factores de ordem psicológica como a falta de
memória de curto prazo ou a fragilidade das competências sociais, esta
última provocada pela pouca prática interactiva que caracteriza este
estádio da vida.

Esta definição de trabalho de memó- rias com idosos poderá levar a uma
identificação do Trabalho de Reminiscências com o Trabalho de História
Oral. Tanto um conceito como o outro se referem e fazem uso das
memórias das pessoas idosas. No entanto, correspondem a realidades
diferentes.

Enquanto que o segundo tem como principal objectivo a recolha da


contribuição do idoso para a documentação de uma determinada
realidade histórica, o primeiro visa no essencial promover alterações no
estilo de vida, bem como melhorar o relacionamento entre os
intervenientes no processo. As diferenças abarcam igualmente o âmbito
da dinâmica das sessões. Ao contrário da história oral, o trabalho de
reminiscências não exige o compromisso rígido do registo das histórias
para a posteridade, podendo o processo ser conduzido por alguém que
tenha recebido um mínimo de formação.

O trabalho de reminiscências, em termos dos objectivos que visa atingir,


possui uma dupla função: terapêutica e instrumental.

Através do processo de recordação das vivências passadas, o trabalho de


memórias com idosos revela ser um meio útil na melhoria dos vários
aspectos da vida pessoal e social dos idosos, principalmente no que
respeita aos aspectos existenciais que acompanham o envelhecimento,
fonte frequente de dilemas dolorosos na vida do indivíduo. A discussão
deste tipo de assuntos durante uma sessão de reminiscências permite ao
idoso relativizar os seus problemas, com nítidos acréscimos de auto-
estima e de qualidade das relações interpessoais. O processo de recordar
memórias individuais assume assim um carácter fundamentalmente
terapêutico, com ganhos substantivos ao nível da promoção da saúde e
do bem-estar individual.

Para além desta função de cariz terapêutico, o processo de reminiscências


possui igualmente um carácter instrumental ao permitir facilitar o
relacionamento entre técnicos e utentes. Isto é conseguido a partir do
momento em que os profissionais, através da participação em actividades
de memórias com idosos, tomam conhecimento da história de vida do
residente e compreendem assim melhor as reais necessidades daquele.

Mas sem dúvida que os principais beneficiários de todo este processo são
os idosos. Para estes, a prática de revisitar o passado contribui
significativamente para o fortalecimento ou mesmo para o reforço das
suas noções de identidade e auto-estima. Esta capacidade de tornar
presente o passado vivido, sobretudo na presença de um ouvinte
solidário, assume-se como um dos mecanismos que permitem,
nomeadamente às pessoas muito idosas, manter a sua integridade
psicológica. A prová-lo, estão os casos em que a prática da reminiscência,
através do estímulo de estados positivos de bem-estar psicológico,
contribuiu para a cura de estados depressivos em indivíduos de idade
avançada.

Como Montar um Projecto

Sensibilizar os idosos

Iniciar um trabalho de reminiscências pressupõe a adesão dos principais


beneficiados – os idosos –, pelo que a sensibilização destes para as
acções a desenvolver se assume como a primeira fase do processo. Uma
das estratégias que melhores resultados tem obtido consiste em propor a
ideia que se pretende concretizar, explicitando a forma como decorrerá,
os objectivos que se pretendem atingir e em que consistirá o
envolvimento de cada um. No trabalho desenvolvido na valência de
Convívio dos Mártires, a directora do equipamento começou por isso
mesmo: “Falei com os idosos, disse-lhes que me tinha lembrado de uma
ideia, queria ver o que é que eles achavam de fazermos uma recolha de
chapéus e depois expô-los” .

O convite deverá ser generalizado ao grupo que se pretende abranger nas


actividades e não a cada um dos idosos em particular, evitando assim
possíveis recusas, sempre facilitadas pela ausência do factor inibidor da
pressão grupal. Mesmo passando por este procedimento de divulgação
generalizada, há sempre a possibilidade de uma recusa ou de uma fraca
adesão à ideia. Tal como nos afirma Adelaide Cunha, responsável pela
implementação do projecto de memórias acima referido, “as ideias são
lançadas mas é um grupo heterogéneo – há pessoas que agarram a ideia
e executam-na na perfeição, entendem o que se está a pedir e
entusiasmam-se. Há os que ficam perfeitamente neutros, há os que vão
por arrasto e há outros que, aparentemente ou durante um período, não
têm qualquer entusiasmo e depois, na fase final, entusiasmam-se
também.”

Feita esta primeira abordagem, marca-se uma sessão preparatória com


os idosos que aderiram, deixando claro, entretanto, que todos os
restantes estão também convidados. É importante respeitar a vontade de
quem não deseja participar, tanto mais que é mesmo natural que as
pessoas que inicialmente se colocaram à margem das actividades venham
a usufruir do entusiasmo da concretização final do projecto – o que não
deixa de ser uma forma de entrosa-mento com o grupo, que poderá dar
frutos em actividades posteriores.

Escolher o animador
As actividades com reminiscências podem ser conduzidas por
profissionais de diferentes áreas. Duas características são, no entanto,
dificilmente dispensáveis: formação prévia e perfil específico.

O primeiro aspecto é um factor sinequa-non em países onde este tipo de


actividade possui já um historial de algumas décadas. Tal não se
verificando em Portugal, é claramente o segundo factor referido que
permite o desenvolvimento de projectos inovadores.

Exemplo disso mesmo, foi a actividade de reminiscências levada a cabo


no Lar Nossa Senhora da Visitação. Para a inauguração deste lar,
procedeu-se ao registo da história de vida de cada um dos futuros
residentes. Com este trabalho, pretendia-se facilitar o início do
relacionamento entre os utentes que, com naturalidade, memorizariam
pequenos detalhes da vida dos companheiros e deles fariam assunto de
conversa. A técnica que esteve na base da concretização desta ideia não
possuía a formação prévia de que falávamos acima, facto que não
impediu o desenvolvimento de um trabalho com consequências
nitidamente positivas nos objectivos que se propunha. Tal como afirma
Isabel Valente, directora do lar, “não sei se isto se deve fazer pois não fiz
isto por técnica nenhuma, foi algo que me ocorreu e achei que era uma
forma mais ou menos eficaz de se conhecerem uns aos outros.” E conclui,
reafirmando o sucesso da iniciativa: “foi muito engraçado, facilitou muito
o relacionamento entre eles, o fazerem paródia, o fazerem conversa uns
com os outros.”

O animador deste tipo de actividades deverá ser portador de um perfil


específico, com características que vão do gosto pelo recordar factos da
sua própria vida ao prazer em ouvir relatos dos outros. Outras
características como ser capaz de ouvir com paciência e interesse
detalhes da vida de uma pessoa comum com o mesmo interesse que os
ouviria de uma pessoa famosa, respeitar o que as pessoas têm para
dizer, não emitindo juízos de valor e não permitindo que outros o façam
são também necessárias. Exemplo disso mesmo foi a atitude de abertura
às escolhas dos idosos no projecto de histórias de vida acima
mencionado: “cada um escolheu, das suas recordações, aquilo que quis
dizer. Eu perguntava-lhes: e agora diga – das fotografias antigas que
tem, o que é que quer escrever aqui, que mensagem é que quer dar aos
outros, o que é que quer dizer para se apresentar a si próprio, para dar a
conhecer a sua maneira de ser?”.

Por fim, o monitor deve inspirar con-fiança. Todos devem saber que,
dentro do grupo, as suas memórias serão tratadas com respeito e que
estas não serão, em hipótese alguma, comentadas levianamente fora
dele. Este é um aspecto de importância fulcral – a privacidade de cada
um e a confidenciali-dade dos dados transmitidos tem que ser um dado
adquirido para o idoso. Só assim se consegue uma postura descontraída,
confiante e sincera que produzirá os seus frutos em termos de bem-estar
e auto-estima acrescidos para o idoso.
Seleccionar os participantes, o local

e o número de sessões

O trabalho de reminiscências é desenvolvido em sessões grupais. O tipo


de participantes que constitui o grupo é determinado pelo objectivo a
atingir. No caso de se pretender promover a integração entre gerações, o
grupo deverá ser constituído por elementos de vários grupos etários
(crianças, adultos, idosos). Noutras situações, nomeadamente quando se
pretende promover o relacionamento entre idosos, utilizar-se-á apenas
pessoas pertencentes a esta faixa etária.

No caso já referido da recolha de chapéus antigos, optou-se por congregar


num mesmo momento – exposição pública dos objectos recolhidos – a
participação de idosos, jovens e crianças. A própria directora do
equipamento explica o modo como surgiu a ideia da inclusão de várias
gerações no projecto: “A ideia do projecto a realizar foi crescendo e
surgiu-me a hipótese de fazer um trabalho intergeracional. Na altura
ainda não se falava muito nisso, estava-se a começar a tocar no assunto e
eu, quase empiricamente, dei comigo a achar que um trabalho com
crianças, idosos e jovens era capaz de ser uma coisa muito interessante.”
Daí ao contacto com as crianças do ATL da Junta de Freguesia e com um
grupo de jovens dinamizadores de uma mímica com chapéus foi um
passo.

Um outro aspecto importante, após ter definido o tipo de participantes a


integrar no projecto, é a escolha do local onde decorrerão as sessões
Este aspecto deverá merecer uma atenção especial, pois dele dependerá
em grande parte o êxito ou o fracasso das actividades. Para além das
necessárias condições de acústica, temperatura e iluminação, é de referir
ainda a importância da carga emocional que o espaço escolhido
representa para o grupo: um local que os idosos associem a imagens de
angústia (entrada na instituição com consequente despedida dos
familiares) ou de perda (local onde lhes foi comunicado o falecimento do
(a) companheiro(a), por ex. são espaços onde a comunicação se revelará
mais difícil, senão mesmo impraticável.

Também a identificação do número de sessões necessárias, bem como a


definição da periodicidade de realização das mesmas, deverá receber uma
atenção especial por parte da equipa organizadora da actividade de
reminiscências. Estes aspectos deverão ser previamente definidos, sempre
em relação estreita com o objectivo inicial do projecto – elaborar uma
exposição de histórias de vida, realizar uma peça teatral de época,
elaborar um livro de usos e costumes, etc.

Poder-se-á utilizar um tema por sessão, ou mais do que uma sessão para
cada tema, consoante a complexidade e/ou a quantidade de informação
disponível para cada uma das temáticas abordadas. Aconselha-se, porém,
que cada sessão não exceda nunca 60 minutos.

Não existe nenhuma regra rígida quanto ao número de pessoas a envolver


nas sessões. No entanto, a fim de garantir uma participação equilibrada
por parte de todos, recomenda-se que aquele oscile entre as 6 e as 10
pessoas, consoante haja ou não participantes com limitações físicas ou
mentais.

Promover a evocação de memórias

São diversos os estímulos passíveis de serem utilizados na evocação de


memórias junto de pessoas idosas. Dada a ampla escolha – e tendo em
conta o carácter meramente reflexivo deste artigo –, optou-se por
enunciar apenas as três estratégias comunicativas mais utilizadas neste
tipo de actividades, na certeza porém de que muitas outras ficam por
referenciar, acrescidas de todas aquelas que a criatividade e os contextos
específicos de cada projecto naturalmente possam ditar.

A formulação de perguntas directas – a mesma questão dirigida a cada


um dos participantes – é um dos estímulos mais correntemente utilizados
Na medida do possível, dever-se-á privilegiar o recurso a questões
abertas, que deixam maior liberdade de resposta ao participante na
construção e organização do discurso. Não é de afastar porém a hipótese
de recorrer, sempre que necessário, às questões fechadas (exemplo das
respostas do tipo sim e não), sobretudo em situações em que é patente o
pouco à-vontade dos participantes no tema ou perante uma situação mais
inibidora e passível de originar momentos de embaraço.

A fim de suscitar memórias, é igualmente comum a utilização de objectos


Os objectos antigos (de que são exemplos o moinho de café, o funil, a
panela de ferro ou o almofariz) são excelentes meios para evocar
lembranças e podem ser utilizados como estímulo visual ou táctil. São
várias as estratégias que podemos seguir na utilização de objectos.

Uma hipótese passa por colocar os objectos sobre uma mesa, em frente
aos participantes, solicitando a cada um que escolha o objecto que para s
possui um maior significado, perguntando em seguida o porquê de ta
significado especial e que lembrança o objecto escolhido evoca.

Poder-se-á igualmente partir da colocação de vários objectos numa caixa,


pedindo de seguida a cada participante que escolha, pelo tacto, um
desses objectos. De seguida, solicitar-se-á que cada um diga qual o
objecto que tirou, porquê, e quais as lembranças que tal objecto lhe
suscita.

Uma das estratégias mais utilizadas passa pelo recurso a fotografias


Pede-se aos participantes que tragam para as sessões fotografias que
registem momentos importantes das suas vidas (Primeira Comunhão,
Casamento, Baptizado dos filhos). Seguidamente, solicita-se-lhes que
descrevam o local ou a situação em que essas imagens foram registadas,
bem como os sentimentos que elas lhes despertam.

Registar as actividades
A fim de facilitar a elaboração do historial do projecto, bem como a
avaliação do seu impacto, é fundamental registar as actividades
desenvolvidas ao longo das sessões de reminiscências. A forma a utilizar
para o registo irá depender do grupo e dos recursos disponíveis. No
quadro abaixo, indicam-se alguns tipos de registo, bem como as suas
principais vantagens e inconvenientes.

Avaliar

A avaliação é uma componente fundamental no desenvolvimento de


qualquer actividade de reminiscências. Só ela permite a comparação do
que se fez com o que se tinha planeado fazer e, a partir daí, concluir
sobre o êxito alcançado. No fim de cada sessão, devem ser registadas
observações em relação aos seguintes pontos:

– Data

– Estímulos utilizados – Dinâmica de grupo

– Duração da sessão

– Definição de tarefas – Objectivos atingidos

– Assunto discutido

– Influências internas/externas – Interesse das questões

Poder-se-á ainda recorrer a outros indicadores, tais como a opinião dos


participantes acerca do tipo de actividades desenvolvidas ou a
comparação do número de pessoas inscritas com o número de
desistentes. Só através da referência a este tipo de itens se poderá
proceder fundamentadamente à avaliação global da actividade.

Problemas Mais Comuns

Pessoas que falam demasiado, idosos que choram, indivíduos que


verbalizam discursos recorrentemente negativistas e participantes que
insistem em impor os seus “conselhos” são alguns dos quebra-cabeças
que poderão surgir durante as sessões de reminiscências. Bom-senso e
experiência são os trunfos do monitor para ultrapassar tais situações.

No caso específico de pessoas excessivamente faladoras, que


monopolizam a conversa e concentram em si todo o protagonismo da
sessão, cabe ao monitor intervir de forma subtil e delicada, sublinhando a
importância do contributo de todos para a riqueza e diversidade do
produto final. O objectivo do monitor será conseguir suscitar o interesse
de cada um pelo que os outros têm para contar, sensibilizando os
participantes para a arte de partilhar experiências e para a importância
de desenvolver a capacidade de ouvir.

Por vezes, o assunto em discussão provoca um estado emocional de


intensidade superior ao que seria de esperar. É preocupação constante de
quem inicia o trabalho com reminiscências a possibilidade de alguém se
emocionar demasiado durante a sessão. Caso isso venha a acontecer, o
monitor não se deve precipitar, sendo recomendável que comente com o
idoso o quão natural é a sua reacção, perguntando-lhe de seguida se
pretende ou não continuar a sessão. Caso o idoso mude subitamente o
tópico da conversa ou pare de falar, dever-se-á respeitar a sua decisão, o
mesmo acontecendo no caso da pessoa demonstrar vontade de ficar
sozinha. Terminada a sessão, é aconselhável dedicar alguns minutos a
esse participante, fazendo-o compreender que pode contar com a
compreensão e ajuda de todos.

Temos ainda o caso das pessoas com tendência para relembrar apenas os
aspectos menos felizes da sua vida e verbalizar as sensações negativas
que aqueles lhes provocaram. Nessa situação, o monitor deverá tentar
induzi-las à partilha de lembranças positivas, solicitando-lhes
especificamente que relembrem pelo menos um momento de alegria, uma
situação em que experimentaram algum tipo de prazer. Esta atitude
desencadeia por vezes um conjunto de memórias agradáveis, que alteram
significativamente a tónica negativista do discurso inicial.

Finalmente, há a referir a presença de pessoas que gostam


recorrentemente de emitir juízos de valor e de transmitir conselhos aos
outros, sobretudo se estes últimos pertencem a gerações mais novas
Quando o trabalho de memórias com idosos implicar a presença de
crianças ou jovens e caso o monitor detecte a tendência de algum idoso
para ingressar nessa tónica discursiva, deverá tomar providências para
desviar o foco da conversa, evitando deste modo o fortalecimento de
estereótipos por parte das gerações mais jovens relativamente à postura
“tradicionalmente maçadora” dos mais velhos.

Temas-Chave

Os temas para as sessões podem ser os mais variados, podendo assumir


o carácter exclusivamente social, histórico ou pessoal ou incluir todos
eles.

De salientar aqui, que a divisão dos temas nas duas grandes fases do ciclo
de vida humana – infância e estado adulto – é meramente uma questão
de organização discur-siva embora não deixe igualmente de reflectir a
capacidade fortemente estruturante do ciclo vital.

Infância

No âmbito desta fase da vida, poder-se-ão abordar temas tão diversos


como o tema do Vestuário (Como eram os modelos das roupas da sua
infância? Quem as costurava? De que tipo de tecido eram feitas? Onde
eram comprados os tecidos? Quais eram as suas cores preferidas? Como
eram as roupas domingueiras?), da Educação (Quando era criança, teve
possibilidade de frequentar a escola? Como era o seu professor? Que
impressões ele lhe deixou? Descreva como era a sua primeira escola. Qua
era o meio de transporte para ir à escola? O que mais lhe agradava na
escola?) ou ainda da Família e Habitação (Conte-nos como era a sua
família. Qual era a atribuição de cada um na família? Como era o lugar
onde moravam? Como era a iluminação? Como eram os móveis?).

Brincadeiras e Jogos são igualmente temas associados à infância,


suscitando na grande maioria dos casos memórias com uma carga
emocional francamente positiva (Quais eram as brincadeiras mais comuns
na sua infância? Descreva aquela brincadeira que mais lhe agradava)
Outra sugestão é programar ateliers onde alguns brinquedos possam ser
feitos, tais como bonecas de pano, ioiôs, carros de madeira, etc.. O
mesmo se passa com o tema da Alimentação, cujas recordações
costumam primar pela tónica positiva (Descreva a cozinha da sua casa em
criança. Como era o fogão? Como eram os utensílios de cozinha?
Descreva os alimentos mais comuns na sua infância. Qual era o seu prato
favorito? Quem costumava preparar as refeições? Como eram feitas as
refeições – lugar, horários, quantas refeições por dia, etc.). Temos ainda o
tema da Saúde que, pelo facto de apresentar actualmente contornos
substancialmente diferentes dos prevalecentes em décadas passadas, é
motivo recorrente de discussões calorosas (Quais eram as doenças mais
comuns na sua infância? Como eram tratadas essas doenças? Existia
facilidade de consultas médicas? Quais eram os remédios mais usados?).

Vida Adulta

Neste âmbito, temos temas tão diversos como o Trabalho (Qual foi a sua
primeira ocupação? Conte-nos como conseguiu o seu primeiro emprego
Como era o ambiente de trabalho? Como era a lida da casa?), a Carreira
Profissional (Qual é a sua profissão? Como foi a escolha da sua profissão?
O que mais lhe agradava no trabalho que desempenhava? Conte-nos um
episódio marcante da sua vida profissional.) ou o Namoro e Noivado (é
importante lembrar que as pessoas podem nunca ter namorado ou
passado por uma situação de noivado, pelo que o animador necessita de
estar de posse dessas informações antes de iniciar as actividades
Exemplos de questões: Como foi o seu primeiro encontro com o cônjuge?
Como era o namoro na época em que começaram a namorar? O que
diferenciava o namoro do noivado?).

Ainda neste domínio, surge o tema do Casamento (conte-nos como foi o


seu casamento. Como eram as roupas que usaram no dia do casamento?
Descreva a vossa primeira casa. Quantos filhos tiveram?). É importante
não esquecer que este é um tema propício a momentos de alguma
nostalgia e por vezes mesmo de algum sofrimento, pelo que o animador
deverá estar especialmente atento a quaisquer depoimentos de cariz mais
melancólico.

O Fim Último do Trabalho

Desenvolvido

Uma vez assegurados os princípios orien-tadores da prática do trabalho


de reminiscências, o resultado último das actividades desenvolvidas
poderá assumir as mais varia-das formas.

Publicação

A publicação em livro é uma das formas mais usuais de materialização do


material recolhido durante as sessões de reminiscências. Um caso
ilustrativo desta opção foi a publicação do livro “Quinze Histórias por
Contar”, resultado de um trabalho de memórias desenvolvido com idosos
da Obra Social do Pousal, um equipamento da Santa Casa da Misericórdia
de Lisboa (ver caixa em cima). A ideia surgiu a partir da realização de um
jogo que consistia em recordar e explicar o significado de palavras usadas
ou mais conhecidas em certas regiões do país. A ideia era criar um leque
de personagens que levasse os idosos a inventar uma história colectiva,
dando assim uso às palavras inventariadas. As histórias foram contadas e
gravadas em cinco sessões, resultando na publicação de um livro, cujo
título foi decidido em conjunto pelos próprios idosos participantes no
projecto.

Peças Teatrais

Uma outra forma de objectivação das narrativas pessoais é a sua


transformação em peças teatrais. O argumento poderá ser escrito por
professores de teatro contratados para o efeito ou mesmo pelos idosos,
os quais poderão assumir igualmente o protagonismo da respectiva
encenação. A participação estreita dos idosos no output do projecto
permite transformar a própria representação teatral não só em veículo de
auto-expressão e de preservação da memória, mas também em factor de
crescimento pessoal contínuo e de envolvimento comunitário (no caso
específico da participação de outros grupos etários).

Museus

Outra sugestão é a criação de pequenos museus ou centros de


reminiscências, no interior de lares, centros de convívio ou qualquer outro
espaço onde se pretenda desenvolver actividades com idosos. De salien-
tar a possibilidade de implantação de um espaço com estas
características em estabelecimentos de ensino, onde o diverso leque de
actividades propostas possibilitaria um intercâmbio cultural acrescido a
nível intergeracional. A fim de facilitar o entrosa-mento dos idosos com a
comunidade envolvente, poder-se-ia pensar em solicitar

que esta fizesse doações de objectos antigos, deixando-os expostos. Os


próprios idosos trabalhariam como voluntários, informando os visitantes
sobre a história detalhada dos artefactos em exposição.

Exposições

Como regra geral do trabalho de reminiscências, todo o trabalho realizado


pode e deve ser mostrado ao público, em exposições organizadas para
divulgação das actividades e sensibilização da população em geral. De
salientar que algumas exposições podem ser, não o resultado, mas o
caminho para o processo de reminiscências. É usual recorrer-se nesse
caso à utilização não de objectos mas de fotografias, que servirão como
base para a evocação de memórias e como estímulo para incentivar o
relacionamento interpessoal. Exemplo disso mesmo foi o trabalho
desenvolvido no Lar Nossa Senhora da Visitação, já referido acima: a
recolha de fotografias pertencentes ao espólio de cada um dos
participantes teve como principal objectivo transformar aqueles suportes
físicos de memórias em focos de interesse e pontos de partida para
conversas promotoras de um mais fácil relacionamento entre os recentes
utentes daquele espaço.

Livro da História de Vida Pessoal

Um dos casos mais curiosos de suporte final do trabalho de


reminiscências é o Livro da História de Vida Pessoal. Ao contrário dos
suportes atrás mencionados – que resultam de um trabalho de
reminiscências desenvolvido em grupo –, o Livro da História de Vida
Pessoal é a materialização de um trabalho de memórias desenvolvido a
nível individual. Trata-se de um livro que contém a história de vida do
idoso, sendo a vontade e preferências deste aspectos fundamentais a ter
em conta na sua elaboração (questioná-lo acerca da forma como gostaria
de ver a sua história escrita – álbum manuscrito ou livro convencional – é
apenas um exemplo disso mesmo). De salientar o facto do livro se dirigir
antes de mais ao idoso, pelo que diversos aspectos deverão ser tidos em
conta na sua elaboração: se o livro for manuscrito, utilize uma caligrafia
legível, escrevendo apenas num dos lados da folha; assegure-se que a
caligrafia possui dimensões superiores ao normal – lembre- -se que a
pessoa idosa pode não ser capaz de ver bem; coloque tantas fotografias
quanto possível, complementando-as com fotocópias de documentos
antigos provenientes de bibliotecas ou de outras fontes.

Com este passo, termina o rol de etapas que constituem o percurso de


elaboração e montagem de um projecto de trabalho de reminiscências. O
trabalho foi desenvolvido e a sua materialização foi objecto de discussão
e apresentação pública. Chegámos então ao fim?
Sem dúvida que as etapas formais foram palmilhadas. Participantes, de
um lado e de outro, viram a sua função objectiva “oficialmente”
terminada. No entanto, uma réstia de memória teima em ficar,
inacabada, recorrentemente recordada por aqueles que, durante as várias
sessões de trabalho, experienciaram o sábio dizer das nossas gentes:
recordar é viver...

* Técnica de Serviço Social e Socióloga na SCML

Você também pode gostar